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Gesto arquivístico e atitude crítica como leitmotiv analítico nas pesquisas educacionais

GESTO DE ARCHIVO Y ACTITUD CRÍTICA COMO LEITMOTIV ANALÍTICO EN LA INVESTIGACIÓN EDUCATIVA

RESUMO

O presente artigo, por meio de uma discussão teórica, propõe-se a assinalar o significado e algumas das possíveis potencialidades do gesto arquivístico e da atitude crítica, conforme preconizados por Michel Foucault e alguns de seus interlocutores ulteriores, quando concebidos como leitmotiv analítico para as investigações no campo da educação. Argumenta-se propriamente que a articulação de tais noções-chave oriundas do legado foucaultiano na lida investigativa e os modi operandi daí decorrentes ensejam amiúde certo modo de problematizar o presente educacional, indagando sobre suas condições de existência, seus significados, suas regras de ação, seus efeitos e, à vista disso, quiçá delinear transformações possíveis.

PALAVRAS-CHAVE:
arquivo; atitude crítica; Michel Foucault

RESUMEN

Este artículo, a través de una discusión teórica, propone señalar el significado y algunas de las posibles potencialidades del gesto de archivo y la actitud crítica - según lo recomendado por Michel Foucault y algunos de sus posteriores interlocutores - cuando se concibe como leitmotiv analítico para las investigaciones en el campo de la educación. Se argumenta que la articulación de tales nociones clave que se originan del legado foucaultiano en el trabajo de investigación y el modi operandi resultante, a menudo dan lugar a una cierta forma de problematizar el presente educativo, preguntando sobre sus condiciones de existencia, sus significados, sus reglas de acción, sus efectos y, en vista de eso, tal vez para describir posibles transformaciones.

PALABRAS CLAVE:
archivo; actitud crítica; Michel Foucault

ABSTRACT

This article, through a theoretical discussion, intends to point out the meaning and some of the possible potentialities of archival gesture and critical attitude - as advocated by Michel Foucault and some of his later interlocutors - when conceived as analytical leitmotiv for research in the field of education. It is argued that the articulation of such key notion from the Foucaultian legacy in the investigative work and the resulting modi operandi often give rise to a certain way of problematizing the educational present, asking about their conditions of existence, their meanings, their rules of action, their effects and, in view of that, perhaps outlining possible transformations.

KEYWORDS:
archive; critical attitude; Michel Foucault

INTRODUÇÃO

Foucault (2006aFOUCAULT, M. 1977 - Poderes e estratégias. In: FOUCAULT, M. Estratégia, poder-saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p. 241-252. (Ditos e escritos IV).) costumava nomear os operadores conceituais e analíticos que inventava de ferramentas, como em uma entrevista concedida a Jacques Rancière, publicada na revista francesa Les Révoltes Logiques, em 1977. Tais ferramentas, segundo a definição do filósofo francês, deveriam ser fabricadas sempre com vistas a um desígnio específico, podendo, no entanto, ser utilizadas por outros da maneira que melhor lhes conviesse. Em uma palavra, tratava-se de um convite de Foucault a pesquisadores em potencial, de modo que não só dessem prosseguimento às investigações por ele levadas a cabo, mas que, ademais, torcessem e retorcessem seu próprio pensamento.

Assim, na esteira dessa concepção e tomando como ponto de partida particularmente duas noções-chave do pensamento foucaultiano, arquivo e atitude crítica, propõe-se aqui a assinalar o significado e algumas possíveis potencialidades do uso dessas ferramentas na lida investigativa no campo educacional.

Hoje é tese bem conhecida que a periodização do pensamento foucaultiano é dividida no tríptico: arqueologia do saber, genealogia do poder e ética ou genealogia da ética. Os primeiros projetos, que compreendem as publicações da década de 1960, foram apontados por Foucault como uma arqueologia, embora não haja, de fato, unidade nas pesquisas arqueológicas, tendo em vista que cada qual apresentou particularidades quanto ao objeto estudado, variações de seus princípios e, ainda, “correções e críticas internas” (Foucault, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 18). Em linhas gerais, a arqueologia procurou demonstrar as condições históricas de surgimento das ciências humanas e demais saberes em vias de cientifização no decorrer do século XIX.

Todavia, dificilmente se pode falar de um único procedimento de pesquisa empreendido por Foucault que não tenha passado por diversas modulações. Tiveram início, então, na década de 1970, as investigações propriamente genealógicas, nas quais se constatou o deslocamento de ênfase das preocupações exclusivamente com a constituição dos saberes e suas transformações para a problematização do poder em suas amarrações com o saber. Noutras palavras, Foucault sustentou a tese de que aquilo que é convencionado como verdade se dá na imbricação mútua entre técnicas de saber e estratégias de poder. É preciso dizer, entretanto, que a mobilidade metodológica e as definições provisórias de seus estudos permaneceram. Não por acaso, o filósofo diria na aula de 7 de janeiro de 1976, do curso Em Defesa da Sociedade, que, nos últimos anos, “se delinearam pesquisas genealógicas múltiplas” (Foucault, 2005FOUCAULT, M. Aula de 7 de janeiro de 1976. In: FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 3-26., p. 13).

Além das investigações arqueológicas e genealógicas, já o dissemos, fala-se de um terceiro domínio analítico de Foucault, amiúde denominado de fase ética, ou genealogia da ética. Esse domínio, ainda pouco discutido nos estudos em educação se comparado à acolhida da analítica foucaultiana do poder (Pagni, 2011PAGNI, P. A. O cuidado de si em Foucault e suas possibilidades na educação: algumas considerações. In: SOUZA, L. A. F.; SABATINE, T. T.; MAGALHÃES, B. R. (org.). Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 19-46.; Gallo, 2011GALLO, S. Do cuidado de si como resistência a biopolítica. In: BRANCO, G. C.; VEIGA-NETO, A. Foucault: filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica , 2011. p. 371-392.), é ocasionalmente motivo de alguns questionamentos. Evidenciando as “inconsistências” no que diz respeito às divisões do pensamento foucaultiano, que habitualmente combinam os critérios cronológico e metodológico, Veiga-Neto (2011VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2011., p. 37) argumenta que “na terceira fase não há um método novo; a ética é um campo de problematizações que se vale um pouco da arqueologia e muito da genealogia, o que leva alguns a falar que, no terceiro Foucault, o método é arqueogenealógico”.

Sem a intenção de adentrar na clivagem discursiva no que tange aos domínios analíticos foucaultianos, importa aqui tão somente acentuar que tal divisão não supõe o encerramento de uma fase nem o início de outra, uma vez que são, efetivamente, dimensões metodológicas inter-relacionadas, sucessivamente incorporadas às analíticas entabuladas por Foucault. Ora, ao operar por deslocamentos estratégicos, o pensamento foucaultiano não comporta sistematização, embora tampouco seja um projeto aleatório.

