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Habitar as bordas e pensar o presente

Occupying the borders and reflecting the present

Habitar la borde e pensar el presente

Resumos

Em meio à multiplicação das manifestações de rua emergentes no cenário brasileiro, a problematização do presente ganha outros contornos, em que a inauguração de um novo momento da história recente abre o horizonte de possíveis. é nesse atual que as resistências se inscrevem e é nele que as lutas sociais diante dos processos de exploração, opressão e dominação do capitalismo possuem novos territórios de combate. Esse atual reiteradamente adjetivado como novo não surge do vazio, mas dos agenciamentos feitos com as diferentes linhas que compõem a trama dos estratos de poder sedimentados na história da humanidade, de suas cidades e de seus dispositivos ordenadores. O presente artigo busca problematizar esse presente imediato por meio da remontagem na história de algumas linhas-duras que dão contornos às instituições vigentes, expondo o funcionamento e as estratégias dos variados exercícios de poder disciplinar e de controle contemporâneos. Por meio de pistas abertas por Foucault sobre novos dispositivos do ordenamento mundial e da releitura com contornos institucionalistas do conceito de borda desenvolvidos por Mezzadra e Neilson, procuramos por analisadores históricos e quentes para pintar essa cartografia.

Resistência; poder; controle social


The proliferation of street demonstrations that emerge in the Brazilian scenario transform the ways we question the present. The inauguration of a new moment in recent history opens the horizon of possible. It is in this current time that resistances enroll themselves and where social struggles, facing the processes of exploitation, oppression and domination of capitalism, have new territories to fight. This current adjectival repeatedly as new does not appear out of the blue, but from the agencies that were made with the different lines that compound the strata plot of sedimented power in the humanity history, in their cities and in their officers devices. This article seeks to problematize this immediate present by reassembling the history of some hard-lines that define our current institutions, exposing contemporaries strategies of disciplinary and control power exercise. Through insights released by Foucault about a new world order, and the revised concept of Border developed by Mezzadra and Neilson, we look for historical and current events to paint this cartography.

Résistance; power; social control


En medio de las múltiples manifestaciones que emergieron en el escenario brasileño, la problematización sobre el presente gana otros contornos, donde la inauguración de un nuevo momento, dentro la historia reciente, abre un horizonte de posibles. En ese actual, es que las resistencias se inscriben, y donde las luchas sociales frente a los procesos de explotación, opresión y dominación del capitalismo poseen nuevos territorios de combate. Ese actual reiteradamente adjetivado como nuevo no surge del vacío, sino de los agenciamientos hechos con las diferentes líneas que componen la trama de los estratos de poder sedimentados en la historia de la humanidad, de sus ciudades y de sus dispositivos ordenadores. El presente artículo busca problematizar ese presente inmediato por medio del remontaje de la historia de algunas líneas duras que dieron contorno a las instituciones vigentes, exponiendo el funcionamiento y las estrategias de los variados ejercicios de poder disciplinar y de control contemporáneos. Por medio de pistas lanzadas por Foucault sobre los nuevos dispositivos de ordenamiento mundial, y la relectura con contornos institucionalistas del concepto de borda desarrollados por Mezzadra y Neilson, buscamos analizadores históricos y calientes para pintar esa cartografía.

Resistencia; poder; control social


ARTIGOS TEMÁTICOS

Habitar as bordas e pensar o presente

Occupying the borders and reflecting the present

Habitar la borde e pensar el presente

Katia AguiarI; Felix BerzinsII

IMestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Departamento de Psicologia e da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Brasil

IIPsicólogo, mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutorando em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Filadelfo de Azevedo, 50, Itanhangá - CEP 22. 641-100 - Rio de Janeiro-RJ. Brasil. E-mail: katiafaguiar@uol.com.br

RESUMO

Em meio à multiplicação das manifestações de rua emergentes no cenário brasileiro, a problematização do presente ganha outros contornos, em que a inauguração de um novo momento da história recente abre o horizonte de possíveis. é nesse atual que as resistências se inscrevem e é nele que as lutas sociais diante dos processos de exploração, opressão e dominação do capitalismo possuem novos territórios de combate. Esse atual reiteradamente adjetivado como novo não surge do vazio, mas dos agenciamentos feitos com as diferentes linhas que compõem a trama dos estratos de poder sedimentados na história da humanidade, de suas cidades e de seus dispositivos ordenadores. O presente artigo busca problematizar esse presente imediato por meio da remontagem na história de algumas linhas-duras que dão contornos às instituições vigentes, expondo o funcionamento e as estratégias dos variados exercícios de poder disciplinar e de controle contemporâneos. Por meio de pistas abertas por Foucault sobre novos dispositivos do ordenamento mundial e da releitura com contornos institucionalistas do conceito de borda desenvolvidos por Mezzadra e Neilson, procuramos por analisadores históricos e quentes para pintar essa cartografia.

Palavras-chave: Resistência; poder; controle social.

ABSTRACT

The proliferation of street demonstrations that emerge in the Brazilian scenario transform the ways we question the present. The inauguration of a new moment in recent history opens the horizon of possible. It is in this current time that resistances enroll themselves and where social struggles, facing the processes of exploitation, oppression and domination of capitalism, have new territories to fight. This current adjectival repeatedly as new does not appear out of the blue, but from the agencies that were made with the different lines that compound the strata plot of sedimented power in the humanity history, in their cities and in their officers devices. This article seeks to problematize this immediate present by reassembling the history of some hard-lines that define our current institutions, exposing contemporaries strategies of disciplinary and control power exercise. Through insights released by Foucault about a new world order, and the revised concept of Border developed by Mezzadra and Neilson, we look for historical and current events to paint this cartography.

Key words: Résistance; power; social control.

