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A brincadeira e a constituição social das crianças em um contexto de educação infantil

El jugar y la constituición social de los ninõs en un contexto de educación infantil

RESUMO

Este artigo apresenta uma pesquisa sobre o brincar e a constituição social das crianças no campo de educação infantil em relação com contextos familiares. Procurou-se desvendar as relações intersubjetivas e societárias, bem como os repertórios culturais apropriados pelas crianças. O trabalho fundamentou-se nos construtos teóricos dos estudos sociais da infância, predominantemente na sociologia da infância, e sob uma perspectiva etnográfica e participativa as crianças foram consideradas as principais informantes. A pesquisa reafirma o brincar como uma atividade de confronto intercultural, em que as crianças constroem enredos complexos, misturam e combinam elementos diversos, provenientes das relações que estabelecem no contexto familiar e de educação infantil, no âmbito do contexto local e da cultura mais ampla.

PALAVRAS-CHAVE:
brincadeira; constituição social; educação infantil

RESUMEN

Este artículo presenta una investigación acerca del jugar y de la constitución social de los niños en un contexto de educación infantil, en relación con los contextos familiares. Se buscó desvendar a las relaciones intersubjetivas y sociales, así como los repertorios culturales apropiados por los niños. El trabajo se fundamentó en constructos teóricos de los estudios sociales de la infancia, y desde una perspectiva etnográfica y participativa, los niños fueron considerados los principales informantes. La investigación reafirma el juego como una actividad de confrontación intercultural, en la cual los niños construyen enredos complejos, mesclan y combinan elementos diversos, provenientes de las relaciones que se establecen en el contexto familiar y de educación infantil, en el ámbito del contexto local y de la cultura más amplia.

PALABRAS CLAVE:
juego; constitución social; educación infantil

ABSTRACT

This article presents a research about the play and social constitution of children in a context of early childhood education regarding family contexts. An approach to the games was established in order to unveil the intersubjective and societal relations, as well as the cultural repertoires appropriated by the children. Based on the theoretical constructs of childhood’s social studies and on an ethnographic and participative perspective, the children were considered the main declarants. This research reaffirms the play as an activity of intercultural confrontation, in which children build complex stories, mix and combine diverse elements, which are derived from the relationships established at the family context and also at early childhood education, within the scope of local context and wider culture.

KEYWORDS:
play; social constitution; early childhood education

Este artigo é fruto de uma pesquisa1 1 O presente artigo deriva da tese de doutorado O brincar e a constituição social das crianças e de suas infâncias em um contexto de educação infantil (Rivero, 2015), realizada sob orientação de Eloísa Acires Candal Rocha. Uma versão preliminar e reduzida deste texto foi apresentada na forma de comunicação oral na 38ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), realizada de 1º a 5 de outubro de 2017, em São Luís do Maranhão. que analisou a constituição social de crianças nos espaços-tempos do brincar mediante uma aproximação a suas práticas, seus repertórios culturais, suas relações intersubjetivas e societárias.

As reflexões ocorridas nessas últimas décadas sobre a infância como categoria social e as crianças como membros ativos da sociedade vêm provocando renovações nas abordagens dos estudos da infância nos planos teórico, epistemológico e metodológico. Esse movimento confronta a tradição de estudos da educação, cujo foco se restringia aos processos e métodos pedagógicos e buscava orientações únicas e gerais para a educação das crianças, concebidas de forma abstrata e universal. Para a pedagogia, as contribuições dos estudos sociais da infância têm indicado a necessidade de tomar como ponto de partida da ação educativa o conhecimento acerca da criança para além daquele definido como padrão de desenvolvimento. Investigar os contornos do ser criança e os processos de constituição da infância e da sua educação implica considerá-la um agente cultural e informante qualificado, conduzindo à necessidade de observar como brinca e sobre o que brinca, o cruzamento que estabelece entre fantasia e realidade, as expressões do seu imaginário, como interpreta temas da vida cotidiana, entre outros aspectos e dimensões (Rocha, 2011ROCHA, E. A. C. Prefácio. In: FARIA, A. L. G.; FINCO, D. (Orgs.). Sociologia da infância no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011.).

Nesse sentido, eleger o contexto da brincadeira para analisar a constituição social das crianças tem como base a compreensão de que o brincar, como nos propõe Ferreira (2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a.), é um dos meios de as crianças realizarem e agirem no mundo, não apenas para se preparar para ele, mas usando-o como recurso comunicativo para participar da vida cotidiana, na interação social, dando significado às ações.

(RE)ENCONTRANDO FORMAS DE COMPREENDER A CONSTITUIÇÃO SOCIAL DAS CRIANÇAS NO CONTEXTO DO BRINCAR: OS CAMINHOS DA PESQUISA

Escutar o ponto de vista das crianças significa reconhecer e legitimar a importância da participação desse grupo social nos mais variados espaços sociais e também nas pesquisas. Em decorrência dessa compreensão, fizemos a opção por uma orientação metodológica qualitativa assentada nas vertentes da etnografia e da investigação participativa, as quais, como salientam Christensen e James (2005CHRISTENSEN, P.; JAMES, A. Investigação com crianças: perspectivas e práticas. Porto: Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, 2005.), ampliam as possibilidades de construção de um conjunto de conhecimentos com base nos indicativos das crianças, permitindo que exploremos o que elas fazem no contexto, em vez de simplesmente dizermos o que elas são.

O grupo denominado de GV/VI, com o qual construímos a pesquisa, era composto2 2 Dados declarados pelas famílias obtidos mediante consulta às fichas de matrícula. de 17 crianças - um menino negro, um menino pardo, nove meninas brancas e seis meninos brancos, com 4 anos e meio a 6 anos e meio. Essas crianças e duas profissionais3 3 As profissionais responsáveis pelo GV/VI acompanhavam o grupo pelo segundo ano consecutivo. A professora era mestre em educação e atuava havia seis anos como efetiva da rede municipal. A auxiliar de sala era formada no curso de magistério e atuava como efetiva na rede municipal havia dez anos. encontravam-se diariamente em uma instituição de educação infantil pública situada num pequeno distrito localizado a 20 quilômetros da região central da cidade de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina. Banhado por uma praia de 700 quilômetros de extensão e com população4 4 Dados do censo (IBGE, 2010). de 4.925 pessoas, das quais 271 eram crianças, o lugar apresenta resquícios da pequena comunidade de pescadores5 5 O desenvolvimento do turismo e o processo de urbanização do distrito levaram à desestruturação de atividades como a “pesca artesanal, a agricultura, a produção de artefatos diversos, da farinha de mandioca e dos derivados da cana-de-açúcar”, provocando uma crescente alteração de seu ecossistema. Além disso, “os ilhéus foram, em grande parte, rapidamente expropriados de seus sítios. Alguns destes destinaram-se à especulação imobiliária em longo prazo, outros foram imediatamente loteados e vendidos” (Cecca, 1997, p. 105). que foi, com ruas estreitas, moradias construídas num único terreno por conta das relações de parentesco, moradores que se deslocam a pé e de bicicleta, entre outros aspectos.

A instituição,6 6 Vinculada à rede municipal de ensino, essa instituição atendia ao todo 225 crianças, na faixa etária de 4 meses a 5 anos e 11 meses em período parcial, das 7 às 13h no período matutino e das 13h às 19h no período vespertino. O grupo de profissionais era composto de oito professores pós-graduados e 12 auxiliares de sala com formação em ensino médio, modalidade magistério, porém cursando o nível superior. A equipe era constituída também de um auxiliar de ensino, uma supervisora, uma diretora, quatro merendeiras, cinco auxiliares de serviços gerais, além de uma professora e duas cozinheiras readaptadas. Os pais e as mães das crianças tinham de 20 a 35 anos de idade e seu grau de escolaridade variava entre o ensino fundamental e o ensino médio (completos e incompletos). Já as suas atividades remuneradas compreendiam as funções de vigia, faxineira, pescador, cozinheira, auxiliar de serviços, pedreiro, doméstica, lavadeira, entre outras (Projeto Político-Pedagógico, 2013). em que as crianças do grupo permaneciam de segunda a sexta-feira por cerca de cinco horas a cada manhã, localizava-se a aproximadamente 600 metros da praia, no terreno de um loteamento residencial. Em seu entorno havia uma praça, várias residências e uma área verde sem construções por onde algumas famílias, a pé ou de bicicleta, levavam e buscavam seus filhos. O trânsito na região era bastante tranquilo, apesar de a maior parte dos familiares e profissionais usar seus carros como meio de transporte.