Feita essa sintética caracterização acerca da technê de investigação foucaultiana, discorreremos, conforme antecipado, de maneira específica acerca das noções foucaultianas de arquivo e crítica, buscando assinalar sua pertinência para investigar o campo da educação. Antes de avançar, vale ressaltar que a noção de arquivo, como se sabe, é apontada por Foucault em seu empreendimento arqueológico, sobretudo em A arqueologia do saber, enquanto a noção de atitude crítica, por sua vez, se apresenta em seu empreendimento genealógico, mais especificamente a partir dos fins da década de 1970, quando submeteu o conceito de poder a certo deslocamento teórico e o pensou em termos de governo.

Não obstante, com base em alguns interlocutores ulteriores do pensamento foucaultiano (Revel, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.; Salomon, 2019SALOMON, M. “Isso não é um livro de história”: Michel Foucault e a publicação de documentos de arquivos. Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, p. 229-252, jan./abr. 2019. http://doi.org/10.1590/2237-101X020040011
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), parece factível cogitar que os procedimentos implicados em tais noções-chave supracitadas foram operacionalizados por Foucault, em maior ou menor dimensão, ao longo de todo o seu projeto investigativo, e não apenas em circunstâncias investigativas pontuais. É desse ponto de vista, portanto, que concebemos os conceitos que aqui tratamos.

SINGULARIDADES DO GESTO ARQUIVÍSTICO FOUCAULTIANO

Em geral, o arquivo é compreendido como um local de armazenamento, classificação e preservação de documentos, um repositório de coisas ditas e feitas abalizado como uma representação direta e presumidamente imparcial dos fatos do passado. Logo, o acesso a dado arquivo implicaria, no mais das vezes, tão somente reafirmar leituras já consagradas e tradicionalmente estabelecidas.

Contrariamente a essa noção tradicional de arquivo, cuja finalidade seria unicamente técnica e que possibilitaria acessarmos o passado de forma supostamente autêntica e definitiva, alguns autores (Foucault, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.; Farge, 2009FARGE, A. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.; Artières, 1998ARTIÈRES, P. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998., 2011ARTIÈRES, P. Monumentos de papel: a propósito de novos usos sociais dos arquivos. In: SALOMON, M. (org.). Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete, 2011. p. 99-110., 2014ARTIÈRES, P. A exatidão do arquivo. In: ARTIÈRES, P. et al. Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 137-141.; Didi-Huberman, 2012DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real. Pós, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 206-219, nov. 2012.; Aquino e Val, 2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018.; Salomon, 2011SALOMON, M. A danação do arquivo: ensaio sobre a história e a arte das políticas culturais. In: SALOMON, M. (org.). Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete , 2011. p. 29-42., 2019SALOMON, M. “Isso não é um livro de história”: Michel Foucault e a publicação de documentos de arquivos. Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, p. 229-252, jan./abr. 2019. http://doi.org/10.1590/2237-101X020040011
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) sinalizam uma dimensão outra do arquivo, isto é, advogam a viabilidade de novas estratégias para explorarmos o arquivo, por intermédio de uma composição multidirecional. Guardadas as devidas peculiaridades de cada estudo, cumpre-nos dizer, em termos latos, que o arquivo é entendido como vestígio discursivo de dado contexto e que demanda releitura, exploração, desconstrução, recontextualização, criação. Como se pode entrever, a distinção entre a concepção convencional de arquivo e a admitida neste estudo é de capital importância.

Sabe-se, contudo, que, quando se mobiliza a palavra arquivo, é possível que venham à tona interpretações ambíguas, além das supracitadas. Não seria do maior interesse detalhar aqui tal questão. Em todo caso, ainda que com Derrida (2001DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.) possamos recuar à Grécia Antiga para visualizar o aparecimento histórico da palavra arquivo, contendo em si a noção de arque, que, por seu turno, significa, indistintamente, origem e comando, efetiva-se em nossa atualidade, em alguma dimensão, certa ideia de arquivo como um material sujeito a transformações, releituras e sobrevivências (Duarte, 2018DUARTE, M. M. Imagem de arquivo e tempo mnemotécnico: para um projecto de arquiviologia na história da arte. Covilhã: LabCom.IFP, 2018.), rompendo, desse modo, com a habitual ordem do arquivo. Outrossim, despontam ainda, conforme argumenta Artières (2011ARTIÈRES, P. Monumentos de papel: a propósito de novos usos sociais dos arquivos. In: SALOMON, M. (org.). Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete, 2011. p. 99-110.), novos usos sociais do arquivo.

Na contemporaneidade, os arquivos deixaram de ser objeto de interesse exclusivo de historiadores e arquivistas, pois há uma gama cada vez maior de pesquisadores, dos mais distintos campos de conhecimento, lidando com a prática arquivística. Além disso, em determinadas circunstâncias, as políticas de descentralização das finanças públicas, os investimentos em equipamentos culturais, bem como a “valorização do indivíduo anônimo como figura da história” (Artières, 2011ARTIÈRES, P. Monumentos de papel: a propósito de novos usos sociais dos arquivos. In: SALOMON, M. (org.). Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete, 2011. p. 99-110., p. 103), têm propiciado a compilação e o reconhecimento de arquivos antes menosprezados, como aqueles relativos aos arquivos pessoais, às histórias de si (cartões-postais, papéis administrativos, cartas, cadernos escolares etc.). A esse respeito, Artières (2011ARTIÈRES, P. Monumentos de papel: a propósito de novos usos sociais dos arquivos. In: SALOMON, M. (org.). Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete, 2011. p. 99-110.) faz menção, entre outros, ao documentário No Pasaran, de 2003, dirigido por Henri-François Imbert, que se vale nomeadamente de um conjunto de fotografias que representam refugiados republicanos, em 1936, na fronteira franco-espanhola.

Acrescenta-se que, se antes era necessário ir a um centro de arquivos e debruçar-se sobre maços de papéis, manuseando-os “com toda delicadeza por medo de que um anódino princípio de deterioração se torne definitivo” (Farge, 2009FARGE, A. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009., p. 9), hoje em dia a digitalização e a disponibilização on-line facilita e impulsiona notavelmente o acesso de pesquisadores aos mais diversos tipos de “arquivos digitais, um objeto que não mais acumula poeira, que as bactérias não atacam e, sobretudo, que não são afetados pela consulta” (Artières, 2011ARTIÈRES, P. Monumentos de papel: a propósito de novos usos sociais dos arquivos. In: SALOMON, M. (org.). Saber dos arquivos. Goiânia: Ricochete, 2011. p. 99-110., p. 107). Com efeito, essa nova configuração tem possibilitado, por vezes, a ampliação, o acréscimo de novos elementos a dado arquivo existente.