RESUMEN

En medio de las múltiples manifestaciones que emergieron en el escenario brasileño, la problematización sobre el presente gana otros contornos, donde la inauguración de un nuevo momento, dentro la historia reciente, abre un horizonte de posibles. En ese actual, es que las resistencias se inscriben, y donde las luchas sociales frente a los procesos de explotación, opresión y dominación del capitalismo poseen nuevos territorios de combate. Ese actual reiteradamente adjetivado como nuevo no surge del vacío, sino de los agenciamientos hechos con las diferentes líneas que componen la trama de los estratos de poder sedimentados en la historia de la humanidad, de sus ciudades y de sus dispositivos ordenadores. El presente artículo busca problematizar ese presente inmediato por medio del remontaje de la historia de algunas líneas duras que dieron contorno a las instituciones vigentes, exponiendo el funcionamiento y las estrategias de los variados ejercicios de poder disciplinar y de control contemporáneos. Por medio de pistas lanzadas por Foucault sobre los nuevos dispositivos de ordenamiento mundial, y la relectura con contornos institucionalistas del concepto de borda desarrollados por Mezzadra y Neilson, buscamos analizadores históricos y calientes para pintar esa cartografía.

Palabras-clave: Resistencia; poder; control social

Para pensar o que nos é contemporâneo, seguimos Michel Foucault na proposição de uma análise microfísica do poder em relação imanente a um ethos filosófico caracterizado pela constante interrogação sobre a atualidade enquanto acontecimento. Essa atitude, encarnada no conceito de problematização, aponta para uma necessária e urgente reflexão sobre os limites do que somos e as limitações que nos são impostas. Afirma o autor, que “... a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível. ” (Foucault, 2000, p. 351).

Nessa aposta, a recorrência ao passado quer libertar a história das amarras naturalizadoras tramadas nas redes de saber-poder, operando cortes e expondo linhas, peças e engrenagens arbitrariamente articuladas numa memória-arquivo. Entre a linha de continuidade de um passado que nos determinaria e as montagens de um futuro que nos parece irrevogável estão as contingências que nos fizeram ser o que somos. A perspectiva genealógica da história abala as familiaridades que, como nos lembra Ferraz (2010) numa evocação bersoniana, tornam-nos “autômatos conscientes” (p. 81), remetidos aos hábitos, a figurações e nomeações constituídas e dominantes, reativando em nós, ainda que provisoriamente, a plena potência de percepção.

Incitados pelos estudos foucaultianos, que nos convidam ao constante questionamento das práticas, propomo-nos neste artigo trazer algumas linhas de constituição do presente. Iniciaremos com duas tomadas de cena da historia recente procurando componentes constitutivos de uma nova ordem mundial. A II Grande Guerra e o Onze de Setembro aparecem como acontecimentos, como pontos de ativação e modulação tomados por uma linha dura de lógica (conservadora) binária, operando polarizações maniqueístas. Na sequência, recorremos a um colóquio proferido por Foucault em 1978, na Universidade de Vincennes, no qual apresenta o que denominou de um esquema de funcionamento do Estado, de uma nova ordem interior que obedece a uma nova economia. Embora referida ao Estado francês, entendemos que a exposição disponibiliza elementos/engrenagens da maquinaria de controle que observamos nas instalações neoliberais, contribuindo para a ampliação de nosso campo de análise. Por fim, trazemos a noção de borda, arriscando seu manejo, numa aproximação aos movimentos insurgentes que forçam o futuro a abrir-se a outros possíveis.

SÉCULO XX - A ERA DOS CONTORNOS EXTREMOS

Seguindo os rastros do Império, desde a II Grande Guerra e seus desdobramentos, o surgimento de armas com a mais alta tecnologia e seus usos evidenciaram a prioridade dos investimentos econômicos em armamentos e colocaram em xeque as vias de transformação em inúmeras sociedades. Se no período da Grande Depressão foram postas as condições que vieram a desencadear a Guerra, será com ela ou, a partir dela, que se fará uma nova configuração de mundo.

Em seu estudo sobre o século XX, Hobsbawn (1996) o caracteriza como uma era de extremos que envolveu os povos em enfrentamentos dispendiosos e genocidas, ensaiando uma globalização instalada pela força. Evidencia-se o período da depressão econômica em seus aspectos degradantes e o correlato crescimento de manifestações dos povos diante da instabilidade da economia mundial. O golpe na potência americana é seguido da disseminação de uma crescente insatisfação ante as impossibilidades das condições de vida, e envolve vários países em conflitos. Na maior parte das vezes, como destaca o autor, as desordens levaram à instalação de regimes de esquerda. Somam-se às recomposições em curso nos Estados, como linhas de força concorrentes na emergência das condições de guerra, o desconforto jamais superado pela Alemanha desde sua derrota na I Guerra e a aparente consolidação das conquistas da Revolução (bolchevique) Russa.

As baixas econômicas e humanas consequentes ao prolongado período de guerra levaram o mundo (já que foram envolvidos nos confrontos praticamente todos os países) a viver seu período mais desestabilizador daquele século. Os EUA, desgastados internamente pelas pressões do desemprego e da fome e desacreditados no mundo econômico em sua capacidade de recuperação, teria na II Grande Guerra a oportunidade de reversão desse quadro. Saiu dela como a grande potência mundial, como força catalisadora no âmbito internacional, agregando o mundo econômico e marcando a imposição da expansão do capitalismo, mas tornou-se também referência para as insatisfações até então dispersas e voltadas mais para o interior dos Estados-Nação. Nos desdobramentos da guerra alguns caminhos se delinearam e o dos EUA foi, prioritariamente, o de investimento em tecnologia militar.

A observação de Hobsbawn acerca do surgimento de iniciativas revolucionárias sempre após os períodos de guerra traz à luz aspectos relevantes do funcionamento do poder e sua indissociabilidade em relação à economia. O período que se segue, conhecido como o da Guerra Fria, notabilizou as nações tanto por suas escolhas político-ideológicas quanto por sua capacidade de endividamento. Poderíamos referir esse período que se inaugurava como o do estabelecimento de um novo paradigma que delimitaria o campo de litígio, as condições para o desenvolvimento das lutas e seus limites. Observa-se a consolidação de uma lógica que, repartindo-o ao meio, identificaria aqueles que se alinhavam ao projeto capitalista e aqueles que se instalavam, na perspectiva comunista, como direita e esquerda, respectivamente. Dois blocos, liderados por duas grandes potências, EUA e URSS, disputavam os rumos dos acontecimentos e de projetos aparentemente diferenciados de sociedade.

