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Esboços de psicologia: introdução

SEÇÃO ESPECIAL

Esboços de psicologia – introdução1 1 O presente texto é a tradução da "Introdução" do livro "Outlines of Psychology" (1896, pp. 1-27), de autoria de Wilhelm Wundt (1832-1920), a partir da versão inglesa de Charles Hubbard Judd (1873-1946).

Wilhelm Wundt

Tradutor: Estêvão de Carvalho Freixo* * Graduando em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Conselheiro Olegário, n. 19, ap. 902 CEP 20271-090 - Rio de Janeiro-RJ, Brasil E-mail: estevaof@ig.com.br

1. O PROBLEMA DA PSICOLOGIA

1. Duas definições de psicologia têm sido mais proeminentes na história desta ciência. De acordo com uma delas, psicologia é a "ciência da mente"; considera os processos psíquicos como fenômenos a partir dos quais é possível inferir a natureza de uma substância mental subjacente. De acordo com a outra, psicologia é a "ciência da experiência interior". Neste caso, os processos psíquicos são vistos como pertencendo a uma forma específica de experiência, que é prontamente distinta pelo fato de que seus conteúdos são conhecidos através da "introspecção" ou através do "sentido interior", como se diz quando se usa a expressão que tem sido empregada para distinguir introspecção de sensopercepção através dos sentidos exteriores.

Nenhuma destas definições, contudo, é satisfatória para a psicologia dos dias de hoje. A primeira, definição metafísica, pertence a um período de desenvolvimento que durou mais tempo nesta ciência que em outras. Mas é deixada definitivamente para trás, uma vez que a psicologia se desenvolveu enquanto uma disciplina empírica, operando com métodos próprios; e uma vez que as "ciências mentais" foram reconhecidas como um grande departamento de investigação científica, distinto da esfera das ciências naturais, requerendo como base uma psicologia independente, livre de todas as teorias metafísicas.

A segunda, definição empírica, que vê na psicologia a "ciência da experiência interior", é inadequada porque pode dar margem ao mal-entendido de que a psicologia tem a ver com objetos totalmente diferentes dos objetos da também chamada "experiência exterior". De fato, é verdade que existem certos conteúdos da experiência que pertencem à esfera da investigação psicológica, e não devem ser encontrados entre os objetos e processos estudados pela ciência natural, tais como nossos sentimentos, emoções e decisões. Por outro lado, não há um único fenômeno natural que não possa, de um ponto de vista diferente, tornar-se um objeto da psicologia. Uma pedra, uma planta, um som, um raio de luz são, quando tratados como fenômeno natural, objetos da mineralogia, botânica, física, etc. Contudo, na medida em que são ao mesmo tempo ideias, são objetos da psicologia, uma vez que a psicologia procura dar conta da gênese destas ideias, assim como tenta compreender suas relações com outras ideias e com aqueles processos psíquicos que não são referentes a objetos externos, tais como sentimentos, volições, etc. Não há, portanto, tal coisa como um "sentido interior" que pode ser considerado como um órgão de introspecção que é distinto dos sentidos exteriores, ou dos órgãos da percepção objetiva. As ideias das quais a psicologia procura investigar os atributos são idênticas àquelas nas quais a ciência natural se baseia, e as atividades subjetivas de sentimento, emoção e volição, que são negligenciadas na ciência natural, não são conhecidas através de órgãos especiais, mas são direta e inseparavelmente conectadas com as ideias que se referem a objetos externos.

2. Segue-se, então, que as expressões experiência exterior e interior não indicam objetos diferentes, mas diferentes pontos de vista a partir dos quais nós tomamos em consideração e tratamos cientificamente certa experiência. Nós somos naturalmente levados a estes pontos de vista, porque toda experiência concreta imediatamente se divide em dos fatores: um conteúdo a nós apresentado e nossa apreensão deste conteúdo. Nós chamamos o primeiro destes fatores objetos da experiência, o segundo, sujeito da experiência. Esta divisão indica duas direções para o tratamento da experiência. Uma é aquela das ciências naturais, que se preocupa com os objetos da experiência, pensados como independentes do sujeito. A outra é aquela da psicologia, que investiga todo o conteúdo da experiência em suas relações com o sujeito e também em relação aos atributos que este conteúdo deriva diretamente do sujeito. Consequentemente, o ponto de vista da ciência natural pode ser designado como aquele da experiência mediata, uma vez que somente é possível após a abstração do fator subjetivo presente em toda experiência atual; o ponto de vista da psicologia, por outro lado, pode ser designado como aquele da experiência imediata, uma vez que propositalmente deixa de lado esta abstração e todas suas consequências.

3. A atribuição deste problema à psicologia, fazendo-a uma ciência geral, empírica, coordenada com as ciências naturais e suplementar a elas, tem sua justificativa no fato de que ela fornece as bases para o método utilizado por todas as ciências da mente. Todas essas ciências, filologia, história e ciências sociais e políticas, têm como seu objeto de estudo a experiência imediata enquanto determinada pela interação dos objetos com sujeitos conhecidos e ativos. Nenhuma das ciências da mente emprega as abstrações e conceitos hipotéticos da ciência natural; muito pelo contrário, elas todas aceitam ideias e atividades subjetivas que acompanham a experiência como realidade imediata. O esforço então que se faz é no sentido de se explicar os componentes individuais desta realidade através de suas interconexões mútuas. Este método de interpretação psicológica empregado em cada uma das ciências especiais da mente deve também ser o modo de proceder da própria psicologia, uma vez que é o método requerido por seu objeto de estudo, que é a realidade imediata da experiência.