Em A arqueologia do saber, trabalho que pode ser visto como metodológico, Foucault (2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.) desenvolve uma quantidade enorme de expressões e conceitos, entre eles o de arquivo. O filósofo compreende o conceito de arquivo de modo muito particular e explana que, com base neste último, gravitam outros conceitos operatórios, como, por exemplo, enunciado, formação discursiva, função enunciativa, descontinuidade, acontecimento discursivo, práticas discursivas. Segundo a perspectiva foucaultiana, existe uma relação muito particular, um vínculo do arquivo (conjunto de enunciados) com o enunciado (molecular) - considerados conceitos nucleares -, fundando assim circularidade e reciprocidade entre os dois conceitos. Não por acaso, essas duas noções ocupam todo um capítulo de A arqueologia do saber.

O enunciado é a unidade elementar do discurso e pode estar presente numa série de signos ou eventualmente em um único, desde que se leve em conta sua característica substancial, a função enunciativa. Esta última, por sua vez, permitirá descrever as condições de existência e produção do enunciado, as regras que o controlam e o seu espaço de correlações com outros enunciados. O arquivo rege o sistema de enunciabilidade e define tanto a irrupção quanto a modificação do enunciado. Ao ver de Foucault (2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.), o arquivo consiste no registro de objetos de conhecimento, é “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (Foucault, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 147).

A título de exemplificação, é admissível dizer que nossa sociedade possui um arquivo sobre o que é a educação. Esse arquivo forma e transforma aquilo que podemos enunciar acerca da escola, do currículo, do ensino, da aprendizagem, da aula, do docente, do aluno, da didática, da avaliação etc. Assim, ao operar analiticamente a noção de arquivo no campo educacional, parte-se do pressuposto de que a história da educação não é propriamente uma questão de verdade - ao menos não se se considera sua designação tradicional, quer dizer, aquilo que supostamente permanece inalterável diante de quaisquer contingências -, mas de jogos de verdade envoltos em complexas relações de saber-poder, permitindo que dado discurso se imponha e/ou coabite com outros em determinado contexto. O gesto arquivístico, portanto, implica perscrutar e reconstruir os jogos de verdade de um arquivo educacional particular por meio do presente, desnaturalizando-os, isto é, demarcando sua contingência, suas regras, suas lutas discursivas em torno do controle da linguagem.

Nas palavras de Revel (2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.), os trabalhos de pesquisa de Foucault sob o viés arqueológico objetivaram, sinteticamente, retomar num arquivo de determinada época os “traços discursivos susceptíveis de permitir a reconstituição de um conjunto de regras que, num dado momento, define ao mesmo tempo os limites e as formas da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da apropriação” (Revel, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005., p. 18-19). Todavia, a autora não deixa de assinalar certa mudança de estatuto no domínio genealógico dos escritos de Foucault, uma vez que a problemática da subjetividade passou a ser incorporada cada vez mais. Desse ponto de vista, o arquivo “funciona mais como traço de existência do que como produção discursiva” (Revel, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005., p. 19).

Diagnóstico análogo, mas não inteiramente equivalente no que concerne a certo deslocamento ou, se se quiser, a um novo tipo de interesse na lida arquivística de Foucault, foi ofertado, mais recentemente, por Salomon (2019SALOMON, M. “Isso não é um livro de história”: Michel Foucault e a publicação de documentos de arquivos. Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, p. 229-252, jan./abr. 2019. http://doi.org/10.1590/2237-101X020040011
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). Analisando de maneira particular o que esteve em jogo no gesto arquivístico empreendido pelo filósofo francês ao editar e publicar materiais referentes ao mundo dos anônimos e desclassificados sociais - como as memórias do parricida normando Pierre Rivière (1973), os extratos do livro de um desconhecido libertino inglês intitulado My secret life (1977), o dossiê da hermafrodita Herculine Barbin (1978) e, por fim, uma compilação de documentos judiciários denominado de Le désordre des familles (1982), coescrito com Arlette Farge -, o autor elucida que se tratava de delinear nesses textos o acontecimento que denota o momento em que anônimos passam a falar de si mesmos e, então, se inscrevem na história, isto é, no arquivo. Destarte, a “arquivologia foucaultiana não é uma fenomenologia dos rastros, mas uma análise do que os torna possíveis, isto é, uma análise dos tipos de estratégias de poder que tornam possível o arquivo como saber” (Salomon, 2019SALOMON, M. “Isso não é um livro de história”: Michel Foucault e a publicação de documentos de arquivos. Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, p. 229-252, jan./abr. 2019. http://doi.org/10.1590/2237-101X020040011
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, p. 240, grifos do original).

É digno de nota que, em termos foucaultianos, o arquivo rompe com o postulado de formas lineares e cronológicas e supõe detectar a formação e a transformação dos enunciados por meio de uma diversidade de textos, uma massa documentária. Desta feita, “a analítica dos arquivos constitui, na aurora do pensamento foucaultiano, um novo modo de interrogar a história sobre suas marcas presentes, não mais buscando a permanência, mas sim suas dispersões, limiares e descontinuidades” (Oliveira, 2008OLIVEIRA, C. A vertigem da descontinuidade: sobre os usos da história na arqueologia de Michel Foucault. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 169-181, jan./mar. 2008. https://doi.org/10.1590/S0104-59702008000100010
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, p. 171). Sublinha-se, porém, que o arquivo não deve ser tratado como uma totalidade. Não é praticável acessá-lo na íntegra, tampouco ele pode ser considerado como a soma de todos os textos de uma época, de uma cultura ou de uma sociedade. Trata-se de um suporte material em que é viável pensar as práticas discursivas e examinar suas regras, suas condições de existência e seu funcionamento. “Um mesmo arquivo possibilita, portanto, várias configurações, a depender dos problemas e das grades de leitura do pesquisador que o toma” (Aquino e Val, 2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018., p. 47).

Assim, o arquivo disposto em determinada investigação é tão somente uma possibilidade de leitura, extração, criação e reconstituição da parte de seu arquivista. Sempre haverá, portanto, uma inacabável lida arquivística em dado arquivo. Com efeito, cumpre assinalar, ademais, o caráter lacunar do arquivo, como observa Didi-Huberman (2012DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real. Pós, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 206-219, nov. 2012., p. 210-211):

Cada vez que tentamos construir uma interpretação histórica - ou uma “arqueologia” no sentido de Michel Foucault -, devemos ter cuidado de não identificar o arquivo do qual dispomos, por muito proliferante que seja, com os feitos e gestos de um mundo do qual não nos entrega mais que alguns vestígios. O próprio do arquivo é a lacuna, sua natureza lacunar. Mas, frequentemente, as lacunas são resultado de censuras deliberadas ou inconscientes, de destruições, de agressões, de autos de fé. O arquivo é cinza, não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu.

Mas isso não é tudo. Como argumentou Foucault (2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.), todo enunciado é definido por uma rede de relações associativas com outros enunciados que o antecedem, o reatualizam ou, ainda, que coexistem simultaneamente. Escrito de outro modo, todo discurso estabelece-se sobre um discurso anterior. Todo dito é um já dito alhures, responsável pela ativação ou pelo esquecimento de determinadas representações arquivadas na memória discursiva.

