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Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar

Imaginaries present in the training of health professionals in Brazil and the horizons of supplementary care regulation

Resumos

O artigo é um estrato de uma pesquisa sobre os imaginários presentes na formação dos profissionais de saúde relativamente à regulação e ao exercício da profissão. Foram escolhidas as profissões de medicina, odontologia e psicologia, cuja abertura de cursos demanda apreciação do Conselho Nacional de Saúde. A compreensão sobre imaginários foi a de que funcionam como operadores de virtualidades e realidades, contendo potências de afirmação ou negação de formas e conteúdos ao ser profissional ou ao estar na profissão. Foi evidenciada a vigência de um imaginário de atuação liberal-privatista conjugado ao trabalho no segmento público-estatal, onde se obteria maior experiência com doenças e diversidades do sofrimento. O lugar ideal de trabalho seria o privado, de livre arbítrio dos profissionais e usuários, mas com vínculo estatal para experiência, oportunidade de estudo e chances de bolsas de pesquisa e estágio no exterior. Apesar da expectativa para com a área privada, inexiste ensino e formação relativos ao conhecimento da saúde suplementar, assim como sobre os sentidos da regulação pelo Sistema Único de Saúde.

Imaginários da formação; Atuação profissional em saúde; Saúde suplementar; Profissões de saúde


This paper is part of a research into the imaginaries present in the training of health professionals with respect to the regulation and exercise of their profession. The professions selected were medicine, odontology and psychology, for which emerging courses require evaluation by the National Health Council. The imaginaries were understood as operators of the virtual and the real with the potential of affirming or denying forms and contents in relation to being a professional or being in the profession. There was evidence for an imaginary of free exercise of the profession in the public sector on state level, where more experience with diseases and diversities of suffering would be gained. The ideal work place would be the private sector allowing for free choices for both professionals and users, but not without connection to the public sector for providing experience, study opportunities and the possibility of research scholarships and overseas training. Despite the expectations in relation to the private sector, currently there is no education in the field of supplementary care or about the meanings of the regulation proposed by the Brazilian Health System.

Training imaginaries; Professional exercise in health; Supplemental health; Health professions


ARTIGO ARTICLE

Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar

Imaginaries present in the training of health professionals in Brazil and the horizons of supplementary care regulation

Ricardo Burg CeccimI; Teresa Borgert ArmaniI; Dora Lúcia Leidens Correa de OliveiraII; Luiz Fernando BilibioI; Maurício MoraesIII; Naiane Dartora SantosIV

IEducaSaúde - Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Dr. Raul Moreira 550, Cristal. 90.820-160 Porto Alegre RS. burg.ceccim@ufrgs.br

IIPrograma de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

IIICurso de Graduação em Medicina, Escola de Saúde, Universidade Católica de Pelotas

IVCurso de Graduação em Medicina, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade de Caxias do Sul

RESUMO

O artigo é um estrato de uma pesquisa sobre os imaginários presentes na formação dos profissionais de saúde relativamente à regulação e ao exercício da profissão. Foram escolhidas as profissões de medicina, odontologia e psicologia, cuja abertura de cursos demanda apreciação do Conselho Nacional de Saúde. A compreensão sobre imaginários foi a de que funcionam como operadores de virtualidades e realidades, contendo potências de afirmação ou negação de formas e conteúdos ao ser profissional ou ao estar na profissão. Foi evidenciada a vigência de um imaginário de atuação liberal-privatista conjugado ao trabalho no segmento público-estatal, onde se obteria maior experiência com doenças e diversidades do sofrimento. O lugar ideal de trabalho seria o privado, de livre arbítrio dos profissionais e usuários, mas com vínculo estatal para experiência, oportunidade de estudo e chances de bolsas de pesquisa e estágio no exterior. Apesar da expectativa para com a área privada, inexiste ensino e formação relativos ao conhecimento da saúde suplementar, assim como sobre os sentidos da regulação pelo Sistema Único de Saúde.

Palavras-chave: Imaginários da formação, Atuação profissional em saúde, Saúde suplementar, Profissões de saúde

ABSTRACT

This paper is part of a research into the imaginaries present in the training of health professionals with respect to the regulation and exercise of their profession. The professions selected were medicine, odontology and psychology, for which emerging courses require evaluation by the National Health Council. The imaginaries were understood as operators of the virtual and the real with the potential of affirming or denying forms and contents in relation to being a professional or being in the profession. There was evidence for an imaginary of free exercise of the profession in the public sector on state level, where more experience with diseases and diversities of suffering would be gained. The ideal work place would be the private sector allowing for free choices for both professionals and users, but not without connection to the public sector for providing experience, study opportunities and the possibility of research scholarships and overseas training. Despite the expectations in relation to the private sector, currently there is no education in the field of supplementary care or about the meanings of the regulation proposed by the Brazilian Health System.

Key words: Training imaginaries, Professional exercise in health, Supplemental health, Health professions

Introdução

Com a conquista do Sistema Único de Saúde (SUS), ampliamos o acesso da população às ações e aos serviços de que necessita em saúde, bem como reduzimos os efeitos e as chances predatórias do setor econômico sobre a cobertura dessas ações e serviços, uma vez que autorizada a sua oferta pela iniciativa privada. Pouco nos dedicamos, entretanto, na educação superior, a compreender as atuais características das relações entre público e privado no setor da saúde, onde encontramos um subsetor estatal, composto por ações e serviços próprios do SUS e ações e serviços contratados e conveniados, identificados como complementares (participação complementar), uma vez que não-estatais, mas prestando serviços ao Estado, e um subsetor suplementar composto pelas ações e pelos serviços prestados pela iniciativa privada (serviços privados de assistência à saúde), cabendo ao SUS a sua regulamentação, fiscalização e controle (regulação), zelando pela qualidade dos serviços de assistência (promoção, proteção e recuperação) à saúde (CF, art. 197 e 199; LOS, art. 4º, 20, 21, 22, 24 e 25)1,2.