3a. Uma vez que a ciência natural investiga o conteúdo da experiência depois de abstrair do sujeito da experiência, seu problema é normalmente estabelecido como aquele da aquisição de "conhecimento do mundo exterior". Pela expressão "mundo exterior" quer se dizer a soma total de todos os objetos presentes na experiência. O problema da psicologia tem sido algumas vezes definido como "autoconhecimento do sujeito". Esta definição é, contudo, inadequada, porque a interação do sujeito com o mundo exterior e com outros sujeitos similares é tanto uma parte do problema da psicologia quanto são os atributos do sujeito quando este é tratado individualmente. Além disso, essa expressão pode facilmente ser interpretada de modo a dizer que o mundo exterior e o sujeito são componentes separados da experiência, ou, no mínimo, componentes que podem ser distinguidos como conteúdos independentes da experiência, ao passo que, na verdade, a experiência exterior está sempre conectada com as funções de apreensão e conhecimento do sujeito, e a experiência interior sempre contém ideias do mundo externo como componentes indispensáveis. Esta interconexão é o resultado necessário do fato de que na realidade a experiência não é uma mera justaposição de diferentes elementos, mas um todo organizado que requer em cada um de seus componentes o sujeito que apreende o conteúdo e os objetos que são para ele apresentados. Por esta razão, a ciência natural não pode abstrair inteiramente do sujeito cognoscente, mas somente daqueles atributos do sujeito que ou desaparecem inteiramente quando removemos o sujeito em pensamento, como, por exemplo, os sentimentos, ou daqueles atributos que devem ser considerados no campo das pesquisas físicas como pertencendo ao sujeito, como, por exemplo, as qualidades das sensações. A psicologia, ao contrário, tem como seu objeto o tratamento do conteúdo total da experiência em seu caráter imediato.

A única base, portanto, para a divisão entre a ciência natural de um lado e a psicologia e as ciências mentais de outro, deve ser encontrada no fato de que toda experiência contém como seus fatores um conteúdo objetivamente apresentado e um sujeito cognoscente. Mesmo assim, não é de forma alguma necessário que a definição lógica destes dois fatores deva preceder a separação de uma ciência da outra, pois é óbvio que tais definições somente são possíveis uma vez que já existam as bases para as investigações da ciência natural e da psicologia. Estas bases são necessárias para se pressupor em primeiro lugar que é a consciência que acompanha toda experiência, e que nesta experiência objetos são apresentados ao sujeito. Não se podem conhecer de antemão as condições sobre as quais esta distinção é baseada, ou as características específicas pelas quais um fator deve ser distinguido de outro. Mesmo o uso dos termos objeto e sujeito neste contexto devem ser considerados como integrantes do primeiro estágio de distinções que só se alcança a partir de uma reflexão lógica sobre a experiência.

As formas de interpretação na ciência natural e na psicologia são suplementares, não apenas no sentido de que a primeira considera os objetos depois de abstraí-los, tanto quanto possível, do sujeito, enquanto a segunda trata do papel exercido pelo sujeito no surgimento da experiência; mas são também suplementares no sentido de que cada uma delas tem um ponto de vista diferente ao considerar os conteúdos individuais da experiência. A ciência natural procura descobrir a natureza dos objetos sem fazer referência ao sujeito. O conhecimento que ela produz é, portanto, mediato ou conceitual. Em lugar dos objetos imediatos da experiência, ela estabelece conceitos que são obtidos a partir destes objetos através da abstração dos componentes subjetivos de nossas ideias. Esta abstração faz com que seja necessária uma contínua suplementação da realidade com elementos hipotéticos. A análise científica mostra que muitos componentes da experiência – como, por exemplo, as sensações – são efeitos subjetivos de processos objetivos. Desta forma, estes processos objetivos, se independentes do sujeito, não podem jamais ser uma parte da experiência. A ciência compensa esta falta de contato direto com os processos objetivos, formando conceitos hipotéticos a fim de explicar as propriedades objetivas da matéria. A Psicologia, por outro lado, investiga os conteúdos da experiência em sua forma real e completa, isto é, tanto as ideias que se referem aos objetos, como os processos subjetivos que a elas se ligam. Portanto, o conhecimento obtido na psicologia é imediato e perceptual - perceptual no sentido amplo do termo, onde não apenas sensopercepções, mas toda a realidade concreta se distingue de tudo o que é abstrato e conceitual em pensamento. A Psicologia só pode exibir a interconexão dos conteúdos da experiência tal como é realmente apresentada para o sujeito na medida em que evita inteiramente as abstrações e conceitos suplementares da ciência natural. Assim, enquanto a ciência natural e a psicologia são ambas ciências empíricas no sentido de que elas almejam explicar os conteúdos da experiência, embora de diferentes pontos de vista, é óbvio que, em razão da natureza especial de seus problemas, a psicologia deve ser reconhecida como a mais estritamente empírica.

2. TEORIAS GERAIS SOBRE PSICOLOGIA

1. A visão de que a psicologia é uma ciência empírica que lida não apenas com um grupo limitado de conteúdos específicos da experiência, mas com os conteúdos imediatos de qualquer experiência, é de origem recente. Esta ideia encontra, mesmo na ciência de hoje, posições adversárias, que devem ser vistas, em geral, como sobreviventes de fases anteriores de desenvolvimento, que, por sua vez, se voltam uma contra a outra, conforme suas atitudes sobre a questão das relações da psicologia com a filosofia e com as outras ciências. Partindo das duas definições mencionadas acima (seção 1, 1), como sendo as mais amplamente aceitas, duas formas principais de psicologia podem ser distinguidas: a psicologia metafísica e a psicologia empírica. Cada uma delas se subdivide posteriormente em um certo número de tendências.

A psicologia metafísica geralmente valoriza muito pouco a análise empírica e a interpretação causal dos processos psíquicos. No que diz respeito à psicologia como uma parte da metafísica na filosofia, seu principal esforço se dirige no sentido da descoberta de uma definição da "natureza da mente", que deve estar de acordo com o sistema metafísico ao qual a forma particular desta psicologia pertence. Depois de então ter sido estabelecido um conceito metafísico de mente, o esforço realizado é no sentido de deduzir dele o conteúdo real da experiência psíquica. Assim, a característica que distingue a psicologia metafísica da psicologia empírica é sua tentativa de deduzir os processos psíquicos não de outros processos psíquicos, mas de algum substrato inteiramente diverso destes processos: ou das manifestações de uma certa substância mental, ou dos atributos e processos da matéria. Neste ponto, a psicologia metafísica se ramifica em duas direções. A psicologia espiritualista considera os processos psíquicos como sendo as manifestações de uma substância mental específica, que é considerada ou como essencialmente diferente da matéria (dualismo), ou como relacionada à matéria em sua natureza (monismo ou monadologia). A principal ideia da doutrina metafísica da psicologia espiritualista é a suposição da natureza supra-sensível da mente, e, em consequência disto, a suposição de sua imortalidade. Algumas vezes, a noção de preexistência é também acrescentada. A psicologia materialista, por outro lado, relaciona os processos psíquicos ao mesmo substrato material que a ciência natural emprega para a explicação hipotética do fenômeno natural. De acordo com este ponto de vista, os processos psíquicos, como os processos vitais do corpo, estão ligados a certas organizações de partículas de matéria que são formadas durante a vida do indivíduo e destruídas no final. O caráter metafísico desta forma de psicologia é determinado pela sua negação de que a mente é de natureza supra-sensível, como se afirma na psicologia espiritualista. Ambas as teorias tem em comum o fato de que não procuram interpretar a experiência psíquica a partir da experiência em si mesma, e sim derivá-la de pressuposições acerca dos mecanismos de um substrato metafísico.