Desta feita, para dar conta do tema-problema de dada pesquisa, além do corpus que constitui o ponto de partida arquivístico, o pesquisador inspirado no instrumental investigativo foucaultiano procura evocar, paralelamente, o corpora de textos suplementares, isto é, recorrer a fontes múltiplas e heterogêneas no decorrer da investigação e que, a princípio, não haviam sido consideradas no arquivo inicial. De modo perspicaz, tal procedimento é designado por Aquino e Val (2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018.) de arquivamento, que, convém advertir, em nada coincide com uma exegese interpretativa documental.

O arquivamento é oportunizado por uma nítida inquietação acerca de um tema-problema investigativo, propulsora de uma imersão vertical na densidade e na dispersão de diferentes fontes correlatas (desde aquelas molares até as tópicas, laterais, adventícias etc.) com as quais o pesquisador se defronta em sua lida. (Aquino e Val, 2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018., p. 48, grifo do original)

É, portanto, no confronto com o arquivo e para dar conta da problemática delimitada que o tema-problema se espraia, se expande, ou seja, percorre caminhos que, no mais das vezes, o distanciam da temática investigativa elencada de início. Ora, engendrar um arquivo consiste em “arriscar-se a pôr, uns junto a outros, traços de coisas sobreviventes [...]. Esse risco tem por nome imaginação e montagem” (Didi-Huberman, 2012DIDI-HUBERMAN, G. Quando as imagens tocam o real. Pós, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 206-219, nov. 2012., p. 211-212, grifos do original). Vê-se então, segundo Farge (2009FARGE, A. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009., p. 66), que “um arquivo inesperado, fora do campo que se estipulou, vem chacoalhar a monotonia da coleção”. Nesse ponto de vista, o arquivamento assemelha-se, pois, à montagem de um quebra-cabeça, “com vistas à proposição de um mapa dos discursos que foram possíveis em uma dada época e em um local específico” (Aquino e Val, 2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018., p. 49).

Trafegando na via aberta pelas filosofias da diferença, Campos, Olegário e Corazza (2018CAMPOS, M. I. K.; OLEGÁRIO, F.; CORAZZA, S. M. Escrileituras tradutórias: reinvenção empírica do arquivo. Educação Temática Digital, Campinas, v. 20, n. 4, p. 963-978, out./dez. 2018. https://doi.org/10.20396/etd.v20i4.8649842
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) concebem o arquivo como suporte gerativo de novos conhecimentos na esfera educacional. Noutras palavras, pleiteiam a reinvenção empírica dos saberes contidos em um arquivo original como possibilidade de proliferação de novos significados, de múltiplas conexões imaginativas no campo da educação. Trata-se, assim, de uma vontade de potência, de um pensamento aberto a ações inventivo-tradutórias, de ações experimentais efetuadas pelo educador-tradutor sobre saberes que constituem determinado arquivo pedagógico.

À vista disso, esses saberes “não mais se pré-configuram como simples transmissão na esfera do já dado, do já conhecido, incidindo sobre eles o olhar da suspeita que os faz divergir à medida que novos problemas sobre eles são postulados” (Campos, Olegário e Corazza, 2018CAMPOS, M. I. K.; OLEGÁRIO, F.; CORAZZA, S. M. Escrileituras tradutórias: reinvenção empírica do arquivo. Educação Temática Digital, Campinas, v. 20, n. 4, p. 963-978, out./dez. 2018. https://doi.org/10.20396/etd.v20i4.8649842
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, p. 695). Nesse mesmo diapasão, acerca da potência tradutória e transcriadora do arquivo educacional e com um estilo de escrita que lhe é habitual, Corazza (2019CORAZZA, S. M. Poética e sonho de arquivo: conceitos, sentidos, proposições, teses, escólios, espólios, pólipos, nódulo final. In: FÓRUM NACIONAL ITINERANTE: ARQUIVO, PESQUISA E DOCÊNCIA, 1., 2019, Lajeado. Anais... Lajeado: UNIVATES, jun. 2019. p. 1-11., p. 7) argumenta que, “quando um professor nasce, não é em um berço que ele é depositado, mas em um arquivo”.

Mas voltemos, uma vez mais, ao estudo de Aquino e Val (2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018.). Além do “arquivamento”, explicam os autores que a lida arquivística reclamaria um segundo procedimento, a “arquivização”. Na esteira de Didi-Huberman e tomando como exemplo os escritos ulteriores de Foucault, em que o pensador opera de modo deveras peculiar com o arquivo greco-romano, defendem que o trato arquivístico das fontes exigiria simultaneamente estratégias de imaginação e (re)montagem. Tais procedimentos teriam por finalidade evidenciar as lutas, os enfrentamentos e mesmo as incongruências pelas quais toda história é arquitetada.

A operação de arquivização assemelha-se analogicamente à composição de um thriller policial, na medida em que as evidências não estão ocultas, embora não sejam imediatamente aparentes às lentes daqueles que as observam. Ao contrário, a própria saturação da visibilidade de um conjunto de enunciados correntes é o que nos impediria de vislumbrar os jogos de veridicção/subjetivação em torno de determinados nexos cognitivos enraizados no presente. (Aquino e Val, 2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018., p. 50, grifo do original)

Além da operação de arquivamento e arquivização, conforme propostos por Aquino e Val (2018AQUINO, J. G.; VAL, G. M. Uma ideia de arquivo: contributos para a pesquisa educacional. Pedagogia y Saberes, n. 49, p. 41-53, 2018.), considera-se aqui que a atitude crítica ou, se preferirmos, os procedimentos inerentes à crítica, nos termos de Foucault (2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012.), ampliam os modos pelos quais dado arquivo pode ser interrogado. Vejamos isso mais de perto.

ATITUDE CRÍTICA COMO UM MODO DE INTERROGAR O PRESENTE

Em maio de 1978, pouco após encerrar as aulas do curso Segurança, Território, População, Foucault (2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012.) proferiu na Sociedade Francesa de Filosofia a conferência O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung), publicada adiante, em 1990, no Bulletin de la Societé Française de Philosophie. Ali, manifestou a pertinência de abordar um tema tão amiudado na filosofia, a questão sobre o que é a crítica, e advertiu que, diante das incontáveis possibilidades de se fazer uma história da atividade crítica, se ocupou precisamente daquela concernente a certa suspeição acerca das artes de governar que irrompeu nos séculos XV e XVI. Salienta-se que foi nesse quadro conjuntural que sucedeu no Ocidente, notadamente em decorrência de uma crise do pastorado cristão, uma expansão acentuada dos mais variados domínios - pedagógicos, familiares, políticos, econômicos, militares - envolvidos nas artes de governar os homens fora da esfera religiosa, uma espécie de laicização das artes de governar.