No primeiro contato com o campo apresentamos alguns critérios7 7 Entre os critérios que orientaram a definição do campo de pesquisa, destacam-se os seguintes: a possibilidade de aproximação das crianças em seus contextos familiares; alguma independência, por parte do grupo de crianças, em relação à estruturação de espaços e tempos para brincar; e a aceitação, por parte das crianças e das professoras, da presença constante da pesquisadora nas diversas situações do cotidiano, bem como da realização de registros escritos, fotográficos e em vídeo. para a realização da pesquisa e tivemos, por parte da equipe pedagógica e das professoras do grupo, a indicação do grupo misto GV/VI como o mais apropriado ao desenvolvimento do trabalho. Todavia, o encontro com as crianças do grupo foi determinante para a definição do campo, como evidencia o seguinte excerto do diário de campo de 12 de setembro de 2011:

A professora passou-me a palavra e comecei falando meu nome, disse ao grupo que havia sido professora de crianças, mas que me tornara professora de adultos. Falei em seguida que estava ali para fazer uma pesquisa sobre a brincadeira, que já tinha brincado muito quando era criança, no entanto, ao me tornar adulta, tinha esquecido de muitas coisas. “Eu queria aprender com vocês sobre a brincadeira”, disse-lhes. Na sequência, a professora explicou que eu faria uma pesquisa como aquela que eles haviam feito sobre dinossauros, então perguntei ao grupo se poderia fazer a pesquisa com eles. Responderam conjuntamente que sim. Complementei que só ficaria perto deles e os acompanharia se deixassem, que quando não quisessem que eu estivesse junto era só me dizer. A professora auxiliou-me dizendo: “É às vezes eles querem fazer coisas sem ninguém por perto”. Depois disso, a professora pediu que se apresentassem e cada um foi dizendo seu nome, enquanto isso percebia olhares curiosos de várias crianças em minha direção. (Diário de Campo, 12 set. 11)

A intermediação da professora nesse primeiro contato contribuiu significativamente para o estabelecimento de conexões com situações e sentidos pertencentes ao grupo. Nessa perspectiva, as conversas e interações mantidas com as crianças nos primeiros dias em campo, marcadas por muitas dúvidas e insegurança quanto ao que dizer e como agir, serviram para abertura de um canal de comunicação, mas foram os seus convites para participar das brincadeiras e de várias outras situações, ao longo da permanência na instituição, e as relações construídas com cada criança que foram confirmando o acolhimento da presença da pesquisadora entre elas. Com isso, podemos dizer que a aproximação das crianças e o seu assentimento8 8 O assentimento à realização da pesquisa - por parte das crianças - diferencia-se da formalidade legal, obtida com os familiares, com a assinatura do termo de consentimento. ocorreram processualmente, evidenciando que a “interpretação do assentimento das crianças é complexa e ambígua, e sua confirmação só se pode esclarecer ao longo do tempo” (Ferreira, 2010FERREIRA, M. M. “- Ela é nossa prisioneira!” - questões teóricas, epistemológicas e ético-metodológicas a propósito dos processos de obtenção da permissão das crianças pequenas numa pesquisa etnográfica. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 18, n. 2, p. 151-182, jul./dez. 2010., p. 162).

O intuito de produzir uma pesquisa com as crianças e não somente sobre elas exigiu constante vigilância epistemológica e criatividade metodológica diante do adultocentrismo, bem como permanente reflexibilidade sobre as relações de poder, problemas e dificuldades derivados do processo investigativo, desafiando-nos, nas palavras de Soares, Sarmento e Tomás (2005SOARES, N. F.; SARMENTO, M. J.; TOMÁS, C. Investigação da infância e crianças como investigadoras: metodologias participativas dos mundos sociais das crianças. Nuances: estudos sobre educação, Presidente Prudente, ano XI, v. 12, n. 13, p. 49-64, jan./dez. 2005., p. 55), a redefinir a “identidade enquanto investigadores, descentrando-se do tradicional papel de gestores de todo o processo, para conceber a cogestão do trabalho investigativo com as crianças”.

Com a intenção de construir aproximações e circular pelos contextos de vida das crianças, entre eles a instituição, suas casas e outros possíveis contextos, tomou-se a decisão de residir na comunidade por aproximadamente cinco meses. A mudança para aquela localidade possibilitou chegar à instituição, muitas vezes, antes mesmo da entrada das crianças do grupo e acompanhá-las até o fim da manhã, quando suas famílias chegavam para buscá-las, e estar lá diariamente se revelou importante não só para a aproximação das crianças, mas também das profissionais e famílias. Assim, permaneceu-se na instituição por quatro dias por semana, das 7h30 às 12h30, por quatro meses, com o propósito de acompanhar as crianças o mais constantemente possível.

O foco central das observações direcionou-se às ações das crianças no período em que estavam na instituição e para registrá-las usamos diferentes instrumentos: diário de campo, um gravador de voz, uma câmera fotográfica e uma pequena filmadora de mão. Ao identificar uma brincadeira, geralmente a filmadora era posicionada em um ponto fixo na sala. Isso liberava a pesquisadora para observar atentamente aquela situação, fazer anotações ou mesmo participar quando era convidada pelas crianças. Em outros momentos, utilizávamos a máquina fotográfica em modo de filmagem para registrar situações que transcorriam em locais de difícil acesso ou ainda em espaços externos da instituição. Em virtude de o equipamento ser pequeno, tornava-se mais fácil utilizá-lo para registrar a brincadeira em andamento e dessa forma obter uma gravação com melhor qualidade sonora. Esses procedimentos metodológicos, com o seu potencial imagético e polifônico, abriram possibilidades de exploração de novos sentidos sobre as ações das crianças.

Nas primeiras semanas, algumas crianças dirigiam-se à pesquisadora e pediam para rever os registros de suas brincadeiras em vídeo, e isso lhes era possibilitado. Aos poucos, no entanto, elas deixaram de fazer esses pedidos. Em acordo com a professora, decidimos mostrar alguns desses vídeos para todo o grupo, com a intenção de possibilitar às crianças o acesso ao que estávamos registrando e ouvi-las a respeito. Inicialmente elas se mostravam atentas, entretanto logo evidenciavam desinteresse por assistir às filmagens. Parecia não ter muito sentido visualizar as brincadeiras já ocorridas, quando podiam realizar outras, em vez de estar ali assistindo a elas somente.

Ao filmar, fotografar e fazer anotações, procurava-se evitar a invasão e interrupção das brincadeiras, contudo, quando convidada a participar delas, o convite geralmente era aceito, com o cuidado de não aceitar papéis que exigissem protagonismo no enredo, pois isso dificultaria a atenção da pesquisadora a falas, olhares, gestos, acordos, conflitos e movimentos das crianças.

Tomando a família como uma das instâncias socialmente reconhecidas nos processos de constituição social, pretendeu-se transpor os muros do contexto de educação infantil em direção aos contextos familiares. A maior parte dos pais e mães9 9 No que diz respeito à escolaridade dos familiares, a maioria, 11 mulheres e sete homens, possuía formação em nível médio, e quatro homens e cinco mulheres possuíam formação em nível superior. das crianças do grupo trabalhavam10 10 Entre as famílias, 10 delas divulgaram a renda salarial total - resultante da somatória dos salários de pais e mães, ou daquelas famílias em que apenas um dos membros era assalariado. Entre elas, duas declararam renda de até mil reais, outras quatro informaram possuir renda de mil a mil e 500 reais, somente uma família declarou renda na faixa de mil e 500 reais a dois mil reais e, por fim, três famílias afirmaram possuir rendimentos entre dois mil e 500 reais a três mil reais. e, consequentemente, partilhavam a tarefa de cuidar das crianças e educá-las com a instituição de educação infantil. A grande maioria das crianças do grupo, mais precisamente 15 delas, residia com pai e mãe, e duas residiam com a mãe. Além disso, 10 eram filhos/as únicos/as, quatro tinham dois irmãos e as outras três possuíam um único irmão.

O intuito era ampliar a compreensão sobre a vida das crianças para além da instituição de educação infantil e, sobretudo, acerca de seus repertórios, espaços, tempos, materiais e parceiros de brincadeira. Alguns familiares compreenderam e apoiaram os motivos da solicitação para ir às suas casas, mas para outros aquela proposta soou estranha, principalmente por vir de alguém que conheciam havia pouco tempo. As crianças, porém, acolheram a ideia e algumas delas perguntavam com frequência quando iríamos até suas casas. Com o passar do tempo, foi possível estabelecer aproximação dos familiares que costumavam estar mais presentes na instituição e as crianças tiveram papel fundamental nesse processo, pois, segundo relatavam alguns pais e mães, eles ouviam dos/as filhos/as relatos de brincadeiras das quais a pesquisadora participava e também pedidos para que ela fosse a suas casas. A inserção11 11 No penúltimo mês de permanência no campo, recebemos o primeiro convite de uma das famílias e, ao longo do último mês, de outras cinco, o que inviabilizou propormos nova(s) ida(s) às suas casas, conforme pretendíamos a princípio. tornou-se possível nas casas de seis crianças, três meninas e três meninos, e assemelhou-se a uma visita.

Era a primeira vez que estabelecíamos um contato mais próximo com pais e mães, e para eles receberem em suas casas uma pessoa/pesquisadora que pouco conheciam, cujo olhar poderia ter, de sua perspectiva, um caráter avaliativo sobre suas práticas em relação às crianças, não era algo fácil.