Essa operação simplificada de dicotomização do mundo se mostra frágil quando se leva em consideração outro elemento que sustentava a recomposição de forças desse período: o endividamento expansivo e intensivo, que se colocava em curso em face das condições profundamente adversas principalmente dos países da Europa. Esse processo atravessa o binarismo instalado no campo da política e cria diferentes impasses que envolvem governos e sociedades em tensões que, muitas vezes, só apresentam soluções de força. Embora, no caso brasileiro, possamos remeter a formação de nossa condição de endividados aos primórdios de nosso descobrimento, foi a partir dos anos 70 que a dívida se acentuou.

Ao lado da imposição do livre-comércio e do controle militar, a dívida se constituiu como outro vetor relevante do processo de dominação que os EUA e seus aliados vão acentuando sobre o território latino-americano. A dívida é imposta a toda região. Entre 1980 e 1999 a dívida daqueles países passou de US$ 228 bilhões para US$ 706 bilhões, tendo eles pagado aproximadamente US$ 750 bilhões de juros. As veias da América Latina nunca estiveram tão abertas. Nos discursos resistentes daqueles anos, apreendemos que o custo financeiro da dívida era tamanho que impedia qualquer tipo de desenvolvimento durável, acentuando a dependência e a vulnerabilidade de nosso país e aumentando a dívida social para a maioria da população pobre (Campanha ALCA, 2003, p. 19).

No que tange à militarização, encontramos que ela se confunde com a história das relações entre os EUA e o continente latino-americano desde o século XIX, exibindo uma série de episódios de intervenção militar, tanto na anexação de territórios (mexicanos) e de países (Porto Rico), quanto na escolha de governantes (Cuba), com interferência direta; mas a II Guerra marca a ampliação desse intervencionismo com a criação de alguns dispositivos, entre eles,

... a Escola das Américas, no Panamá, onde militares latino-americanos eram ensinados nas doutrinas políticas e militares estadunidenses e onde se desenvolviam as estratégias de contra insurgência e espionagem, o que incluía as técnicas de tortura, assassinato seletivo e desaparecimento de pessoas [também foi no pós-guerra que se difundiu no Continente] a concepção de Segurança Nacional.... era necessário combater não só o inimigo externo dos Estados nacionais, mas também o inimigo interno: setores da população que desejavam um projeto nacional próprio, independente dos Estados Unidos e das suas multinacionais.... Desta forma, os Estados Unidos se ocupariam da defesa do Hemisfério Ocidental contra a URSS via corrida armamentista ... e as Forças Armadas de cada país cuidariam do combate aos inimigos internos que, cada vez mais, passaram a ser o próprio povo de cada país latino-americano. (Campanha ALCA, 2003, p. 32).

A denominada militarização envolve, assim, não apenas treinamentos, operações conjuntas, instalações e planos militares em nossos países, mas também mecanismos de vigilância e monitoramento do continente como, por exemplo, da floresta Amazônica. Nesse sentido, o problema da dominação se dilata para além das fronteiras do acesso à informação, para ganhar acesso à trama das minúcias, da "presença concreta e da penetração veloz de um sistema militar-industrial. " (Sodré, 1992, p. 33). Surge a trama de uma economia de fluxos, trocas e instalações que envolve as tecnologias informacionais e midiáticas e o denominado mundo da ilegalidade.

Esse quadro ficou evidente com o regime militar e suas ações intervencionistas ao nível local que, seguindo a inversão efetuada nos anos 30 - quando se observa a criação de novas relações entre poder central e os poderes locais - ratificam a tendência oligárquica brasileira, imprimindo a dependência através de repasses de recursos e nomeações. A investida das mídias em nosso país e sua importância na constituição de um ambiente ameaçador no curso da década de 80 também deve ser levada em consideração como uma força em composição com a militarização, produzindo subjetividades legitimadoras das práticas políticas repressoras. Coimbra (2011) destaca o período como um momento em que a violência cotidiana e seus temas se tornaram manchetes nos meios de comunicação brasileiros, organizando os acontecimentos, criando realidades e simulando consensos, numa perspectiva de esvaziamento das multiplicidades e de reforço ao pensamento dicotômico e maniqueísta.

A violência e a guerra aparecem, assim, como modos frequentes de dominação e de garantia da expansão do capitalismo. Na história da humanidade, a cada tempo surgem práticas que ganham a conotação de hereges, justificando ações de inquisição, atos de escravização e de eliminação de povos e culturas e procedimentos de extermínio de projetos políticos ou de classes. Em nosso presente, os argumentos de abalo e de ameaça ao equilíbrio e à paz social, à moral e aos bons costumes, poderiam ser sintetizados na vulgarizada expressão “ ameaça às instituições”. As ações nomeadas como terroristas recebem igual tratamento, sendo imputadas àqueles que, de modo irracional e não civilizado, colocam-se diante das normas vigentes em atitude de desacato às regras do jogo, fora da ordem, escapando às formas de controle estabelecidas, com atitudes próprias de inimigos. Após o 11 de Setembro, não há dúvidas quanto aos usos desses recursos moralizantes para constituir novas polarizações e consensos, agora justificadas na defesa dos povos contra o fundamentalismo religioso e a cultura do atraso, confirmando a disposição a eliminar por sufocamento qualquer manifestação de resistência localizada que possa representar dificuldades à consolidação da nova hegemonia.

A disseminação da ameaça e do medo pelas grandes guerras, pelos regimes opressores das ditaduras e pela política de extermínio presente nas redes do capitalismo financeiro, parece colocar situações-limite na problematização das resistências. Estas guerras, regimes e políticas sugerem ainda a exploração do dispositivo segurança, considerando suas injunções como subjetividades marcadas pela privatização dos problemas, pela banalização da injustiça e pela descartabilidade dos vínculos. Entendemos que a II Guerra transformou profundamente as condições de existência dos povos; a barbárie fascista e a civilidade atômica foram e ainda são excessos que se impõem e contrastam com a escassez de uma época.