Segundo o viés foucaultiano (Foucault, 2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012.), esse movimento de intensificação da governamentalização, ou seja, de um Estado que cada vez mais ambiciona a sujeição dos indivíduos e da sociedade, não poderia, por sua vez, ser desassociado de um confronto, de certa desconfiança no tocante à própria submissão que é requerida às artes de governar - sejam elas quais forem -, o que induziria, portanto, a indagar sobre como não ser governado de tais ou quais modos. Essa questão não significa exiguidade de governo ou desobediência em termos absolutos, mas busca outras formas de condução e, em seguimento, a constituição de novas subjetividades: “Lembremo-nos de que Foucault tenta compreender a possibilidade de desassujeitamento dentro dos quadros de racionalização sem afirmar que há uma fonte de resistência que está alojada no sujeito ou em algum outro campo fundacional” (Butler, 2013BUTLER, J. O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 1, n. 22, p. 159-179, 2013., p. 173).

É desse ângulo que Foucault (2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012.) sustenta a ideia de que despontaria um modo de pensar, uma forma de crítica que seria específica da civilização moderna, uma crítica enquanto vontade decisória de não ser governado para tal intento, para tal finalidade. Leiamo-lo:

No lado oposto, e como parte contrária, ou melhor, como parceira e adversária tanto das artes de governar, enquanto forma de desconfiar delas, de as recusar, de as limitar, de lhes encontrar uma justa medida, de as transformar, de procurar escapar a essas artes de governar ou, em qualquer caso, as deslocar, a pretexto de reticência essencial, mas também e por isso mesmo como linha de desenvolvimento das artes de governar, teria havido qualquer coisa a nascer na Europa nesse momento, uma espécie de forma de cultura geral, tanto moral como política, maneira de pensar, etc., e que eu chamaria simplesmente arte de não ser governado ou ainda arte de não ser governado assim e a este preço. E portanto eu proporia, como primeira definição de crítica, esta caracterização geral: arte de não ser de tal modo governado. (Foucault, 2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012., p. 59)

A essa demarcação um tanto quanto genérica, Foucault (2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012.) apresenta de forma deveras abreviada uma genealogia da atividade crítica como contraconduta dos processos de governamentalização pelos quais os sujeitos se tornam assujeitados e que se desenrola a partir do século XVI mediante três pontos de ancoragem: uma crítica ligada à Escritura, que indaga basicamente sobre o tipo de verdade presente nos elementos da vida religiosa e na autoridade eclesiástica, aspirando limitá-las ou mesmo modificá-las; uma forma de crítica que questiona os limites do direito de governar e que intenciona não mais aceitar as leis tidas como injustas, ilegítimas - crítica precipuamente jurídica, portanto -; e, por fim, uma crítica que se destina a não mais reconhecer algo como verdade pelo simples fato de ser enunciado por uma autoridade, exceto se houver razões críveis para tanto.

Nesses termos, depreende-se que a atividade crítica não é autônoma, não existe por sua própria conta. Não há, por assim dizer, exterioridade entre a crítica e a condução das condutas. “Ela se exerce sempre em um domínio ou com relação a um domínio - a filosofia, a ciência, o direito, a economia, a política” (Foucault, 2019FOUCAULT, M. O que é a crítica? Conferência proferida por Michel Foucault na Sociedade Francesa de Filosofia, em 27 de maio de 1978. Rio de Janeiro: LUG, 2019. 77 p., p. 13) - específico. Poder-se-ia supor, por conseguinte, tratar-se de uma “crítica possível” (Foucault, 2019FOUCAULT, M. O que é a crítica? Conferência proferida por Michel Foucault na Sociedade Francesa de Filosofia, em 27 de maio de 1978. Rio de Janeiro: LUG, 2019. 77 p., p. 13), uma crítica inerente às contracondutas e pensada em termos de reflexão e conhecimento.

Tal definição de crítica, inseparável do tema do governo das condutas - problemática que passaria a constituir uma das questões fulcrais do “último Foucault” -, guardaria similaridade com a tradição filosófica das luzes, argumento defendido por Foucault (2012FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.), como se sabe, particularmente por meio da leitura do opúsculo kantiano de 1784 acerca do que é a aufklärung, cuja máxima é definida por Kant (2005KANT, I. Textos seletos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 64) como sapere aude, ou seja, como “coragem de fazer uso de teu próprio entendimento” sem a direção de outrem.

Antes de avançar, há que se observar que o filósofo francês caracteriza as luzes menos como um período histórico do que na condição de um espaço delimitado por um ethos, uma “atitude de modernidade” (Foucault, 2003FOUCAULT, M. 1984 - O que são as Luzes? In: FOUCAULT, M. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 335-351. (Ditos e Escritos II)., p. 341), um modo de atuar sobre as questões do presente que não deixa de submeter à crítica ininterrupta tudo aquilo que se diz verdadeiro, destarte, acenando para uma relação outra com o saber. “Há, portanto, em Foucault, um pensamento da crítica. É, com efeito, segundo ele, nessa contestação da evidência que reside a ‘modernidade’ da crítica da qual ele faz de Kant o inventor, e das Luzes, o momento” (Fassin, 2014FASSIN, D. Como escrevi alguns dos meus textos. In: ARTIÈRES, P. et al. Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense , 2014. p. 291-298., p. 293).

A prática da crítica significa, por conseguinte, empenhar-se em melhor compreender as condições de aceitabilidade, em interpelar os vínculos, a justaposição entre aparatos coercitivos e determinado sistema de saberes para, quiçá, limitá-los, deslocá-los, transformá-los. Nesse sentido, encontra-se na atitude crítica uma ligação intrínseca entre saber, poder e sujeito. Mais precisamente, a atitude crítica é, no interior de determinada experiência histórica, “o movimento pelo qual o sujeito se atribui o direito de interrogar a verdade acerca de seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade” (Foucault, 2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012., p. 60-61).

Vemos de imediato que a atitude crítica apregoada por Foucault (2012FOUCAULT, M. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Imprópria: Política e Pensamento Crítico, Lisboa, n. 1, p. 57-80, 2012.) corresponde a uma desconfiança acerca das artes de governar e, à vista disso, se caracteriza como um exercício de indagação permanente da atualidade, propiciando assim levantar questões como: o que se passa nesse momento específico da história em que estamos? O que estamos fazendo com o que somos enquanto pertencentes à atualidade?