A princípio, conversávamos com as crianças juntamente com seus familiares, e logo depois ficávamos somente com as crianças. Durante as conversas, em vários momentos, os familiares assumiam para si a responsabilidade de falar. Por outro lado, as crianças acompanhavam as falas dos adultos e com frequência os interrompiam para acrescentar algo, para mostrar algum brinquedo ou falar sobre suas brincadeiras.

Como os brinquedos se encontravam nos quartos das crianças, foi nesse espaço que conversamos e brincamos, em quase todos os contextos visitados. Assim, foram as crianças que, na maioria das vezes, convidaram a pesquisadora para ir aos seus quartos e também para transitar por outros lugares da casa, fazendo com que não permanecesse somente na sala, onde comumente era recebida. A maioria dos familiares retirou-se nesse momento, possibilitando a escuta das crianças referente a questões que tinham sido respondidas apenas pelo adulto no momento anterior, mas também a respeito de assuntos diversos sobre os quais quiseram falar. Tais conversas ocorreram enquanto elas mostravam seus brinquedos, mas assim que evidenciavam o desejo de começar a brincar dávamos início à brincadeira. Outro excerto do diário de campo dá visibilidade ao modo como esse momento ocorreu durante a visita12 12 A visita à casa de Carlos durou aproximadamente 1 hora e parte dela foi registrada mediante gravação de áudio, cuja duração foi de 19 minutos e 25 segundos. à casa de um dos meninos:

Carlos foi pegar carrinhos para brincarmos e escolhi um deles. Ao ver qual eu havia escolhido, Carlos disse-me para pegar um carrinho da Hot Wheels. Perguntei-lhe porque precisava escolher um daqueles carros e ele mostrou-me a parte de baixo dos carrinhos, dizendo que ali havia números, por isso sabia que aqueles carros eram melhores e corriam mais que os outros. Ao brincarmos com os carrinhos, na pequena varanda que contornava o segundo andar, Carlos contou-me que comia morangos do “quintal pequeno”, e depois mostrou a bicicleta com a qual andava dentro de casa. Logo após, ao voltarmos para o quarto, Carlos disse-me que era um gatinho, que tinha evoluído para guepardo, e que eu era uma “gueparda”, que havia nascido de um ovo, que achavam que era de gato, mas era de guepardo. Durante a brincadeira, Carlos transformou-se num guepardo filhote, que também havia nascido de um ovo. Nos dias seguintes à visita continuamos a partilhar diversas situações na instituição, e a brincar geralmente na companhia de Natália, com quem Carlos costumava brincar de animais que evoluíam de uma espécie a outra. (Diário de Campo, 29 nov. 11)

Compreendemos que brincar com as crianças em suas casas se tornou possível por causa das relações construídas com a pesquisadora ao longo dos meses. Ao participar de seus momentos de brincadeira na instituição não só observando, mas também brincando, as crianças davam indícios de que a consideravam alguém “iniciada em suas brincadeiras” e, portanto, uma adulta com quem era possível brincar.

Diante da impossibilidade objetiva de ir aos contextos familiares de todas as crianças do grupo, procuramos localizar nas suas ações sociais indícios de brincadeiras e elementos sociais e culturais advindos de múltiplos contextos.

Assim, a aproximação das condições de vida das crianças do GV/VI em diferentes contextos, mediante o entrecruzamento dos elementos encontrados, subsidiou as análises sobre as formas, as relações e os elementos sociais e culturais presentes nas brincadeiras das crianças.

AS CRIANÇAS COMO PARTICIPANTES ATIVAS DO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO

Contemporaneamente, ao centrar-se mais uma vez na infância, o discurso sociológico deu início a uma revisão crítica do conceito de socialização, passando a analisar as crianças como atores no processo de socialização, e não como destinatários passivos da socialização adulta, e a sustentar, como explica Sarmento (2008SARMENTO, M. Sociologia da infância: correntes e confluências. In: SARMENTO, M.; GOUVEA, M. C. S. Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 17-39., p. 20), que “as relações de classe, gênero, etnia se associam a características interindividuais que tornam o processo de transmissão e recepção dos saberes, normas e valores sociais muito mais complexos do que aquilo que a concepção tradicional de socialização propõe”.

A maior parte dos trabalhos tradicionais sobre a cultura de pares, baseados em concepções de socialização sustentadas na visão funcionalista de cultura, compreende tais culturas como valores e normas partilhados e internalizados que orientam o comportamento, e partiriam de uma “doutrina individualista que considera o desenvolvimento social infantil unicamente como a internalização isolada dos conhecimentos e habilidades de adultos pela criança” (Corsaro, 2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 31). Tais perspectivas impossibilitariam conceber a socialização também como “um processo de apropriação, reinvenção e reprodução”, no qual precisa ser reconhecida a “importância da atividade coletiva e conjunta - como as crianças negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si” (Corsaro, 1992 apudJames, Jenks e Prout, 1998JAMES, A.; JENKS, C.; PROUT, A. Theorising childhood. London: Polity Press, 1998.).

A crescente expansão do atendimento de crianças em instituições de maneira coletiva, antes de seu ingresso na escola, e em alternância aos contextos familiares, contribuiu para desestabilizar a visão generalizada de que a sua socialização ocorria na família, conduzindo à problematização da concepção tradicional de socialização entendida, conforme Ferreira (2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a., p. 15), “como um processo universal e unívoco, conduzido exclusivamente por adultos que o lideram, de acordo com objetivos claramente definidos e em benefício da reprodução social”.

Ao passar a ter suas relações sociais organizadas e reguladas em contextos de educação infantil, as crianças, como explicita Ferreira (2004bFERREIRA, M. M. Do avesso do brincar ou... as relações entre pares, as rotinas da cultura infantil e a construção da(s) ordem(ens) social(ais) instituinte(s) das crianças no jardim de infância. In: SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. (Orgs.). Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Edições ASA, 2004b. p. 55-104.), são posicionadas na copresença de uma variedade de outros: outras crianças; outros adultos (profissionais); outro(s) espaço(s), tempo(s); objetos e atividades que definem uma ordem coletiva e pública; e outras relações sociais. Essa variedade de outros, segundo a autora, torna compulsórias as interações face a face, impelindo as crianças à ação - em que estarão intervindo as suas concepções e experiências em família e no mundo - e a confrontos com as concepções dos pares e adultos.

Assim, diz Prout (2004PROUT, A. Reconsiderar a nova sociologia da infância: para um estudo multidisciplinar das crianças. Ciclo de conferências em sociologia da infância 2003/2004 - IEC. Tradução Helena Antunes. Revisão científica Manuel Jacinto Sarmento e Natália Fernandes Soares. Braga: IEC, 2004. Digitalizado., p. 16), as crianças passam a ser “confrontadas com diversos valores e perspectivas opostos, complementares e divergentes veiculados pelos pais, pela escola, meios de comunicação social, pela sociedade de consumo e seus pares”. Em tais condições, as pessoas responsáveis pelo seu bem-estar passam a ter menos poder para controlar e orientar tais fatores como um todo, caracterizando uma “dupla socialização” em meio a qual as crianças, de modo ativo, procuram, “individual e colectivamente, dar coerência e sentido ao mundo em que vivem”.

Desse modo, os processos de socialização tornaram-se cada vez mais complexos, contribuindo para o protagonismo das crianças. Como ainda esclarece Ferreira (2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a., p. 15), passam a ocorrer de forma múltipla e não obrigatoriamente convergente, protagonizados pelas próprias crianças quando procuram administrar a heterogeneidade de seus ofícios, papéis, identidades e posições sociais. Ao procurarem dotar de sentido para si, e na esfera da dimensão coletiva, processos referenciados ao mundo adulto e à ordem institucional definida pela educadora, as crianças apropriam-se interpretativa, seletiva e criativamente, pela participação ativa em redes de sociabilidade intra e intergeracionais, construindo simetricamente um lugar comum voltado aos interesses infantis, no qual (re)produzem o seu próprio mundo social, sobretudo nas brincadeiras.

Ao definir o indivíduo como uma construção singular do social que atravessa diferentes contextos de socialização incorporando diferentes formas de agir, Lahire (2002LAHIRE, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.) afirma que representações esquemáticas da socialização são contrariadas por diversos fatos empíricos:

O que vivemos com nossos pais, na escola, no colégio, com os amigos, com colegas de trabalho, com membros da mesma associação política, religiosa ou cultural, não é necessariamente cumulável e sintetizável de maneira simples... Sem ser preciso postular uma lógica de descontinuidade absoluta ao pressupor que esses conceitos são radicalmente diferentes entre si, e que os atores saltam a cada instante de uma interação à outra, de um domínio de existência a outro, sem nenhum sentimento de continuidade, pode-se pensar e constatar empiricamente - que todas essas experiências não são sistematicamente coerentes, homogêneas nem totalmente compatíveis e que, no entanto, nós somos seus portadores. (Lahire, 2002LAHIRE, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 31)

A homogeneidade do universo familiar, esclarece Lahire (2002LAHIRE, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 32), é pressuposta, mas nunca demonstrada. Seja ela relativa, seja exacerbada, a heterogeneidade “está sempre irredutivelmente no âmago da configuração familiar, que nunca é uma instituição total perfeita”. Experiências como a da creche, um universo diferente do familiar, questionam a ideia de sucessão ou superposição primária-secundária: “Como não ver que, colocada na creche desde muito cedo, a criança aprende desde os primeiros meses de sua vida que não se espera a mesma coisa dela e que não é tratada identicamente aqui e lá?” (Lahire, 2002LAHIRE, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 32). De acordo com o autor, raros são os casos que permitiriam afirmar a existência de um habitus familiar coerente, capaz de produzir disposições gerais totalmente orientadas para as mesmas direções.