O que queremos destacar na abertura deste texto é que as ações e os serviços de saúde foram definidos constitucionalmente como de relevância pública, não de interesse social, como o são todas as políticas públicas do capítulo da Ordem Social na Constituição Federal. A relevância pública torna a saúde um dever de Estado não somente na oferta pública (pelo poder público), mas na fiscalização da iniciativa privada e na regulamentação de toda prestação por pessoa física ou jurídica de direito privado atuante no setor. Foi no interior do SUS que surgiu a figura da saúde suplementar e criou-se uma agência de regulação, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas como supor a alta legitimidade e ativa aceitação da regulação pública sem uma educação para a saúde suplementar no âmbito do SUS?

Considerando a história social brasileira e a história da organização do sistema brasileiro de saúde, entendemos como necessária uma especial interrogação pertinente à relevância pública entre os imaginários da formação; afinal, é durante a educação profissional que critérios e valores são construídos como perfil ao exercício da profissão. Conhecendo os imaginários presentes na formação, supomos poder conhecer o agenciamento coletivo de enunciação3 proposto à composição de saberes, perfis e ideários profissionais. Um imaginário não funciona como um determinismo, mas como um campo de possíveis, proporcionando o agenciamento de marcas e signos, assim como inscrevendo memórias afetivas e promessas de futuro.

Quais os imaginários relativos ao exercício das profissões científicas da saúde e, dentro destes, qual a ideação das práticas assistenciais que estão vigentes na educação superior? Essa interrogação surge para melhor entender os possíveis padrões de aceitação, de entendimento e de expectativa à extensão do papel de regulação pública a ser exercido pelo Estado sobre as práticas profissionais, na garantia dos direitos de cidadania, na oferta de padrões de acesso à atenção integral e na formulação do modelo tecnoassistencial. Conhecer os imaginários da formação em saúde é acessar as características da formação que temos (seu miolo produtor de sentidos) e os desafios à formação que desejamos em defesa da implicação do processo formativo com a relevância pública do setor, com a integralidade da atenção e com o trabalho em equipe.

O ideal do exercício liberal (individual) da profissão e o ideal do cenário consultório-prescrição (de ampla autonomia) terminam por estabelecer a vigência - no plano ideativo - da imagem liberal-privatista a ser reproduzida nos subsetores estatal (próprio ou complementar) e suplementar (privado). Esse imaginário enaltece o subsetor suplementar, colocando-o como projeto profissional, embora a pouca ou nula reflexão crítica sobre sua resolubilidade, apropriação dos termos da integralidade em saúde ou comunicação com as redes sociais de pertencimento e inclusão dos usuários.

O prejuízo ao subsetor estatal é o da manutenção de um ideário que lhe é distante e inadequado ao cumprimento de seu papel público, o que se estende aos padrões de contratação e convênio que são estabelecidos com a iniciativa privada. O prejuízo aos usuários do subsetor suplementar é o da inacessibilidade à promoção e proteção à saúde e à atenção integral que dê acolhimento às histórias de vida que acompanham os adoecimentos, em especial quando dependem do leque de oferta dos planos e seguros privados. Um terceiro prejuízo ocorre quando os profissionais, capturados em sua subjetividade pelo imaginário liberal-privatista, rechaçam, desqualificam ou oneram com questões corporativas o trabalho nas áreas estatais e subordinam os usuários a um cuidado que não lhes é acolhedor e não alcança a sua alta adesão terapêutica.

A captura das aspirações profissionais subordina os próprios profissionais à aceitação tácita dos paradigmas científicos tributários da economia capitalista mundial e aos padrões disciplinares das sociedades de conhecimento em detrimento do cuidado propriamente dito e da mais elevada interação com as singularidades que se põem ao atendimento de saúde. Observa-se a perda e a intensa regulação das autonomias técnico-científicas quando os profissionais atuam na saúde suplementar em nome do interesse econômico das empresas de planos e seguros privados de saúde, como das indústrias de equipamentos e produtos e dos laboratórios farmacêuticos. O prejuízo aos trabalhadores traduzir-se-á pelo trabalho danoso para a sua saúde pessoal que, de um lado, é combatido, tendo em vista direitos no trabalho, e de outro é naturalizado e subsumido como inexpugnável, além de ungido como condição social ao prestígio público, sucesso na carreira e superioridade profissional e econômica. Os imaginários sobre a profissão e o exercício profissional estarão, portanto, na base daquilo que acontece nas ações e nos serviços de saúde.

Ainda que a transposição social do lugar de profissão liberal universitária para o de trabalhador da saúde tenha sido detectado no Brasil desde meados dos anos 1970, não aconteceu, no imaginário das profissões de saúde, um movimento de progressão em direção à cidadania ou à democratização. Em lugar de ascensão à condição de trabalhador, uma sujeição à condição de assalariado marca esse imaginário do trabalho. Incapaz de orientar um novo dever profissional que ordene saberes e constitua disponibilidades ao fazer em equipe, a educação superior utiliza os símbolos e a linguagem que diferem as profissões superiores de uma identidade com as classes trabalhadoras. Embora obras clássicas como Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho4 e O saber de enfermagem e sua dimensão prática5 apontassem, conforme Nogueira6, para uma identidade com a classe trabalhadora, um imaginário sobre a superioridade da educação marca o lugar de sucesso na carreira como superioridade de classe.

Obras de elevado rigor analítico como As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia7, Os médicos e a política de saúde8, O capitalismo e a saúde pública9, A saúde pública como política10e Do físico ao médico moderno: a formação social da prática médica11 detectaram os movimentos das corporações profissionais, os efeitos da formação social capitalista no interior da prática profissional (saber universitário como prática de classe social) e exercício da profissão como prática social de identificação com o capital e não com o trabalho. Além do resíduo terminológico profissão liberal universitária, um conceito mesmo de exercício profissional arrasta um universo semântico e sociopolítico que configura o título universitário como profissão liberal nos moldes clássicos, tanto mais arraigado quanto mais retroalimentado na disputa pelos discursos com poder na sociedade. Coelho demonstra em farta documentação histórica que profissão é um conceito historicamente contingente com raízes em instituições inglesas e norte-americanas, não existindo o conceito genérico de profissão como pretende a sociologia das profissões12. Donde tecnologias do imaginário nutrem e estabelecem contextos nacionais e históricos específicos.

