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A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE, 2009) e a vigilância em saúde do escolar no Brasil: questões para reflexão

National Adolescent School-based Health Survey (PeNSE, 2009) and school health surveillance in Brazil: issues to debate

DEBATEDORES DISCUSSANTS

A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE, 2009) e a vigilância em saúde do escolar no Brasil: questões para reflexão

National Adolescent School-based Health Survey (PeNSE, 2009) and school health surveillance in Brazil: issues to debate

Elisabeth Carmen Duarte

Universidade de Brasília. eduarte@unb.br

O artigo em debate, "Prevalência de fatores de risco e proteção de doenças crônicas não transmissíveis em adolescentes: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), Brasil, 2009", et al.1, estima a prevalência de fatores de risco e de proteção à saúde relevantes entre escolares de capitais brasileiras, a partir da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE). O artigo, assim como os demais que se seguem neste número especial da revistaCiência & Saúde Coletiva, exemplifica o uso dos dados da PeNSE para a produção de evidências que nortearão a ação em saúde pública. Essa produção científica, focada em características e comportamentos autorreferidos de escolares, é lúcida e oportuna. Faço a seguir uma reflexão provocada por este artigo em particular, mas também – em geral – pela PeNSE como fonte de dados para a vigilância em saúde do adolescente no Brasil.

Com a criação da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) no Ministério da Saúde em 2003, a estratégica área da Vigilância das Doenças e Agravos Não Transmissiveis (DANT) foi conduzida por um profícuo processo de aprimoramento de seu marco teórico-conceitual e ampliação de seu arsenal tecnológico, atingindo hoje características de uma política de estado de abrangência nacional. A PeNSE soma-se a esse arsenal do ponto de vista epidemiológico e, por várias razões, demonstra seu potencial como importante instrumento de vigilância em saúde. Comento aqui algumas dessas razões: (1) a magnitude e a evitabilidade dos eventos sob vigilância; (2) a posição estratégica que a sua população-alvo ocupa; e (3) a relevância da finalidade principal da PeNSE – a vigilância da saúde do escolar no Brasil.

Primeiro devo destacar a magnitude e a evitabilidade dos eventos sob vigilância. As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) são eventos cujos fatores de risco e de proteção vêm sendo amplamente estudados e, em grande medida, sua evitabilidade por ações de baixa densidade tecnológica de mudanças de comportamento tem sido reconhecida. A Organização Mundial da Saúde estima que condições crônicas, incluindo doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, neoplasias e doenças respiratórias são responsáveis por 59% do total de mortes que ocorrem no mundo a cada ano2. Além disso, existem evidências de que sete fatores de risco – hipertensão arterial, colesterol elevado, obesidade, sedentarismo, consumo inadequado de frutas e vegetais, uso de álcool e tabagismo – são responsáveis por mais da metade da carga de doenças do mundo2. Estudo realizado com dados de 16 capitais brasileiras estimou que uma proporção de 13,6% das mortes de todas as pessoas (e 18,1% de mortes dos homens) com 35 ou mais anos de idade era atribuída ao tabagismo isoladamente, em 20033. Ademais, esses fatores de risco, que por muitas vezes se sobrepõem, são capazes de interferir dramaticamente no desenvolvimento e em prevalências de doenças crônicas, promovendo mudanças rápidas na epidemiolgia e carga dessas doenças em um país. Evidências têm sido construídas no sentido de demonstrar que tanto a adesão a esses fatores de risco como importante parte das DCNT são eventos sensíveis a intervenções no campo da promoção da saúde e da prevenção primária. A análise das violências e acidentes, mesmo sem ignorar a complexa rede causal desses eventos, não se distancia muito dessa noção geral de evitabilidade. A título de ilustração dessa evitabilidade, pode ser citada, no Brasil, a redução importante da mortalidade por neoplasia de pulmão ocorrida nas coortes mais jovens de homens (30-59 anos de idade), associada às expressivas quedas precedidas nas prevalências de tabagismo no país nas últimas décadas3,4. Outro exemplo é a implantação do Código Nacional de Trânsito, que influenciou de maneira importante a mortalidade por acidentes de transporte terrestre no ano de sua implantação5. O artigo em debate demonstra que apenas 31% dos escolares referiram consumo regular de frutas frescas, 43% praticavam atividade física nos níveis recomendados – predominantemente os meninos – e relevante proporção de escolares já experimentaram alguma bebida alcoólica (71%), cigarro (24,2%) ou drogas ilícitas (8,7%).1 Por serem sensíveis a ações e políticas de saúde, a mensuração dos fatores de risco das DANT em escolares ganha relevância, não apenas para a advocacia e focalização de grupos mais vulneráveis, mas também como medida de desempenho das intervenções implementadas: como estamos, como estaremos no futuro e como podemos intervir melhor?