2. Do debate que sucedeu essas tentativas na explicação metafísica, surgiu a psicologia empírica. Onde quer que a psicologia empírica seja consistentemente conduzida, ela se esforça ou para categorizar os processos psíquicos sob conceitos gerais que derivam diretamente da interconexão destes processos, ou começa com certos processos simples e então explica os mais complicados como sendo o resultado da interação daqueles com os quais começou. Pode haver vários princípios fundamentais para tal interpretação empírica, e, portanto, torna-se possível distinguir uma grande variedade de psicologias empíricas. Em geral, estas podem ser divididas de acordo com dois princípios de classificação. O primeiro faz referência à relação entre experiência interna e externa e à atitude que as duas ciências empíricas, ciência natural e psicologia, tomam uma em direção à outra. O segundo faz referência aos fatos, ou conceitos derivados destes fatos, que são usados para a interpretação dos processos psíquicos. Todo sistema de psicologia empírica se enquadra em um destes princípios de classificação.

3. Na questão geral quanto à natureza da experiência psíquica devem ser considerados os dois pontos de vista já mencionados (seção 1) por causa de sua importância decisiva em determinar o problema da psicologia: a psicologia do sentido interior, e a psicologia enquanto ciência da experiência imediata. O primeiro trata os processos psíquicos como conteúdos de uma parte da experiência que se coordena com outra derivada dos sentidos exteriores, sendo esta última atribuída ao campo das ciências naturais; considera, no entanto, que, apesar de coordenadas, estas esferas diferem totalmente uma da outra. O segundo não reconhece diferença real entre experiência interior e exterior, mas vê distinção apenas nos diferentes pontos de vista a partir dos quais a experiência individual é considerada.

O primeiro destes dois modelos de psicologia empírica é o mais antigo. Surgiu primeiramente através do esforço para se estabelecer a independência da observação psíquica em oposição às transgressões à filosofia natural. De tal modo equiparando a ciência natural e a psicologia, este modelo vê justificação para o igual reconhecimento de ambas as esferas de ciência ante o fato de que elas têm objetos, bem como modos de percebê-los, inteiramente diferentes. Esta visão influenciou a psicologia empírica de duas maneiras. Em primeiro lugar, favoreceu a opinião de que a psicologia deveria empregar métodos empíricos, mas que estes métodos deveriam ser fundamentalmente diferentes dos da ciência natural. Em segundo, fez surgir a necessidade de se mostrar algum tipo de ligação entre estes dois tipos de experiência, que supostamente eram diferentes. No que diz respeito à primeira mudança, foi principalmente a psicologia do sentido interior que desenvolveu o método da introspecção pura (seção 3,2). Na tentativa de resolver o segundo problema, esta psicologia foi necessariamente levada de volta a uma base metafísica, em razão de sua suposição quanto a uma diferença entre os conteúdos físicos e psíquicos da experiência. Em função da própria natureza da questão, é impossível esclarecer as relações entre experiência interna e externa, ou da chamada "interação entre corpo e alma", a partir desta posição, exceto através de pressuposições metafísicas. Este impasse, portanto, afetou a investigação psicológica de tal modo a resultar na importação de hipóteses metafísicas.

4. Essencialmente distinta da psicologia do sentido interior é a forma de psicologia que se define como "a ciência da experiência imediata". Considerando a experiência interior e exterior não como partes diferentes da experiência, mas como modos diferentes de olhar para uma única experiência, esta forma de psicologia não pode admitir nenhuma diferença fundamental entre os métodos da psicologia e os da ciência natural. Tem, portanto, procurado acima de tudo cultivar métodos experimentais que conduzam a uma análise exata dos processos psíquicos, assim como aqueles que a ciência natural empreende no caso do fenômeno natural, sendo, portanto, as únicas diferenças entre estas duas ciências aquelas que se devem à diferença de ponto de vista. Defende também que as ciências da mente que lidam com processos e criações mentais concretos também se desenvolvem a partir da consideração científica dos conteúdos imediatos da experiência e de suas relações com sujeitos ativos. Segue-se, então, que a análise psicológica dos produtos mentais mais gerais, como a linguagem, as ideias mitológicas e as leis dos costumes, deve ser considerada como um auxílio à compreensão de todos os processos psíquicos mais complicados. Sendo assim, em seus métodos, esta forma de psicologia permanece em relação próxima a outras ciências: como psicologia experimental, às ciências naturais; como psicologia social, às ciências da mente. Finalmente, deste ponto de vista, a questão da relação entre objetos físicos e psíquicos desaparece inteiramente. Eles não são de forma alguma objetos diferentes, mas, ao contrário, são um e o mesmo conteúdo da experiência, vistos, no caso das ciências naturais, depois de se abstrair do sujeito, e, no caso da psicologia, em seu caráter imediato e em sua relação completa com o sujeito. Todas as hipóteses metafísicas no que diz respeito à relação entre objetos físicos e psíquicos são, quando assim compreendidas, tentativas de resolver um problema que nunca teria existido se o caso tivesse sido corretamente definido.