Na polarização do mundo, potencializaram-se embates teóricos em nada isentos: ante as propostas de bem-estar social do newdeal americano, tentativas - ainda que não desinteressadas - de restauração social já arregimentavam as primeiras forças contrárias, insinuando uma necessária e bem-vinda desigualdade no credo conservador neoliberal. No seguimento das condições postas pelo Pós-Guerra – da guerra fria à queda dos muros, do welfare ao estado mínimo, das rebeliões e ditaduras aos regimes participativos – a democracia representativa se afirmará nos moldes de um dispositivo civilizatório, em meio a certo acordo que se constituiu e do qual, pelo que parece, não nos sabemos livrar. O inimigo, que costumamos colocar fora de nós, de nossas práticas e territórios, parece coabitar nossos pretensos espaços de liberdade.

DA ERA DOS EXTREMOS PARA A ERA DE SOBREPOSIÇÃO DE LINHAS

Mesmo durante o curso da Guerra Fria, quando os binarismos eram repetidamente reforçados midiaticamente como um consenso planetário (esquerda-direita, capitalismo-socialismo/comunismo), diversos pensadores já apontavam a ilusão desses contornos simplórios. Guattari (1985), por exemplo, afirmou em plenos anos 80 a completa assimilação da ordem capitalista em todo o planeta, mesmo nos ditos blocos socialistas, apontando para outro tipo de ordenamento do mundo que denominou Capitalismo Mundial Integrado. Com Deleuze (1990), retoma e radicaliza a análise do capitalismo como “sistema imanente que não cessa de expandir seus limites” (p. 60) e do Estado democrático como “uma fantástica indústria de riqueza e de miséria” (p. 70).

No exercício de pensar criticamente esse presente, Michel Foucault (1986), em um colóquio intitulado “Ordem Interior e Controle Social”, desenvolvido na Universidade de Vincennes no ano de 1978, sugeriu a importância para nossa existência de sabermos em que aspectos a ordem que vinha se instalando era realmente nova e qual as suas especificidades. Considerando os desafios colocados pelas disputas que iriam ser geradas pela escassez de energia num futuro próximo que se avizinhava, Foucault abordou a emergência de uma nova ordem interior que se afastaria da programação disciplinar exaustiva para operar segundo outra economia: “uma espécie de 'desinversão', como se o Estado se desinteressasse de certo número de coisas, de problemas e de pequenos detalhes sobre os quais, até agora, havia considerado necessário dedicar uma atenção particular. ” (Foucault, 1986, p. 12; tradução nossa). Nessa nova ordem destacam-se quatro aspectos que se inter-relacionam, a saber: a localização de zonas vulneráveis, a regulação por margens de tolerância, o controle por um sistema de informação geral e a constituição de consenso. Podemos dizer que cada um desses procedimentos do Estado imprime no mundo contemporâneo novas cartografias, com seus novos limites e contornos que falam de outras dinâmicas de exclusão/inclusão. Se o século XX foi palco de dicotomias e binarismos bem-marcados, o final do milênio apontava para a multiplicação das bordas que delimitam e atravessam sujeitos e territórios em diferentes escalas com o fim de ordenar o funcionamento desse capitalismo flexível, flutuante e planetário.

Segundo Foucault (1986), as zonas vulneráveis conotam uma mudança de paradigma de um Estado que, dadas as condições econômicas, já não pode ser onipresente, estando então obrigado a adotar outras estratégias de ordenamento com o objetivo de economizar no seu próprio exercício de poder. Nesse novo procedimento há certo número de zonas de periculosidade em que não se quer que nada aconteça ou em nada não se cederá. Interessante observar, como aponta Foucault (1986), que o que se costuma chamar de terrorismo é um comportamento situado nessa zona de extrema vulnerabilidade, onde as penas são mais numerosas e mais intensas. Sobrepondo-se a essas zonas, mas também transbordando esses limites, as margens de tolerância referem-se a um afrouxamento, a certo relaxamento dos controles cotidianos, deixando à sociedade certo grau de delinquência, de ilegalidade e irregularidade. Na nova ordem, a criação de margens de tolerância tira dos procedimentos ilícitos seu caráter desviante e dos aparatos legais e repressivos sua inoperância, para fazê-los integrantes da ordem, enquanto tecnologias de regulação e produtores do mundo.

A simulação do consenso e o sistema de informação geral nos apontam para um funcionamento normativo que fornece as bases de sustentação para a invisibilidade e legitimação das práticas opressoras cotidianas, sem que o poder tenha que intervir. O sistema de informação se coloca como “uma espécie de mobilização permanente dos conhecimentos do Estado sobre os indivíduos” (Foucault, 1986, p. 12, tradução nossa), permitindo agilizar a intervenção sobre os perigos intoleráveis para o poder.

Se existem efetivamente zonas vulneráveis em nossas cidades marcadas por grandes margens de tolerância e elevado grau de violações, como as periferias, é pela produção do consenso por/no sistema de informação geral, disseminado e capilarizado na sociedade, que se estabelece os silêncios e justificativas para tal funcionamento. O conceito de criminalização da pobreza, por exemplo, fala justamente dessa prática discursiva contemporânea que cria as condições para incursões violentas de agentes de segurança pública nas áreas mais pobres. A figura dos traficantes é traçada com os mesmos contornos dos terroristas, ilustrando o consenso como uma narrativa interpretativa e homogeneizadora das classes perigosas, que forja uma correlação intrínseca entre os pobres moradores dessas zonas vulneráveis e o crime organizado.