Destaco, ainda, a posição estratégica que ocupa a população-alvo dessa pesquisa: os escolares do 9º ano do ensino fundamental de escolas públicas e privadas das capitais brasileiras. A adolescência é uma fase da vida repleta de transformações biológicas, comportamentais e psicossociais, geralmente marcada pela abundância e urgência de experiências novas que tanto proporcionam oportunidades saudáveis de crescimento e aprendizagem para ganho de autonomia e a admissão na vida adulta como, por vezes, implica exposições a riscos com desfechos desfavoráveis imediatos ou tardios na vida. As primeiras experimentações com comportamentos de risco para a saúde – tais como o uso do tabaco, do álcool, de drogas ilícitas, a direção inexperiente de veículos, a prática de atividade sexual sem proteção, entre outros – ocorrem, com frequência, nessa fase da vida6. Além disso, parece que hábitos saudáveis da infância também tendem a ser abandonados quando a adolescência se inicia6. Portanto, é plausível supor que ações direcionadas a informar, promover e reforçar modos de vida saudáveis ou reverter a adesão a comportamentos de risco recém-adquiridos têm potencial para serem especialmente exitosas entre adolescentes. Somada a isso, a abordagem do adolescente na escola é um grande facilitador. Segundo os autores, grande proporção dos adolescentes brasileiros está matriculada em escolas. Além disso, o espaço da escola é, sem dúvida, ambiente acolhedor para ações de promoção à saúde e prevenção primária focadas no estudante, mas é tambem espaço de mediação importante para o alcance das famílias e da comunidade.

Finalmente, destaco a relevância do objetivo principal da PeNSE: a vigilância em saúde. Apesar de incluir o termo "pesquisa" em seu nome, a PeNSE concluída em 2009 constitui-se em uma linha de base para a implantação de um processo permanente e sistemático de vigilância da saúde do escolar no Brasil, como salientado pelos autores1, a exemplo do que está sendo realizado em diferentes países com o protagonismo da Organização Mundial da Saúde (Health Behaviour in School-aged Children – HBSC)6 e do Centers for Disease Control and Prevention (Youth Risk Behavior Surveillance System – YRBSS)7. Em sua concepção mais ampla, a PeNSE permite não apenas estimar a magnitude de indicadores estratégicos, mas também analisar as tendências temporais desses indicadores, assim como avaliar o impacto das intervenções e políticas de saúde que tenham esse público de escolares como alvo. Nesse sentido, a busca deve ser pela coprodução de evidências para a ação em saúde pública, em um processo "alimentador" e "alimentado" pelos resultados dessa mesma ação.