Faz-se mister ressaltar que, além da conferência de 1978, Foucault fez alusão à crítica como atitude em outras ocasiões. Toma-se como exemplo a autobiografia que, sob o pseudônimo de Maurice Florence, ele escreveu no Dictionnaire des Philosophes, na qual anunciou que seu empreendimento analítico se inscreve na tradição crítica inaugurada por Kant, podendo-se bem

nomear sua obra História crítica do pensamento [...]. Se por pensamento se entende o ato que coloca, em suas diversas relações possíveis, um sujeito e um objeto, uma história crítica do pensamento seria uma análise das condições nas quais se formaram ou se modificaram certas relações do sujeito com o objeto, uma vez que estas são constitutivas de um saber possível. (Foucault, 2004aFOUCAULT, M. 1984 - Foucault. In: FOUCAULT, M. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004a. p. 234-239. (Ditos e Escritos V)., p. 234)

Numa conversa com Didier Eribon, em 1981, intitulada É importante pensar?, Foucault enuncia que a crítica é um procedimento que objetiva distinguir e, em consequência, interrogar os modos de pensamento tomados como verdade, que fundamentam as práticas e os comportamentos cotidianos. Com efeito, trata-se de pôr em questão a nossa relação com a verdade, problematizando como esta foi instituída e que racionalidades a sustentam. Assim sendo, “a crítica consiste em desentocar o pensamento e em ensaiar a mudança; mostrar que as coisas não são tão evidentes quanto se crê, fazer de forma que isso que se aceita como vigente em si não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais” (Foucault, 2006bFOUCAULT, M. “Est‐il donc important de penser?” (entretien avec D. Éribon), Libération, n. 15, 30‐31 maio 1981, p. 21. In: FOUCAULT, M. Dits et écrits IV (1980‐1988). Paris: Gallimard, 2006b. p. 178‐182., p. 180).

Nas duas primeiras aulas do curso O Governo de Si e dos Outros, de 1983, uma vez mais, Foucault (2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Martins Fontes , 2010.) retomou o artigo kantiano “Was ist Aufklärung?” (“O que é o esclarecimento?”). De acordo com o filósofo francês, Kant é um dos primeiros filósofos a problematizar sua própria atualidade e inaugurou duas tradições distintas de interrogação crítica, entre as quais se decompôs a filosofia moderna: uma racionalista e universalista, relativa às condições formais em que um conhecimento é tido como verdadeiro; e a outra, a qual Foucault se vincula e se interessa maiormente, que diz respeito à reflexão kantiana acerca do sentido do que acontece na atualidade e que analisa e interroga as condições históricas de possibilidade e o sistema de aceitabilidade de racionalidades singulares do qual fazemos uso e que se configura, com efeito, numa nova maneira de colocar a questão do presente. Em outras palavras, “tratar-se-ia do que poderíamos chamar de uma ontologia do presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos” (Foucault, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Martins Fontes , 2010., p. 21).

Foucault (2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Martins Fontes , 2010.) acresce que o cerne do texto kantiano sobre o processo do esclarecimento é advogar de modo taxativo pelo desprendimento, por um movimento de saída (Ausgang) do homem do estado de menoridade no qual se encontra - uma espécie de déficit na relação de autonomia consigo mesmo, cujos exemplos citados por Kant são: quando o livro toma o lugar do meu entendimento, quando o diretor espiritual faz as vezes da minha consciência e quando um médico decide por mim sobre minha dieta - em direção à maioridade, o que implica, como se escreveu anteriormente, uma operação sobre si mesmo pelo uso da razão. Significa ser capaz de servir-se do próprio entendimento sem se submeter à tutela de nenhuma autoridade externa e demanda a atitude e a coragem de fazê-lo. O passo dado por Kant é importante, entretanto Foucault identifica que o filósofo alemão não levou o próprio mote da Aufklärung às últimas consequências. Então, visa atualizá-lo:

Se a questão kantiana era saber a que limites o conhecimento deve renunciar a transpor, parece-me que, atualmente, a questão crítica deve ser revertida em uma questão positiva: no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto das imposições arbitrárias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível. Àquilo que, nós o vemos, traz como consequência que a crítica vai se exercer não mais na pesquisa das estruturas formais que têm valor universal, mas como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do que fazemos, pensamos, dizemos. Nesse sentido, essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método. (Foucault, 2003FOUCAULT, M. 1984 - O que são as Luzes? In: FOUCAULT, M. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 335-351. (Ditos e Escritos II)., p. 347-348)

Ressalta-se que, conquanto seja patente a vinculação de Foucault ao pensamento kantiano - desde as suas publicações iniciais, com ângulos de abordagem que variam (Kraemer, 2008KRAEMER, C. Ética e liberdade em Foucault. Uma leitura de Kant. 2008. Tese (Doutorado em Filosofia) - Programa de Pós-graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.; Castro, 2014CASTRO, E. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.; Stival, 2015STIVAL, M. L. Política e moral em Foucault: entre a crítica e o nominalismo. São Paulo: Loyola, 2015.) -, em linhas gerais, essa filiação configura-se, arremata Deleuze (2005DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005., 2017DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas. São Paulo: n-1 Edições e Politéia, 2017.), num neokantismo sui generis. Com efeito, é por valorizar os autores com quem dialoga que Foucault se torna infiel ao escopo de suas reflexões, recolocando-as. Isso significa que a leitura e a problematização efetuadas pelo filósofo francês são, no mais das vezes, dissemelhantes das apresentadas por Kant, assim como das leituras mais canônicas empreendidas por comentadores que se inclinam à filosofia kantiana, em que pese o fato de que não se aspira aqui erigir uma oposição conceitual acurada entre os dois filósofos em pauta que se nos permita uma palavra a esse respeito.

Foucault não reivindicou, em medida nenhuma, uma ética fundamentada num imperativo categórico, algo como a universalidade de valores e normas corporificados na esfera pública e nas instituições do Estado de direito ou, ainda, uma teoria do sujeito que considera as possibilidades de ação em termos transcendentais, conforme pleiteara Kant. Sendo assim, a implicação kantiana em seu projeto teórico, de maneira particular nos escritos ulteriores (Gros, 1995GROS, F. Foucault e a questão do quem somos nós? Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 175-178, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85221
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; Castro, 2016CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2016.), se refere, notadamente, à interrogação filosófica inaugurada pelo filósofo de Königsberg acerca do momento presente, isto é, uma atitude histórico-crítica diante das questões que o presente propõe.

Não obstante, estabelecendo um ponto de vista próprio, Foucault reordena o empreendimento kantiano relativamente à Aufklärung ao fabricar novas ferramentas para lidar com as questões e os desafios de um presente em transformação. O importante para ele, por meio da análise do texto kantiano, não é decifrar quem somos, mas identificar como chegamos a ser quem somos. À vista disso, o kantismo de Foucault equivale a um “kantismo para além de Kant” (Bresolin e Valeirão, 2015BRESOLIN, K.; VALEIRÃO, K. Foucault e o kantismo para além de Kant: Aufklärung e governamentalidade. Kínesis, v. 7, n. 15, p. 203-224, dez. 2015. https://doi.org/10.36311/1984-8900.2015.v7n15.5713
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), uma vez que “a referência ao modelo kantiano não constitui, para Foucault, um retorno a Kant, mas um esforço para desvencilhar a atitude crítica dos limites nos quais, desde o próprio Kant, a questão crítica a havia encerrado” (Senellart, 1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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, p. 5, grifos do original).