A necessidade e a oportunidade que colhemos de ampliar estudos e análises no âmbito do ensino não é pela humanização, co-responsabilização, saúde da família ou constituição de sujeito, temas em voga no Brasil, é pelo conhecimento do sonho com o trabalho, isto é, a necessidade e a oportunidade de problematizarmos a imagem do exercício profissional nas profissões científicas da saúde para compreendermos o nó da baixa implicação com o SUS, uma espécie de não-dito, desejo sigiloso, ordenamento subjetivo. Um imaginário liberal-privatista atravessa o que se ensina sobre saúde desde a educação infantil até a pós-graduação das áreas clínicas em saúde, uma concepção marcada pela prática de consultório, pelo atendimento individual embasado na díade diagnóstico-prescrição, tendo a doença como referência e o curativismo biologicista como paradigma. Esse imaginário não tem sido colocado em questão mediante aproximações concretas ao mercado de trabalho em saúde, à regulação do subsetor privado-suplementar e aos itinerários terapêuticos efetuados por usuários e profissionais em busca da resolutividade dos problemas de saúde identificados, além de suas implicações à cidadania e à promoção da saúde como responsabilidade setorial e profissional.

Discutidos há décadas, por diversos autores, os paradigmas científicos da formação não permaneceram iguais, nem foram substituídos. Não foi abandonada a perspectiva flexneriana, embora reduzida a perspectiva biologicista pela humanização; não foi abandonada a perspectiva médico-centrada, embora acentuada a co-responsabilização; não foi suprimida a perspectiva hospitalocêntrica, embora introduzida a saúde da família; não foi suprimida a noção de verdade contida nos exames e medicamentos, embora a conversa sobre a constituição de sujeito. O que queremos dizer? Que ocorreram mudanças na formação, sim, estão aí os exemplos do novo universo semântico, mas não se tocou a alma, diria Merhy13, a aura, diria Benjamin14, a atmosfera, diria Maffesoli15, o ordenador discursivo ou a figura de estilo, diria Bachelard16, as pulsões subjetivas e assimiladoras ou o intellectus sanctus, diria Durand17,18. Mudaram as formas, mas não mudaram as forças que as constituem, fonte racional e não-racional de impulsos para a ação, diria Machado da Silva19. São nessas direções que entendemos a dinâmica do imaginário; alma, aura, atmosfera, prática discursiva, impulso, submissão do ser a uma ordem melhor/razão maior (intellectus sanctus) que vibra naquilo que acontece como formação no ensino e no trabalho em saúde. É esta composição (por fratura ou sedimentação) que constitui ordenamento à dinâmica do acontecer da formação.

Algumas considerações sobre imaginários e produção de imagens para a autoridade profissional

Um manancial de imagens está presente no acontecer da formação. Um conjunto vivo de imagens, como reservatório dinâmico e aberto de enunciações e agenciamento de enunciações. Não falamos de um imaginário representativo, mas o emocional do reservatório dinâmico e aberto de imagens. É esta nuance que mantém vivo e aberto o conjunto de imagens e, ao mesmo tempo, é uma intensidade partilhada, uma sintonia, uma vibração; o desejo que faz estar junto um coletivo. Esta perspectiva não exclui a constatação de que o estar junto também é sustentado - racionalmente - no campo das argumentações e das necessidades. Todas as práticas humanas são passíveis de explicação e esta argumentação persuasiva - a justificativa - também é embasamento das decisões humanas e da união dos grupos. O que entra em cena com a noção de imaginário é que a justificativa - consciente e racional - não é o único fator motivacional das práticas e, talvez, nem o principal. A atmosfera afetiva compõe em muito o acontecer da vida e este é o caráter motriz do imaginário. A efetivação do poder de determinado imaginário carrega consigo o seu correspondente de prazer e felicidade.

Machado da Silva19 coloca que tudo é nó e conexão no tecido imaginal. Assim, toda entrada em um cenário é enlace por entre uma trama. O que ali está em nó não é unitário, é conformação. Diante de demandas conflituais, o que vemos é a rápida reprodução da motivação e do sentido da ação (cristalização de representações) ou a sua problematização (abertura de imaginações). Diferentemente de imaginado, uma projeção irreal com possibilidade de tornar-se real, diz o autor, o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propulsor. O autor estudou Michel Maffesoli, apresentado como leitor de Walter Benjamin e inspirado por Gilbert Durant, lembrado como leitor de Gaston Bachelard, para sugerir o imaginário como um reservatório/motor. Como reservatório, o imaginário agregaria imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras de vida e, por intermédio de vivências individuais/grupais, sedimentaria modos de ver, de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo.

O imaginário, diferentemente de cultura ou de civilização, não constitui os sistemas de pensamento/racionalidades/aspiração à universalidade. A cultura ou civilização contém um quê de objetividade, descrição, reprodução. O imaginário contém um quê de imponderável, subjetividade inexorável, funciona como uma aura, uma atmosfera, mantendo-se ambíguo, perceptível, mas não quantificável, guardando uma autonomia relativa. A aura assegura a existência de uma autoridade da coisa e, na era da aceleração tecnológica, a perda da aura é evitada por uma reinvenção da aura, por uma reprodução total e viral da imagem que não se quer perdida. Faz-se isso por meio de tecnologias do imaginário, uma ativa captura das autorias (inventividade, criatividade) e da liberdade (viver no aqui-e-agora, in actu). Uma captura do poder de desmanchamento das formas que um imaginário teria por ser apreciação única, figura singular, pela reprodução virótica da imagem para que não se perca, para que se reengendre em outras formas (assim atuam as entidades corporativas em defesa da profissão). O imaginário não é nenhum tipo de determinismo, mas um lago de significados, uma atmosfera onde objetos se põem em obra.

No lugar de formação, opera uma aura, uma carga subjetiva irrefutável. Mesmo incômodas, estarão presentes ambições, paixões, identificações e modelagens (p.e., de glória, de sucesso, de reconhecimento e de detenção de verdades, de explicações e de poderes sobre curar, salvar e atender). Isso é o imaginário, ensina Machado da Silva, elucidando Mafessoli e sua leitura de Benjamin.