Para tanto, o processo de vigilância em saúde que a PeNSE inaugura deverá garantir certos atributos de performance desejáveis em qualquer sistema de vigilância, incluindo a sustentabilidade, a flexibilidade, a qualidade (completude, validade, precisão e reprodutibilidade) dos dados, entre outros8,9. A maioria desses atributos, acredito, foram priorizados nas etapas primorosas de desenvolvimento da linha de base da PeNSE. A preocupação com a precisão e a validade dos dados coletados e o necessário rigor científico, por exemplo, podem ser vislumbrados em todo o processo de construção dessa linha de base, incluindo a preocupação com uma amostra probabilística e a sua representatividade para o "estado" como unidade de análise, o cuidadoso processo de construção dos instrumentos de coleta de dados com a participação de vários grupos de especialistas e diferentes estágios de pré-testagem e validação de instrumentos e logística, a baixa não resposta obtida na coleta de dados (11%) e a análise criteriosa que resultou neste número especial da presente revista. A garantia de certa flexibilidade futura permitirá ainda que a PeNSE seja inclusiva e incorpore outros subgrupos de escolares e outros temas relevantes na medida da necessidade da ação pretendida ao longo de sua existência. Porém, um dos atributos citados merece reflexão mais cuidadosa dos gestores envolvidos na implantação da vigilância da saúde do escolar no Brasil por meio da PeNSE: o atributo da sustentabilidade. Para que a PeNSE se transforme em um instrumento efetivo de vigilância em saúde, e que se amplie a partir dessa pesquisa pontual, a sua repetição sistemática será necessária, o que demanda um financiamento contínuo, vontade política claramente estabelecida e perpetuação de estruturas logísticas adequadas, incluindo equipes capacitadas para esse fim. Essas questões devem estar presentes em nossas organizações governamentais e pautadas nas agendas dos gestores e pesquisadores responsáveis pela PeNSE.

3 Ministério da Educação. jaqueline.moll@mec.gov.br

4 Programa Saúde na Escola, Ministério da Educação

  • 1. Malta DC, Sardinha LMV, Mendes I, Barreto S, Giatti L, Rugani I, Moura L, Dias AJR, Crespo C. Prevalência de fatores de risco e proteção de doenças crônicas não transmissíveis em adolescentes: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), Brasil, 2009.Cien Saude Colet 2010; 15(Supl.2):3009-3019.
  • 2. WHO. Global Strategy on diet, physical activity and health. Chronic disease risk factors: key risk factors include high cholesterol, high blood pressure, low fruit and vegetable intake, 2003. [acessado 2010 jun 26]. Disponível em: http://www.who.int/dietphysicalactivity/media/en/gsfs_chronic_disease.pdf
  • 3. Corrêa PCRP, Barreto SM, Passos VMA. Smoking-attributable mortality and years of potential life lost in 16 Brazilian capitals, 2003: a prevalence-based study. BMC Public Health2009; 9:206. [acessado 2010 set. Disponível em: http://www.biomedcentral.com/1471-2458/9/206
  • 4. Malta DC, Moura L, Souza MFM, Curado MP, Alencar AP, Alencar GP. Tendência de mortalidade do câncer de pulmão, traqueia e brônquios no Brasil, 1980-2003. J Bras Pneumol 2007; 33(5):536-543.
  • 5. Duarte EC, Duarte E, Sousa MC, Tauil PL, Monteiro RA. Mortalidade por acidentes de transporte terrestre e homicídios em homens jovens das capitais das regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, 1980-2005. Epidemiol Serv Saúde (Brasília) 2008; 17(1):7-20.
  • 6. WHO. Inequalities in young people's health: key findings from the Health Behaviour in School-aged Children (HBSC) 2005/2006 survey. Fact sheet, 2008. [acessado 2010 jun 26]. Disponível em: http://www.euro.who.int/data/assets/pdf_file/0004/83695/fs_hbsc_17june2008_e.pdf).
  • 7. Eaton DK, Kann L, Kinchen S, Shanklin S, Ross J, Hawkins J, Harris WA, Lowry R, McManus T, Chyen D, Lim C, Whittle L, Brener ND, Wechsler H. Youth risk behavior surveillance United States, 2009. MMWR Surveill Summ 2010; 59(5):1-142.
  • 8. CDC Working Group. Updated guidelines for evaluating public health surveillance systems: recommendations from the Guidelines Working Group. MMWR 2001; 50(RR13):1-35.
  • 9. CDC Working Group. Framework for evaluating public health surveillance systems for early detection of outbreaks: recommendations from the CDC Working Group. MMWR 2004; 53(RR05):1-11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Out 2010
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