Nesse mesmo diapasão, Lemke (2017LEMKE, T. Foucault, governamentalidade e crítica. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2017.) esclarece que, tanto na conferência de 1978 sobre a Aufklärung quanto nos escritos subsequentes a esse respeito, Foucault buscou reverter a negatividade em que a noção de crítica comumente se apoiava, isto é, um procedimento crítico ligado a um pensamento de caráter jurídico-discursivo e que objetivava, no fim das contas, “julgar e condenar, negar e rejeitar” (Lemke, 2017LEMKE, T. Foucault, governamentalidade e crítica. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2017., p. 86). Em direção diametralmente oposta, Foucault propôs tratar a atividade crítica como procedimento positivo, que resulta numa escolha teórico-metodológica particular. Tal inclinação investigativa, concisamente, implica explicitar a singularidade e a contingência das práticas tomadas como evidências em dado contexto histórico, visando assim melhor compreender a “forma como pensamos e julgamos certos objetos a fim de distanciarmo-nos da sua naturalidade ou autoevidência” (Lemke, 2017LEMKE, T. Foucault, governamentalidade e crítica. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2017., p. 92).

Ainda concernente à atitude crítica, importa ter em mente que, no desmesurado léxico foucaultiano, o termo problematização (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. 1984 - O cuidado com a verdade. In: FOUCAULT, M. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b. p. 240-251. (Ditos e Escritos V)., 2004cFOUCAULT, M. 1984 - Polêmica, política e problematizações. In: FOUCAULT, M. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004c. p. 225-233. (Ditos e Escritos V)., 2017FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.) aparenta ter significado aproximado daquele reputado à atitude histórico-crítica. Vejamos, pois, de súbito, a perspectiva de Foucault e de alguns de seus interlocutores ulteriores a esse respeito. Numa entrevista concedida ao antropólogo Paul Rabinow, em maio de 1984, Foucault assim assinala a singularidade de sua atitude crítica:

É verdade que minha atitude não decorre dessa forma de crítica que, a pretexto de um exame metódico, recusaria todas as soluções possíveis, exceto uma, que seria a boa. Ela é de preferência da ordem da “problematização”: ou seja, da elaboração de um domínio de fatos, práticas e pensamentos que me parecem colocar problemas para a política. Não creio, por exemplo, que exista nenhuma “política” que possa, diante da loucura ou da doença mental, deter a solução justa e definitiva. Mas penso que, na loucura, na alienação, nas perturbações do comportamento, há razões para questionar a política: e a essas questões a política deve responder, porém ela jamais as responderá totalmente. (Foucault, 2004FOUCAULT, M. 1984 - Polêmica, política e problematizações. In: FOUCAULT, M. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004c. p. 225-233. (Ditos e Escritos V).c, p. 228)

Na acepção de Chevallier (2013 apudGros, 2015GROS, F. Problematização. Mnemosine, v. 11, n. 2, p. 296-297, 2015.), por sua vez, o termo problematização, neologismo engendrado por Foucault oriundo de problema, constitui um “método de interrogação do presente a partir de uma atitude crítica que considera que a experiência dos homens é construída historicamente” (Chevallier, 2013 apudGros, 2015GROS, F. Problematização. Mnemosine, v. 11, n. 2, p. 296-297, 2015., p. 296). No mesmo passo e partidário da problematização como possibilidade para a realização de pesquisas no âmbito educacional, Marshall (2008MARSHALL, J. D. Michel Foucault: pesquisa educacional como problematização. In: PETERS, M. A.; BESLEY, T. (org.). Por que Foucault? novas diretrizes para a pesquisa educacional. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 25-39.) explica que problematizar consiste em refletir criticamente sobre dado objeto de pensamento como um problema, de modo a tomá-lo não como uma verdade absoluta ou, o que é o mesmo, não partir dos universais, mas considerar de início sua contingência, questionar suas condições concretas de existência, suas regras de ação, colocar em questão os modos pelos quais se aceita o poder - livre, portanto, de interpretações de antemão.

Lemke (2017LEMKE, T. Foucault, governamentalidade e crítica. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2017.) semelhantemente faz questão de frisar que a atividade da crítica é marcada por um gesto de problematização. Esse termo utilizado por Foucault comportaria, segundo o sociólogo alemão, dois sentidos: um que visa descrever a emergência e as condições de possibilidade de dado objeto de análise; e outro concernente à própria atividade do pesquisador ao problematizar experiências singulares. “Aqui, a problematização não é mais objeto, mas objetivo da investigação crítica” (Lemke, 2017LEMKE, T. Foucault, governamentalidade e crítica. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 2017., p. 93).

Ainda que não haja uma única definição em seus escritos, poder-se-ia argumentar que o conceito de problematização, que aparece de modo bastante pontual ao longo dos escritos de Foucault, se relaciona a uma atitude investigativa norteadora de toda a sua produção, de acordo com o próprio: “A noção que unifica os estudos que realizei desde a História da loucura é a da problematização” (Foucault, 2004bFOUCAULT, M. 1984 - O cuidado com a verdade. In: FOUCAULT, M. Ética, política, sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b. p. 240-251. (Ditos e Escritos V)., p. 242). Tal atitude, em linhas gerais, não se refere à busca de uma suposta resolução ou a apontar eventuais defeitos, mas a guardar certa “distância crítica, de ‘desprender-se’” (Revel, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005., p. 71) dos problemas para, então, interrogá-los.

Voltemos, pois, à questão atinente à atitude crítica. Em estudo no qual examina a crítica da razão governamental moderna efetuada por Foucault, Senellart (1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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) descreve que, na ótica foucaultiana, a crítica, depois de Kant, é como uma espécie de contrapoder contínuo que tem por finalidade obstar os excessos de poder da racionalidade política moderna - que resulta numa vigorosa governamentalização do Estado. Tal governamentalização começou a se substancializar no século XVI seguindo a lógica das diferentes técnicas do poder pastoral e, ainda, de uma razão do Estado que estabeleceu princípios racionais e formas de cálculo específicas para um novo modo de atuação estatal, visando a seu fortalecimento. No século XVIII, essas duas tendências articularam-se em um Estado de polícia, isto é, um Estado que, para expandir seu poder, passou a ocupar-se, de maneira circunstanciada, com a felicidade de seus súditos. Daí o termo Estado de bem-estar (Wohlfahrtsstaat).

O filósofo prossegue explicitando que a noção de crítica, conforme proposta por Foucault, ocasionalmente traz à baila algumas questões. Uma delas indaga, no mais das vezes, se a crítica “seria a forma apaziguada da luta quando a revolução deixa de ser desejável?” (Senellart, 1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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, p. 3). Outro questionamento diz respeito ao prisma pelo qual a crítica poderia ser exercida, uma vez que, segundo o viés foucaultiano, não há exterioridade em relação ao poder. Indagam-se, ainda, quais vínculos a concepção de crítica guardaria com o pensamento kantiano quando Foucault analisou o liberalismo como reflexão crítica da razão governamental. A princípio, o autor adverte, esses questionamentos podem parecer distintos, contudo mantêm conexões uns com os outros e “organizam-se em torno da busca de uma atitude que associa, num mesmo movimento, resistência ao poder, a constituição de si e o diagnóstico do presente” (Senellart, 1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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, p. 3).