Embora a psicologia deva então dispensar as hipóteses metafísicas suplementares no tocante à interconexão de processos psíquicos, uma vez que estes processos são os conteúdos imediatos da experiência; outro método de procedimento, todavia, pode ser utilizado, uma vez que a experiência interna e externa são pontos de vista complementares. Onde quer que a investigação da interconexão dos processos psíquicos apresente lacunas é possível voltar aos métodos físicos utilizados para se considerar os mesmos processos, a fim de se saber se, sob o critério utilizado pelas ciências naturais, essas faltas podem ser supridas. O mesmo acontece no caso inverso de se completar as lacunas na continuidade do conhecimento fisiológico através de elementos derivados da investigação psicológica. Somente com base neste ponto de vista, que estabelece as duas formas de conhecimento em sua verdadeira relação, é possível para a psicologia se tornar em sentido pleno uma ciência empírica. Somente deste modo pode a fisiologia se tornar a verdadeira ciência complementar da psicologia, e a psicologia, a auxiliar da fisiologia.

5. Seguindo o segundo princípio de classificação mencionado acima (2), isto é, de acordo com os fatos ou conceitos com os quais a investigação dos processos psíquicos começa, existem duas variações de psicologia empírica a serem diferenciadas. Elas são, ao mesmo tempo, estágios sucessivos no desenvolvimento da interpretação psicológica. O primeiro corresponde ao descritivo, o segundo, a um estágio explicativo. A tentativa de apresentar uma descrição discriminativa dos diferentes processos psíquicos deu origem à necessidade de uma classificação apropriada. Classes foram formadas, sob as quais os vários processos foram agrupados; essa tentativa foi realizada com o objetivo de satisfazer a necessidade de uma interpretação para cada caso particular. Sendo assim, os componentes de um dado processo composto foram incluídos em suas classes específicas. Tais classes são, por exemplo, sensação, conhecimento, atenção, memória, imaginação, entendimento e vontade. Elas correspondem aos conceitos gerais da física que são derivados da percepção imediata do fenômeno natural, tal como o peso, o calor, o som e a luz. Como estes conceitos da física, aqueles conceitos psíquicos podem servir para um primeiro agrupamento dos fatos, mas eles não contribuem em nada para explicá-los. No entanto, a psicologia empírica tem sido frequentemente acusada de confundir esta descrição com explicação. Assim, a Psicologia das Faculdades considera estas classes como forças psíquicas ou faculdades, e relaciona os processos psíquicos com sua atividade alternada ou conjunta.

6. Em oposição a este método de tratamento encontrado na psicologia das faculdades, cujo caráter é descritivo, está aquele da psicologia explicativa. Quando consistentemente empírica, esta última deve basear suas interpretações em certos fatos que pertencem à experiência psíquica. Contudo, estes fatos podem ser tomados de diferentes esferas da atividade psíquica. E assim o tratamento explicativo pode ser posteriormente dividido em duas variações que correspondem respectivamente aos dois fatores, objetos e sujeitos, que vão constituir a experiência imediata. À variação cuja ênfase principal recai sobre os objetos da experiência imediata, dá-se o nome de psicologia intelectualista. Este tipo de psicologia pretende derivar todos os processos psíquicos, especialmente os sentimentos, impulsos e volições, de ideias ou processos intelectuais, como podem ser chamados por causa de sua importância para o conhecimento do mundo objetivo. Se, ao contrário, a ênfase principal recai no modo pelo qual a experiência imediata surge no sujeito, trata-se de uma variação da psicologia explicativa que atribui os processos psíquicos àquelas atividades subjetivas relacionadas a objetos externos, uma posição tão independente quanto à primeira, que se relaciona às ideias. Essa variação tem sido chamada psicologia voluntarística, por causa da importância que deve ser concedida aos processos volitivos em comparação com outros processos subjetivos.

Das duas variações de psicologia que resultam das atitudes gerais frente à questão da natureza da experiência interna (3), a psicologia do sentido interior comumente tende em direção ao intelectualismo. Isto se deve ao fato de que, quando se compara o sentido interior com os sentidos exteriores, os conteúdos da experiência psíquica que atraem primeiramente a atenção são aqueles que são apresentados como objetos a este sentido interior de uma forma análoga à apresentação dos objetos naturais para os sentidos exteriores. Supõe-se que, de todos os conteúdos da experiência psíquica, somente às ideias pode ser atribuído o caráter de objeto, porque elas são tidas como imagens de um objeto externo apresentado aos sentidos exteriores. Desta forma, as ideias são vistas como os únicos objetos reais do sentido interior, enquanto todos os processos não relacionados a objetos externos, como, por exemplo, os sentimentos, são interpretados como ideias obscuras, ou como ideias relacionadas ao corpo, ou finalmente como efeitos que surgem da combinação de ideias.

A psicologia da experiência imediata (4), por outro lado, tende em direção ao voluntarismo. É óbvio que aqui, onde o principal problema da psicologia é tido como sendo a investigação da origem subjetiva de toda experiência, será dirigida atenção especial àqueles fatores abstraídos pela ciência natural.

7. A psicologia intelectualista tem no curso de seu desenvolvimento se separado em duas tendências. Em uma, os processos lógicos de julgamento e raciocínio são considerados como as formas típicas de processos psíquicos; na outra, certas combinações de imagens mnêmicas sucessivas diferenciadas pela frequência em que se repetem, também chamadas associações de ideias, são assim consideradas. A teoria lógica está mais claramente relacionada ao método popular de interpretação psicológica e é, portanto, a mais antiga. Ela ainda encontra alguma aceitação, contudo, mesmo nos tempos modernos. A teoria da associação surgiu do empirismo filosófico do último século. Estas duas teorias estão até certo ponto em antítese, uma vez que a primeira pretende reduzir a totalidade dos processos psíquicos a formas superiores de atividade mental, enquanto a última procura reduzi-los a formas inferiores e mais simples. Ambas são unilaterais, e não apenas falham em explicar os processos afetivos e os processos volitivos com base na presunção de que partem, mas não são capazes de dar uma interpretação completa mesmo dos processos intelectuais.

