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Retorno sobre uma antiga questão: Karl Marx e o estatuto dos Manuscritos econômico-filosóficos

RETURN ON AN OLD ISSUE: KARL MARX AND THE STATUTE OF ECONOMIC-PHILOSOPHICAL MANUSCRIPTS

VOLVER A UN TEMA ANTIGUO: KARL MARX Y EL ESTATUTO DE LOS MANUSCRITOS ECONÓMICO-FILOSÓFICOS

RESUMO

O artigo retoma a antiga questão do estatuto dos Manuscritos econômico-filosóficos de Karl Marx. Trata-se de um estudo teórico que se apoia na literatura de base sobre o tema e busca recuperar a história e as muitas disputas em torno dos Manuscritos de 1844, sobretudo em relação aos anos 1960-1970. O exame de algumas contribuições de três destacados autores do referido período - István Mészáros, Ernest Mandel e Lucien Sève - permite restituir a complexidade da discussão empreendida naquele contexto. O artigo conclui que, diante das questões tratadas, é importante ponderar sobre o conteúdo dos Manuscritos de 1844 no conjunto da obra marxiana, bem como é importante evitar duas posturas equivocadas, a de subestimar e a de superestimar esse incontornável texto de Marx.

PALAVRAS-CHAVE:
Karl Marx; marxismo; filosofia; trabalho; Lucien Sève

ABSTRACT

The article discusses the old question of the status of Karl Marx’s Economic-philosophical manuscripts. This is a theoretical study based on the basic literature on the subject and seeks to recover the history and the many disputes surrounding the 1844 Manuscripts, especially in relation to the 1960s-1970s. Examining some contributions from three important authors of that period - István Mészáros, Ernest Mandel, and Lucien Sève - allows to restore the complexity of the discussion undertaken in that context. In view of the issues addressed, the article concludes that it is important to ponder the content of the 1844 Manuscripts in the set of Marxian work, as well as it is important to avoid two misconceptions, that of underestimating and that of overestimating this essential text of Marx.

KEYWORDS:
Karl Marx; Marxism; philosophy; labour; Lucien Sève

RESUMEN

El artículo discute la antigua cuestión del estatuto de los Manuscritos económico-filosóficos de Karl Marx. Este es un estudio teórico basado en la literatura básica sobre el tema y busca recuperar la historia y las muchas disputas que rodearon los manuscritos de 1844, especialmente en relación con los años 1960-1970. El análisis de algunas contribuciones de tres importantes autores de ese período - István Mészáros, Ernest Mandel y Lucien Sève - permiten restaurar la complejidad de la discusión emprendida en ese contexto. En vista de los problemas abordados, el artículo concluye que es importante reflexionar sobre el contenido de los Manuscritos de 1844 en el conjunto del trabajo marxista, así como también es importante evitar dos conceptos erróneos, el de subestimar y el de sobreestimar este texto esencial de Marx.

PALABRAS CLAVE:
Karl Marx; marxismo; filosofía; trabajo; Lucien Sève

INTRODUÇÃO

Escritos em 1844, é somente em 1932, na então União Soviética, que teve lugar a primeira edição completa dos Manuscritos econômico-filosóficos ou, simplesmente, Manuscritos de 1844, como se diz correntemente. Texto não publicado em vida por Marx, os referidos manuscritos compreendem escritos mais ou menos acabados, partes incompletas, composições com notas de estudo - ele recopia, por exemplo, longos trechos de Eugène Buret (1840BURET, E. De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en France. Paris: Paulin, 1840. Disponível em: Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8622148w . Acesso em: 20 mar. 2019.
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) e Adam Smith - e material relacionado a um caderno de excertos de autores que Marx lia, estudava e registrava. No espectro da tradição marxista, os Manuscritos de 1844 se converteram em uma sorte de texto incontornável, fonte de novas leituras de Marx e de debates abertos (cf. primeira parte deste artigo) desde os momentos seguintes à sua publicação.

A discussão sobre o sentido e o lugar dos Manuscritos de 1844 na obra marxiana já fez correr rios de tinta. Não se ambiciona aqui sumarizar o conjunto dessa discussão, mas, com o apoio de uma literatura de base sobre a questão, este artigo busca retomar o problema do estatuto dos Manuscritos econômico-filosóficos em relação à obra intelectual de Marx. Um uso positivo desse texto - no sentido de que ele é simplesmente acolhido, sem indagação - parece ter se tornado atualmente a forma predominante de abordá-lo1 1 Em uma literatura dispersa em âmbito internacional e nacional, essa conduta pode, por exemplo, ser vista em Judy Cox (1998); Emmanuel Renault (2001); Jean-Pierre Durand (2006); Ricardo Antunes (2011), ver especialmente a discussão sobre “trabalho estranhado” (p. 142-151); Tânia Franco (2011). . Tal constatação contrasta com a história e as muitas disputas em torno desse texto, sobretudo em relação aos anos 1960-1970. O exame de algumas contribuições de três importantes autores do referido período - István Mészáros, Ernest Mandel e Lucien Sève - permite restituir a complexidade da discussão empreendida naquele contexto.

Um último ponto antes de passar propriamente ao texto do artigo. Devido à amplitude dos temas tratados - pois são questões que estão nos fundamentos das ciências humanas -, as notas de rodapé serão importantes para resumir certos assuntos ou remeter o leitor à bibliografia específica, algumas bastante extensas. Desde já lhes apresento minhas escusas.

UM TEXTO DISPUTADO

Embora com publicações parciais desde 1927, foi somente quase um século após sua redação que os Manuscritos de 1844 foram publicados em versão completa. Trata-se da publicação realizada pelo Instituto Marx e Engels de Moscou, em 1932, com o título que então se tornaria célebre (Ökonomisch-Philosophische Manuskripte aus dem jahre 1844) e cuja qualidade da edição, senão isenta de problemas, foi reconhecida como de patamar superior e serviu de base para as traduções nas décadas seguintes. Essas questões relativas ao processo de publicação dos Manuscritos de 1844 foram notavelmente tratadas por Marcello Musto (2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
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).

Musto (2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
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) explica que, depois das publicações parciais efetuadas por David B. Rajazanov em 1927 (o texto foi intitulado Trabalhos preparatórios para a Sagrada Família), no terceiro volume de Archiv K. Marksa i F. Engel’as, dois anos depois a Revue Marxiste publicou a tradução francesa do mencionado texto, separado em dois números da revista e cada um com título diferente. No mesmo ano, em 1929, foi publicada a primeira edição soviética das obras de Marx e Engels cujo tomo III trazia o mesmo texto de 1927, inclusive com o problemático título dado por Rajazanov. Assim, a primeira edição integral dos Manuscritos de 1844 em língua alemã tem lugar somente em 1932, mas as confusões não cessam. É que, sempre conforme Musto (2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
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), foram duas publicações em 1932: uma delas, elaborada por Siegfried Landshunt e J. P. Mayer, trazia um texto incompleto e desordenado, bem como títulos imprecisos para as seções. A outra publicação de 1932, a que continha o texto completo, foi veiculada no terceiro volume da primeira edição da Marx Engels Gesamtausgabe (MEGA).

No Brasil, a primeira publicação dos Manuscritos de 1844 ocorre em 1962 e as edições que daí se seguiram, a exemplo do destacado nos parágrafos acima, não ficaram imunes a problemas editoriais e imprecisões textuais (cf. Netto, 2015NETTO, J. P. Apresentação: Marx em Paris. In: MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular , 2015. p. 9-178.). A publicação, em 2015, pela editora Expressão Popular dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, acompanhada dos - até então inéditos em língua portuguesa - Cadernos de Paris, é, nesse ponto, um avanço face ao que se dispõe no Brasil, em especial no tocante à qualidade da tradução e à precisão conceitual de dois termos essenciais: alienação e estranhamento2 2 A edição dos Manuscritos econômicos-filosóficos publicada pela Boitempo em 2004 tem muitos méritos, contudo incorre em algo que não parece ser de modo algum uma questão menor, notadamente em relação a um termo-chave, a alienação. A tradução feita diretamente do texto em alemão por Jesus Ranieri, zelosa em muitos aspectos, opta por traduzir a palavra Entäusserung por alienação e Entfremdung por estranhamento. A opção não é sem consequências. De um lado, implica uma extensão de sentido de Entäusserung e, por outro, a promoção de identidade desta ao termo alienação. A impropriedade aqui parece semelhante à identificada por Lucien Sève em relação à tradução para o francês efetuada por Jean-Pierre Lefebvre da obra Fenomenologia do espírito, de Hegel, em 1991. Sève (2014a) observa que optando traduzir Entfremdung, Entfremdet “se servindo das velhas palavras estranhamento, estranho, estas se qualificam por se aproximarem muito do termo alemão Fremd. Porém a consequência dessa sedutora ousadia é que, salvo a fazer paradoxalmente desaparecer a palavra alienação do texto hegeliano, deve-se então reservá-la para traduzir Entäusserung, o que pesa de modo problemático sobre a escolha a ser feita sobre o mesmo vocabulário no texto de Marx” (Sève, 2014a, p. 276). A questão da escolha deste ou daquele termo, portanto, se complica. Ora, o que se nomina sincreticamente como problemática da alienação, aponta Sève, designa no texto marxiano - e, de outro modo, também no hegeliano - um dispositivo terminológico complexo feito de dois conjuntos lexicais: aquele do exterior (äussere) e aquele do estranho/alheio (fremd). O primeiro está associado a entäussern, sich entäussern, Entäusserung, Veräusserung, Veräusserlichung. O segundo está associado a entfremden, sich entfremden, Entfremdung, Fremdheit, fremd Macht. Esses dois conjuntos lexicais formam em torno da referida problemática - a problemática da alienação - um “vocabulário característico” no qual se tem como matrizes fundamentais “Entäusserung e mais eletivamente Entfremdung” (Sève, 2012, p. 15, grifos do autor). Ambos os termos podem, correntemente, ser traduzidos por alienação, mas com o cuidado de se distinguir, conforme o caso, seu núcleo de significações: por exemplo, “Entäusserung em Hegel compreende um exteriorizar-se produtivo, Entfremdung em Marx, uma desapropriação violenta” (Sève, 2014a, p. 276, grifos do autor). Disso resulta que assimilar estranhamento a Entfremdung não parece contemplar a riqueza de significações presentes nesse termo. Do mesmo modo, reservar alienação para Entäusserung arrisca deslocar do primeiro plano aquilo que em Marx, inclusive e sobretudo em suas obras da maturidade, corresponde a um termo central, com o grave inconveniente de se subtrair em inúmeros pontos da tradução a palavra alienação, cardinal no texto marxiano. . Contudo, se dificuldades se apresentam em relação às traduções, às edições e aos aspectos filológicos, uma questão também muito importante e controversa é a da compreensão a respeito do estatuto dos Manuscritos de 1844. Mero texto de juventude? Algo pré-marxista? Obra fundamental? Base filosófica dos escritos econômicos posteriores?