É possível afirmar com base na literatura pertinente ao ensino médico e odontológico4,8,11,20-22 que atua fortemente no setor da saúde um imaginário profissional liberal-privatista, também revestido pelo simbolismo semântico da autonomia profissional, inclusive nos termos que detectou Campos8 sobre as operações político-corporativas dos médicos diante do assalariamento e da incorporação ao sistema estatal de saúde: à perda da possibilidade liberal-privada no mundo real pôs-se uma luta pela autonomia como total propriedade e independência sobre o diagnóstico e a prescrição. Campos23 retomou e recolocou recentemente suas formulações sobre o modo liberal privado de organizar o cuidado à saúde e os sistemas nacionais e públicos, analisando elementos da história do SUS.

Imaginários sobre a perspectiva pública e privada do trabalho em saúde na graduação em medicina, odontologia e psicologia

Se, por um lado, o imaginário liberal e privatista está espalhado em todo o campo da saúde, por outro lado, ele ganha uma especificidade material nas ações e nos serviços do subsetor suplementar, território precípuo da prática de consultório, da atenção individual, de prestação uniprofissional, orientada pelos procedimentos de diagnóstico e centrada no modelo da prescrição. Este é um dos fatores de debate e iniciativa recente na ANS: em coerência com a Lei, construir parâmetros de qualidade da atenção à saúde (promoção, proteção e recuperação), não a simples assistência (LOS, art. 20) e um modelo assistencial orientado pela integralidade e sob o uso da epidemiologia (observação dos princípios éticos e normas expedidas pelo SUS), não o simples rol de procedimentos (art. 22).

A partir de 2005, a ANS, em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde, desencadeou uma série de ações de estímulo e ampliação do conhecimento e da capacidade de ensino e pesquisa para a análise da situação da saúde suplementar. No âmbito deste processo, foram realizadas três oficinas de trabalho no ano de 2005 no Rio Grande do Sul, envolvendo catorze instituições de ensino superior dos três estados da Região Sul, configurando o projeto Educação dos profissionais de saúde: imaginários sobre a perspectiva pública e privada do trabalho em saúde, estudo de caso na graduação em medicina, odontologia e psicologia, simplificado pela designação Educação em saúde suplementar24.

O projeto de Educação em saúde suplementar consistiu no levantamento e análise dos imaginários sobre a atuação e o sucesso profissional e sobre o ideal da profissão presente entre professores e estudantes da área da saúde relativamente ao potencial do seu trabalho, cruzando-o com a realidade de um exercício que somente se pode fazer sob regulação - única em todo o país. Regulação essa que deve ser direcionada a todas as ações e serviços de saúde de âmbito público, privado-complementar ou privado suplementar, representada pelo SUS, onde a ANS ocupa papel de representante dos interesses da população e não de grupos econômicos em particular ou de segmentos da economia.

A pesquisa empírica foi desenvolvida em três universidades públicas federais das três capitais dos estados da Região Sul: Federais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, tendo ocorrido o estudo piloto em uma universidade comunitária, Universidade de Caxias do Sul. O universo da pesquisa compreendeu todos os estudantes formandos dos cursos de medicina, odontologia e psicologia destas universidades e todos os professores que desenvolvem atividades docentes junto a estes estudantes. A opção por estas três carreiras da saúde aconteceu por se tratarem, embora não exclusivamente, de áreas de atuação com forte apelo à autonomia profissional e independência na formulação de diagnósticos e indicações terapêuticas onde mais claramente se manifesta a ideação de profissão liberal. Tais profissões caracterizam-se principalmente pela ênfase no atendimento individual direto ao usuário, ressaltando serem estas profissões as mais presentes nos registros de consultórios privados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Apenas estes cursos contam com previsão legal de manifestação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para a abertura de novos cursos, uma vez que o Decreto Federal nº 5.77325 determina em seu art. 28, § 2º, que "a criação de cursos de graduação em medicina, odontologia e psicologia, inclusive em universidades e centros universitários, deverá ser submetida, à manifestação do CNS". A necessidade de manifestação do CNS para a autorização desses cursos é para que a mesma seja pautada por critérios de demanda social (ouvindo a manifestação do setor) e não de mercado (interesse das instituições privadas de ensino), uma vez que o exercício profissional nestas áreas pode impor risco à integridade física e moral.

O estudo foi desenvolvido numa perspectiva prioritariamente qualitativa; entretanto, também foi desenvolvida uma etapa quantitativa implementada por meio de um questionário com questões abertas e fechadas, visando a produzir subsídios analíticos para as etapas qualitativas em virtude da complexidade da temática e, por conseqüência, em função das exigências das questões de pesquisa. Desse modo, o empreendimento investigativo foi desenvolvido por dimensões quali-quantitativas, caracterizando um estudo aberto em suas normas metodológicas, propiciando o ajuste necessário em suas estratégias de coleta de dados, reflexivo e interativo (em rede de conversações)26. Tratou-se de um caminho metodológico que possibilitasse apreender a realidade da formação, bem como identificar a vigência de um determinado imaginário da atuação profissional em saúde, da saúde suplementar e da sua regulação24. Uma rede científica em rede de conversações foi armada com docentes e estudantes das três formações e das três universidades de modo que se pudesse obter confronto e refinamento de toda informação quantitativa ou qualitativa.

A partir da análise dos questionários, os dados coletados foram organizados e debatidos em grupos focais orientados por uma agenda de temas pertinentes aos interesses da pesquisa. A etapa de grupos focais constituiu-se da coleta de informações de caráter subjetivo, voltada para a compreensão ampliada e profunda de apreciações, percepções e ações vividas por atores sociais implicados. A priorização do desenho qualitativo deveu-se à chance de rastrear o imponderável dos imaginários, o que está no reservatório/motor de uma apreciação, percepção, ação; não necessariamente aquilo que tem discurso, conceitualização ou sentimentos definidos.

A etapa quantitativa da pesquisa foi realizada por meio de questionários semi-estruturados aplicados a um universo de 449 estudantes concluintes e 195 docentes universitários do período final dos cursos. Dentre os 449 discentes, 264 responderam ao questionário, correspondendo a 59% do total de estudantes concluintes de graduação dos três cursos. Entre os 195 docentes, 133 questionários foram respondidos (68%). A participação na etapa qualitativa de grupos focais, ocorridos nas três instituições envolvidas, contou com a presença de quinze discentes e de dezessete docentes24. Para os grupos focais, a rede científica em rede de conversações deliberou por um para cada profissão considerada (cada uma das três profissões em cada uma das três universidades). Esse procedimento é coerente com a busca de imaginários (o que está na relação entre estruturas e práticas, agenciamentos coletivos de enunciação, emanações de um determinado campo social), não de representações (as cristalizações de sentido, identidades sociais, regularidades da cultura).