8. A união da psicologia do sentido interior com a visão intelectualista tem levado a uma suposição peculiar que foi em muitos casos fatal para a teoria psicológica. Podemos definir resumidamente esta suposição como a atribuição errônea da natureza das coisas a ideias. Não apenas foi assumida uma analogia entre os objetos do também chamado sentido interior e aqueles dos sentidos exteriores, mas também os primeiros foram considerados como as imagens dos últimos; em consequência disto, os atributos que a ciência natural imputa a objetos externos foram transferidos para os objetos imediatos do "sentido interior", as ideias. Foi feita a suposição de que as ideias são coisas por si só, assim como os objetos externos com os quais nós a relacionamos; que elas desaparecem da consciência e voltam a ela; que elas podem, de fato, ser mais ou menos intensa e claramente percebidas, conforme o sentido interior é estimulado ou não através dos sentidos exteriores, e conforme o grau de atenção que se dirige a elas, mas que permanecem inalteradas no seu caráter qualitativo.

9. Em todos esses aspectos a psicologia voluntarística se opõe ao intelectualismo. Enquanto o último admite um sentido interior e objetos específicos da experiência interna, o voluntarismo está intimamente relacionado à visão de que a experiência interna é idêntica à experiência imediata. De acordo com esta doutrina, o conteúdo da experiência psicológica não consiste em uma soma de objetos, mas em tudo aquilo que compõe o processo da experiência em geral, isto é, em todas as experiências do sujeito em seu caráter imediato, inalteradas pela abstração ou reflexão. A isto se segue a necessidade de que os conteúdos da experiência psicológica sejam aqui considerados como uma interconexão de processos.

Este conceito de processo exclui a atribuição de um caráter objetivo e mais ou menos permanente para os conteúdos da experiência psíquica. Fatos psíquicos são ocorrências, não objetos; como todas as ocorrências, eles acontecem no tempo e nunca são iguais num dado momento ao que foram durante o momento precedente. Neste sentido, as volições são formas típicas de processo psíquico. A psicologia voluntarística não afirma de forma alguma que a volição é a única forma real de processo psíquico, mas que, com os sentimentos e as emoções a ela intimamente ligados, é um componente da experiência psicológica tão essencial quanto as sensações e as ideias. Além disso, também sustenta que todos os outros processos psíquicos devem ser pensados de forma análoga às volições, isto é, como uma série de mudanças contínuas no tempo, e não uma soma de objetos permanentes, como o intelectualismo geralmente assume em consequência de suas atribuições errôneas às ideias daquelas propriedades que nós atribuímos a objetos externos. O reconhecimento da realidade imediata da experiência psicológica exclui a possibilidade de se tentar derivar os componentes dos fenômenos psíquicos a partir de quaisquer outros que sejam diferentes deles próprios. Neste sentido, as tentativas da psicologia metafísica de reduzir toda experiência psicológica aos processos imaginários heterogêneos de um substrato hipotéticos são, pela mesma razão, incompatíveis com o problema real da psicologia. Contudo, enquanto se preocupa com a experiência imediata, a psicologia parte do princípio de que todos os conteúdos psíquicos contêm fatores objetivos e subjetivos. Estes devem ser distinguidos somente através de deliberada abstração, e não podem nunca surgir como processos realmente separados. De fato, a experiência imediata mostra que não existem ideias que não despertem em nós sentimentos e impulsos de diferentes intensidades, e, por outro lado, que não é possível um sentimento ou uma volição que não se refira a uma ideia.

10. Os princípios orientadores da posição psicológica sustentada nos capítulos seguintes podem ser resumidos em três afirmações gerais.

1 – A experiência psicológica não é uma esfera especial da experiência, separada das outras, mas é a experiência imediata em sua totalidade.

2 – Esta experiência imediata não é feita de conteúdos imutáveis, mas de uma interconexão de processos; não de objetos, mas de ocorrências, de experiências humanas universais e suas relações em conformidade com certas leis.

3 – Cada um destes processos contém um conteúdo objetivo e um processo subjetivo, incluindo assim as condições gerais tanto de todo conhecimento quanto de toda atividade humana prática.

Em correspondência a estes três princípios gerais, estão três aspectos da relação da psicologia com as outras ciências.

1 - Como a ciência da experiência imediata, ela é suplementar a ciência natural, que, em consequência de sua abstração do sujeito, se relaciona apenas com aquilo que é objetivo, com os conteúdos mediatos da experiência. Qualquer fato particular só pode, estritamente falando, ser entendido em sua completa significação após ter sido submetido à análise tanto da ciência natural quanto da psicologia. Neste sentido, a Física e a Fisiologia são auxiliares da Psicologia, que, por sua vez, é suplementar às ciências naturais.

2 - Como ciência das formas universais de experiência humana imediata e sua combinação em conformidade com certas leis, ela é a base das ciências da mente. O objeto de estudo destas ciências em todos os casos provém de atividades que se derivam das experiências humanas imediatas e seus efeitos. Uma vez que a Psicologia tem por seu problema a investigação das formas e leis destas atividades, ela é de pronto a ciência mais abrangente e geral da mente, e é também a base de todas as outras, tais como a Filologia, a História, a Economia Política, o Direito, etc.

3 - Uma vez que a Psicologia considera tanto as condições subjetivas como objetivas que subjazem não apenas o conhecimento teórico, mas também a atividade prática, e uma vez que ela procura determinar sua inter-relação, a Psicologia é a disciplina empírica cujos resultados são mais imediatamente úteis na elaboração dos problemas gerais da teoria do conhecimento e da ética, os dois pilares da filosofia. Assim, a Psicologia é, em relação às ciências naturais, suplementar, em relação às ciências mentais, a base fundamental, e, em relação à filosofia, ela é a ciência empírica propedêutica.