Desde a sua publicação, os Manuscritos de 1844 se constituíram em um texto cercado por polêmicas e posições extremadas no âmbito do marxismo. Em 1932, na publicação dos Manuscritos de 1844 conduzida por Siegfried Landshunt e J. P. Mayer, estes diziam na introdução que, no essencial, aquele texto de Marx antecipava O capital, sendo talvez o escrito mais importante de Marx e mesmo, como observa Marcello Musto (2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
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), que se tratava de um texto que “explicitava o conteúdo filosófico da teoria econômica da maturidade” (Musto, 2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
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, p. 403). Essa posição não será muito distinta de Herbert Marcuse, alguns anos depois.

Em Razão e revolução, obra de 1941 e largamente dedicada a problematizar a filosofia hegeliana, Marcuse (1994MARCUSE, H. Rázon y revolución. Barcelona: Altaya, 1994.) estabelece, no tocante a Marx, uma sorte de passagem entre os escritos concernentes aos Manuscritos de 1844 e aqueles de O capital. Para ele, “o caráter crítico e transcendental das categorias econômicas, expresso até então por conceitos filosóficos, é demonstrado mais tarde, em O Capital, mediante as categorias econômicas em si mesmas” (Marcuse, 1994MARCUSE, H. Rázon y revolución. Barcelona: Altaya, 1994., p. 271).

Na obra em questão, Marcuse (1994MARCUSE, H. Rázon y revolución. Barcelona: Altaya, 1994.) se mostra especialmente tocado pelo que assim lhe parece aspecto crítico e emancipador dos Manuscritos de 1844, no que busca sublinhar as posições de Marx em sua crítica à sociedade capitalista e ao que ela implica para o trabalhador, ou mais propriamente, para o “homem” (as aspas são importantes, como se verá na terceira parte do presente texto). Intelectual engajado, o texto dos Manuscritos parece lhe dizer muito: de um lado, possibilidade de bem cernir as distorções de uma sociedade na qual subsiste o trabalho alienado (ele dedica a isso toda uma seção do livro, p. 268-281, baseando-se no texto marxiano de 1844), por outro, possibilidade de colocar em valor uma perspectiva humanista e emancipadora. O “jovem Marx” parece tudo dizer.

O anteriormente mencionado texto de Siegfried Landshunt e J. P. Mayer pode, conforme nota Marcello Musto (2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
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), ser considerado o texto que promove o nascimento da polêmica em torno da existência de um jovem Marx. No texto dos referidos autores, e também no de Marcuse (1994MARCUSE, H. Rázon y revolución. Barcelona: Altaya, 1994.), podem ser encontrados aspectos que estarão por um longo tempo e de diferentes modos presentes no debate sobre o estatuto dos Manuscritos de 1844: a questão do lugar dos Manuscritos no conjunto da obra marxiana (escritos fundamentais ou de pouca relevância? ), a questão da relação entre os escritos de Marx em 1844 e seus escritos da maturidade, a problemática da relação entre Marx e Hegel, e, ainda, a discussão sobre um fundamento humanista nesses escritos de Marx e do próprio marxismo.

Uma extensa e díspar literatura circulou nas décadas seguintes em torno dessas questões, seja tratando-as diretamente ou repercutindo-as (cf., por exemplo, Calvez, 1956CALVEZ, J.-Y. La pensée de Karl Marx. Paris: Editions du Seuil, 1956.; Fromm, 1956FROMM, E. Société alienée et société saine: du capitalisme au socialisme humaniste. Paris: Le Courrier du Livre, 1956.; Rubel, 1957RUBEL, M. Karl Marx: essai de biographie intelectuelle. Paris: Marcel Rivière, 1957.; Garaudy, 1957GARAUDY, R. Humanisme marxiste. Paris: Éditions Sociales, 1957.; Giannotti, 1965GIANNOTTI, J. A. Origens da dialética do trabalho: estudo sobre a lógica do jovem Marx. São Paulo: Difel, 1965.; Althusser, 1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.; Konder, 1965KONDER, L. Marxismo e alienação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.; Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.; Lefevbre, 1969LEFEVBRE, H. La somme et le reste. Paris: La Neuf, 1969.; Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.; Sève, 1969SÈVE, L. Marxisme et théorie de la personnalité. Paris: Editions Sociales, 1969.). Trata-se de um conjunto de publicações muito heterogêneas. Se Erich Fromm (1956FROMM, E. Société alienée et société saine: du capitalisme au socialisme humaniste. Paris: Le Courrier du Livre, 1956.) era inventivo nos usos que fazia da problemática da alienação, pensando as implicações de uma sociedade alienada em articulação com a problemática psicanalítica, nem todas as reflexões no período contaram com tanta inspiração. Nesses ensaios e estudos, os leitores puderam encontrar, por exemplo, em Roger Garaudy (1963GARAUDY, R. À propos des Manuscrits de 1844 et de quelques essais philosophiques. Cahiers du Communisme, p. 107-126, 1963.), uma literatura que cruzava cristianismo e filosofia, em apelo a um humanismo marxista, e puderam ler que “os manuscritos podem ser considerados como ato de nascimento do marxismo” (Garaudy, 1963GARAUDY, R. À propos des Manuscrits de 1844 et de quelques essais philosophiques. Cahiers du Communisme, p. 107-126, 1963., p. 126).

Assim, questões dos anos 1930 e 1940 retornavam, pois, sem acréscimo substantivo e sob a pena de alguém que - não sem paradoxo - em outros tempos e na condição de membro da direção do Partido Comunista Francês (PCF) era signatário das posições de Stalin. Todavia, mesmo com a sombra de uma suspeita de plágio3 3 A esse respeito, ver Lucien Sève (2012, p. 10). , a obra de Garaudy terá importante audiência e favorecerá, naquele período de meados dos anos 1950 e 1960, a difusão de um apelo humanista nos escritos de Marx, defesa do “homem” diante de uma sociedade cujas relações mercantis tomaram a primazia e na qual a opressão bate à porta. Nesse contexto, que também é político4 4 O que estava em jogo era a relação entre política, marxismo e projeto societário. Diante do que ocorria na URSS, que crítica estabelecer com Marx? O Relatório Khrushchov, divulgado em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista da URSS e que reportava os crimes de Stalin, terá importante repercussão entre os intelectuais franceses e acentuará as críticas ao modelo soviético no âmbito do PCF. , o recurso aos Manuscritos de 1844 entra em voga. É aqui que se pode compreender as posições de uma marcante figura desse período: Louis Althusser.

“O Marx mais distante de Marx é aquele” (Althusser, 1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965., p. 159), era assim que Louis Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.), em Pour Marx, definia o lugar dos Manuscritos de 1844 em relação à obra posterior de Marx, colocando-se em guarda contra o que, para ele, se apresentava como a emergência de uma vulgata marxista aderente a um inconsequente subjetivismo, que buscava nas obras de juventude de Marx seu fundamento e uma redenção humanista para seus próprios impasses. A isso, e na contracorrente de seu tempo, Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.) propunha que era preciso pensar Marx não com base em obras ainda ideológicas - expressão que utiliza inúmeras vezes para se referir ao período da juventude Marx, conforme ele eivado de noções como a de alienação -, e sim nas mais científicas.