Portanto, ao circular de modo ativo e participativo em diferentes contextos - entre eles, as instituições de educação infantil - as crianças experienciam processos cada vez mais complexos, e pouco sabemos sobre como é para elas atuar em contextos distintos, com frequência marcados pela desigualdade social, entre adultos e seus pares. De fato, a complexidade que constitui o seu entorno social não é tradicionalmente considerada pelas pedagogias que pretendem enquadramentos sociais. Buscamos, com este estudo, ampliar a compreensão sobre as experiências das crianças em contextos sociais organizados por lógicas sociais e culturais diversas, considerando o brincar como um caminho para a investigação da constituição social das crianças.

A CONSTITUIÇÃO SOCIAL DAS CRIANÇAS NOS CONTORNOS DO BRINCAR

Perspectivas teóricas que concebem a brincadeira de modo idealizado, como um fenômeno positivo, natural e/ou como antítese do pensamento objetivo e racional, são alvo de interrogações e críticas desde o início do século XX. Nessa direção, destacamos a importância das contribuições da corrente histórico-cultural, mais especificamente de um de seus teóricos, Vigotski (2008VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, Rio de Janeiro, n. 8, p. 23-36, 2008. Disponível em: Disponível em: https://isabeladominici.files.wordpress.com/2014/07/revista-educ-infant-indic-zoia.pdf . Acesso em: 21 maio 2017.
https://isabeladominici.files.wordpress....
, 2009VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.), que rompe com uma concepção de brincadeira como atividade natural de satisfação de instintos infantis.

Nas últimas décadas, guardadas as diferenças, pesquisas reafirmam e ampliam os conhecimentos sobre a brincadeira como atividade significativa na constituição subjetiva, social e cultural da criança e ressaltam a relevância das culturas lúdicas e do brincar entre as ações sociais das crianças de 0 a 6 anos. Conscientes da diversidade da produção teórica sobre a brincadeira, optamos por situar, brevemente na continuidade do texto, algumas referências que se revelaram contundentes para compreendermos a complexidade das brincadeiras produzidas pelos meninos e meninas do grupo pesquisado.

Ao interagir com os colegas no pré-escolar, segundo William Corsaro (2002CORSARO, W. A. A reprodução interpretativa no brincar ao “faz-de-conta” das crianças. Educação, Sociedade e Cultura: Revista da Associação de Sociologia e Antropologia da Educação, Porto, v. 17, p. 113-134, 2002., p. 115), as crianças produzem a primeira de uma série de culturas de pares, entre as quais está o brincar sociodramático, ou jogo de papéis, definido pelo autor como o “brincar no qual as crianças produzem colaborativamente actividades de ‘faz-de-conta’ [sic] que estão relacionadas com experiências de suas vidas reais (por exemplo, rotinas familiares e ocupacionais)”.

Como evidencia Corsaro (2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 128) em suas pesquisas, as crianças participam ativamente de rotinas culturais13 13 Entre as mais variadas rotinas culturais, Corsaro (2011) destaca as brincadeiras entre adultos e bebês, que incitam as crianças a participar ativamente das rotinas desde seu nascimento. produzidas na coletividade, contudo, embora tenham papel ativo na produção de rotinas culturais com adultos, costumam ocupar posições subordinadas e são expostas a uma gama muito maior de informações culturais do que podem processar ou compreender. É em razão disso que a abordagem da reprodução interpretativa apresenta a suposição de “que características importantes das culturas de pares surgem e são desenvolvidas em consequência das tentativas infantis de dar sentido e, em certa medida, resistir ao mundo adulto” (Corsaro, 2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 128). É por meio da “produção e da participação coletivas nas rotinas que as crianças se tornam membros tanto de suas culturas de pares quanto do mundo adulto onde estão situadas” (Corsaro, 2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 128).

Também se opondo a concepções que deixam de levar em conta a dimensão social da atividade humana no jogo, Gilles Brougère (2002BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T. M. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002. p. 19-32., p. 20) explica-nos que “brincar não é uma atividade interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de uma significação social precisa que, como outras, necessita de aprendizagem”. Essa aprendizagem inicia-se com o outro (adultos e crianças mais próximos) e introduz o bebê no espaço e no tempo particulares do jogo. O autor lança a hipótese da existência de uma cultura lúdica e afirma que o jogador necessita partilhar dessa cultura para poder jogar:

A criança constrói sua cultura lúdica brincando. É o conjunto de sua experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras brincadeiras de bebê [...], que constitui sua cultura lúdica. Essa experiência é adquirida pela participação em jogos com os companheiros, pela observação de outras crianças, pela manipulação cada vez maior de objetos de jogo. [...] O desenvolvimento da criança determina as experiências possíveis, mas não produz por si mesmo a cultura lúdica. Esta origina-se das interações sociais. (Brougère, 2002BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T. M. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002. p. 19-32., p. 26)

Portanto, não se trata da transferência dessa experiência para o indivíduo, já que ele é um coconstrutor, um sujeito social que produz a cultura lúdica, que por sua vez se alimenta continuamente de elementos vindos do exterior, não oriundos do jogo. Assim, a cultura lúdica não está isolada da cultura geral: “Essa influência é multiforme e começa com o ambiente, as condições materiais. As proibições dos pais, dos mestres, o espaço colocado à disposição da escola, a cidade, em casa, vão pesar sobre a experiência lúdica”, afirma Brougère (2002BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T. M. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002. p. 19-32., p. 28). Mas o processo é indireto, pois, ao brincar, a criança interpreta os elementos inseridos. Para o autor, o jogo e a cultura lúdica contribuem para o processo de socialização da criança, assim como todas as suas experiências, e constituem um processo cultural suficientemente rico em si mesmo para merecer ser analisado.

Manuela Ferreira (2002FERREIRA, M. M. “- A gente aqui o que gosta mais é de brincar com os outros meninos!”: as crianças como atores sociais e a (re)organização social do grupo de pares no cotidiano de um jardim de infância. 2002. 736 p. Tese (Doutorado em Ciências da Educação) - Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto, 2002.) produz uma etnografia que também torna evidente a condição das crianças como atores sociais individuais e coletivos em uma instituição de educação infantil. A necessidade de ultrapassar a visão do brincar das crianças como “preparação para a vida adulta por uma outra que o valoriza no presente, como forma fluente de construção social dos seus mundos de crianças pela participação em actividades situadas no contexto social”, é enfatizada por Ferreira (2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a., p. 198), somada à compreensão de que é preciso rever a “visão lúdica e quase etérea dessa atividade”, em função de conduzir ao entendimento de que “a dominação, o sexismo, a desigualdade social e a força” dela não fazem parte.

O brincar é compreendido, portanto, como parte integrante da vida social e constitui um “processo interpretativo com uma textura complexa, em que criar realidade requer negociações do significado, conduzidas pelo corpo e pela linguagem” (Ferreira, 2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a., p. 198). Ademais, em função da apropriação individual que cada criança realiza do mundo adulto, o brincar é sinônimo de confronto intercultural entre as crianças e de lutas pela afirmação e legitimação de alguns saberes e fazeres em detrimento de outros. Com esse confronto, ocorre entre os pares a ampliação de conhecimentos e experimentos da realidade social adulta de modo indireto e da realidade social infantil de modo direto. Assim, concebe-se o brincar “como um contexto socializador relevante e significativo para os pares podendo, desse ângulo, ser visto como apenas potenciando as respostas das crianças, quer em explorações inovadoras, quer na rotinização de papéis (Sutton-Smith, 1977:236, cit. por James, 1993:170)” (Ferreira, 2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a., p. 200).

Assim, mais do que conhecer as suas regras e localizar os tipos e as formas estruturais das brincadeiras, alerta Ferreira (2004aFERREIRA, M. M. “A gente gosta mesmo é de brincar com outros meninos”. Relações sociais entre crianças num jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento, 2004a., p. 206), interessa descrever como se dá a produção coletiva dos processos de relações interpessoais, pois o brincar como prática cultural expõe os valores, as realizações da cultura das crianças e lhes possibilita experimentar, exercitar e adquirir atitudes, comportamentos e conhecimentos valorizados culturalmente.