Uma vez que imaginários são operadores de conceitos e afetos, uma espécie de solo proliferativo de apreciações, percepções e ações, mas não a configuração de representações sociais descritoras de percepções, não nos seria possível explorar esse solo com entrevistas e a categorização dos sujeitos portadores de discursos; interessava-nos a presença de discursividades, sensações e interações, era preciso fazer emergir pistas; colocá-las em debate com atores implicados no ensino e na aprendizagem; provocar interações entre os atores do cotidiano do ensino-aprendizagem; estabelecer o confronto de opiniões, vivências e explicações.

A fim de explorar os imaginários presentes na formação universitária relativos ao exercício profissional em medicina, odontologia e psicologia, ao ser profissional dessas áreas e ao obter essas diplomações acadêmicas, bem como explorar a atmosfera tocante às relações público-privadas na saúde e a abordagem curricular desses cursos de graduação no tocante ao trabalho no subsetor privado suplementar de prestação de serviços de saúde, foram estipulados três eixos analíticos para o ordenamento da busca de dados:

1) as imagens do trabalho em saúde relativas aos cenários estatal (público) e suplementar (privado), tendo em vista detectar as sensações promovidas à opção por um ou outro desses subsetores ou sua articulação nas elaborações sobre o sucesso profissional;

2) a ideação liberal-privatista e a ideação SUS - implicada no desejo subjetivo de prática profissional;

3) os modos de subjetivação presentes no ensino-aprendizagem relativos à abordagem curricular do subsetor suplementar.

Algumas destas discursividades, sensações e interações, principalmente relativas ao eixo analítico 2, serão recortadas para o escopo deste artigo, ou seja, aqui será feita uma seleção de informações interessada em dialogar com as formulações direcionadas ao desejo de prática profissional no setor da saúde. Em função deste interesse, serão apresentadas as informações produzidas tanto no momento quantitativo, quanto no momento qualitativo da pesquisa.

O questionário dos estudantes indagava sobre onde o discente julgava vir a trabalhar, tendo em conta sua informação sobre o atual cenário do mercado de trabalho. As opções de resposta - não excludentes - eram iniciativa privada e serviço público. As mesmas opções de respostas na indagação sobre o espaço onde o discente concluinte desejava desenvolver sua atividade profissional, considerando o momento de término do curso. Depois, a indagação sobre onde o estudante, à época do seu ingresso no curso, planejava vir a trabalhar depois de formado.

Ao considerar em conjunto essas três questões e seus agrupamentos de resposta, surgiram importantes possibilidades de análise e produção de debate. As três questões nos permitiram a visualização de uma linha de tempo do imaginário dos discentes sobre os seus espaços de atuação profissional. O agrupamento das três questões permitiu contrastar onde o discente planejava trabalhar profissionalmente no início de sua graduação; onde ele deseja agora, ao final do curso e onde ele julga que vai/deve trabalhar em função da realidade do mercado de trabalho (realidade esta também presente em seu imaginário). Esta linha de tempo torna visível o planejamento inicial, o desejo atual e o julgamento real.

Um gráfico da linha de tempo, considerando o total dos discentes que responderam ao questionário, torna possível identificar a predominância do planejamento de atuação no subsetor privado suplementar e a mutação do sonho de um trabalho liberal-privado para a consciência do trabalho no subsetor público-estatal. Revela-se uma evidência do trabalho conjugado nos segmentos da iniciativa privada e do serviço público. Esta mutação acontece em todas as linhas de tempo (pontos de partida do planejamento inicial pelo segmento privado, pelo segmento público ou por ambos). Essa evidência sugere que algo acontece durante o percurso da graduação que transforma a perspectiva de atuação profissional. Isto ocorre no plano da consciência ou dos imaginários?


Foi possível detectar uma expressiva queda do ideário profissional liberal-privado para uma ascensão do trabalho conjugado privado-público. Depois de uma forte elevação do ideário público-estatal, marcadamente SUS-implicado, também ocorre sua expressiva queda, retornando ao exato patamar inicial, talvez o mesmo daqueles cujo ideário SUS-implicado estivesse na escolha da carreira (o menor desejo isolado), como se pode depreender de algumas narrativas relativas à escolha da profissão. O julgamento de trabalhar de maneira conjugada nos segmentos público e privado contém uma pragmática, não apenas da empregabilidade, mas da composição de lugares de poder profissional e ocorre tanto entre aqueles que planejavam realizar-se no público como entre os que planejavam realizar-se no privado. Detecta-se que o sonho inicial amplia seu lugar, ou melhor, o imaginário inicial é colocado diante da realidade e dos imaginários vigentes na formação: diminui o julgamento de trabalho no segmento privado (isoladamente), mas cresce o seu julgamento na mescla público-privada (conjugadamente).

Alguns posicionamentos narrativos elucidam essa questão:

Ao sair da faculdade, quero ir para o público, pois isto é ter uma estabilidade financeira. Todo mundo quer, porque o mercado está mal, mas no privado é onde dá para crescer. (Estudante de Psicologia)

Você conversa com os alunos e eles sabem que querem exercer medicina num consultório particular, eles necessitariam pelo menos aderir à cooperativa de médicos da Unimed. Para isso terão que pagar no mínimo R$ 50 mil, eles têm famílias sem condições de pagar isso e, assim, para sobreviver, vão ter que trabalhar primeiro no setor público e depois, quem sabe, trabalhar apenas no setor privado. Alguns têm a visão de que vão trabalhar nos dois sempre, porque eles querem ter um emprego com renda fixa, que garanta férias, décimo terceiro e que dê segurança para conseguir manter uma família, uma vez que aquilo que caracteriza o setor privado é uma renda instável. (Docente de Medicina)