A visão de que não é uma diferença nos objetos da experiência, mas no modo de se tratar a experiência que distingue a Psicologia da ciência natural vem sendo reconhecida mais e mais na Psicologia moderna. Ainda se inviabiliza uma compreensão clara do caráter essencial desta posição a respeito dos problemas científicos da Psicologia, em razão da persistência de velhas tendências derivadas da metafísica e da Filosofia Natural, que, ao invés de começarem pelo fato de que as ciências naturais são possíveis somente após a abstração dos fatores subjetivos da experiência, de modo geral atribuem à ciência natural o problema mais amplo do tratamento dos conteúdos de toda a experiência. Neste caso, obviamente a Psicologia não se coordena com as ciências naturais, mais se subordina a elas. Seu problema não é mais remover a abstração empregada pelas ciências naturais, e deste modo obter com elas uma completa visão da experiência, mas deve usar o conceito "sujeito" fornecido pelas ciências naturais, e dar conta da influência deste sujeito nos conteúdos da experiência. Ao invés de reconhecer que uma definição adequada de "sujeito" somente é possível como resultado de investigações psicológicas (seção 1, 3a), um conceito já pronto formado exclusivamente pelas ciências naturais é aqui impingido à Psicologia. Para as ciências naturais o sujeito é idêntico ao corpo. A Psicologia é portanto definida como a ciência que deve determinar a dependência da experiência imediata com o corpo. Esta posição, que pode ser designada "materialismo psicofísico" é epistemologicamente insustentável e psicologicamente improdutiva. Uma psicologia que começa com tal definição puramente fisiológica depende, portanto, não da experiência, e sim, do mesmo modo que a antiga psicologia materialista, de uma pressuposição metafísica. A posição é psicologicamente improdutiva, porque, em primeiro lugar, transfere a interpretação causal dos processos psíquicos à Fisiologia. Mas a Fisiologia não proveu ainda tal interpretação e nunca será capaz de fazê-lo, por causa da diferença entre a maneira de se considerar o fenômeno na ciência natural e na Psicologia. Também é óbvio que tal forma de Psicologia, sendo transformada em uma hipotética mecânica cerebral, não pode jamais servir enquanto base para as ciências mentais.

A corrente estritamente empírica da Psicologia, definida nos princípios formulados acima, se opõe a estas tentativas de renovar doutrinas metafísicas. Chamando-a de "voluntarista", nós não devemos negligenciar o fato de que, em si, este voluntarismo psicológico não tem absolutamente nenhuma relação com qualquer doutrina metafísica da vontade. De fato, ela se opõe ao voluntarismo metafísico unilateral de Schoppenhauer, que tudo deriva a partir de uma vontade transcendental, e aos sistemas metafísicos de Espinoza e Herbart, que surgiram a partir do intelectualismo.

Em sua relação com a metafísica, o voluntarismo psicológico no sentido acima definido se caracteriza por excluir da Psicologia todas as hipóteses metafísicas. Em sua relação com outras formas de Psicologia, se recusa a aceitar qualquer das tentativas de reduzir volições a meras ideias, e ao mesmo tempo enfatiza o caráter típico da volição em toda experiência psicológica. Atos volitivos são universalmente reconhecidos como ocorrências feitas a partir de uma série de mudanças contínuas em qualidade e intensidade. São típicos no sentido de que esta característica de serem ocorrências é tida como verdadeira para todos os conteúdos da experiência psíquica.

3. MÉTODOS DE PSICOLOGIA

1. Uma vez que a Psicologia tem como seu objeto não os conteúdos específicos da experiência, mas a experiência geral em seu caráter imediato, ela não deve fazer uso de nenhum outro método senão daqueles que as ciências empíricas em geral empregam para a determinação, análise e síntese causal dos fatos. Apesar da ciência natural abstrair do sujeito, diferentemente da Psicologia, não há qualquer fundamento para modificações no caráter essencial dos métodos empregados nos dois campos, embora a Psicologia modifique o modo pelo qual estes métodos são aplicados.

As ciências naturais, que podem servir como exemplo para a Psicologia neste aspecto, uma vez que foram anteriormente desenvolvidas, fazem uso de dois métodos principais: experimento e observação. O experimento é uma observação que se conecta com uma interferência proposital por parte do observador no surgimento e curso do fenômeno observado. A observação, no seu sentido apropriado, é a investigação dos fenômenos sem esta interferência, apenas como eles se apresentam naturalmente ao observador na continuidade da experiência. Onde quer que seja possível o experimento, ele é sempre usado nas ciências naturais. Pois sob quaisquer circunstâncias, mesmo quando o fenômeno apresenta condições para uma observação suficientemente exata, é uma vantagem ser capaz de controlar seu surgimento e progresso, ou isolar os vários componentes de um fenômeno composto. Ainda assim, mesmo nas ciências naturais, os dois métodos têm sido distinguidos conforme suas esferas de aplicação. Tem-se que os métodos experimentais são indispensáveis para certos problemas, enquanto em outros o objetivo desejado pode não raramente ser atingido através de mera observação. Se nós negligenciarmos alguns poucos casos excepcionais em razão de suas características especiais, estas duas classes de problemas correspondem à divisão geral do fenômeno natural em processos e objetos.

A interferência experimental é requerida na determinação exata do curso e na análise dos componentes de qualquer processo natural como, por exemplo, ondas luminosas, ondas sonoras, uma descarga elétrica, a formação ou a desintegração de um composto químico e a estimulação e o metabolismo nas plantas e animais. Em regra, tal interferência é desejável porque a observação exata só é possível quando o observador pode determinar o momento no qual o processo se inicia. Também é indispensável na separação dos vários componentes de um fenômeno complexo. De modo geral, isto é possível apenas através da adição ou subtração de certas condições ou através de sua variação quantitativa.

O caso é diferente com objetos da natureza. Estes são relativamente constantes; não precisam ser produzidos em um momento particular, mas estão sempre à disposição do observador e prontos para serem examinados. Neste caso, a interferência experimental é necessária somente quando a produção e a modificação dos objetos devem ser investigadas. Estes elementos então são considerados como produtos ou componentes dos processos naturais e levam o título de processos preferivelmente a objetos. Quando, ao contrário, a única questão é a verdadeira natureza destes objetos, e não sua origem ou modificação, a mera observação é geralmente suficiente. Assim, a Mineralogia, a Botânica, a Zoologia, a Anatomia e a Geografia são ciências puras da observação com tanto que sejam mantidas distantes dos problemas físicos, químicos e fisiológicos que são, de fato, frequentemente trazidos a elas, mas que tem a ver com processos da natureza, não com os objetos em si.