Tais perspectivas teóricas contribuem para elucidar o papel da brincadeira na apropriação da cultura e, em consequência, na constituição social das crianças e de suas infâncias.

OS ANIMAIS COMO O OUTRO A SER CUIDADO: APROXIMAÇÕES AO BRINCAR DE CRIANÇAS DO GV/VI

A identificação da presença significativa de ações envolvendo o cuidar, em brincadeiras cujas relações estabelecidas pelas crianças se mostravam bastante complexas, tornou-se possível mediante práticas de observação e reflexão sistemáticas, que tinha como prerrogativa a aproximação dos ângulos das crianças. O fato de práticas sociais de cuidado constituir um dos aspectos largamente explorados pelas crianças do contexto pesquisado nos exigiu um exercício de estranhamento: por que essas crianças exploram rotinas de cuidar do(s) outro(s) e de ser cuidado pelo(s) outro(s)? De que modos elas brincam de cuidar do(s) outro(s) e de serem cuidada(s)?

As brincadeiras envolvendo animais como o outro a ser cuidado estenderam-se ao longo de todo o período da pesquisa, com temáticas e sequências de ação similares, embora se diferenciassem no tocante aos enredos, agrupamentos de crianças, tempos, espaços e materiais e/ou brinquedos. Vejamos uma dessas brincadeiras, produzida por Mel e Natália,14 14 Optamos por atribuir às crianças nomes fictícios, visando respeitar sua privacidade. cuja transcrição15 15 O registro em vídeo, na íntegra, possui duração de 16 minutos e 33 segundos, e sua transcrição completa encontra-se em Rivero (2015). A decisão de selecionar apenas alguns trechos da transcrição da brincadeira deve-se à impossibilidade de, nos limites de um artigo, apresentá-la na totalidade. vem a seguir:

Em meados do mês de outubro, acompanhei a professora e algumas crianças - Carlos, Davi, Isabela, Mel, Miguel, Natália e Vivian - à biblioteca da instituição. Naquele espaço, em meio a várias outras situações, Mel e Natália produziram uma brincadeira:

Mel e Natália estão juntas e folheiam dois livros16 16 Os livros com os quais as meninas brincavam nessa situação são caracterizados como livro-brinquedo ou livro-objeto. que possuem patos de pelúcia em suas capas.

Além do livro, Natália tem um bicho de pelúcia em uma das mãos.

Carlos observa as duas meninas.

[...]

Mel pega outro livro, que tem um pequeno pato de pelúcia na capa, e o apoia no chão, posicionando-se na frente de Natália.

Mel:17 17 No que se refere às falas das crianças e dos adultos, está se fazendo a opção por transcrevê-las amparando-se nos aspectos formais da língua portuguesa, demarcando a distinção entre o dito e o escrito. Porém, nas situações em que as crianças usaram expressões ou termos distintos do convencional, tentou-se transcrevê-los o mais fielmente possível. - Olha só, olha só, o mundo do patinho.

Natália aproxima o pato grande [que está em seu livro] do patinho pequeno que está no livro de Mel.

Natália: - Ôoo que filhinho, patinho...

Mel [como se fosse o patinho]: - Papai, quer ver o meu mundo?

Natália [como se fosse o Papai Pato]: - Sim, querido.

Mel [como se fosse o patinho]: - Meu mundo é bem bonito, olha os meus amigos [aponta para as imagens do livro].

Natália [como se fosse o Papai Pato]: - Eu também tenho amigos, mas estão em outro livro.

Mel folheia o livro e aponta para outras imagens.

[...]

Natália aproxima o Papai Pato do patinho e faz com que o papai dê uns beijos no filhote.

Natália [como se fosse o Papai Pato]: - Tu é lindaaa!

Mel: - Tá na hora de o filhote dormir, não de vocês.

Mel deita o livro onde está o patinho e levanta o livro com o pato maior, colocando-o ao lado do Papai Pato.

Mel [como se fosse o outro pato maior]: - Vamos cuidar do filhote!

Natália [como se fosse o Papai Pato]: - Cuidado, senão pode vir um dragão no seu quarto.

Mel põe o patinho junto ao pato grande, que está em suas mãos.

Mel [como se fosse o outro pato maior]: - Não tem dragão aqui.

Natália [como se fosse o Papai Pato]: - Outro pato malvado.

Mel [como se fosse a Mamãe Pato]: - Ei, coloca você [referindo-se ao filhote] aqui, bem aqui, encostado da mamãe.

Natália coloca-o.

Mel [como se fosse a Mamãe Pato]: - Não, aqui, aqui, pra o filhote ficar quentinho. Ó, vou te explicar, dá ele aqui.

Mel pega o filhote, que estava com Natália, e coloca-o no lugar que considera adequado, enquanto Natália observa.

Mel [como se fosse a Mamãe Pato]: - Pronto, agora o filhote tá aquecido para dormir.

Natália pega um pequeno objeto no chão:

Natália: - Comidinha, papai, mamããee. Comidaaa!

(episódio registrado em 19 out. 2011)

Mel e Natália brincavam de/com animais frequentemente, mas cada uma delas tinha outras crianças como parceiras; quando o faz de conta envolvia tais personagens, elas não costumavam estar juntas. Os livros-brinquedo, com animais de pelúcia em sua estrutura, parecem ter sido decisivos para que as meninas dessem início à situação, tornando-os objetos de sua brincadeira, como explica Brougère (2004BROUGÈRE, G. Brinquedos e companhia. São Paulo: Cortez, 2004., p. 258):

Muitas brincadeiras se originam num contato com brinquedos. [...] O brinquedo parece ser um dos meios de introduzir a brincadeira, de construir esse espaço de segundo grau, do faz-de-conta [...]. E não se pode esquecer que ele envolve, para se tornar objeto da brincadeira (e não simplesmente do ambiente), a decisão da criança de brincar.

A existência de uma cultura lúdica (Brougère, 2002BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, T. M. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002. p. 19-32.) própria de cada criança, anterior ao encontro com os objetos, é outro fator fundamental à realização da brincadeira. A cultura lúdica de Natália e Mel, somada às dinâmicas de suas brincadeiras anteriores, contribuiu para o surgimento daquela situação, sem o que talvez aquela brincadeira específica deixasse de ocorrer.

Mas que pistas temos sobre as brincadeiras anteriores das duas meninas, encontradas no contexto de educação infantil e em seus contextos familiares? O que a participação em uma brincadeira com essas características poderia significar em relação às suas brincadeiras nesses contextos?

Mel é uma menina branca que frequentava a instituição desde que tinha 1 ano e 6 meses e se situava entre as crianças do GV/VI que tinham as maiores idades. No decorrer das observações, foi possível perceber que ela estabelecia relações e se comunicava fluentemente com a maioria das crianças do grupo, além de participar de diversas brincadeiras que produziam, nas quais em geral ocupava posição de destaque. Com frequência, partiam de Mel propostas de enredos e personagens a serem representadas nas brincadeiras, nas quais ela costumava assumir papel central, tendo influência significativa em seus rumos. Na instituição, as brincadeiras com animais pareciam muito significativas para ela, que normalmente assumia o papel de uma mãe que cuidava de seus filhotes e os protegia.

No âmbito socioeconômico,18 18 Tais informações são provenientes das fichas de matrícula e notas de campo. sua família ocupava, em relação às famílias das demais crianças, uma das posições mais favorecidas. No contexto familiar, Mel costumava assistir a desenhos animados na TV por assinatura, brincar com seu cachorro, com bichos de pelúcia, entre outros brinquedos, além de brincar em espaços amplos, como a praia e o pátio de sua casa. Durante a visita, ao mostrar seus brinquedos, Mel deu destaque aos bichos de pelúcia e convidou a pesquisadora para brincar com eles de cuidadora de animais. Além disso, apresentou seu cachorro, que era mencionado com certa constância por ela.

Natália é uma menina branca, de nacionalidade estrangeira, que frequentava a instituição havia dois anos. Estava entre as crianças mais novas do GV/VI. No contexto institucional brincava sobretudo com Carlos, mas também com Mel. Quando Carlos e/ou Mel estavam brincando com outras crianças do grupo, Natália interagia com crianças com as quais não brincava regularmente. Ela evidenciava grande interesse pelos animais e brincava com elementos desse universo de maneira especial com Carlos, mas não havia mãe ou pai em suas brincadeiras. Eles geralmente assumiam os papéis de animais, como gatos, guepardos e cachorros, e interagiam entre si, não sendo observadas práticas sociais de cuidado como algo significativo nessas situações. Além do mais, Natália escolhia animais de pelúcia para brincar, em vez de bonecas, e demonstrava muita curiosidade no tocante a dinossauros. Embora seu contexto familiar não tenha sido visitado, ela fazia referência a alguns aspectos de seu cotidiano doméstico e algumas vezes mencionava seu cachorro, mostrando ter por ele muito afeto.