No que toca às objeções supramencionadas, Senellart (1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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) aponta que a crítica procede de uma espécie de crise da governamentalização da sociedade, porém “escapa à imputação de reformismo, sem cair por isto no impasse da negação radical” (Senellart, 1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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, p. 3). O reformismo tem por função certa estabilização de um sistema de poder ao desfecho de um processo de mudanças. De modo oposto e por meio de uma investida permanente, o procedimento crítico tem como finalidade a desestabilização ininterrupta dos mecanismos de poder. Não se trata, é preciso dizer, de rechaçar a eventual possibilidade de reforma, de transformação, mas esta, na ótica de Foucault, deve ser resultante de uma alteração real - e sempre provisória - em dada relação de forças.

Assinala-se, todavia, que a atitude crítica se insere no cerne da racionalidade governamental moderna ao mesmo tempo em que a interpela. Com efeito, isso constitui uma clivagem com o pensamento metafísico, com a busca de um transcendental, uma vez que a crítica enquanto atitude não se situa na exterioridade, mas opera do próprio interior da racionalidade na qual se dispõe e, à vista disso, não pode intencionar rompê-la ou rejeitá-la inteiramente. Em tal maneira de agir, busca-se então atuar nas zonas limítrofes de dada racionalidade, “em seus pontos de tensão ou de fragilidade” (Senellart, 1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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, p. 6), com vistas a aventar outros modos de pensá-la.

A concepção de atitude crítica como uma espécie de contraponto ao espraiamento das artes de governar, conforme Senellart (1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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), nos ajuda a melhor compreender como opera a analítica crítica de Foucault sobre o liberalismo, assim como a sua proximidade com a Aufklärung kantiana. De acordo com a analítica histórico-crítica foucaultiana, o liberalismo irrompe precisamente nessa conjuntura de inquirição aos excessos de governamentalização da sociedade moderna, muito particularmente mediante a seguinte questão: como governar, contudo, se se governa sempre demais? Ainda que o liberalismo se inscreva em tal esquadro, Foucault explana que, assim como o Estado de direito se evidenciou conciliável com alguns regimes totalitários, também a economia liberal produziu políticas antiliberais.

Isso não é tudo. O imperativo da liberdade preconizado pelo liberalismo compreende uma relação efetivamente problemática, já que ela demanda, forçosamente, coerção, regulação, prescrição etc. Poder-se-ia dizer que a liberdade é fabricada por meio de numerosas e minuciosas intervenções governamentais (Senellart, 1995SENELLART, M. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, São Paulo, v. 7, n. 1-2, p. 1-14, out. 1995. https://doi.org/10.1590/ts.v7i1/2.85117
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). Trata-se, no fim das contas, de governar as formas de autogoverno, de estruturar e moldar o campo de ação possível dos sujeitos.

Em Foucault & a educação, Veiga-Neto (2011VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2011.), reconhecido analista das questões educacionais na vertente foucaultiana, também se propõe a dar visibilidade à crítica do filósofo francês, designando-a de “hipercrítica”. Em seu modo peculiar de escrita, o autor assinala que Foucault, como Kant, busca as condições de saber, porém a crítica foucaultiana não é tomada, como propunha o filósofo alemão, como caminho pelo qual por intermédio da racionalidade alcançaríamos uma suposta maioridade humana, visto que a hipercrítica se refere a um ethos, a uma atitude de permanente questionamento que “está sempre pronta para a se voltar contra si mesma para perguntar sobre as condições de possibilidade de sua existência, sobre as condições de sua própria racionalidade” (Veiga-Neto, 2011VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica , 2011., p. 24). Outrossim, a hipercrítica não recorre a nenhuma entidade subjetiva a priori, que indicaria as condições de totalidade das experiências possíveis. Longe disso, o a priori foucaultiano é histórico. Desse modo, detém-se na analítica do mundo concreto, das experiências efetivas, buscando apresentar e problematizar as suas regularidades e descontinuidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do que se acabou de trazer à baila, pode-se dizer, sem grandes pormenores, que a compilação e a organização de um corpus de análise por parte de um pesquisador inspirado na perspectiva foucaultiana demandam considerar a noção de arquivo e operar com ela, o que, por sua vez, implica dois procedimentos investigativos complementares: o arquivamento e a arquivização.

Ademais, buscou-se sustentar a ideia de que o gesto de montagem arquivística pode ser potencializado se levarmos em conta a atitude crítica, que se refere a uma operação investigativa que, em vez de buscar a objetividade e neutralidade de seus objetos, intenta explicitar e problematizar as condições de possibilidade pelas quais a verdade e o sujeito são constituídos. Em suma, trata-se de uma ferramenta de análise da atualidade, uma analítica crítica a respeito das formas históricas que conformam o nosso presente - entre as quais é bem sabido que o papel singular da escola como instância social e historicamente implicada na constituição de subjetividades não pode ser subestimado, daí a pertinência de tal procedimento investigativo.

Nesse sentido, o gesto arquivístico e a atitude crítica foucaultiana possibilitam problematizar uma gama de tópicos de primeira importância e diretamente vinculados à maquinaria escolar, como, por exemplo, a constituição das racionalidades pedagógicas, ou, se se preferir, as condições de aceitabilidade pelas quais, em dado contexto, certos saberes foram tomados como verdade nas políticas educacionais; os métodos disciplinares, as punições e as insurreições escolares; as tecnologias de governo das condutas dos sujeitos pedagógicos; e, por conseguinte, os processos de subjetivação daí resultantes.

Com efeito, trata-se de pôr em questão - livre de visões a priori, ressalta-se uma vez mais - a nossa relação com as verdades educacionais, tomando-as como objeto de pensamento para então interrogá-las sobre suas condições de existência, seus significados, suas regras de ação e seus efeitos. Fazer uso de tais ferramentas analíticas consiste, pois, numa constante vigilância e desconfiança epistemológica, por mais eloquente que eventualmente esta possa afigurar-se. Sublinha-se, por fim, que isso inclui até mesmo - e, quiçá, ainda mais - aquelas teorizações que constituem a base de nosso pensamento e ação pedagógica. Tarefa nada trivial.

Se operar analiticamente sobre dado arquivo mediante uma atitude crítica demanda um procedimento de suspeição ininterrupta no que se refere àquilo que na atualidade é tido como universal, imprescindível, verdadeiro, aspirando sublinhar sua arbitrariedade, sua contingência, sua fabricação e, com isso, quem sabe conceber outras formas de condução, de desassujeitamento, de invenção de novas subjetividades, cabe-nos indagar: que massa documental arquivística, senão a do campo educacional - historicamente marcado por essencialismos, coercitividades e prescritivismos das mais diversas ordens -, propiciaria, ao fim e ao cabo, lócus tão privilegiado para a efetuação de tal modus operandi?

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2020
  • Aceito
    21 Maio 2020
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