Vou trabalhar no serviço público, mas fiz uma seleção para trabalhar em uma clínica particular fora do horário normal. Vou cumprir oito horas no serviço público e depois desse horário vou trabalhar no particular. Eu sempre gostei de consultório particular e de público também. Gostaria de continuar no público por muito tempo, mas pela questão financeira não vou. Então não pretendo continuar no público por muito tempo, pelo menos se permanecer essa remuneração. A gente não pode ser utópica de dizer eu quero salvar o mundo e passar fome. Tem o que a gente investiu, tudo o que foi investido no nosso estudo e tem a questão de não ter material no serviço público. (Estudante de Odontologia)

Não conheço nenhum dentista que planeje ou tenha trabalhado mais que cinco anos no serviço público. É uma fase de transição entre sair da faculdade e montar seu próprio negócio, o serviço público não é como um projeto profissional. (Estudante de Odontologia)

Essas manifestações de secundarização da prática profissional nos serviços públicos de saúde estão ligadas a vários fatores que privilegiam a ideação liberal-privatista no exercício profissional da saúde. Algumas manifestações expressadas nos grupos focais explicitaram esta ideação sustentada em argumentos técnicos, financeiros e de condições de trabalho:

O cara vai lá pro setor público e ganha R$ 1.200,00; trabalha das 15 às 16h, faz o que tem que fazer e se manda para fazer outra coisa. Faz os quinze atendimentos que tem que fazer e não dá bola para a instituição. Ele vai lá para prestar um serviço,.fez a restauração, tirou a dorzinha, botou a broca, colocou o material provisório. Pronto! (Docente de Odontologia)

No privado, o diferencial de qualidade é que o atendimento é muito mais rápido. Tanto pra você conseguir exames complementares, quanto a própria medicação, pois o paciente tem um poder aquisitivo maior, então ele vai ter uma aderência maior ao tratamento, às terapêuticas. (Estudante de Medicina)

Ele sai daqui e chega no SUS, que é maravilhoso no papel, mas que não permite ao aluno aplicar adequadamente sua técnica. Não sei quem compra o material, mas é uma porcaria. Eu não conseguiria trabalhar dentro deste Sistema Único de Saúde! Acho que na verdade temos que preparar o aluno para a frustração futura da aplicação da vida dele no SUS. (Docente de Odontologia)

No setor privado, você vai ter muito mais estrutura, material na mão, profissionais de outras especialidades que você poderá encaminhar, a medicação que você quer. (Estudante de Medicina)

Em outra pergunta do questionário aplicado aos estudantes, indagava-se pelo contato, durante o curso, com algum profissional de sua área que, em sua opinião, era uma figura bem-sucedida profissionalmente. As alternativas iniciais de respostas eram sim e não. No total de respostas obtidas, 93,2% foram positivas e 6,4% negativas; em apenas um questionário esta pergunta não obteve resposta. A pergunta subseqüente, então, buscava aprofundar esta questão, indagando sobre quais os campos de prática desse profissional bem-sucedido. As alternativas, não excludentes, ofertadas foram: clínica privada; consultório particular; plano de saúde e/ou seguro de saúde; serviço público; hospital; instituição de ensino; outro e, por fim, não sei onde mais ele trabalha/trabalhava.

Ocorreram 61 combinações de respostas para esta questão. Dentro deste universo, as respostas compostas pelas alternativas clínica privada e consultório particular foram escolhidas por 205 estudantes, 78% dos 264 questionários respondidos, ou seja, quase 80% dos acadêmicos ligaram registro de sucesso profissional com atuação em clínica privada e/ou consultório particular. O ideário de sucesso e de reconhecimento relacionado ao desejo de prática profissional e presentificado nos grupos focais relacionou oportunidades sociais e profissionais com a possibilidade de estar em evidência e obter conquistas materiais:

Tem um padrão, mas que é um pouco de ilusão também. A palavra sucesso é muito valorizada! O que é ter sucesso: é estar em evidência. É quem sai na capa da revista. (Docente de Odontologia)

Acho que o sucesso não é só dinheiro, é aquele profissional comentado, que mais gente diz que é bom, o mais elogiado. O profissional da moda que faz clínica; o professor não pode aparecer. (Docente de Odontologia)

Há uma tendência na formação por uma valorização cultural: o médico que tem o carro do ano, de último tipo, que tem apartamento não sei aonde e que viaja para o exterior todo ano. É o modelo! Este mecanismo é um currículo explícito e implícito, todos querem seguir: o modelo de enriquecer! (Docente de Medicina)

Os usuários vão levar outras coisas em conta como, por exemplo, investimento, título, aparência do consultório. Os pacientes confundem o reconhecimento profissional com o financeiro. (Estudante de Medicina)

A imagem ideal do trabalho em saúde está relacionada à construção do reconhecimento profissional, o reconhecimento profissional está relacionado com a procura por pacientes, a procura por pacientes está relacionada com a divulgação das habilidades em diagnosticar e prescrever e em ensinar sobre o diagnosticar e prescrever, por fim, a aquisição de habilidades e a oportunidade de divulgação dessas habilidades está relacionada com a atuação no serviço público, então a atuação temporária no serviço público aparece para o adquirir experiência, destreza e discernimento com doenças e procedimentos. O serviço público é chancela para bolsas e liberação para estudos, os serviços com característica escola são os mais interessantes. Referimos algumas pronúncias:

O docente de hospital universitário pode se dar o luxo de trabalhar fora dos planos e seguros privados, tem reconhecimento da população toda e vai ser procurado no consultório particular. (Estudante de Medicina)

É mais fácil ser reconhecido dentro de um hospital grande e público do que só no particular. Trabalhar só no consultório torna muito mais difícil o reconhecimento que no hospital de grande porte. (Estudante de Medicina)

No serviço público, você tem uma demanda enorme, você consegue fazer boa pesquisa, quero trabalhar em centros especializados de atendimento público, mas quero conciliar isso com o consultório particular. (Estudante de Odontologia)