Pode-se inferir que, na brincadeira descrita anteriormente, Natália e Mel retomaram elementos de brincadeiras já realizadas, produzindo uma combinação de elementos de suas experiências anteriores. Vigotski (2009VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009., p. 17), ao referir-se a uma situação em que um menino de 3,5 anos cria uma história ao ver um homem manco andando pela estrada, contribui para a compreensão da atividade combinatória ou criadora:

Nesse caso, a atividade combinatória da imaginação é extremamente clara. Diante de nós há uma situação criada pela criança. Todos os elementos dessa situação, é claro, são conhecidos por ela de sua experiência anterior, pois, do contrário, ela nem poderia criá-la. No entanto, a combinação desses elementos já representa algo novo, criado, próprio daquela criança, e não simplesmente alguma coisa que reproduz o que ela teve a oportunidade de observar ou ver. É essa capacidade de fazer uma construção de elementos, de combinar o velho de novas maneiras, que constitui a base da criação. (Vigotski, 2009VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009., p. 17)

Na brincadeira em destaque Natália, que habitualmente imitava animais, o fez nessa situação mais uma vez, no entanto ela representou um pato, animal que não estava entre aqueles que costumava assumir. Ao ver Mel chamando sua atenção para o patinho, Natália tomou a iniciativa de comunicar-se como se fosse o papai do filhote, experimentando um papel social diferenciado daqueles que costumava assumir.

Mel, inicialmente, ao fazer de conta que era um filhote e estabelecer relação horizontal com Natália, também alterou o modo como atuava, já que em outras brincadeiras envolvendo animais sua principal função era a de maternagem. Durante a brincadeira, porém, Mel retomou posições que lhe eram muito familiares, além de trazer para aquela situação elementos relativos às práticas sociais de cuidado que, conforme já dissemos, não estavam presentes nas brincadeiras de Natália. Mel anunciou essa retomada ao dizer: “Tá na hora de o filhote dormir, não de vocês”. E, na sequência, ao assumir simultaneamente o papel de mamãe do patinho, ao dizer para o Papai Pato (Natália): “Vamos cuidar do filhote”. Assim, ao representar o patinho, Mel rompeu com alguns padrões, mas também resgatou aspectos bastante presentes em rotinas coletivas das quais participava, caracterizadas por sequências de ação em que se destacava o cuidado e se entrecruzavam manifestações de afeto, permeadas por uma objetividade nos modos de agir em relação ao filhote.

Também é possível identificar, no registro em análise, algumas experimentações das meninas no que tange às maneiras de ser homem e mulher, mãe e pai. Natália dispôs-se a representar um pai, algo que era incomum entre as meninas, e a paternidade foi exercitada por meio de manifestações de atenção e afeto. Já Mel representou uma mãe que assumia posição de comando, preocupada em orientar o pai a proporcionar aquecimento e aconchego ao patinho. Ao representar o pai e a mãe desse modo, Natália e Mel desestabilizaram uma “concepção baseada em oposições e dicotomias binárias, a razão pertence à masculinidade, enquanto a emoção pertence à feminilidade” (Buss-Simão, 2013BUSS-SIMÃO, M. Relações sociais de gênero na perspectiva de crianças pequenas na creche. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, p. 176-197, jan./abr. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742013000100009
http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742013...
, p. 188), evidenciando que as brincadeiras de dramatização de papéis se revelam espaços férteis para experimentações relativas ao gênero:

Jogos de papéis também permitem que a criança faça experiências sobre como diferentes tipos de pessoas da sociedade agem e se relacionam entre si. Um aspecto de grande importância para as crianças é o gênero, as expectativas sobre comportamento de meninos e meninas e a forma como papéis são socialmente estereotipados por gênero. [...] As crianças não aceitam esses estereótipos, mas os desafiam e refinam. Assim, expectativas de gênero não são simplesmente inculcadas nas crianças pelos adultos, mas são socialmente construídas pelas crianças nas interações com adultos e entre si. (Corsaro, 2009CORSARO, W. A. Reprodução interpretativa e culturas de pares. In: MULLER, F.; CARVALHO, A. M. A. (Orgs.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez , 2009. p. 31-50., p. 34)

Mauss (1974MAUSS, M. As técnicas corporais. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. Tradução Lamberto Puccinelli. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974. v. II, p. 209-234., p. 211), ao tratar das técnicas corporais, concebidas por ele como “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”, enfatiza o ato imitador vinculando-o ao prestígio, à confiança e à autoridade da pessoa a ser imitada:

A criança, como o adulto, imita atos que ela viu serem bem-sucedidos em pessoas em quem confia e quem têm autoridade sobre ela. O ato impõe-se de fora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biológico e concernente ao corpo. O indivíduo toma emprestado a série de movimentos de que ele compõe do ato executado à sua frente ou com ele pelos outros. É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado, autorizado e provado, em relação ao indivíduo imitador, que se encontra todo o elemento social. No ato imitador que segue, encontram-se todo o elemento psicológico e o elemento biológico. (Mauss, 1974MAUSS, M. As técnicas corporais. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. Tradução Lamberto Puccinelli. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974. v. II, p. 209-234., p. 215)

Assim, a decisão de Natália e Mel de brincar com os patos mostra-se por um lado, como já dissemos, vinculada às dinâmicas preexistentes em suas brincadeiras com animais e, por outro, possibilita ampliação de conhecimentos e experimentos acerca de papéis e práticas existentes na realidade social, além do estabelecimento de novas relações no âmbito do grupo social infantil do qual faziam parte.

Na continuidade da brincadeira, de modo vertiginoso, Mel propôs a Natália uma mudança nos papéis assumidos até ali, como revela a sequência do episódio interativo:

Mel: - Pera, já sei... Natália, talvez a gente possa brincar de cuidadoras de patos.

Natália: - Tá bom!

Mel: - Ó, Natália, que tal... ô, Natália, é que eu queria brincar com você assim, ó..., que eu cuido e você me ajuda.

Natália: - Tá bom!

Natália pega os livros.

Natália: - Vou botar o pato para dormir, deitado com o filhote. Vou botar meu leãozinho para dormir [referindo-se ao leãozinho de pelúcia, que tinha em uma das mãos desde antes do início da brincadeira].

Mel: - Bota aqui... um leão de estimação...

Natália: - O que é estimação?

Mel procura apoiar um livro no outro, para que os animais durmam em seu interior.

Mel: - Mas era mais... Estimação? Estimação é um bichinho que tu tem.

Natália: - Mas era meu filhote. Eu era um dinossauro rex que podia se transformar em humano e também podia se transformar em leão.

Natália dá um salto e faz um som que lembra um dinossauro [ao fazer isso, ela se distancia de Mel, indo para o outro lado da Biblioteca].

Mel: - Ô, Natália, vem mais pra cá, vem aqui, vem aqui, Natália.

Natália volta, andando de quatro sobre o tapete.

Natália: - Eu me transformei em leão.

Mel: - Não, ó, tu tem que ser minha ajudante.

Natália vai até onde está o livro do patinho e o acomoda em seu colo.

Natália: - Tá bom!

Mel: - Pega a mamãe pata e o papai, que eu vou levar o filhote.

Natália: - Eu vou levar a mamãe e o papai no colo também!

Natália caminha de joelhos sobre o tapete, em círculos. Mel vai para outro lado da sala.

Mel: - Agora vamos colocar o filhote num lugar bem fofo..., é pra ti ficar aqui comigo, Natália.

Natália vai até Mel, caminhando de quatro, enquanto dá umas tossidas e uns pulinhos.

[...]

Outras crianças chegam e permanecem na porta da biblioteca conversando com a professora (que estava retirando-se do espaço). Ao perceber os olhares do grupo para a brincadeira de Natália e Mel, a professora explica-lhes: - A Mel e a Natália estão brincando.

Ao ouvir isso, Alice entra na biblioteca.

Mel complementa a informação da professora, olhando para Alice.

Mel: - De cuidadora de patinho.

[...]

Alice: - Também posso brincar?

Mel: - Tá, mas primeiro eu vou ler.

Alice: - Posso ser o cachorrinho?

Mel não responde [parece estar pensando sobre a proposta de Alice].

Natália: - Não tem cachorrinho.

Mel: - Mas pode ter. Tu [referindo-se à Natália], pra ser cuidadora de patinhos, tem um leãozinho de estimação, e agora eu posso também ter um pato e um cachorro ajudante.

Imediatamente, Alice começa a andar como se fosse um cachorrinho e a latir.

(episódio registrado em 19 out. 2011)

Nesse segundo momento, Mel e Natália estabeleceram outros acordos, que provocaram alterações na brincadeira, assegurando a continuidade do episódio interativo. A mudança proposta por Mel permitiu que continuassem as ações de cuidar dos animais sem ameaçar sua posição na brincadeira. Contudo, ao assumir o papel de ajudante da cuidadora de patos, Natália não se limitou às determinações da colega, apresentando resistências à condição que lhe foi imputada. Assim, além de se tornar ajudante, Natália anunciou que seria um “dinossauro rex que podia se transformar em humano e também podia se transformar em leão”, e seus movimentos e gestos evidenciavam suas transformações, ora em leão, ora em dinossauro, personagens e dinâmicas que já explorava em outras situações de brincadeira.