O sistema de informação geral ganha ainda mais força na virada do milênio, com as novas tecnologias de informação (internet, celular e seu hibrido smartphone), fomentando um mundo hiperinformatizado e conectado. As imagens, narrativas, notícias e informações em geral ganham o caráter de instantaneidade e invadem nosso cotidiano, imprimindo velocidade e interferindo na qualidade de nossa percepção. A fragilização da grande mídia ante a perda de hegemonia na produção de informação tem como resposta uma complexificação de estratégias para dar continuidade à produção da narrativa oficial. Assim, a máquina de interpretação da realidade passa a se expandir para além de um funcionamento panfletário-maniqueísta, incorporando uma variedade de produções semióticas para consolidar um consenso: a análise de especialistas, a simulação de pesquisas de opinião pública (colando na mídia o papel de espelho da opinião da sociedade) e a manipulação de imagens (só para citar alguns mecanismos) passam a compor o complexo sistema de interpretação oficial da realidade, reforçado ainda pelos modelos de subjetividade dominantes disponibilizados nas novelas, filmes e propagandas. Nesses tempos de produção de consenso, nos quais a instantaneidade aparece como forte elemento, torna-se impossível desconsiderar a mídia e a informática como tecnologias no incremento de um presenteísmo que desmantela qualquer possibilidade de elos na história (Hobsbawn,1995).

Embora os avanços dessas tecnologias ainda não tenham correspondido a um pleno acesso, apreensão e utilização por toda a população, e se tenham prestado pouco à reversão das misérias humanas, seus efeitos podem ser sentidos e observados por todos os cantos sem que sejam necessários grandes esforços. Esse modo de propagação da mídia ganhou em Sodré a denominação de telerrealidade, uma produção de “lugares de absorção e transformação do fluxo histórico-dinâmico da vida social em projeções fantasiosas que fingem dar conta da realidade em sua máxima objetivação. " (Sodré, 1992, p. 15). O autor confirma o tema da comunicação de massa como uma linha a mais a ser considerada nas mutações da atualidade. Os novos modos de ser e de se comunicar são marcados pelo surgimento de novas normatizações que, segundo ele, distanciam-se do funcionamento empreendido pelas disciplinas.

A nosso ver, essas novas regulações operam por composição e interconexão tanto com as disciplinas quanto com as formas de comunicação que se dedicam à transmissão de informações. Parece-nos importante considerar - recorrendo mais uma vez ao colóquio anteriormente citado – que, na nova ordem as coerções, os controles e as incitações operadas pela mídia irão liberar os poderes de uma atuação direta nas áreas de conflito, com uma modificação que faz o Estado aparecer como se fosse uma instância neutra, distanciada e desresponsabilizada de qualquer embate ou decisão, embora ainda os mantenha sob seu controle. Esse funcionamento se constituirá como uma peça importante nas instalações neoliberais:

Uma regulação espontânea fará com que a ordem social se autoengendre, perpetue-se e se autocontrole através de seus próprios agentes ... incumbindo os próprios interlocutores, econômicos e sociais de resolver os conflitos, as contradições, as hostilidades e as lutas. (Foucault, 1986, p. 12, tradução nossa).

As novas tecnologias informacionais e midiáticas tornam-se, assim, dispositivos de controle direto e imediato; vetores importantes nas técnicas contemporâneas de subjetivação – tecnologias do eu – que nos convocam permanentemente ao autoexame e à avaliação de nossos sentimentos e experiências em relação a um projeto de identidade, de realização e de autonomia.

Sem dúvida, o modo como se articulam a comunicação e as condições de vida da população tornou-se uma imperiosa interferência na produção de certos valores, comportamentos e atitudes, a que se somam a ausência de políticas públicas e a privatização dos conflitos. Poderíamos acrescentar que essa forma de articulação interessa ao reforço do consumo enquanto atitude organizadora da experiência, na constituição do presente raso do capitalismo: "presente que quer inviabilizar o passado no que ele tem de potente e impedir que o futuro insista como virtualidade criadora; presente guardião da ordem social. " (Caiafa, 2000, p. 42).

No contexto de uma crise generalizada, de uma transição que abriga uma atmosfera de incertezas, mal-estar e desencanto, o que parece estar em questão é mais do que uma permuta de modelos de referência. A instalação de novas forças e as mutações aceleradas em nosso presente evidenciam, além das ideologias, uma nova forma de operar o poder/gestão das populações e dos conflitos e práticas de inclusão/exclusão e de extermínio e transfiguração do político que, na busca de consensos, constituem-nos como cooperadores. Instala-se um novo regime de regulação social, evidenciando a convivência do poder disciplinar com o controle, pela organização, do tempo e do espaço aberto, controle ao ar livre, caracterizado pela forma difusa dos mecanismos de regulação instalados em dispositivos da vida cotidiana: modulação de comportamentos, das sensibilidades, dos pensamentos e da própria existência. Essa nova forma de regulação visa atingir as virtualidades da existência investindo na programação de sua atualização.

Definitivamente, já adentramos no início de alguma coisa nova, conforme escreve Deleuze (1992) ao problematizar o controle social na atualidade de um capitalismo dispersivo, no qual a fábrica vem cedendo lugar à empresa, os confinamentos/moldes ao controle/modulação e a escola à formação permanente - deslocamentos que caracterizam a passagem das sociedades disciplinares para o que ele denominou de sociedades de controle, com a precipitação de forças que lentamente se instalaram e traçaram novas configurações depois da Segunda Grande Guerra.

Nesses novos tempos, parecemos instalados num processo em que nada termina; tal qual uma moratória sem fim ou uma dívida e(x)terna (expressão tomada de empréstimo a Arruda, 1999), é na constituição de uma alma de empresa que se investe como um grande centro regulador que tem no marketing seu principal instrumento e na corrupção uma potente aliada. A tão propalada crise das instituições se afasta dos termos de uma desordem, de qualquer desmando ou incompetência, para enunciar a "implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. " (Deleuze,1992, p. 224). Sobre isto comenta Lazzarato (2011):

Nós perdemos muito tempo, e perdemos muito, tentando nos livrar de nossos débitos. Fazendo isso, nós já somos culpados! Nós precisamos recuperar essa segunda inocência, livrar-nos da culpa, de tudo que foi adquirido, de toda má consciência, sem devolver um centavo. Precisamos lutar pelo cancelamento do débito, porque o débito, vamos lembrar, não é um problema econômico, mas um aparato do poder projetado não só para nos empobrecer, mas também para trazer catástrofe. (p. 164, tradução nossa).