Sobre o ensino da saúde suplementar, 52% dos discentes dizem ter tido acesso à informação ao longo da graduação, mas 39% não conseguem esclarecer a forma de abordagem, apenas 27,3% registram a abordagem como conteúdo de aprendizagem. Sobre quais conteúdos foram abordados, listamos seis tópicos e a possibilidade outros, 40,5% dos discentes não esclareceram conteúdo, aspectos legais apareceu isoladamente em 4,2% das escolhas e relação entre o SUS e as seguradoras e operadoras dos planos privados de saúde obteve 3,8%. Somou 89% do total de discentes pesquisados a resposta de que não tiveram contato ou não lembravam do conteúdo regulação e controle dos planos e seguros privados de saúde. Podemos citar algumas vocalizações:

Acho que o principal avaliador de qualquer lugar é o cliente, perguntando do que ele gostou e do que não gostou. (Estudante de Medicina)

Eu não sei o quanto, na formação, nós trabalhamos com esta questão de um controle social, acho que a gente trabalha muito mais academicamente. (Docente de Medicina)

Por isso surge o Único, mas hoje em dia têm pessoas que fazem chacota dizendo: não é sistema único, está cheio de sistemas. Têm os planos, os seguros. Nós temos que compreender historicamente o contexto. (Docente de Medicina)

A ANS poderia dar parâmetros de atendimento: tempo de consulta. Mesmo em relação ao protocolo de atendimento, acho que valorizar a educação em saúde, procedimentos preventivos. Poderia se aproximar da exigência dos usuários do sistema de saúde. O que está acontecendo é que a única forma de gerência dos planos é sobre o profissional. Na hora que o usuário quer reclamar, ele fica no meio do caminho, daí ele vai para um embate com o próprio profissional. (Docente de Odontologia).

Essas poucas manifestações, carregadas de sensações, presentes nas interações discursivas, escolhidas do amplo conjunto de informações obtidas na pesquisa, apontam elementos do imaginário na formação, no acontecendo da graduação em saúde, e que ordenam e submetem dinâmicas profissionais na saúde.

Não pretendemos contemplar a pluralidade dos imaginários presentes nas diversas dinâmicas do acontecer que submetem os cotidianos da formação em saúde. Não desprezamos a extensão desta pluralidade que ocorre em ressonância com a multiplicidade de coletivos, grupos e cenários e também é relativa às diversidades regionais e sociais do país. Esgotar estas possibilidades talvez seja uma tarefa irrealizável. Contudo, mesmo reconhecendo a relevância desta multiplicidade, os resultados predominantes na pesquisa realizada favorecem duas afirmações. A primeira é a de que um determinado tipo de imaginário perpassa esta multiplicidade de dinâmicas do acontecer. Trata-se do imaginário liberal-privatista projetado sobre a imagem do ser profissional, um conjunto vivo de imagens relativas ao profissional bem-sucedido; à composição de trabalho entre os segmentos público-estatal e privado-suplementar; à lógica da atenção individual prolongada, mais a título de conforto que qualquer tipo de interferência no andar a vida (que busque mais saúde); o uso dos equipamentos tecnológicos de ponta para tratar dos problemas de maior ameaça à saúde, mesmo compreendendo a atuação em equipe e o valor das práticas coletivas para maior impacto nos quadros e processos fisiopatológicos. A segunda afirmação é a de que os processos educativos de ensino da saúde desenvolvem raríssimas estratégias com o intuito de desestabilizar esse imaginário, que é reforçado no correr dos cursos, com uma abordagem espontaneísta sobre a assistência privada. O ensino quando entabulado é formalista; quando pleiteado se refere a habilitar para a extração do máximo de benefícios, não surgindo uma reflexão crítica relativa aos modelos assistenciais desde o ponto de vista da integralidade ou do uso da epidemiologia na avaliação e melhoria da qualidade. Não há a mobilização dos imaginários, isto é, um acolher de compreensões e aceitações, alterá-las em situação mediante vivências disruptoras, fatores de exposição, experimentação. Os imaginários escutados informaram que há uma compreensão e aceitação das regras liberais-privatistas no ordenamento racional e não-racional de estruturas e práticas de ensino e na produção dos profissionais de saúde.

O que acontece com esse intellectus sanctus, reservatório/motor, é que ele instaura uma rejeição a priori da função e produtos da regulação pública, independentemente de sobre que ou quem recaiam prejuízos, está em causa a preservação da imagem de profissão liberal, superior, regulada corporativamente e pelo mercado consumidor. O principal prejuízo, na área da saúde, ocorre sobre a cidadania nacional, pois nosso setor da saúde resultou de um processo social coletivo, a Reforma Sanitária. O mercado exclusivo e a deferência social se sobrepõem, sem crítica, a um movimento histórico da sociedade. A liberdade profissional se encontra com o paradoxo: como defender a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os âmbitos da atenção; a integralidade da atenção com garantia de um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os âmbitos de complexidade do sistema de saúde e a igualdade da atenção, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie, sem um órgão regulador participativo, sem acolhimento ativo de processos de negociação e transformação?

O paradoxo que encontramos insemina a formação profissional com a fragmentação entre o público e o privado, usuários e beneficiários, Estado e sociedade civil, mas, na medida em que é nó e conexão no tecido imaginal, não é um determinismo. Pode ser um dispositivo estratégico para instituir um modelo de atenção à saúde descompromissado com o usuário e procedimento-centrado, mas, também, como uma ferramenta para desarmar esse modelo e promover diferentes espaços-tempos-sentidos que dêem passagem aos imaginários em disputa na sociedade.

A Câmara de Saúde Suplementar, órgão integrante da política do SUS e com função consultiva para a ANS, é integrada pelos Conselhos Federais de Medicina, Odontologia e Enfermagem, a maior cobertura dos planos e seguros privados de saúde é a da assistência médica e odontológica, além de hospitais, laboratórios e serviços de apoio diagnóstico e terapêutico. Deve haver atendimento aos portadores de transtornos mentais e acesso à fisioterapia sempre que recomendada pelo médico. Incluem-se nas coberturas de terapias e atendimentos ambulatoriais os atendimentos de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e nutrição. Pelo menos sete carreiras curriculares de educação superior na saúde, portanto, estão envolvidas com o trabalho e as normatizações em saúde suplementar. Estudam alguma coisa a esse respeito? Como esse estudo se colocaria numa formação SUS-implicada que não combate a saúde suplementar?