Para esse que foi, entre os anos 1950 e 1970, um dos importantes filósofos que lecionaram na prestigiada escola situada no nº 45 da Rue d’Ulm em Paris, seria preciso claramente distinguir dois Marx, o anterior aos Manuscritos de 1844 e o posterior a ele. Esse Marx posterior, sobretudo, o de A ideologia alemã e Teses sobre Feuerbach, obras de 1845/1846, e mais ainda aquele de O capital, seria outro Marx. Este mais científico, mais rigoroso, fundador do materialismo dialético. Mobilizando uma noção cujas origens remontam a Gaston Bachelard, Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.) firma, em Pour Marx, seu argumento de que houve um corte epistemológico no percurso político e intelectual de Marx. Após 1845, segundo ele, Marx era outro, sua obra também.

Os argumentos de Althusser impactaram os espíritos da época. Não é lugar aqui para descrever e analisar em detalhe no que suas posições foram acompanhadas ou recusadas. Considerando-se os propósitos da presente reflexão é oportuno tão somente mencionar dois pontos. O primeiro é que, no tocante ao marxismo, a perspectiva empreendida por Althusser constituía uma análise que concedia um lugar muito pequeno à agência humana, para usar os termos de Thompson (1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar , 1981.), face ao modo de produção capitalista. A estrutura não só comanda, mas diz o real. Há um segundo ponto no pensamento de Althusser que merece ser mencionado: a ideia de que haveria um corte no percurso intelectual e político de Marx.

Para Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.), como vimos, se poderia falar em obras ideológicas de Marx e aquelas mais científicas. As científicas são por ele associadas ao período pós-elaboração de A ideologia alemã - obra na qual, conforme Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.), tem lugar o corte epistemológico na trajetória de Marx. As ideológicas são associadas ao período da juventude, digamos até 1844, nos Manuscritos econômico-filosóficos5 5 Althusser efetivamente elabora uma estratificação em relação às obras de Marx: obras da juventude (1840-1844), obras do corte epistemológico (1845), obras da maturação (1845-1857), obras da maturidade (1857-1883). Cf. Althusser (1965, p. 18-27). . Nas obras científicas, a visada “humanista” e aquela voltada ao tema da alienação, associadas por Althusser ao período da juventude de Marx, chegariam ao seu termo.

O argumento de Althusser é factível? Pode-se afirmar a existência de dois Marx? A alienação é uma noção reputada às suas obras de juventude? Três autores contemporâneos de Althusser ajudam a compreender a falha em sua argumentação. A questão é importante, pois, como veremos, ela traz a problemática do estatuto dos Manuscritos de 1844.

MARX E O TEMA DA ALIENAÇÃO: LEITURAS

Escrevendo no final dos anos 1960, o filósofo húngaro István Mészáros, então radicado na Universidade de Sussex (Inglaterra), publica, em 1970, uma obra especificamente destinada ao tema da alienação, A teoria da alienação em Marx. Nessa obra de muitos méritos, cujo alcance envolve desde os referentes históricos da teoria da alienação até uma análise dos seus vários aspectos (econômicos, políticos, estéticos, ontológicos e morais), István Mészáros argumenta que o tema da alienação não restou de modo algum circunscrito às obras iniciais de Marx.

Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.) critica os filósofos que sustentaram que “o jovem Marx deveria ser tratado separadamente por haver uma ruptura entre o pensador que aborda os problemas da alienação e o ‘Marx maduro’, que aspira a um socialismo científico” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 197). Citando trechos de Teorias da mais valia, Grundrisse e O capital, Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 199-225) demonstra a presença inconfundível da problemática da alienação (ele assinala as ocorrências da palavra Entfremdung e seus predicados) nas obras de Marx para além dos escritos de 1844. Portanto, evidencia que não se pode dizer que o tema da alienação seja algo pertencente ao jovem Marx, “há ampla evidência para mostrar que Marx continuou usando a palavra ‘alienação’ até o fim de sua vida” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 201).

Assim, conforme Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.), a alienação ocupa em Marx o lugar de um conceito de síntese, imprescindível portanto à sua teoria e ao seu projeto de sociedade. Mas, demonstrado que Marx não abandona o tema da alienação ao longo de seu desenvolvimento intelectual, que estatuto conferir aos Manuscritos de 1844?

Diante dessa indagação, pode-se dizer que em Mészáros o conceito de alienação estabelecido por Marx nos Manuscritos de 1844 tem elementos suficientes para conduzi-lo ao patamar dos seus escritos tardios6 6 Cf., por exemplo, as seguintes passagens nas quais Mészáros se refere aos Manuscritos de 1844: “Com a elaboração desses conceitos - que dão conta plenamente da complexidade mistificadora da alienação, que derrotou nada menos que um dialético do quilate de um Hegel -, o sistema de Marx in statu nascendi está virtualmente completo. Suas ideias radicais concernentes ao mundo da alienação e sua suplantação estão agora sintetizadas de modo coerente dentro dos contornos gerais de uma visão abrangente, monumental. É claro que ainda há muito a ser elaborado em toda sua complexidade, porque a tarefa empreendida é titânica. No entanto, todas as concretizações e modificações subsequentes da concepção de Marx - incluindo algumas das principais descobertas do Marx mais maduro - são realizadas sobre a base conceitual das grandes conquistas filosóficas evidenciadas de maneira clara nos Manuscritos Econômico-Filosóficos” (Mészáros, 2016, p. 89); e mais adiante, concluindo um trecho sobre a polêmica da existência de um jovem Marx e de um Marx maduro: “A esta altura deve estar claro que nenhum dos significados da alienação conforme usados por Marx nos Manuscritos de 1844 caiu fora dos escritos tardios. E não é de se admirar. Com efeito, o conceito de alienação como foi compreendido por Marx em 1844, com todas as suas ramificações complexas, não é um conceito que se possa largar ou traduzir unilateralmente. Como vimos em várias partes deste estudo, o conceito de alienação é um pilar de importância vital no sistema marxiano como um todo, e não um simples tijolo deste” (Mészáros, 2016, p. 208); e, ainda, considerando-se aqui uma passagem na qual ele trata dos Grundrisse, obra de 1857-1858: “Essa segunda síntese ampla - é preciso dizê-lo de maneira explícita, para evitar compreensões equivocadas - de modo algum é contraposta aos Manuscritos de 1844: ela só é incomparavelmente mais rica e mais concretamente abrangente” (Mészáros, 2016, p. 221, grifos do autor). . Assim, é não sem razão que, após passar em revista os trechos das obras de Marx mencionadas no parágrafo anterior, ele conclui apontando que “a esta altura deve estar claro que nenhum dos significados da alienação conforme usados por Marx nos Manuscritos de 1844 caiu fora dos escritos tardios” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 208, grifo do original).

Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.) está atento ao fato de que evidentemente não se pode deixar de considerar o desenvolvimento intelectual de Marx, isto é, que suas concepções mudam ao longo do tempo. Por isso ele se refere aos textos de Marx nesse período dos Manuscritos de 1844 como in statu nascendi. Contudo, considera que, em 1844, as questões fundamentais a respeito da teoria da alienação em Marx estão suficientemente postas. O que Marx agregará posteriormente será abrangência e complexidade, pois tinha já estabelecido o “ponto arquimédico de sua grande síntese” e no qual o “conceito de ‘autoalienação do trabalho’ representou o elemento crucial” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 76).

Com essa obra, cuja profundidade e esforço intelectual não se pode questionar, István Mészáros aportava sua contribuição ao debate marxista naquele período dos anos de 1960-1970. Seu raciocínio situa-se nos antípodas daquele desenvolvido por Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.). Se este último vê no tema da alienação algo ligado aos primeiros escritos de Marx e destinado a ser posteriormente abandonado, para Mészáros o tema da alienação é algo a percorrer a obra marxiana e tem nela lugar central. Nesse ponto, o argumento é análogo ao desenvolvido três anos antes por Ernest Mandel7 7 Mészáros não faz menção a Mandel sobre esse ponto, mas conhece sua obra. Ele o cita textualmente (p.276) - mas sobre outro assunto - e suas obras constam na bibliografia de Teoria da alienação em Marx. .

Em 1967, o economista belga-alemão Ernest Mandel publica A formação do pensamento econômico de Karl Marx. Dedicado a colocar em relevo o tema do desenvolvimento dos aspectos econômicos na obra marxiana e cobrindo um longo período, de 1843 até a elaboração de O capital, o estudo apresentado por Mandel se tornou incontornável.

A obra de Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) segue, capítulo por capítulo, os momentos-chave na elaboração teórica de Marx - de uma crítica que visava à propriedade privada até a crítica do capitalismo, a recusa inicial e a posterior aceitação da teoria do valor, a constituição da teoria da mais-valia, a problemática dos modos de produção, o desenvolvimento de uma concepção histórica da alienação etc. - e faz uso dos textos de Marx com o apoio da melhor bibliografia disponível em sua época8 8 Ele cita, por exemplo, Pierre Naville (1967), como também Auguste Cornu (1962), obra reputada como o melhor estudo biográfico do período que Marx viveu em Paris. . Para os fins do presente texto, o modo como Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) concebe o tema da alienação em Marx interessa muito.