Se no século XX as demarcações eram sobrecodificadas pela força e contornos geopolíticos dos estados-nações, no novo milênio os traçados se multiplicam e proliferam, sobrepondo mapas que definem e ordenam esse mundo, numa multiplicação qualitativa e quantitativa de contornos – contorno territorial, geopolítico, linguístico, cultural, econômico e jurídico - que tece as malhas do poder do capitalismo. Além da proliferação e sobreposição de linhas, vale destacar a flexibilidade e porosidade de suas composições. Os contornos têm função delimitadora de territórios, como muros e cercas, mas também portam dinâmicas de inclusão/exclusão, exercícios de violência disciplinar, incidências de controle e movimentos de resistência. As linhas de força, muito mais que um simples limite inanimado, são produtoras de figuras/instituições como, por exemplo, a sociedade e o Estado, sendo manejadas nas constantes disputas e combates.

Conjugando o caráter processual desses traçados com seu caráter espacial, o conceito de borda se afirma como uma zona onde ao mesmo tempo o ordenamento capitalista é produzido e dinamizado e se localizam diferentes formas de resistências.

MULTIPLICAÇÃO DAS BORDAS

Encontramos na obra de Mezzadra e Neilson (2013) a borda como campo de pesquisa e como perspectiva epistemológica, o que nos parece uma potente ferramenta de análise sobre o ordenamento difuso e distribuído do Capitalismo Mundial Integrado e das resistências tramadas em seus interstícios. Para os autores, em lugar de estarmos vivendo um mundo sem fronteiras, a globalização gerou a multiplicação de bordas. Como dispositivo organizador do mundo, a borda tem como função articular e organizar os diferentes fluxos constitutivos do capitalismo, e é por meio das disputas travadas no terreno de exercício de poder desses dispositivos normatizadores que se desenha de fato a cartografia do contemporâneo.

Afirmar a proliferação das bordas e sua força produtiva é reafirmar, com novos contornos, um posicionamento político com as raízes materiais das lutas cotidianas e territoriais marcadas pela normatização de identidades e da própria cidade; é uma escolha que favorece o enfrentamento do risco iminente de invisibilizar as referidas lutas com as análises que se prendem unicamente ao caráter flexível e fluido do ordenamento mundial. Assim, reafirmar os limites impostos pelo capitalismo, ressaltando a institucionalização de um espaço-exercício de suas bordas, é reconhecer que os inúmeros processos de diferenciação contemporâneos continuam a produzir formas concretas de dominação e exploração de sujeitos, classes e países. Rebeldes, terroristas e imigrantes que ali se movem/habitam não são mais constrangidos pelos diferentes artifícios de controle e o exercício da coerção disciplinar é opção sempre presente, reforçando novamente, na história da humanidade, a linha de violência e guerra como recurso último de normalização: "no cabaré da globalização, o estado se mostra como uma dançarina que se despe de tudo ate ficar somente com o mínimo de vestimenta indispensável: a força repressiva. " (Marcus, 2004, citado por Roos, 2013, p. 4).

A borda é uma zona-limite de segurança-isolamento concreta, não somente um conceito filosófico. é um dispositivo material da sociedade que, assim como a prisão-escola-fábrica, exerce pela disciplina e controle, o poder de um Estado a serviço do capitalismo. São fronteiras de territórios em disputa geográficas e geopolíticas, como a Palestina, mas também lugares delimitados por esferas de ordem simbólica, linguística, cultural e urbana. Em outras palavras, a borda compõe um conjunto de dispositivos de normatização que organizam e produzem o mundo. Não podemos esquecer as marcas nos sujeitos e no seu entorno produzidas por imperialismos e colonialismos, machismos, racismos, xenofobias, lutas de classes e tantas outras formas de exploração/dominação/opressão que, de certa forma, são oriundas da imposição de contornos concretos que nos atravessam e imprimem um emaranhado de segregações do contemporâneo. Em todas essas delimitações a borda exerce uma função crucial de ordenamento por hierarquizações e estratificações. Sua territorialidade aponta para questões referentes ao direito à cidade - moradia, transporte, saúde, educação, segurança, acesso a políticas públicas -, e nos permite ajustar o olhar sobre as dinâmicas de inclusão/exclusão exercidas por diferentes aparelhos estatais. Em suma, a noção de borda nos desloca para um ângulo epistemológico que constrói um novo olhar, uma nova percepção das forças que constituem sujeitos, cidades e suas relações.

Sob esse aspecto, as zonas vulneráveis pensadas por Foucault (1986) no final dos anos 70 podem ser revisitadas, assumindo a caracterização de zonas de sobreposição de bordas. As chamadas periferias e os diferentes processos de marginalização que as atravessam, por exemplo, carregam no próprio nome a marca de estar em diferentes tipos de zonas-limites: nas bordas de uma sociedade de consumo, da cidadania, da divisão de classes, da segregação racial, dos direitos humanos e em outras tantas bordas. O relaxamento intrínseco das margens de tolerância aponta para dois horizontes: a intensificação da violência como exercício disciplinar de contenção (observada em relação à produção de violências nas periferias, particularmente as de origem estatal) e a própria produção de ilegalidade como recurso do sistema capitalista, como encontramos nas zonas de fronteira geopolítica, que têm como função manter a soberania de um território e ditar a dinâmica de inclusão/exclusão de sujeitos e produtos.

Além de terem uma função limitadora e de contenção, essas zonas de fronteiras são também produtoras de uma ilegalidade em particular de reconhecida importância para os mercados de trabalho neoliberais: os imigrantes ilegais. com mexicanos nos EUA a chineses no Brasil, as economias nacionais globalizadas necessitam desses setores da população para a manutenção de suas altas taxas de lucro. Assim, a tolerância presente na borda serve tanto para abrir espaços para a intensificação do uso da violência, como forma de coerção disciplinar pelos agentes do estado, quanto para a produção de diferentes classes de ilegais que, tendo ultrapassado limites, num movimento não autorizado, tornam-se sujeitos sem pátria, sem direitos, e por isso, mais fragilizados perante as estratégias de exploração trabalhista. é por meio dessa marca de ilegalidade que os imigrantes nunca efetivamente ultrapassam a fronteira, mas continuam na sua borda, ou melhor dizendo, são sempre atravessados por ela, estando assim sob constante controle e em risco. Nessas condições, em meio a um jogo de chantagens, esses refugiados do sistema capitalista se submetem a condições mais precárias de vida como forma de se fazerem necessários nas terras de exílio. O Estado os tolera enquanto conseguem manter esse tipo de utilidade, mas na invisibilidade das margens de tolerância, estão submetidos a contextos extremos e constantes das mais variadas formas de violência. Essa dinâmica é tão real para imigrantes ilegais como para outros sujeitos borderlines, fixados nas bordas da cidadania e dos direitos humanos, como os sem propriedade privada, sem poder aquisitivo e sem moradia; sobrevivendo precarizados nas diferentes periferias das cidades.