A relevância pública da saúde e o desafio do imaginário na formação

Ao preservarmos, como sociedade do conhecimento, um ensino de saúde, em todos os níveis de escolarização, que privilegia a perspectiva liberal-privatista e não coloca em análise as relações entre público e privado no ordenamento do SUS, não contribuímos para a real compreensão e apropriação da cidadania, para a eqüidade e solidariedade entre as classes sociais no direito à saúde como dever do Estado para com toda a população e para uma ciência com relevância pública associada ao mérito acadêmico.

As mudanças no modo de produzir saúde no Brasil, consideradas as transformações no processo político, legal e institucional que nos trouxeram ao SUS, permitem-nos uma noção de setor da saúde capaz de conceber o ordenamento das práticas clínicas e sanitárias num subsetor estatal e num subsetor suplementar. Nos termos que trabalhamos nesta abordagem sobre imaginários, vemos novos espaços públicos, no interior de um subsetor que designamos estatal e no interior de um subsetor que designamos como suplementar. De um lado, necessitamos profissionais que desejem cuidar e desejem fazê-lo de maneira integral, de outro, necessitamos um sistema de saúde que oferte modelos assistenciais cuidadores e regule a iniciativa privada para que, em saúde, seja capaz de modelos assistenciais cuidadores.

Falamos de novos espaços públicos porque não temos tido o interesse público e o interesse do público priorizado em um ou outro desses subsetores. Quando Melucci27 fala de novos espaços públicos, ele fala de novos espaços da palavra, espaços da nomeação, que permitem dar voz - nova ou diversa - a todos que, na sociedade, não se deixam reduzir aos nomes que a racionalidade técnica impõe ao mundo. Na condição de tomar os imaginários como ampliação do conhecimento sobre o trabalho, em especial os supostos sobre os modos de trabalhar na saúde (as micropolíticas operadas no cotidiano profissional e das equipes de saúde) e sobre os modos de ordenar a assistência (estratégias de organização da atenção e desenhos institucionais para a oferta de ações e serviços), tencionamos aproximar público e privado, um subsetor próprio e um subsetor regulado na saúde, um sistema único e um setor unitário (de relevância pública). Com esta aproximação, imaginamos a contribuição para a conformação de um imaginário usuário-centrado e do agir cumpliciado do trabalhador com a vida individual e coletiva.

Se, na ambivalência dos processos de formação, não se configura uma alma orientada pelo efetivo compromisso com o acolhimento das pessoas e suas histórias de vida, pela efetiva responsabilidade com a cura, entendendo processos a acompanhar, escutar, cuidar e tratar ou pela efetiva dedicação ao desenvolvimento da autonomia dos usuários nos processos de adoecimento e construção de saúde no seu andar a vida, como será possível antever implicação pública? O trabalho no subsetor estatal ou no subsetor suplementar deve ser de compromisso público. Se no primeiro temos uma gestão pública, no outro precisamos da regulação pública. Se no primeiro exercemos pressão sobre governos, no segundo exercemos pressão sobre operadoras e seguradoras. Se no primeiro recorremos ao arbítrio dos Conselhos de Saúde, no segundo recorremos ao arbítrio da agência reguladora, que, por existir no SUS, também deve contas ao CNS, mas, como trabalhadores, a que trabalho nos oferecemos, a que regulação nos sujeitamos?

Se falamos de imaginários na formação em saúde, não falamos da seleção de conteúdos, da inclusão de estágios, da opção por métodos didático-pedagógicos, da apresentação de propostas de avaliação do ensino-aprendizagem, mas da necessidade de ligar razões públicas, interesses públicos e efeitos públicos aos imaginários do que seja trabalhar em saúde. Quando se refere ao imaginário, Deleuze28 recusa atribuir-lhe irrealidade, o vê como um conjunto de trocas entre uma imagem real e uma virtual, como uma indiscernibilidade entre o real e o irreal, o que coincide com a sua noção do falso e verdadeiro, ambos jogos de composição e de desafio. Quando são oposição, cristalizam representações, quando são tensões, ativam imaginações. A ultrapassagem do real é com o imaginário reconfigurando o real. O imaginário seria a potência do falso, substituindo o verdadeiro pela potência do devir. Uma imagem-cristal não levaria a um imaginário das representações (congelamento do tempo), mas a um imaginário dos desafios e das desestabilizações (invenção de tempo).

O sucesso na carreira e a superioridade profissional são esperados do curso universitário, mas seu acontecer tem ocorrido num espaço-tempo-sentido onde não se inclui o outro (a alteridade), coloca-se a obtenção de vantagem, de prestígio e de símbolos de status. A autonomia é desejada como independência profissional, assim não aparecem como relevantes a aprendizagem das linguagens do outro - usuário das ações de saúde ou o colega de outra profissão - não aparece a necessidade de projetos terapêuticos da integralidade ou o reconhecimento de redes sociais. Esses itens são lembrados (pertencem à razão), mas no imaginário vigente, aprende-se com os pobres, oferta-se ambiência no consultório privado, adquire-se prestígio e mérito em serviços-escola e acumula-se nobreza técnica ao estabelecer atuação em ambientes de alta tecnicalidade. Trabalha-se no serviço público para auferir renda segura e na assistência privada para auferir renda de ascensão nos símbolos de status e conforto econômico.

Não haverá alta efetividade na redução da solicitação de exames e procedimentos desnecessários, na configuração de linhas de cuidado resolutivas e na produção da integralidade em saúde sem essa problematização de imaginários quando os profissionais estão em formação. Os imaginários devem ser postos para reverberar, trazendo-os a debate, sempre. Esse movimento deve engendrar o disparo das imaginações, sempre de mudança dos instituídos pela abertura (autoria/autorização e liberdade/criação). A formação para uma saúde orientada pelo interesse público precisa constituir outra alma em uma outra atmosfera no processo de ensino-aprendizagem, ativar outro intellectus sanctus para chegar a formar uma nova autoridade profissional.

Colaboradores

RB Ceccim trabalhou na concepção, redação e revisão final; LF Bilibio, TB Armani, DLC Oliveira, M Moraes e ND Santos, na pesquisa e na metodologia.

Artigo apresentado em 25/08/2007

Aprovado em 26/11/2007

Versão final apresentada em 28/12/2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Out 2008

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2007
  • Aceito
    26 Nov 2007
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