A possibilidade de transformar-se em outro também deu a Natália a chance de reconfigurar seu papel de ajudante da cuidadora de patos, que a restringia à forma humana. Ao transformar-se num animal, libertou-se da condição de subordinação e proporcionou outra dinâmica ao enredo. Ao mesmo tempo, Mel, que costumava dirigir os rumos dos enredos das brincadeiras e os modos como as outras crianças deveriam atuar, ao interagir com Natália, experimentou uma situação diferenciada, caracterizada por uma resistência que carregava propostas aparentemente capazes de fazê-la rever as suas e incorporar ampliações.

O diálogo entre as duas meninas expõe a tensão, assim como as concessões feitas por ambas, que permite a continuidade da brincadeira. Nas relações estabelecidas entre o filhote (Mel), o Papai Pato (Natália), a Mamãe Pato (Mel) e, num segundo momento, entre a cuidadora de patos (Mel) e sua ajudante-dinossauro-humano-leão (Natália), localizamos formas de ser, sentir e agir de adultos e crianças, mas também indícios de modos de agir e relacionar-se com/entre animais. Assim, destacam-se na representação elementos referenciados em práticas de adultos nos processos de educação e cuidado, visíveis nas ações de proteger, acolher e manifestar afeto, explicitadas nas falas, na entonação de voz e nas posturas corporais das meninas. Ou seja, formas de agir e relacionar-se que também estão presentes entre personagens de animais na literatura infantil, em desenhos animados, entre outras produções midiáticas e artefatos culturais, que os apresentam nos moldes de uma família humana ocidental. Mel e Natália evidenciam algumas dessas formas em suas falas, movimentos e gestos durante o brincar.

Percebe-se que Mel e Natália lançam mão de uma multiplicidade de saberes e constroem um enredo complexo, no qual misturam e combinam diversos elementos, provenientes das relações que estabelecem no contexto familiar, no contexto de educação infantil, no contexto local (em que os animais e elementos da natureza fazem parte da vida das pessoas) e da cultura mais ampla, como é o caso da cultura midiática.

Nessa brincadeira nos dão pistas sobre os sentidos que atribuem ao cuidar. Situações como essa sugerem que a aproximação ao brincar pode tornar-se também uma aprendizagem da palavra e do pensamento das crianças:

A infância fala uma língua que não se escuta. A infância pronuncia uma palavra que não se entende. A infância pensa um pensamento que não se pensa. Dar espaço a essa língua, aprender essa palavra, atender esse pensamento pode ser uma oportunidade não apenas de dar espaço digno, primordial e apaixonado a essa palavra infantil, mas também de educar a nós mesmos, a oportunidade de deixar de situar sempre os outros em outra terra, no dês-terro, no estrangeiro, e poder alguma vez sair, pelo menos um pouquinho, de nossa terra pátria, de nosso cômodo lugar. (Kohan, 2007KOHAN, W. O. Infância, estrangeiridade e ignorância: ensaios de filosofia e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 131)

Ao construírem as personagens e suas respectivas ações de forma ativa e criativa, dando vida à cuidadora de patos, a um dinossauro rex que podia se transformar em humano e também em leão, a um dragão que poderia vir ao quarto e ameaçar o patinho e a um cachorro ajudante, as duas meninas não se limitaram a imitar o mundo ao seu redor, mostrando, como expressa Corsaro (2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011., p. 36), que “se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e a participarem dela”.

Outras crianças explicitaram de modo direto o desejo de brincar com Mel e Natália, tomando a iniciativa de perguntar se poderiam participar da brincadeira, mas foi Alice que acrescentou à pergunta inicial uma proposta no sentido de representar determinada personagem. A ação de Alice interrompeu o fluxo da brincadeira, e uma negociação fez-se necessária diante do conflito provocado por suas interrogações.

Alice não brincava habitualmente com Natália. Já Mel e Alice, em diversas situações, demonstravam muita satisfação ao estar juntas, além de partilhar momentos de brincadeira. Como a inserção de Alice, numa brincadeira como essa, dialogava com as brincadeiras nas quais costumava atuar, no contexto familiar e na instituição de educação infantil?

A família de Alice ocupava, no âmbito socioeconômico, posição intermediária entre as famílias mais e menos favorecidas do grupo. Em casa, assistir a vídeos de filmes infantis e novelas na TV parecia ser sua principal atividade, embora ocasionalmente brincasse com seu irmão caçula e com uma prima. Além do mais, embora residisse numa casa com espaço externo amplo e próxima à praia, tais espaços não eram explorados no dia a dia por Alice.

Juntamente com Mel, Alice frequentava a instituição de educação infantil desde que tinha cerca de 1 ano e 6 meses e também estava entre as crianças do GV/VI com as maiores idades. Ela transitava entre adultos e crianças do grupo e interagia com todos com desenvoltura e comunicabilidade. Nesse contexto, Alice participava de brincadeiras diversificadas, nas quais assumia papéis variados a depender do enredo em desenvolvimento. Na brincadeira em análise, parecia que, ao representar o cachorrinho (e em outras situações, a exemplo da dança do boi de mamão, na qual representava personagens de animais, entre outros papéis), Alice tinha a possibilidade de expressar-se de modo lúdico, intenso, rompendo com a forma como se expressava em vários momentos, em que predominavam traços de uma racionalidade semelhante à dos adultos.

No desenrolar dessa situação, portanto, sobressai o fato de Mel, Natália e Alice utilizarem saberes, modos de expressão e representação evidenciados em brincadeiras das quais participavam com certa regularidade, entretanto a análise de suas interações mostra o quanto as meninas também experimentaram modos de agir diversos daqueles que costumavam explorar, que só se tornaram objeto de atenção e reflexão em função de acompanharmos e estabelecermos aproximações à multiplicidade de suas brincadeiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazer de conta que eram bebês ou filhotes de animais, assim como experimentar estar no lugar daqueles que executam as ações de alimentá-los, banhá-los, prepará-los para dormir e protegê-los de perigos, mostrou-se objeto do interesse, atenção e exploração por parte da maioria das crianças do grupo. Nas suas representações, destacavam-se a figura do adulto, mas também a de bebê e filhote, e processos de cuidado nos quais eram visíveis atenção, afeto, solidariedade, proteção, além de manifestações de poder e controle.

Embora nos limites deste artigo tenhamos tratado de um único episódio, ao acompanhar a diversidade de brincadeiras relacionadas a cuidar do(s) outro(s) e ser cuidado pelo(s) outro(s), observamos que práticas de cuidados eram dirigidas a meninos e meninas que representavam animais (como o tigrinho, gatos e cachorros), personagens de séries de animação (como o Pikachu) e personagens de contextos familiares/domésticos (como filhos, irmãos mais novos e bebês). Ademais, bichos de pelúcia, bonecas-bebê (entre outros tipos) e crianças de outro grupo (cuja faixa etária era de aproximadamente 2 anos) também mobilizavam ações de cuidar durante as brincadeiras. Já os cuidadores dessa gama de personagens eram meninas e meninos que, de formas diferenciadas, representavam pais, mães, irmãos/ãs mais velhos/as e donos/as de animais. Em certos momentos, as crianças reuniam algumas dessas personagens em uma mesma situação interativa.

Brincar de cuidar do(s) outro(s) possibilitava experimentar agir no lugar daqueles que cuidavam das crianças, tomar decisões e ter acesso aos espaços e materiais diversos. Além disso, ser cuidado pelo(s) outro(s), que, no âmbito da brincadeira, eram outras crianças, permitia reviver essa experiência de algum modo, mas também explorá-la com seus pares de outras maneiras, subordinando-se, mas também se insubordinando.

A abrangência e significância das práticas e relações associadas ao cuidar nos diferentes contextos de vida de crianças e adultos provavelmente explicam a enorme mobilização e atração que estas lhes causam. Desde bebês, as crianças são, de modo geral, objeto de cuidados; elas também observam outras crianças serem cuidadas por adultos e, por vezes, participam de brincadeiras com crianças maiores, nas quais essas práticas estão presentes. Fora isso, na tradição oral, na literatura e, contemporaneamente, nas produções midiáticas, não só crianças, mas filhotes de animais e seres diversos exibem características humanas e recebem atenção e cuidados nos moldes daqueles destinados a bebês humanos. Brinquedos e objetos diversos também provocam as crianças a imitarem as ações cotidianas dos adultos, entre as quais estão as práticas sociais de cuidado.