Para Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.), o movimento no pensamento de Marx é inequívoco: dos Manuscritos de 1844 aos Grundrisse (1857-1858), vai-se de uma concepção antropológica a uma concepção histórica de alienação. Observando a importância da filosofia de Hegel e de Feuerbach no desenvolvimento intelectual de Marx, ele assinala que Marx abordou os problemas econômicos na filosofia ainda imbuído de ambos os filósofos, “mas começando a criticar o próprio Feuerbach, apoiando-se em Hegel, pelo fato de que a contribuição de Hegel podia acrescentar à Antropologia uma dimensão histórico-social que estava ausente em Feuerbach” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 158). Não há, em Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.), a desqualificação sumária de períodos no percurso biográfico inicial de Marx ou de autores fundamentais que contribuíram para a elaboração de suas concepções. Em Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.), não se trata disso.

O que ele aponta e procura demonstrar é que os Manuscritos de 1844 compreendem uma obra de transição em relação ao desenvolvimento intelectual de Marx. Nele, diz Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.), Marx firma claramente sua posição de crítica a respeito da Economia Política, como também à filosofia então estabelecida. A solução para a matéria dessa crítica não será ideal ou conceitual, não se trata de algo no âmbito do pensamento, mas a mudança substantiva da sociedade cujo elemento instituinte é a ação comunista. Conforme Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 162), “o apelo à ação revolucionária - levantado pelo proletariado - já substituiu a resignação da ‘filosofia do trabalho’”.

Reconhecendo os avanços inegáveis dos Manuscritos de 1844, Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) entende que a condição de “obra de transição” traz a esse texto limites intrínsecos à medida que o jovem Marx se movimentava da filosofia hegeliana e feuerbachiana para a elaboração do materialismo histórico, e nessa transição “elementos do passado combinam-se necessariamente com elementos do futuro”, visto que Marx “combina, à sua maneira, isto é, modificando-os profundamente, a dialética de Hegel, o materialismo de Feuerbach e as determinações socias da Economia Política” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 162). Essa combinação, para Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.), não é coerente nem cria um sistema novo, encerrando em seus fragmentos numerosas contradições9 9 Nesse ponto, em nota, ele destaca que este é o aspecto fundamental da leitura equivocada de Althusser: tratar os Manuscritos de 1844 como uma obra acabada, formando um todo. Assim, “uma totalidade rica e movente (o pensamento de um autor tomado como um todo, evoluindo sem cessar sob o peso de suas próprias contradições internas, evolução determinada, em última análise, pela dinâmica do contexto socioeconômico, vivido pelo autor) é assim sacrificada a uma totalidade estreita e estática” (Mandel, 1968, p. 162). Esse é o mesmo apontamento efetuado por Marcello Musto em relação às leituras que diferentes autores fizeram dos Manuscritos de 1844. Ele cita Mandel a esse respeito (cf. Musto, 2019, p. 411). . Que contradições? Para ele, a mais marcante delas é a questão da alienação.

Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) mostra como Marx, sucessivamente, descobre a alienação no domínio religioso (desde o anexo até sua tese de doutorado) e no domínio jurídico, que Marx vai reconhecer a propriedade privada como fonte da alienação e, depois, que a alienação humana é fundamentalmente uma alienação do trabalho humano. Daí que estabelecendo “uma crítica sistemática à Economia Política, ele descobre que esta tendia a encobrir as contradições sociais, a miséria operária, que são, por assim dizer, resumidas no fenômeno do trabalho alienado” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 163-164). Para o autor, o desdobramento disso nos Manuscritos, contudo, não seria condizente com a tarefa a ser realizada.

Quando define o trabalho alienado como pertencendo a uma forma particular de sociedade, aponta Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.), Marx mostra que o trabalho alienado é aquele que enriquece os outros com seus próprios produtos, trabalho forçado, trabalho então que, nesse ponto da análise, está evidenciado como remetido à divisão da sociedade em classes, à relação entre capital e trabalho, à propriedade privada, à divisão do trabalho, ao nascimento da produção mercantil... No entanto, na sequência desse raciocínio, o texto dos Manuscritos abruptamente se interrompe, bifurca-se, produzindo “uma passagem em que a origem do trabalho alienado não é mais procurada numa forma específica de sociedade humana, mas na própria natureza humana, ou, mais exatamente, na natureza simplesmente” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 164-165).

Nesse sentido é que Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) bem destaca, em relação a esse texto brilhante que configura os Manuscritos de 1844, que “o pensamento de Marx oscila à beira de grandes descobertas” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 164). Faltam a Marx os elementos para bem cernir as questões com as quais se depara. Por isso Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) entende que a concepção antropológica da alienação então estabelecida, mesmo indo bem além de Hegel, permanece largamente filosófica, até mesmo especulativa: “ela não tem fundamento empírico. Não é demonstrada” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 165).

Assim, destacando que esse é um aspecto cardinal nos Manuscritos de 1844, Mandel observa que essa é uma contradição “que nenhuma casuística poderá fazer desaparecer” e conclui, sem apelo, dizendo que ninguém a fará, “seja interpretando arbitrariamente as passagens sócio-econômicas num sentido filosófico, seja interpretando a passagem supramencionada como equivalente à descrição de uma alienação socialmente determinada” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 165-166). Não obstante, ele considera que a problemática da alienação será central e vai se desenvolver em Marx, cujas numerosas passagens dos Grundrisse (passagens que Mandel cita textualmente) são provas inequívocas. O estatuto do tema da alienação nas obras de Marx será também objeto de interesse de outro importante nome naquele período, Lucien Sève.

Em 1973, sintetizando uma crítica gestada desde a segunda metade dos anos 1960 a respeito da abordagem althusseriana do tema da alienação e uma crítica ao gênero de humanismo em voga naquele período, o filósofo Lucien Sève apresenta uma conferência no Centre d’Études et Recherches Marxistes sobre o tema da alienação em Marx. Essa conferência será publicada em 1974 pelas Éditions Sociales com o título Analyses marxistes de l’aliénation10 10 Texto publicado em língua portuguesa em Lisboa, Portugal, no ano de 1975 e posteriormente no Brasil, em 1990, pela editora Mandacaru, com o título: Análises marxistas da alienação. Mais recentemente, em 2012, o texto foi republicado em francês pela editora La Dispute como uma das seções do livro Aliénation et émancipation, obra de Lucien Sève especialmente dedicada ao tema da alienação em Marx. Esta última é a versão que eu utilizo. . Para Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.), alguém dizer, como o faz Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.), que o tema da alienação seria próprio das obras da juventude de Marx e que depois desaparece nas obras subsequentes, é algo sem fundamento. Citando trechos de Contribuição à crítica da economia política, Grundrisse e O capital, Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.) mostra a presença e a força que a problemática da alienação ganha no período da maturidade de Marx11 11 O texto de Lucien Sève, publicado em 1974, traz um pequeno conjunto dessas passagens a respeito do tema da alienação no período da maturidade de Marx. Em 2012, no livro Aliénation et Émancipation, Sève retoma esse aspecto e destina a última seção do livro estritamente para inventariar o tema da alienação na obra magna de Marx (escritos de apoio à sua elaboração incluídos), no que termina por recensear 82 textos sobre o tema da alienação em O capital. . Do mesmo modo, o argumento de que haveria um corte no desenvolvimento intelectual de Marx, ruptura brutal entre um Marx anterior a 1845 e um Marx posterior a esse período, é eminentemente contestável. Para ele, há, ao mesmo tempo, continuidade e ruptura. É nesse ponto que raciocínio de Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.) desperta interesse, notadamente em relação ao tema da alienação.

Para Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.), há, sim, no tocante ao tema da alienação nos escritos de Marx, “continuidade na preocupação, na temática e na terminologia”, mas “descontinuidade no conteúdo teórico profundo das duas concepções de alienação” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 140). Duas concepções de alienação? Sim, para Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.), a temática da alienação é central em Marx, mas a concepção desenvolvida nos Manuscritos de 1844 não é equivalente à concepção de alienação presente nas obras posteriores de Marx.

Reconhecendo a grandeza dos Manuscritos de 1844 e a presença de certos aspectos nele desenvolvidos cuja força permanece intacta, Sève aponta que há nos Manuscritos mais que uma fenomenologia, tem-se nele “a exatidão de uma perspectiva científica nascente” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 104). Contudo, argumenta que os Manuscritos de 1844 compreendem textos nos quais suas questões de fundo são ainda especulativas, cuja análise histórica toca ainda a superfície dos fenômenos e cujo vocabulário é, de vários modos, impreciso, como testemunha a recorrente expressão “o homem”.

São três os principais problemas do texto dos Manuscritos de 1844 identificados por Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.). O primeiro deles é que o texto “incita, graças ao seu brilho, a que se tome simples abstrações por análises” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 108, grifos do autor). Por isso, conforme Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.), a descrição do vivido pelo trabalhador, as observações mordazes diante de uma sociedade atravessada por valores mercantis, não podem ser tomadas por uma análise concreta científica.