2. Se nós aplicamos estas considerações à Psicologia, fica imediatamente claro que, pela própria natureza do seu objeto de estudo, a observação exata só é possível na forma de observação experimental; e que a Psicologia nunca pode ser uma pura ciência da observação. Os conteúdos desta ciência são exclusivamente processos, e não objetos permanentes. De modo a investigar com exatidão a origem e o progresso destes processos, sua composição e as inter-relações entre os componentes de que são feitos, devemos primeiro ser capazes de provocar intencionalmente seu início e deliberadamente variar as condições do seu surgimento. Isto só é possível, tanto aqui como em todos os casos, através do experimento, e não a partir da pura introspecção. Além desta razão geral, existe outra, peculiar à Psicologia, que não se aplica de modo algum às ciências naturais. Neste último caso, nós propositadamente abstraímos do sujeito perceptor, e, sob dadas circunstâncias, especialmente quando se tem como vantagem a regularidade com que o fenômeno se apresenta, como na Astronomia, a mera observação pode ter êxito em determinar com suficiente certeza os componentes objetivos dos processos. A Psicologia, ao contrário, é impedida desta abstração pelos seus princípios fundamentais, e as condições para a observação natural são apropriadas somente quando certos componentes objetivos da experiência imediata com frequência se repetem em conexão com os mesmos estados subjetivos. Dificilmente deve se esperar, em vista da grande complexidade dos processos psíquicos, que este seja sempre o caso. A coincidência é especialmente improvável, uma vez que a intenção de observar, que é uma condição necessária para toda observação, modifica essencialmente o surgimento e progresso dos processos psíquicos.

O problema principal da Psicologia, no entanto, é a observação exata do surgimento e progresso dos processos subjetivos, e pode-se prontamente ver que, sob tais circunstâncias, a intenção de observar ou essencialmente modifica os fatos a serem observados, ou completamente os suprime. Além disso, a Psicologia, em razão da forma pela qual os processos psíquicos se originam, é levada, assim como a Física e a Fisiologia, a empregar o modo experimental de proceder. Uma sensação surge em nós sob as mais favoráveis condições para observação quando é causada por um estímulo sensório externo, como, por exemplo, a sensação de um som a partir de uma vibração sonora externa, ou a sensação de luz a partir de uma impressão luminosa externa. A ideia de um objeto é sempre originalmente causada pela cooperação mais ou menos complexa de um estímulo sensório externo. Se nós desejamos estudar o modo pelo qual uma ideia é formada, não podemos escolher outro método senão aquele pelo qual se imita este processo natural. Fazendo assim, temos ao mesmo tempo a grande vantagem de poder modificar a ideia em si, mudando a combinação das impressões que cooperam para formá-la, e de aprender qual influência cada condição particular exerce no produto. É verdade que as imagens mnêmicas não podem ser diretamente produzidas através de impressões sensórias externas, mas sucedem tais impressões depois de um intervalo longo ou curto. Ainda assim, é óbvio que seus atributos, e especialmente sua relação com as ideias primárias, que tem sua origem nas impressões diretas, podem ser melhor aprendidos por sua produção sistemática e experimental a partir de impressões imediatamente precedentes, ao invés de se esperar por seu surgimento ao acaso. O mesmo é verdadeiro para os sentimentos e as volições; eles se apresentam na forma mais adequada para a investigação quando as impressões são intencionalmente produzidas. A experiência mostrou que as impressões estão regularmente ligadas às reações afetivas e volitivas. Assim, não há nenhum processo psíquico fundamental ao qual os métodos experimentais não possam ser aplicados, bem como nenhum em cuja investigação tais métodos não sejam logicamente necessários.

3. A observação pura, tal como é possível em muitos departamentos da ciência natural, é impossível na psicologia individual pelo próprio caráter dos fenômenos psíquicos. Tal possibilidade só seria concebível se existissem objetos psíquicos permanentes, independentes de nossa atenção, similares aos objetos relativamente permanentes da natureza, que permanecem inalterados por nossa observação. É verdade que existem certos fatos à disposição da Psicologia, que, embora não sejam objetos reais, ainda assim têm o caráter de objetos psíquicos, na medida em que possuem estes atributos de permanência relativa e independência do observador. Além destas características, há também o fato de que eles são inacessíveis por via do experimento na acepção comum do termo. Estes fatos são os produtos mentais que foram desenvolvidos no curso da história, como a linguagem, as ideias mitológicas e os costumes. A origem e o desenvolvimento destes produtos dependem sempre de condições psíquicas gerais, que podem ser inferidas a partir de seus atributos objetivos. A análise psicológica pode assim explicar a operação destes processos psíquicos em sua formação e desenvolvimento. Todos estes produtos mentais de caráter mais geral pressupõem como condição a existência de uma comunidade mental composta de muitos indivíduos, embora, sem dúvida, suas fontes mais profundas sejam os atributos psíquicos do indivíduo. Por conta de sua dependência da vida em comunidade, todo este departamento da investigação psicológica é designado como Psicologia Social [Völkerpsychologie], distinguindo-se da Psicologia Individual; ou, como pode ser chamada, por causa de seu método predominante, Psicologia Experimental. No presente estágio da ciência, estes dois ramos da Psicologia são geralmente tomados em diferentes obras; ainda assim, a maior diferença está nos métodos utilizados e não tanto nos próprios departamentos. A chamada Psicologia Social corresponde ao método da observação pura, e os seus objetos de observação são os produtos mentais. A necessidade de se relacionar estes produtos com as comunidades sociais, o que deu à Psicologia Social seu nome, se deve ao fato de que os produtos mentais do indivíduo são de um caráter muito variável para serem acessíveis à observação objetiva. Os fenômenos só ganham grau de constância necessário quando se tornam coletivos.

A Psicologia, portanto, assim como a ciência natural, tem dois métodos: o método experimental, que serve para a análise dos processos psíquicos mais simples, e a observação dos produtos mentais gerais, que serve à investigação dos processos psíquicos superiores.