Se com Foucault se afirma um modo de exercício do poder não mais localizado em um centro, mas de forma microfísica e difusa, os estudos de Mezzadra e Neilson (2013) sugerem um segundo deslocamento analítico - para nós, em ressonância com as contribuições oferecidas por Foucault no colóquio aqui referido -, recolocando geograficamente o exercício do poder e empurrando seu centro de gravidade para as margens. Da noção de um poder que emana do centro para a percepção da intensificação do exercício de poder nas bordas, os autores constroem um novo mapa de leitura do poder capitalista, uma nova cartografia que localiza as disputas nessas zonas-limites. A centralidade das bordas indica a abertura de um novo horizonte de possíveis dentro do consenso estabelecido de que não mais podemos pensar a transformação do estado de coisas vigente por meio da ultrapassagem dos limites impostos, pois não há um fora. A busca por espaços de liberdade e por funções de autonomia, como sugeriu Guattari (1996), aparece na construção de possíveis, em meio às disputas pelos traçados que nos delimitam. Nessa visada, as resistências podem ser pensadas como ocupações nas bordas, em uma atitude de permanente confronto com Estado em nós, forçando seus limites e/ou criando outras bordas para sustentar contornos do terreno de um comum em construção.

A RESISTÊNCIA NAS BORDAS DO PRESENTE

Até aqui procuramos desenhar um campo de análise lançando nosso olhar sobre algumas linhas que tecem nosso presente: linhas de ordem econômica, de militarização, de violências e guerras. Apontamos também, com Foucault (1986), o surgimento de um novo ordenamento mundial, caracterizado pela delimitação de zonas vulneráveis, de margens de tolerância e da constituição de consenso para, por fim, expor a multiplicação das bordas e sua centralidade na articulação e ordenamento do capitalismo, atualizando dispositivos de poder disciplinar e de controle. Na trama dessas diferentes linhas que traçamos até aqui, o presente emerge na superfície como acontecimento que enseja outros possíveis. Este presente tem se apresentado singularmente como um período quente da história, no qual as jornadas de junho no Brasil podem ser tomadas como analisadoras a expor tanto linhas-duras ordenadoras do capitalismo quanto linhas de fuga das quais podemos nos utilizar agenciando montagens-desmontagens-remontagens nas resistências contemporâneas. Afirmamos, assim, a ocupação das ruas como um dispositivo analisador, pois torna manifesto “o jogo de forças, os desejos, interesses e fantasmas dos segmentos organizacionais” de nossa sociedade. (Baremblitt, 2002 p. 135).

Se nas ruas emergem tensionamentos, estes certamente são efeitos, de certo modo, de manifestações que criam no seu entorno a sua própria borda e forçam a explosão dos exercícios de poder e controle constituintes dos equipamentos sociais brasileiros. As manifestações, em sua heterogeneidade, expõem os conflitos intrínsecos de suas margens por meio da produção semiótica de caráter denunciativo - expresso em diferentes cartazes e palavras de ordem – mas, principalmente, movendo-se e criando uma zona a partir da afirmação de um ordenamento outro que não estatal. No contexto das ruas, uma zona autônoma temporária (Bey, 2001) surge como forma de resistência, catalisando forças de contestação aos consensos forjados pela grande mídia, à legitimidade dos governantes e à autoridade dos agentes de segurança pública. No curto período em que existem, os protestos de rua conseguem intensificar os conflitos típicos das bordas de nossa cidade, utilizando-se dos corpos de seus manifestantes (Oliveira, 2007) como uma vitrine dos modos de coerção disciplinar e controle do Estado. As violências repressivas, hiperexpostas em imagens produzidas por diferentes coletivos de mídia alternativa, problematizam em ato uma segurança pública militarizada a mando de interesses econômicos que exercem, com toda a perversidade intrínseca, uma lógica (dura) que remonta a tempos ditatoriais.

é pelas palavras de ordem e pela inscrição dos/nos corpos em meio às forças que os efeitos materiais e imateriais das violências do Estado são colocados em questão, sugerindo a desmilitarização da segurança pública como ponto de pauta. O despreparo de seus agentes para estabelecer uma relação de diálogo com a população - objetivada como inimigo - e a reprodução de violências emergem como elementos constitutivos das instituições militares e do equipamento de segurança pública brasileiro. O exercício de controle também é francamente exposto nas bordas da rua, nos procedimentos de criminalização dos manifestantes e na produção de um consenso moralizante sustentado pela produção do medo, forjando, na atualização do terrorista, a figura do vândalo - os black block e suas práticas de depredação do patrimônio privado fornecem a estética atual manipulada pelas mídias. Além disso, encontramos também a multiplicação de sujeitos e coletivos produtores de mídias alternativas que fornecem outras narrativas aos acontecimentos, e a infestação de subjetividades singulares que expressam sua recusa ao consumo de padrões dominantes, mais ou menos contagiadas pela estética do vandalismo. A elaboração da crítica expressa no bordão “ sem hipocrisia, a polícia mata pobre todo dia”, e a multiplicação de revoltas em zonas de periferia como resposta a eventos de homicídio de jovens por parte de agentes de segurança pública, podem ser tomados aqui como exemplos ou indicativos da intensificação dessas forças paradoxais sobre a população jovem, pobre e negra que vive nas bordas das cidades.