O segundo problema diz respeito à Economia Política, pois, se é verdade que um dos méritos dos Manuscritos de 1844 é o de, já no ponto de partida, recusar a considerar a propriedade privada como algo natural e eterno, eles são também um texto no qual se recusa certos desenvolvimentos científicos da Economia Política. Marx não analisa a questão da teoria do valor-trabalho. Uma perspectiva especulativa da alienação torna-se então barreira, e não ponte, isso porque “o ponto de vista da alienação, concebido desde logo como essencial, restringe a travessia crítica de toda a espessura dos dados e dos conceitos econômicos ao termo da qual somente é possível uma elucidação científica do problema” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 109).

O terceiro aspecto problemático apontado por Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.) em relação ao texto dos Manuscritos diz respeito à sua ainda insuficiente condição materialista e histórica. Conforme Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.), se é verdade que os Manuscritos de 1844 trazem uma penetrante crítica da dialética especulativa e empirista de Hegel e que nele a perspectiva dialética que se abre é essencialmente nova, “uma dialética da contradição, já não na ideia, mas na realidade material” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 110), o que ganha corpo nos Manuscritos ainda é insuficiente, não chega a inverter de maneira materialista a concepção que convém se fazer da dialética para transformar seu conteúdo categorial em científico. É assim que, por mais que os Manuscritos sugiram que a verdade do movimento dialético é o movimento histórico real - e aqui o autor anota: “indicação capital, e cujo valor, evidentemente, permanece inteiro” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 110) -, esses escritos, diz Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 110, grifos do autor), “não deixam ainda de conceber este movimento histórico real como movimento de uma generalidade abstrata, a essência humana, que se aliena no regime de propriedade privada e reapodera-se na sociedade comunista”. Daí que - ele conclui - mesmo sendo referida ao concreto, essa dialética permanece a ele imanente, daí também que, mesmo conferindo à história um lugar central, os Manuscritos ensinam extraordinariamente pouco sobre a história.

***

Recorrendo a esses três importantes nomes do debate marxista nos anos 1960-1970, pode-se restituir um pouco da densidade das discussões que tinham curso naquele período. Como vimos, a questão surgida ainda anos 1930 com a publicação dos Manuscritos de 1844 a respeito da existência de um “jovem Marx” se mantém por vias diversas e ganha outro patamar. Nos anos 1960, Althusser tem lugar especial nessa discussão e suas proposições serão objeto de apreciação crítica.

Entre nossos três autores, nenhum acolheu a proposição althusseriana de uma sorte de ruptura abrupta no desenvolvimento intelectual de Marx, muito menos a de que o tema da alienação seria restrito às suas obras da juventude. A ideia de uma transformação parece-lhes mais adequada para se pensar as mudanças no pensamento de Marx ao longo do tempo. Contudo, para dar conta de tais discussões naquele período, uma apreciação crítica do texto dos Manuscritos de 1844 se impôs a cada um deles.

Muito receptivo a esse texto da juventude de Marx12 12 Esse é o caso também de outro filósofo húngaro notável que, como se sabe, tem importante ascendência sobre Mészáros, György Lukács. Uma análise crítica a respeito da força e dos limites da obra de Lukács, em especial em relação à publicação de sua obra póstuma - Prolegômenos para uma ontologia do ser social (Lukács, 2010) -, pode ser vista em Lucien Sève (2014a, p. 90-99). Ver também Ruy Fausto (2002). , essa apreciação crítica é bastante branda em Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.), mas não o é em Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) tampouco em Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012.). Do mesmo modo, e retomando a ideia de transformação do pensar, não é desmedido dizer que, para Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.), as aquisições de Marx nesse momento em 1844 alcançam já elementos substanciais e que questões fundamentais estão suficientemente postas, o que não é endossado por Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.) e, sobretudo, por Lucien Sève. O exame de um aspecto dos Manuscritos de 1844, sua noção de “homem”, permite aprofundar esse ponto.

NADA DE NOVO SOB O SOL?

O que se pode dizer sobre a noção de “homem” presente nos Manuscritos de 1844? Quando Marx escreve nos Manuscritos de 1844 que “como consciência genérica, o homem confirma a sua vida social real” (Marx, 2015MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015., p. 348) e, em seguida, observa que

o homem - por muito que seja portanto um indivíduo particular e, precisamente, a sua particularidade faz dele um indivíduo e uma comunidade [Gemeinwesen] individual real - é tanto a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva para-si da sociedade sentida e pensada, (Marx, 2015MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015., p. 348)

o esforço por ele empreendido é considerável. A crítica às abstrações a respeito de uma suposta natureza humana - portanto, da compreensão do ser humano que não considera suas determinações - está sendo instituída e pode-se mesmo fazer, como o faz Mészáros (2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016.), um recuo para textos anteriores aos Manuscritos de 1844 para neles encontrar a preocupação de Marx em evitar a perda de referentes reais em suas análises. Mas essa via perde rapidamente sua evidência. Isso porque a questão fundamental não está nela.

A defesa do termo “homem”, que quase sempre é uma má generalização por excelência, nos deixa não mais próximos do melhor do pensamento de Marx, e sim mais distantes dele. Isso porque, procedendo desse modo, coloca-se em penumbra uma das maiores contribuições de Marx para a filosofia e para o conjunto das ciências: uma revolucionária concepção antropológica que lançou os fundamentos para a melhor compreensão da constituição do próprio à humanidade. Para isso, Marx precisou ultrapassar a noção de “homem” até então empregada como uma sorte de noção passe-partout13 13 No que se seguirá, a questão em jogo não tem a ver com o superficial argumento de que a palavra “homem” desaparecerá da obra de Marx. Ele por vezes a utilizará. Não se trata disso, mas de uma mudança categorial profunda. . Essa questão é notavelmente desenvolvida por Lucien Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.).

No tomo II de Penser avec Marx aujourd’hui, Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) desenvolve longamente um argumento já esboçado em suas já citadas obras de 1969 e 1974: Marx promoveu uma verdadeira revolução na compreensão antropológica da humanidade. No ponto de partida de sua análise, Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) explica que, em Marx, não haveria revolução antropológica se não houvesse também uma revolução filosófica. A problemática do “homem” ganha importância.

O termo “o homem” tem o condão de, em muitas línguas, dizer no singular aquilo que é plural, de dizer reduzindo a uma palavra no masculino o que é da humanidade, de recobrir tanto o masculino como o feminino. Em suma, encobre mais que define. Com isso, sua generalidade permite figuras que atravessam a linguagem cotidiana e também filosófica - “o homem é um ser social”, “como animal racional, o homem...”, “o que é o homem?”, “o homem é o capital mais precioso...”.

Nada disso agrada (ou agradaria, no caso da última expressão cujo acento reverbera a visão econômica neoclássica) ao espírito crítico de Marx, e um curto texto, como “Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução” (Marx, 2010MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução. In: MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo , 2010. p. 145-157.), de 1843/1844, evidencia isso. Esse “homem” pensado sem suas determinações não lhe convém. Mas, a esse respeito, o pensamento de Marx nesse momento, entre 1843 e 1844, encontra, de fato, o fundo das questões? Para Lucien Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.), não.

Ele observa que no referido período os textos de Marx estão eivados do termo “o homem” e isso não somente, como visto nos parágrafos acima, por ser um termo de uso corrente, mas também porque no começo dos anos 1840 a juventude alemã é entusiasta da filosofia de Feuerbach14 14 Um texto como “Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução”, datado de 1843, início de 1844, é de inspiração feuerbachiana. Contudo, a inteligência e a intuição de Marx fazem pronunciar nesses textos da juventude aspectos que somente serão efetivamente tematizados anos depois. É assim que se pode ler no referido texto: “Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade” (Marx, 2010, p. 145, grifos do autor), trecho que esboça proximidade com a 6ª Tese sobre Feuerbach, cujo texto foi elaborado em 1845 (ver adiante no presente texto). Proximidade apenas, pois ainda falta a Marx tomar a sério essa formulação e se distanciar da armadilha na qual Feuerbach caiu com seu repetido “o homem”. Ver, a esse respeito, Sève (2008, p. 54-58). O autor mostra também como, pouco tempo depois, Marx progressivamente reposiciona seu raciocínio: “Em novembro de 1844 Engels toma conhecimento do livro de Stirner L’ Unique et sa propriété, no qual a contestação a Feuerbach versa precisamente, à primeira vista, sobre seu humanismo. Engels atesta: Stirner tem razão de rejeitar “o homem” de Feuerbach, Engels então escreve a Marx, ‘como ele [Stirner] não tem como fundamento o homem empírico, “o homem” resta como uma figura fantasmagórica’ [...]. Marx acha esse primeiro movimento de Engels muito favorável a Stirner: ‘sim, devemos sair do culto feuerbachiano dessa abstração que é “o homem”, porém isso exige impulsionar uma crítica teórica que vá até a raiz, isto é, até o desenvolvimento das relações burguesas, base efetiva da individualidade abstrata, e sua superação prática pelo comunismo’” (2008, p.54-55, grifos do autor). . No que fazia sua crítica e promovia a inversão materialista da filosofia de Hegel, Feuerbach atravessa seus textos com uma visão antropológica e filosófica essencialista15 15 Alguns trechos de A essência do cristianismo são emblemáticos da visão essencialista que acompanha a filosofia de Feuerbach (2007, p. 36): “Mas qual é então a essência do homem, da qual ele é consciente, ou que realiza o gênero, a própria humanidade do homem? A razão, a vontade, o coração”; “o animal só é atingido pelo raio de luz necessário à sua vida, mas o homem também pelo brilho indiferente da mais distante estrela. Só o homem possui alegrias e sentimentos puros, intelectuais, desinteressados” (Feuerbach, 2007, p. 39). Em Feuerbach (2007), “o homem” e sua natureza essencial dominam o texto. , e na qual um genérico “homem” se torna um conceito relacional. Sobre esse ponto, Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) anota em relação a Feuerbach, “ali reside a importante inovação” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 52), e complementa destacando que os limites da lógica relacional são aí expressos, “é que ela não consegue impulsionar a análise das ‘relações’ que constituem a espécie humana em gênero” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 53). Em Feuerbach, diz Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.), apesar de algumas frases sobre o Estado (totalidade da essência humana...), a humanidade “parece bem se reduzir para ele a ‘indivíduos que existem fora de mim’, principalmente no duo interiorizado do tu e eu”, daí que “nada de humano lhe parece provir da objetividade do mundo social enquanto tal”. Então - e o autor sublinha que esse é o ponto cardinal - “a relação interpessoal não faz senão manifestar uma ‘essência humana’ da qual a consistência é de ordem psicológica” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 53).