3a. A introdução do método experimental na Psicologia se deve originalmente aos modos de procedimento na Fisiologia, especialmente na Fisiologia dos órgãos sensoriais e do sistema nervoso. Por esta razão, a Psicologia experimental também é usualmente chamada "Psicologia Fisiológica"; e as obras que a tratam sob este título regularmente contêm aqueles elementos da fisiologia do sistema nervoso e dos órgãos sensoriais que requerem uma discussão especial com uma perspectiva que sirva aos interesses da Psicologia, embora em si mesmos eles pertençam apenas à Fisiologia. Portanto, a "Psicologia Fisiológica" é uma disciplina intermediária que, no entanto, é, como o nome indica, fundamentalmente Psicologia, e, apesar dos fatos fisiológicos suplementares que apresenta, é exatamente o mesmo que a "Psicologia Experimental" no sentido acima definido. A tentativa algumas vezes feita de se distinguir a típica Psicologia da Psicologia Fisiológica, atribuindo-se à primeira a interpretação psicológica da experiência interna e à segunda a derivação desta experiência a partir de processos fisiológicos, deve ser rejeitada por ser inadmissível. Há apenas um tipo de explicação causal na Psicologia, e esta é a derivação de processos psíquicos mais complexos a partir de outros mais simples. Neste método de interpretação, elementos fisiológicos podem ser usados apenas como auxílio suplementar, por causa da relação entre a ciência natural e a Psicologia, como acima definido (seção 2, 4). A Psicologia materialista nega a existência da causalidade psíquica e substitui este problema por outro, o de explicar os processos psíquicos pela fisiologia do cérebro. Esta tendência, que se mostrou (seção 2, 10a) ser epistemologicamente e psicologicamente insustentável, aparece entre os tipos de Psicologia "pura" e "fisiológica".

4. AVALIAÇÃO GERAL DO OBJETO DE ESTUDO

1. Os conteúdos imediatos da experiência que constituem o objeto de estudo da Psicologia são, sob quaisquer circunstâncias, processos de caráter composto. As sensopercepções de objetos externos, as memórias dessas sensopercepções, os sentimentos, as emoções e os atos volitivos são continuamente unidos nos mais variados modos, e cada um destes processos é em si um todo mais ou menos composto. A ideia de um corpo externo, por exemplo, é feita de ideias parciais de suas partes. Um som pode parecer muito simples, mas na medida em que o situamos em certa direção, isto resulta em uma conexão com a ideia de espaço externo, que, por sua vez, é altamente composta. Um sentimento ou uma volição estão ligados a alguma sensação que fez surgir este sentimento ou a um objeto desejado. Em se tratando de um fato complexo como este, a investigação científica tem três problemas a serem resolvidos segundo a ordem que se segue. O primeiro é a análise de processos compostos; o segundo é a demonstração das combinações formadas pelos elementos descobertos através da análise; o terceiro é a investigação das leis que operam na formação de tais combinações.

2. O segundo problema, ou o problema da síntese, é feito de vários problemas parciais. Em primeiro lugar, os elementos psíquicos se unem para formar complexos psíquicos que são separados e relativamente independentes uns dos outros no fluxo contínuo dos processos psíquicos. Tais complexos são, por exemplo, ideias, quer se refiram diretamente a impressões ou objetos externos, quer sejam interpretadas por nós como memórias de impressões e objetos anteriormente percebidos. Outros exemplos de complexos psíquicos são os sentimentos compostos, as emoções ou as volições. Estes complexos também compõem as mais variadas interconexões entre si. Assim, as ideias se unem para formar complexos ideacionais simultâneos ou sucessões regulares, enquanto os processos afetivos e volitivos formam várias combinações entre si e com os processos ideacionais. Deste modo, nós temos a interconexão de complexos psíquicos como uma classe de processos sintéticos num segundo estágio, consistindo sua síntese na união entre combinações simples. As interconexões psíquicas, por sua vez, se unem para formar combinações ainda mais abrangentes, que também mostram certa regularidade no arranjo de seus componentes. Consequentemente, surgem combinações num terceiro estágio, que nós designamos pelo nome genérico de elaborações psíquicas. Elas podem ser divididas em elaborações de diferentes alcances. Elaborações de um tipo mais limitado são aquelas relacionadas a uma única tendência da vida mental, como, por exemplo, a elaboração das funções intelectuais, da vontade, ou dos sentimentos, ou meramente de um aspecto específico destas funções, tal como a estética ou os sentimos morais. Surge então, de uma certa quantidade destas elaborações, o pleno desenvolvimento de uma personalidade psíquica. Finalmente, uma vez que os animais e, em um grau ainda maior, os seres humanos estão em contínua inter-relação com seus semelhantes, surgem entre estes indivíduos formas gerais de elaboração psíquica. Estas várias formas de estudo da elaboração psíquica são em parte os fundamentos psicológicos de outras ciências, como a teoria do conhecimento, a estética e a ética, e, consequentemente, são tratadas mais devidamente se relacionadas a elas. Mas em parte elas deram origem a ciências psicológicas especiais, tais como a Psicologia Infantil, a Psicologia Animal e a Psicologia Social. Assim, nós discutiremos neste tratado apenas os resultados decorrentes destes três últimos departamentos mencionados, que são da maior importância para a Psicologia Geral.

3. A solução do último e mais abrangente problema da Psicologia, a definição das leis dos fenômenos psíquicos, depende da investigação de todas as combinações dos diferentes estágios: a combinação dos elementos em complexos, dos complexos em interconexões, e das interconexões em elaborações. E como esta investigação é a única coisa que pode nos ensinar a verdadeira natureza dos processos psíquicos, só podemos então inferir as características da causalidade psíquica, que encontra sua expressão nestes processos, a partir das leis pelas quais os conteúdos da experiência psicológica e seus componentes encontram suas várias combinações.

Consequentemente, nós temos a considerar nos capítulos seguintes:

1. Os elementos psíquicos,

2. Os complexos psíquicos,

3. A interconexão dos complexos psíquicos,

4. As elaborações psíquicas,

5. A causalidade psíquica e suas leis.

Recebido em 22/03/2012

Aceito em 08/06/2013

  • Wundt, W. M. (2004). Outlines of Psychology (C. H. JUDD, Trad.). New Delhi: Cosmo Publications. (Original publicado em 1896).
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    Graduando em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
  • 1
    O presente texto é a tradução da "Introdução" do livro "Outlines of Psychology" (1896, pp. 1-27), de autoria de Wilhelm Wundt (1832-1920), a partir da versão inglesa de Charles Hubbard Judd (1873-1946).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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