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Por que não vivemos uma epidemia de doenças crônicas: o exemplo das doenças cardiovasculares?

Why Brazil does not have an outbreak of chronic diseases: lessons from cardiovascular diseases?

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Por que não vivemos uma epidemia de doenças crônicas: o exemplo das doenças cardiovasculares?

Why Brazil does not have an outbreak of chronic diseases: lessons from cardiovascular diseases?

Paulo Andrade Lotufo

Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. palotufo@hu.usp.br

O texto de Achutti e Azambuja apresenta um dilema importante em todas as sociedades: o aumento da população idosa e a dificuldade da sociedade prover os recursos de previdência. As causas podem ser meramente demográficas ou econômicas, como redução da atividade econômica, mais desemprego e trabalho informal com a queda da receita previdenciária. Em todas as sociedades onde se estabeleceu o contrato social democrático, como no caso do Brasil, esse problema ocorre com maior ou menor determinação demográfica ou econômica. No caso brasileiro, com grande chance a questão demográfica tem importância menor do que a econômica, porque a proporção maior de idosos é decorrente da diminuição da natalidade em razão da queda abrupta das taxas de fecundidade, e não em decorrência do aumento da longevidade (Carvalho & Garcia, 2003).

Embora seja prático, o termo "doenças crônicas não-transmissíveis", empregado pelos autores, merece comentário. Ele designa um conjunto de doenças – em oposição do ponto de vista etiológico – como "não-infecciosas"; e, do ponto de vista temporal, como "não agudas". Contudo, existem doenças crônicas cuja causa básica são agentes infecciosos e transmissíveis como úlcera péptica (Helicobacter pylori), e carcinoma de colo uterino (papilomavírus). O curso crônico, no entanto, pode ser observado em doenças infecciosas e contagiosas como hanseníase, malária e paracoccidioidomicose, enquanto a história natural do infarto agudo do miocárdio e da hemorragia subaracnoídeo pode ser medida em minutos. Por isso, o adequado seria abandonar o amplo leque de doenças crônicas para se analisar, detidamente, os seus principais grupos. Primeiro pelos capítulos da Classificação Internacional de Doenças, como doenças cardiovasculares e os cânceres, em um primeiro instante; e num segundo momento, detalhar as doenças cerebrovascular e coronária e os tipos específicos de câncer. No presente comentário, apresentaremos o panorama brasileiro das doenças cardiovasculares para contestar a idéia de epidemia e emergência das doenças crônicas tal como sugerido por textos que, ao destacarem o exemplo asiático, fazem extrapolações indevidas da realidade brasileira (Yusuf et al, 2001).

Como mostraremos, a seguir, a epidemia de doenças cardiovasculares, mais apropriadamente das doenças cerebrovascular e coronária, já ocorreu e poderá até voltar, considerando-se o aumento da obesidade e diabetes (Lotufo, 2000), porém nunca pela razão apontada: a opção pelo estilo de vida ocidental, mais exatamente, a adoção do padrão alimentar americano das grandes redes como McDonald's. Essa denominação, além de desconhecer a geografia do planeta, não tem base empírica que mostre, por exemplo, que a "macdonaldização" foi assumida no cotidiano da população brasileira. Ao contrário, há evidências de que as modificações dietéticas no País seguiram rumos próprios, que até poderiam explicar parte do aumento da obesidade, porém distante do padrão americano de alimentação (Mondini & Monteiro, 1994).

A antiguidade da questão "doença cardíaca" no País é mostrada em compêndios médicos do século 19 como Lições de Clínica Médica, que descreve no Rio de Janeiro pacientes com angina e infarto do miocárdio em época em que não só a doença cardíaca reumática e luética eram altamente prevalentes (Torres Homem, 1882).

A importância das doenças crônicas no perfil de mortalidade do Brasil se estabeleceu na década de 1960, quando o conjunto das doenças do aparelho circulatório se sobrepôs ao das doenças infecto-parasitárias nas capitais do País (Bayer & Goes, 1984). No entanto, a mudança do predomínio das doenças crônicas sobre as doenças infecto-parasitárias, na capital paulista, ocorreu no pós-guerra imediato (c. 1945-1950). Em 1900, entre as dez principais causas de óbito em São Paulo encontravam-se as "doenças do coração" (terceiro lugar, 6,5%) e as "congestões e hemorragias cerebrais"(décimo lugar, 2,1%). Em 1930 estavam entre as dez mais freqüentes as "doenças do coração" (quarto lugar, 4,8%); as "outras afecções do aparelho circulatório" (sexto lugar, 4,3%); o "câncer" (sétimo, 4,1%); e as "congestões e hemorragias cerebrais" (nono lugar, 2,5%). Já em 1960, as "doenças do coração" se afirmavam como a principal causa (19,0%), secundadas pelo "câncer" (12,1%) e pelas "lesões vasculares do sistema nervoso central" (7,7%). A décima causa, com 2,1%, é o diabetes (Mascarenhas & Wilson, 1963).