É ocioso discutir o quanto todo esse movimento, mesmo com seus limites, foi importante para o desenvolvimento intelectual de Marx. Ele foi. A questão é melhor compreender por qual via Marx sai dessa perspectiva e a ultrapassa. A resposta não está nos Manuscritos de 1844, ainda povoado do termo “homem”, mesmo que investido de uma antropologia negativa (cf. Fausto, 2015FAUSTO, R. O sentido da dialética. Petrópolis: Vozes, 2015. tomo I. (Marx: Lógica e Política)., p. 310), e não somente de uma “antropologia”, como pensava Mandel (1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.). É preciso investigar os escritos que os sucederam. As Teses sobre Feuerbach apresentam um primeiro passo fundamental em torno dessa questão.

Escritas no primeiro semestre de 1845, em Bruxelas, as Teses sobre Feuerbach representam e expressam - com A ideologia alemã, de 1845/1846 - momentos de singular importância no desenvolvimento do pensamento de Marx. O texto não foi publicado em vida por Marx. A história é conhecida: sua primeira publicação ocorreu em 1888, sob a forma de apêndice em uma obra de F. Engels na qual este visava criticamente a filosofia de Feuerbach. Nessa publicação, Engels modifica o título original dado por Marx, 1. Ad Feuerbach, substituindo-o por Marx über Feuerbach (Marx sobre Feuerbach). Como observa Lucien Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.), trata-se de um texto que merece muita atenção.

Em suas análises a respeito das Teses sobre Feuerbach, Lucien Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) observa em especial a importância da 6ª Tese - “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (Marx, 2007MARX, K. Ad Feuerbach. In: MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo , 2007. p. 533-535., p. 534, grifo do original). Ora, o que implica dizer que “a essência humana não é uma abstração” concernente ao indivíduo à parte e que, na realidade, “é o conjunto das relações sociais”? Para restituir o sentido desses escritos é preciso compreender do que eles tratam.

Lucien Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) mostra que a 6ª Tese trata daquilo que os filósofos representam como substância ou “essência do homem”, tal como menciona Marx nas formulações de A ideologia alemã, na qual marca distância em relação a Feuerbach - “ele diz ‘o homem’ em vez de ‘os homens históricos reais’” (Marx, 2007MARX, K. Ad Feuerbach. In: MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo , 2007. p. 533-535., p. 30). Elas visam ainda, se considerados os esforços teóricos empreendidos pelos filósofos até a época de Marx, a problemática da existência de uma natureza humana e de sua identificação - emblematicamente, pode-se encontrar no primeiro parágrafo de A essência do cristianismo, de Feuerbach (2007FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes , 2007.), a questão do que é próprio ao homem e ao animal: “A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal” (Feuerbach, 2007FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes , 2007., p. 35). Em suma, a “natureza” do ser é um tema recorrente. Retendo esses aspectos, pode-se então melhor compreender o sentido do que Marx diz na 6ª Tese sobre Feuerbach e compreender em que ela rompe com o pensamento comum.

Primeiro ponto, em relação à noção de essência humana, a proposição de Marx é cortante: não há “essência humana” enquanto tal. Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 65, grifos do autor) aponta que “a proposição negativa da 6ª Tese anuncia que ela não é uma ‘abstração’ (kein Abstraktum: não é alguma coisa de abstrata) que residiria em um indivíduo à parte (dem einzelnen Individuum)16 16 A tradução habitual para dem einzelnen Individuum é “indivíduo isolado”. Lucien Sève prefere traduzir o referido trecho por “indivíduo à parte”, “indivíduo tomado à parte”, o que, para ele, permite bem reter o que Marx deseja precisar nesse trecho e evitar o equívoco de se considerar que a irrealidade da essência humana se dá porque ela não poderia versar sobre um ser objetivamente sozinho, tal como Robinson em sua ilha. ”. Na sequência, ele anota: “Marx, ousa pela primeira vez, declarar a inexistência da essência humana” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 65), no sentido que lhe consagra a formulação citada. Mas tal formulação rompe com o quê?

Como visto, há certa tradição filosófica em torno da noção de essência humana, mas é preciso ainda identificar o que está em seu fundo. Para tanto, Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) traz no ponto de partida um fato aparentemente banal em termos de história do conhecimento, “pensar as coisas envolve dar conta do que elas podem ter de universal e de necessário - o que as faz perseverar em seu ser genérico numa variedade de circunstâncias” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 68). A resposta clássica, ele diz, é a metafísica da essência, tal como se vai encontrar em Platão, daí que a “essência é concebida como uma idealidade, e essa idealidade, natureza não coisal tida como inerente à coisa, é imputada a ‘dizer o que ela é’” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 68). Contudo, isso não explica, termina no que precisa ser explicado. Contra tal carência de explicação se erigiu a ciência moderna, tomando o vértice oposto: se dirá então que “não há nenhuma essência por detrás dos fenômenos sob a aparência das coisas” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 68).

Assim, a rejeição à explicação metafísica, pontua Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.), conduziu muitos nas ciências humanas ao nominalismo - existencialistas, pós-modernos... - em flagrante renúncia ao geral; por outro lado, no campo das ciências da natureza, essa recusa pura ao geral não os satisfaz, pois são habitualmente “confrontados às irrecusáveis regularidades deterministas da experiência” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 69). Deste lado, o antiessencialismo se converte em reducionismo, comumente inclusive tomado como o método científico por excelência. Mas seu resultado é paradoxal, pois o “reducionismo - cujas figuras se contam em legião, da física das partículas ao individualismo metodológico - quer reformular em termos científicos o programa inexecutável como tal do essencialismo metafísico” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 70). Um caminho inverso ao pretendido se instaura, no que Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) então precisa: o reducionismo se propõe a caçar tudo o que pareça provir de uma entidade abstrata, mas o realiza por outra via, “ao estabelecer sua razão numa materialidade das propriedades recorrentes das coisas a partir de seus constitutivos internos” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 70). A perspectiva reducionista não consegue assim, de fato, se desvencilhar da essência metafísica, pois não se pode suprimir aquilo que se substitui.

Nominalismo e reducionismo têm então, em que pesem suas diferenças, uma fragilidade comum enredada na enganosa certeza que tinham de poder se afastar da categoria metafísica da essência sem superá-la criticamente. Em ambos, aponta Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.), persiste o crucial problema dessa categoria tradicional: “Apresentar as coisas dando conta do que lhes é essencial seria procurar dentro do que elas são e por elas mesmas sua razão” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 70). Por isso o movimento é circular, “como se uma tal ‘razão’ não pudesse consistir, se ela existe, senão que em uma identidade originária, ‘ideia’, ‘forma’, ‘natureza’, ‘essencialidade’ interna à própria coisa” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 70, grifo do original), apontamento ao qual o autor acrescenta um registro importante: “Sendo tacitamente admitido que aquilo que lhe é externo não poderia ser senão que uma contingência inessencial” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 70). De onde surge o falso dilema do reducionismo e do nominalismo: um procura a resposta ao lado de onde está, o outro se recusa a procurar. A dialética instituída por Marx na 6ª Tese sobre Feuerbach altera tudo isso.

Diante do idealismo interiorizado da essência, do qual não se sai por nenhuma denegação, os elementos de solução do impasse estão - conforme a arguta observação de Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.) - em uma afirmação inédita: “Aquela da parte irrecusável que provém do externo na determinação da essência” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 71). Vale, neste ponto, retomar o próprio Marx: a essência humana é o “conjunto das relações sociais”. Chega-se aqui ao ponto fundamental de todo esse raciocínio: “O que são essencialmente as coisas não é apreensível somente pelo que lhe é interno - como não é também pelo que lhe é externo - mas pelo estudo das relações dialéticas entre o interno e o externo” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 71, grifo do original).