As grandes insurgências de rua observadas recentemente não só no Brasil, mas em todo o mundo, reforçam o argumento aqui proposto de que é na borda e com os que são atravessados por suas tensionadas linhas de força que se exercem os processos de resistência e a luta por outras cartografias de mundo. Reconhecendo a diversidade de interesses e de motivações que mobilizam os recentes levantes, desde 2011, e lembrando algumas críticas endereçadas aos novos movimentos sociais na década de 70/80, avaliamos como importante abandonarmos antigos critérios que julgam os modos de organização dos coletivos e os classificam como sendo ou não pertinentes às lutas contra o sistema. Tais críticas, ora marcadas pelas referências de um verdadeiro caminho revolucionário das esquerdas, ora apoiadas numa tática desmobilizadora dos que representam o status quo, ligam a diversidade a problemas locais, particularizando os protestos. Para Zizek (2013), o que une essa multiplicidade “é que [os protestos] são todos reações contra as múltiplas facetas da globalização. ” (p. 104)

De fato, o direito à cidade abriga diferentes demandas que, tomadas isoladamente, podem parecer insignificantes - como os tais vinte centavos somados ao valor das passagens – mas todas funcionaram como disparadores de indisciplinas e insurgências endereçadas ao sistema do capital e suas mazelas, entre elas a expansão do mercado, a clausura do espaço público, o encolhimento de sua rede de serviços e o incremento do autoritarismo político. Da Síria ao Egito, deslocando-se para a Espanha, a Grécia, os EUA, o México, o Chile, a Turquia e o Brasil, as experimentações vivenciadas nas diferentes zonas autônomas temporárias criadas nos eventos parecem contagiar e modular subjetividades talvez sinalizando uma infestação irreversível.

Em análise recente, Roos e Oikonomakis (2013) denominam de “Movimento Pela Democracia Real” o recente ciclo de insurgências ao redor do mundo, e afirmam que, apesar das distâncias e dos diferentes contextos, essas insurgências não estão isoladas umas das outras. Os autores destacam as ideias que se interconectam e se sobrepõem nos movimentos: radical autonomia em relação ao Estado, expressa na ideia de “tomar o mundo sem tomar o poder”; rejeição à representação como forma de organização política em favor de assembleias horizontais e democracia direta; sistemática recusa a elaborar demandas aos governos em função da inspiração anarquista de ação direta; ocupação como método de luta; modelo de luta política pré-figurativa, em que a forma de organização do movimento deve espelhar a sociedade que queremos.

Os manifestantes, as mídias alternativas e os coletivos de pensadores/pesquisadores que têm tomado a revolução em andamento como objeto privilegiado de suas pesquisas militantes (Bookchin et al. , 2013), em conexão com os diversos eventos insurgentes nas últimas décadas - como o ciclo de manifestações antiglobalização ocorridas no Hemisfério Norte entre os anos 1999-2002 - dão corpo a uma nova gramática política em construção por essa rede aberta. Se os indignados espanhóis canalizaram a potência da crítica ao sistema de governo representativo através do conceito de “Democracia Real Já”, o movimento Occupy Wall Street contribui com a reinvenção da linguagem da democracia através da ressignificação das lutas de classes ao expandir seus contornos na afirmação da precarização de 99% da população mundial. Já a contribuição brasileira também se mostra singular, pois, conforme afirmação de Ortellado (2013), a jornada de junho de 2013 conseguiu emplacar mudanças reais que geraram um impacto concreto na vida cotidiana do trabalhador comum, fato que, muito mais do que a economia de 20 centavos, por exemplo, contribui fortemente para uma consciência revolucionária ao mesmo tempo em que aponta para objetivos mais amplos, como a desmercantilização dos serviços públicos e o direito à mobilidade urbana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos trazendo a pergunta, elaborada por Jerome Roos (2013) no título do seu artigo: “Autonomia, uma ideia que cujo tempo chegou?” Se com Foucault problematizamos o presente analisando os limites a nós impostos para um exercício de ultrapassagem, uma aposta escorada em um novo campo semântico da gramática política em construção é a de que o que precisamos superar são os próprios modos de ordenamento - disciplinar e de controle – na elaboração de novos contornos a partir de práticas autogestionárias em todas as esferas da sociedade que, em última instância, querem definir, elas próprias, suas bordas, suas práticas de ordenamento e articulação e novas institucionalidades - um processo sem fim, mas que já se encontra em pleno andamento:

Melhor do que ser erroneamente levado a pensar que precisamos desesperadamente inventar algo completamente novo nunca antes tentado ou pensado, temos que conceber como desafio a atualização das potencialidades não efetivadas e a expansão de alternativas reais já existentes. Nesse sentido, temos que reconhecer que a sociedade revolucionária já está sendo feita enquanto nós falamos - seja através da produção e distribuição de softwares livres seja pela ocupação de fábricas falidas e o seu recomeço de produção sob o controle dos trabalhadores; seja na formação de democracia direta em comunas rurais e assembleias de bairro urbanas, seja pela criação de coletivos de mídia alternativa administrados cooperativamente e jornais acadêmicos de código aberto [ open-source]. (Roos, 2013, p. 14, tradução nossa).

As oportunidades disponibilizadas para a construção de uma resistência nas esferas local e global partem dos mesmos contornos, terrenos e dispositivos que os de ordenamento do mundo expostos até então. A luta na borda, o uso de um sistema geral de informação como forma de articulação, compartilhamento e contágio de subjetividades revoltosas, e a constituição de consensos já não forjados pelas mídias, mas acordados como algo comum a todos os envolvidos nessa luta. As experimentações parecem produzir suas próprias sedimentações (proposições e lições desdobradas a cada evento) e suas linhas de fuga (movimentos de escape e expansão de limites, derivas minoritárias). Há um devir revolucionário que se espreita - como sugeriram Deleuze e Guattari (1996) - numa certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventá-los, em percursos à procura do estatuto de uma máquina de guerra.

Recebido em 15/11/2013

Aceito em 03/09/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Aceito
      03 Set 2014
    • Recebido
      15 Nov 2013
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