As práticas sociais, entre elas as de cuidado, assumem contornos diversos, em função de condições estruturais ligadas a fatores como classe, gênero, etnia e cultura. O cruzamento de indícios sobre as trajetórias de algumas crianças do GV/VI em seus contextos familiares e em suas brincadeiras na instituição evidenciou que eram portadoras de práticas sociais de educação e cuidado derivadas de uma socialização produzida em ambientes diversos e desiguais, caracterizada por relações heterogêneas e até mesmo contraditórias (Lahire, 2002LAHIRE, B. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.). Além disso, sobressaiu o fato de as crianças, nas brincadeiras, e em outras situações, se mostrarem muito ativas, protagonizando a construção social de suas singularidades, por intermédio das relações estabelecidas no grupo de pares, de modo frequente e durável, encontrando, portanto, como salienta a autora, “sua própria modalidade de comportamento em função da configuração na qual se vê inserido” (Setton, 2004SETTON, M. G. J. Trajetória acadêmica e pensamento sociológico: entrevista com Bernard Lahire. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 315-321, maio/ago. 2004. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022004000200009
http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022004...
, p. 321).

As análises reafirmaram o brincar como uma atividade de confronto intercultural, em que as crianças lançam mão de uma multiplicidade de saberes e constroem enredos complexos, nos quais misturam e combinam diversos elementos provenientes das relações que estabelecem no âmbito do contexto local e da cultura mais ampla.

A pesquisa também demonstrou a complexidade que constitui o brincar e a necessidade de uma atitude interrogativa e interessada, somada a uma aproximação e a um envolvimento que permitam reconhecer - nos gestos, no movimento, na entonação de voz, nas formas de organização dos objetos e brinquedos - os conteúdos/repertórios das brincadeiras, derivados das diferentes inserções sociais e culturais das crianças.

Finalmente, podemos dizer que, embora encontremos elementos comuns às brincadeiras das crianças, ao nos aproximarmos constatamos sentidos e significações distintos e complexos, produzidos em suas trajetórias, pelas relações que estabelecem entre pares, com os adultos e a cultura mais abrangente.

REFERÊNCIAS

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  • VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.
  • 1
    O presente artigo deriva da tese de doutorado O brincar e a constituição social das crianças e de suas infâncias em um contexto de educação infantil (Rivero, 2015RIVERO, A. S. O brincar e a constituição social das crianças e de suas infâncias em um contexto de educação infantil. 2015. 266f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.), realizada sob orientação de Eloísa Acires Candal Rocha. Uma versão preliminar e reduzida deste texto foi apresentada na forma de comunicação oral na 38ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), realizada de 1º a 5 de outubro de 2017, em São Luís do Maranhão.
  • 2
    Dados declarados pelas famílias obtidos mediante consulta às fichas de matrícula.
  • 3
    As profissionais responsáveis pelo GV/VI acompanhavam o grupo pelo segundo ano consecutivo. A professora era mestre em educação e atuava havia seis anos como efetiva da rede municipal. A auxiliar de sala era formada no curso de magistério e atuava como efetiva na rede municipal havia dez anos.
  • 4
    Dados do censo (IBGE, 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.).
  • 5
    O desenvolvimento do turismo e o processo de urbanização do distrito levaram à desestruturação de atividades como a “pesca artesanal, a agricultura, a produção de artefatos diversos, da farinha de mandioca e dos derivados da cana-de-açúcar”, provocando uma crescente alteração de seu ecossistema. Além disso, “os ilhéus foram, em grande parte, rapidamente expropriados de seus sítios. Alguns destes destinaram-se à especulação imobiliária em longo prazo, outros foram imediatamente loteados e vendidos” (Cecca, 1997CECCA - CENTRO DE ESTUDOS CULTURA E CIDADANIA. Uma cidade numa ilha: relatório sobre problemas socioambientais da Ilha de Santa Catarina. 2. ed. Florianópolis: CECCA; Insular, 1997., p. 105).
  • 6
    Vinculada à rede municipal de ensino, essa instituição atendia ao todo 225 crianças, na faixa etária de 4 meses a 5 anos e 11 meses em período parcial, das 7 às 13h no período matutino e das 13h às 19h no período vespertino. O grupo de profissionais era composto de oito professores pós-graduados e 12 auxiliares de sala com formação em ensino médio, modalidade magistério, porém cursando o nível superior. A equipe era constituída também de um auxiliar de ensino, uma supervisora, uma diretora, quatro merendeiras, cinco auxiliares de serviços gerais, além de uma professora e duas cozinheiras readaptadas. Os pais e as mães das crianças tinham de 20 a 35 anos de idade e seu grau de escolaridade variava entre o ensino fundamental e o ensino médio (completos e incompletos). Já as suas atividades remuneradas compreendiam as funções de vigia, faxineira, pescador, cozinheira, auxiliar de serviços, pedreiro, doméstica, lavadeira, entre outras (Projeto Político-Pedagógico, 2013PREFEITURA MUNICIPAL DE FLORIANÓPOLIS. Projeto Político Pedagógico. Florianópolis: Secretaria Municipal de Educação; Núcleo de Educação Infantil Colônia Z-11, 2013.).
  • 7
    Entre os critérios que orientaram a definição do campo de pesquisa, destacam-se os seguintes: a possibilidade de aproximação das crianças em seus contextos familiares; alguma independência, por parte do grupo de crianças, em relação à estruturação de espaços e tempos para brincar; e a aceitação, por parte das crianças e das professoras, da presença constante da pesquisadora nas diversas situações do cotidiano, bem como da realização de registros escritos, fotográficos e em vídeo.
  • 8
    O assentimento à realização da pesquisa - por parte das crianças - diferencia-se da formalidade legal, obtida com os familiares, com a assinatura do termo de consentimento.
  • 9
    No que diz respeito à escolaridade dos familiares, a maioria, 11 mulheres e sete homens, possuía formação em nível médio, e quatro homens e cinco mulheres possuíam formação em nível superior.
  • 10
    Entre as famílias, 10 delas divulgaram a renda salarial total - resultante da somatória dos salários de pais e mães, ou daquelas famílias em que apenas um dos membros era assalariado. Entre elas, duas declararam renda de até mil reais, outras quatro informaram possuir renda de mil a mil e 500 reais, somente uma família declarou renda na faixa de mil e 500 reais a dois mil reais e, por fim, três famílias afirmaram possuir rendimentos entre dois mil e 500 reais a três mil reais.
  • 11
    No penúltimo mês de permanência no campo, recebemos o primeiro convite de uma das famílias e, ao longo do último mês, de outras cinco, o que inviabilizou propormos nova(s) ida(s) às suas casas, conforme pretendíamos a princípio.
  • 12
    A visita à casa de Carlos durou aproximadamente 1 hora e parte dela foi registrada mediante gravação de áudio, cuja duração foi de 19 minutos e 25 segundos.
  • 13
    Entre as mais variadas rotinas culturais, Corsaro (2011CORSARO, W. A. Sociologia da infância. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.) destaca as brincadeiras entre adultos e bebês, que incitam as crianças a participar ativamente das rotinas desde seu nascimento.
  • 14
    Optamos por atribuir às crianças nomes fictícios, visando respeitar sua privacidade.
  • 15
    O registro em vídeo, na íntegra, possui duração de 16 minutos e 33 segundos, e sua transcrição completa encontra-se em Rivero (2015RIVERO, A. S. O brincar e a constituição social das crianças e de suas infâncias em um contexto de educação infantil. 2015. 266f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.). A decisão de selecionar apenas alguns trechos da transcrição da brincadeira deve-se à impossibilidade de, nos limites de um artigo, apresentá-la na totalidade.
  • 16
    Os livros com os quais as meninas brincavam nessa situação são caracterizados como livro-brinquedo ou livro-objeto.
  • 17
    No que se refere às falas das crianças e dos adultos, está se fazendo a opção por transcrevê-las amparando-se nos aspectos formais da língua portuguesa, demarcando a distinção entre o dito e o escrito. Porém, nas situações em que as crianças usaram expressões ou termos distintos do convencional, tentou-se transcrevê-los o mais fielmente possível.
  • 18
    Tais informações são provenientes das fichas de matrícula e notas de campo.
  • ERRATA

    http://dx.doi.org/10.1590/s1413-24782019240063erratum No artigo “A brincadeira e a constituição social das crianças em um contexto de educação infantil”, DOI: 10.1590/s1413-24782019240063, publicado no periódico Rev. Bras. Educ. 2019; v. 24, e240063. Epub Dec 05, 2019: PÁGINA 1: Onde se lia: IIUniversidade do Oeste de Santa Catarina, Joaçaba, SC, Brasil. Leia-se: IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. PÁGINA 1, RESUMO: Onde se lia: Este artigo apresenta uma pesquisa sobre o brincar e a constituição social das crianças no campo de educação infantil, no que tange a contextos familiares. Leia-se: Este artigo apresenta uma pesquisa sobre o brincar e a constituição social das crianças no campo de educação infantil em relação com contextos familiares. PÁGINA 23: Onde se lia: Eloísa Acires Candal Rocha é doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UNOESC). Leia-se: Eloísa Acires Candal Rocha é doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2018
  • Aceito
    30 Jul 2019
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