O inédito no raciocínio de Marx, destaca Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II.), é que ele apreendeu todo o sentido disso que parecia não ter sentido: “Em sua realidade efetiva, essa ‘essência humana’ visando dar conta do que é interno a este ‘homem’ historicamente desenvolvido é uma materialidade externa a todo indivíduo: o conjunto das relações sociais” (Sève, 2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 71, grifos do original). Portanto, aquilo que é próprio ao humano é externo a ele - perspectiva que, ademais, liquida todo inatismo e biologicismo em se tratando de desenvolvimento humano - e se tem, em um mesmo movimento, uma compreensão inteiramente nova do indivíduo.

Marx continuará a desenvolver essas questões nos escritos posteriores, cujos conceitos de atividade (tätigkeit), mediação e apropriação complementarão os fundamentos de sua revolucionária compreensão filosófica e antropológica. As vastas consequências dessas aquisições de Marx foram percebidas por um notável psicólogo soviético que, por volta de 1928-1931, podia assim escrever:

Modificando uma tese conhecida de Marx, nós podemos dizer que a natureza psíquica do homem representa o conjunto das relações sociais, transpostas para o interior em funções da personalidade e formas de sua estrutura. Nós não desejamos dizer que este é o sentido preciso da tese de Marx, mas vemos nela a expressão mais completa de tudo isso que nos conduz à história do desenvolvimento cultural. (Sève, 2014bSÈVE, L. Présentation. In: VYGOTSKI, L. S. Histoire du développement des fonctions psychiques supérieures. Paris: La Dispute , 2014b. p. 7-76., p. 287)

Lucien Sève (2002SÈVE, L. Quelles contradictions? À propos de Piaget, Vygotski et Marx. In: CLOT, Y. (org.). Avec Vygotski. Paris: La Dispute, 2002. p. 245-264.) conta que, décadas atrás, sem ainda nada conhecer de Vygotski, mas na condição de autor de obras muito próximas das intuições desse grande estudioso do psiquismo humano, sentiu-se tocado ao ler o trecho descrito no parágrafo acima. Em suas palavras: “Não foi sem emoção que, me propondo a ler o texto do capítulo cinco de Histoire du développement des fonctions psychiques supérieuresVYGOTSKI, L. S. Histoire du développement des fonctions psychiques supérieures. Paris: La Dispute , 2014., eu descobri essa passagem” (Sève, 2002SÈVE, L. Quelles contradictions? À propos de Piaget, Vygotski et Marx. In: CLOT, Y. (org.). Avec Vygotski. Paris: La Dispute, 2002. p. 245-264., p. 260). A “tese conhecida de Marx”, mencionada por Vygotski, não é outra que a 6ª Tese sobre Feuerbach.

CONCLUSÃO

Considerando-se a riqueza e a profundidade do pensamento de cada um dos três autores, não deixa de ser surpreendente como tudo isso foi hoje, não raramente, reduzido em favor de uma visão simplesmente positiva dos conteúdos dos Manuscritos de 1844. Supõe-se como encerradas questões que no fio do tempo ninguém encerrou. Em se tratando de conhecimento, isso tem consequências. Então, cinquenta anos após essas discussões terem tido seu lugar, tudo se passa como se estivéssemos além delas quando, na verdade, por vezes, estamos aquém. As nuanças no pensamento de Marx após 1844 não devem, então, ser minimizadas.

Em retrospectiva, quando se considera o debate que teve lugar nos anos 1960-1970, é curioso ver o papel que paradoxalmente Althusser parece ter cumprido. Ele é autor, ao mesmo tempo, lembrado e esquecido. Lembrado por ter marcado os espíritos de uma época, esquecido por ser tido como simplesmente vencido. Considerada como uma filosofia que abrigava posições sem sustentação e tendo sua imagem associada ao debate de um período datado, a obra de Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965.) de certo modo fechava o debate. Dizendo de outro modo: resumindo a discussão ao althusserismo, assim concebido, nada precisava ser discutido. Então, os interessados pelos Manuscritos de 1844 e suas questões podiam proceder uma curiosa operação: mencionar Althusser para de maneira preconcebida contorná-lo, levando junto, sob seu escudo, todo o rico debate de uma época. Essa é uma das vias pelas quais hoje se dimensiona mal os conteúdos desse incontornável texto de Marx, concedendo-lhe menos do que é ou pedindo-lhe mais do que pode oferecer.

Essas são questões de difícil mediação, mas que não podem ser ignoradas. Este texto buscou empreender o caminho inverso, observando “que uma exigência do pensamento filosófico é a de reabrir debates, mais do que fechá-los” (Canguilhem, 2006CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 8).