Uma série de estudos iniciados em 1937 em São Paulo (Rubião-Meira et al, 1937, Chiaverini, 1940; 1948; 1951; Ramos, 1949; Tranchesi, 1951[Quadro 1]) descreveu o perfil das cardiopatias na primeira metade do século. Embora esses estudos somente tenham reconhecido a doença chagásica nos anos 40, a proporção de casos internados com diagnóstico de hipertensão e aterosclerose era grande o suficiente para mostrar a importância e relevância de tais fatores de risco nesse período. Em 1948, um estudo de triagem para tuberculose com exames radiográficos (abreugrafia) em 39.488 operários em São Paulo encontrou 1,2% de casos de miocardiopatia dilatada (Gusmão, 1948).


Estudos de mortalidade mostraram que a evolução das doenças cardiovasculares na cidade de São Paulo nas décadas de 1940 a 1960 mostrou o declínio da doença reumática do coração e a emergência da doença isquêmica e cerebrovascular. Em 1940, tanto a doença reumática como a coronária apresentavam taxas de mortalidade semelhantes. Trinta anos após, os óbitos pela doença reumática correspondiam a somente 10% dos ocasionados pela doença coronária. O predomínio dos óbitos por doença coronária em relação à cerebrovascular estabeleceu-se na cidade de São Paulo ao final dos anos 40 (Laurenti & Fonseca, 1976).

Estudo comparativo da Organização Pan-Americana da Saúde sobre mortalidade em adultos realizado em São Paulo e Ribeirão Preto (e mais dez cidades) no início dos anos 60 já mostrava que as taxas de mortalidade pelas doenças do aparelho circulatório entre os homens dessas cidades paulistas se aproximavam dos valores observados no Reino Unido e nos Estados Unidos. No entanto, as brasileiras tinham taxas maiores do que as mulheres britânicas e americanas. Para ambos os sexos, a mortalidade associada à hipertensão apresentava taxas mais elevadas nas cidades paulistas (Puffer & Griffith, 1968).

Em meados da década de 1980, detectou-se a queda da mortalidade por doença cerebrovascular e coronária na cidade (Lolio & Laurenti, 1986a; 1986 b; Lolio et al, 1986) e no Estado de São Paulo (Lotufo & Lolio, 1993a; 1993b), tendência que se espalhou posteriormente para o conjunto das regiões metropolitanas brasileiras. Em suma, a mortalidade pela doença coronária e cerebrovascular ainda pode ser alta quando comparada à de outros países(Lotufo, 1998), apresenta taxas declinantes ou mesmo estáveis (Lotufo, 2000), porém nunca em elevação como relatado para regiões onde houve melhora da qualidade da certificação (Nordeste) ou alteração radical da ocupação do espaço (Centro-Oeste) (Marinho de Souza et al., 2001).

Importante ressaltar que o movimento declinante de mortalidade antecede à introdução de tratamentos mais eficazes de redução da letalidade da doença cerebrovascular e coronária. A hipótese da expansão da morbidade que postula que o declínio na mortalidade é devido à redução nas taxas de letalidade das doenças é extremamente fraca. Explica-se, por exemplo, pela observação de que a redução da mortalidade por doença coronária nos Estados Unidos iniciou-se no final dos anos 60, ou seja trinta anos antes da introdução de intervenções terapêuticas específicas para o infarto do miocárdio e para a angina de peito.

Concluindo, não há epidemia de doenças crônicas ou adoção recente de "hábitos ocidentais" no Brasil. O aumento da proporção da população idosa é decorrência da queda das taxas de fecundidade, e o impacto das ações médicas no aumento da longevidade ainda são pouco perceptíveis, visto que a queda da mortalidade cardiovascular antecede à adoção de novas modalidades terapêuticas. A diferença dos dias de hoje para os de 50 anos atrás é o aumento da noção de cidadania, é a necessidade de extensão de todos os benefícios, principalmente aos que mais se abatem pelas doenças. Nesse sentido, haverá uma carga maior decorrente da pressão pelas medidas de rastreamento e prevenção por aqueles que eram anteriormente excluídos dos serviços de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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