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  • 1
    Em uma literatura dispersa em âmbito internacional e nacional, essa conduta pode, por exemplo, ser vista em Judy Cox (1998COX, J. An introduction to Marx’s theory of alienation. International Socialism, v. 2, n. 79, p. 41-62, 1998.); Emmanuel Renault (2001RENAULT, E. Le vocabulaire de Marx. Paris: Ellipses, 2001.); Jean-Pierre Durand (2006DURAND, J.-P. Les outils contemporains de l’aliénation du travail. Actuel Marx, v. 1, n. 39, p. 107-122, 2006.); Ricardo Antunes (2011ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 15. ed. São Paulo: Cortez, 2011.), ver especialmente a discussão sobre “trabalho estranhado” (p. 142-151); Tânia Franco (2011FRANCO, T. Alienação do trabalho: despertencimento social e desenraizamento em relação à natureza. Cadernos CRH, Salvador, v. 24, n. 1, p. 171-191, 2011. https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000400012
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    ).
  • 2
    A edição dos Manuscritos econômicos-filosóficosMARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo , 2004. publicada pela Boitempo em 2004 tem muitos méritos, contudo incorre em algo que não parece ser de modo algum uma questão menor, notadamente em relação a um termo-chave, a alienação. A tradução feita diretamente do texto em alemão por Jesus Ranieri, zelosa em muitos aspectos, opta por traduzir a palavra Entäusserung por alienação e Entfremdung por estranhamento. A opção não é sem consequências. De um lado, implica uma extensão de sentido de Entäusserung e, por outro, a promoção de identidade desta ao termo alienação. A impropriedade aqui parece semelhante à identificada por Lucien Sève em relação à tradução para o francês efetuada por Jean-Pierre Lefebvre da obra Fenomenologia do espírito, de Hegel, em 1991. Sève (2014aSÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. La Philosophie? Paris: La Dispute , 2014a. tomo III.) observa que optando traduzir Entfremdung, Entfremdet “se servindo das velhas palavras estranhamento, estranho, estas se qualificam por se aproximarem muito do termo alemão Fremd. Porém a consequência dessa sedutora ousadia é que, salvo a fazer paradoxalmente desaparecer a palavra alienação do texto hegeliano, deve-se então reservá-la para traduzir Entäusserung, o que pesa de modo problemático sobre a escolha a ser feita sobre o mesmo vocabulário no texto de Marx” (Sève, 2014aSÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. La Philosophie? Paris: La Dispute , 2014a. tomo III., p. 276). A questão da escolha deste ou daquele termo, portanto, se complica. Ora, o que se nomina sincreticamente como problemática da alienação, aponta Sève, designa no texto marxiano - e, de outro modo, também no hegeliano - um dispositivo terminológico complexo feito de dois conjuntos lexicais: aquele do exterior (äussere) e aquele do estranho/alheio (fremd). O primeiro está associado a entäussern, sich entäussern, Entäusserung, Veräusserung, Veräusserlichung. O segundo está associado a entfremden, sich entfremden, Entfremdung, Fremdheit, fremd Macht. Esses dois conjuntos lexicais formam em torno da referida problemática - a problemática da alienação - um “vocabulário característico” no qual se tem como matrizes fundamentais “Entäusserung e mais eletivamente Entfremdung” (Sève, 2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 15, grifos do autor). Ambos os termos podem, correntemente, ser traduzidos por alienação, mas com o cuidado de se distinguir, conforme o caso, seu núcleo de significações: por exemplo, “Entäusserung em Hegel compreende um exteriorizar-se produtivo, Entfremdung em Marx, uma desapropriação violenta” (Sève, 2014aSÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. La Philosophie? Paris: La Dispute , 2014a. tomo III., p. 276, grifos do autor). Disso resulta que assimilar estranhamento a Entfremdung não parece contemplar a riqueza de significações presentes nesse termo. Do mesmo modo, reservar alienação para Entäusserung arrisca deslocar do primeiro plano aquilo que em Marx, inclusive e sobretudo em suas obras da maturidade, corresponde a um termo central, com o grave inconveniente de se subtrair em inúmeros pontos da tradução a palavra alienação, cardinal no texto marxiano.
  • 3
    A esse respeito, ver Lucien Sève (2012SÈVE, L. Aliénation et émancipation. Paris: La Dispute , 2012., p. 10).
  • 4
    O que estava em jogo era a relação entre política, marxismo e projeto societário. Diante do que ocorria na URSS, que crítica estabelecer com Marx? O Relatório Khrushchov, divulgado em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista da URSS e que reportava os crimes de Stalin, terá importante repercussão entre os intelectuais franceses e acentuará as críticas ao modelo soviético no âmbito do PCF.
  • 5
    Althusser efetivamente elabora uma estratificação em relação às obras de Marx: obras da juventude (1840-1844), obras do corte epistemológico (1845), obras da maturação (1845-1857), obras da maturidade (1857-1883). Cf. Althusser (1965ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965., p. 18-27).
  • 6
    Cf., por exemplo, as seguintes passagens nas quais Mészáros se refere aos Manuscritos de 1844: “Com a elaboração desses conceitos - que dão conta plenamente da complexidade mistificadora da alienação, que derrotou nada menos que um dialético do quilate de um Hegel -, o sistema de Marx in statu nascendi está virtualmente completo. Suas ideias radicais concernentes ao mundo da alienação e sua suplantação estão agora sintetizadas de modo coerente dentro dos contornos gerais de uma visão abrangente, monumental. É claro que ainda há muito a ser elaborado em toda sua complexidade, porque a tarefa empreendida é titânica. No entanto, todas as concretizações e modificações subsequentes da concepção de Marx - incluindo algumas das principais descobertas do Marx mais maduro - são realizadas sobre a base conceitual das grandes conquistas filosóficas evidenciadas de maneira clara nos Manuscritos Econômico-Filosóficos” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 89); e mais adiante, concluindo um trecho sobre a polêmica da existência de um jovem Marx e de um Marx maduro: “A esta altura deve estar claro que nenhum dos significados da alienação conforme usados por Marx nos Manuscritos de 1844 caiu fora dos escritos tardios. E não é de se admirar. Com efeito, o conceito de alienação como foi compreendido por Marx em 1844, com todas as suas ramificações complexas, não é um conceito que se possa largar ou traduzir unilateralmente. Como vimos em várias partes deste estudo, o conceito de alienação é um pilar de importância vital no sistema marxiano como um todo, e não um simples tijolo deste” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 208); e, ainda, considerando-se aqui uma passagem na qual ele trata dos Grundrisse, obra de 1857-1858: “Essa segunda síntese ampla - é preciso dizê-lo de maneira explícita, para evitar compreensões equivocadas - de modo algum é contraposta aos Manuscritos de 1844: ela só é incomparavelmente mais rica e mais concretamente abrangente” (Mészáros, 2016MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo , 2016., p. 221, grifos do autor).
  • 7
    Mészáros não faz menção a Mandel sobre esse ponto, mas conhece sua obra. Ele o cita textualmente (p.276) - mas sobre outro assunto - e suas obras constam na bibliografia de Teoria da alienação em Marx.
  • 8
    Ele cita, por exemplo, Pierre Naville (1967NAVILLE, P. Le Nouveau Leviathan 1. De l’alienation à la juissance: la gênese de la sociologie du travail chez Marx et Engels. Paris: Editions Anthropos, 1967.), como também Auguste Cornu (1962CORNU, A. Karl Marx et Friendich Engels. Paris: PUF, 1962.), obra reputada como o melhor estudo biográfico do período que Marx viveu em Paris.
  • 9
    Nesse ponto, em nota, ele destaca que este é o aspecto fundamental da leitura equivocada de Althusser: tratar os Manuscritos de 1844 como uma obra acabada, formando um todo. Assim, “uma totalidade rica e movente (o pensamento de um autor tomado como um todo, evoluindo sem cessar sob o peso de suas próprias contradições internas, evolução determinada, em última análise, pela dinâmica do contexto socioeconômico, vivido pelo autor) é assim sacrificada a uma totalidade estreita e estática” (Mandel, 1968MANDEL, E. A formação do pensamento econômico de Karl Marx: de 1843 até a redação de O Capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968., p. 162). Esse é o mesmo apontamento efetuado por Marcello Musto em relação às leituras que diferentes autores fizeram dos Manuscritos de 1844. Ele cita Mandel a esse respeito (cf. Musto, 2019MUSTO, M. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 de Karl Marx: dificuldades para publicação e interpretações críticas. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 399-418, maio-ago. 2019. https://doi.org/10.9771/ccrh.v32i86.25803
    https://doi.org/https://doi.org/10.9771/...
    , p. 411).
  • 10
    Texto publicado em língua portuguesa em Lisboa, Portugal, no ano de 1975 e posteriormente no Brasil, em 1990, pela editora Mandacaru, com o título: Análises marxistas da alienaçãoSÈVE, L. Análises marxistas da alienação. São Paulo: Mandacaru, 1990.. Mais recentemente, em 2012, o texto foi republicado em francês pela editora La Dispute como uma das seções do livro Aliénation et émancipation, obra de Lucien Sève especialmente dedicada ao tema da alienação em Marx. Esta última é a versão que eu utilizo.
  • 11
    O texto de Lucien Sève, publicado em 1974, traz um pequeno conjunto dessas passagens a respeito do tema da alienação no período da maturidade de Marx. Em 2012, no livro Aliénation et Émancipation, Sève retoma esse aspecto e destina a última seção do livro estritamente para inventariar o tema da alienação na obra magna de Marx (escritos de apoio à sua elaboração incluídos), no que termina por recensear 82 textos sobre o tema da alienação em O capital.
  • 12
    Esse é o caso também de outro filósofo húngaro notável que, como se sabe, tem importante ascendência sobre Mészáros, György Lukács. Uma análise crítica a respeito da força e dos limites da obra de Lukács, em especial em relação à publicação de sua obra póstuma - Prolegômenos para uma ontologia do ser social (Lukács, 2010LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010.) -, pode ser vista em Lucien Sève (2014aSÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. La Philosophie? Paris: La Dispute , 2014a. tomo III., p. 90-99). Ver também Ruy Fausto (2002FAUSTO, R. Investigações para a reconstituição do sentido da dialética. São Paulo: 34, 2002. tomo III. (Marx: Lógica e Política).).
  • 13
    No que se seguirá, a questão em jogo não tem a ver com o superficial argumento de que a palavra “homem” desaparecerá da obra de Marx. Ele por vezes a utilizará. Não se trata disso, mas de uma mudança categorial profunda.
  • 14
    Um texto como “Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução”, datado de 1843, início de 1844, é de inspiração feuerbachiana. Contudo, a inteligência e a intuição de Marx fazem pronunciar nesses textos da juventude aspectos que somente serão efetivamente tematizados anos depois. É assim que se pode ler no referido texto: “Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade” (Marx, 2010, p. 145, grifos do autor), trecho que esboça proximidade com a 6ª Tese sobre Feuerbach, cujo texto foi elaborado em 1845 (ver adiante no presente texto). Proximidade apenas, pois ainda falta a Marx tomar a sério essa formulação e se distanciar da armadilha na qual Feuerbach caiu com seu repetido “o homem”. Ver, a esse respeito, Sève (2008SÈVE, L. Penser avec Marx aujourd’hui. “L’homme” ? Paris: La Dispute , 2008. tomo II., p. 54-58). O autor mostra também como, pouco tempo depois, Marx progressivamente reposiciona seu raciocínio: “Em novembro de 1844 Engels toma conhecimento do livro de Stirner L’ Unique et sa propriété, no qual a contestação a Feuerbach versa precisamente, à primeira vista, sobre seu humanismo. Engels atesta: Stirner tem razão de rejeitar “o homem” de Feuerbach, Engels então escreve a Marx, ‘como ele [Stirner] não tem como fundamento o homem empírico, “o homem” resta como uma figura fantasmagórica’ [...]. Marx acha esse primeiro movimento de Engels muito favorável a Stirner: ‘sim, devemos sair do culto feuerbachiano dessa abstração que é “o homem”, porém isso exige impulsionar uma crítica teórica que vá até a raiz, isto é, até o desenvolvimento das relações burguesas, base efetiva da individualidade abstrata, e sua superação prática pelo comunismo’” (2008, p.54-55, grifos do autor).
  • 15
    Alguns trechos de A essência do cristianismo são emblemáticos da visão essencialista que acompanha a filosofia de Feuerbach (2007FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes , 2007., p. 36): “Mas qual é então a essência do homem, da qual ele é consciente, ou que realiza o gênero, a própria humanidade do homem? A razão, a vontade, o coração”; “o animal só é atingido pelo raio de luz necessário à sua vida, mas o homem também pelo brilho indiferente da mais distante estrela. Só o homem possui alegrias e sentimentos puros, intelectuais, desinteressados” (Feuerbach, 2007FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes , 2007., p. 39). Em Feuerbach (2007FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes , 2007.), “o homem” e sua natureza essencial dominam o texto.
  • 16
    A tradução habitual para dem einzelnen Individuum é “indivíduo isolado”. Lucien Sève prefere traduzir o referido trecho por “indivíduo à parte”, “indivíduo tomado à parte”, o que, para ele, permite bem reter o que Marx deseja precisar nesse trecho e evitar o equívoco de se considerar que a irrealidade da essência humana se dá porque ela não poderia versar sobre um ser objetivamente sozinho, tal como Robinson em sua ilha.
  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2020
  • Aceito
    04 Ago 2020
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