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Educação da vontade e renovação pedagógica nos contextos espanhol e brasileiro nas décadas iniciais do século XX* * Este trabalho é resultado parcial do projeto “A educação da vontade na história: o tempo livre como uma possibilidade formativa (entre os últimos anos do século XIX e início do século XX)”, desenvolvido com o Núcleo de Pesquisas sobre Educação dos Sentidos e das Sensibilidades (NUPES), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), n. 470687/2011-8; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), n. AUX-PE-PNPD 2587/2011; e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), n. APQ 00635/11.

Educación de la voluntad y renovación pedagógica en los contextos español y brasileño, en las décadas iniciales del siglo XX

RESUMO

Nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX é patente na imprensa pedagógica de distintos países a ênfase sobre a educação da vontade. Formas privilegiadas de educação das sensibilidades, as retóricas sobre a educação da vontade recorriam a um conjunto de princípios e práticas, tais como o método intuitivo, a educação física e estética, a vida na natureza, para consignar aquilo que se pode chamar de uma educação moral de caráter laico que, ao menos retoricamente, se baseava na ideia de liberdade. Ritos, práticas, disciplinas eram desenvolvidos para consignar aquele objetivo que aparecia de modo transversal no currículo escolar e afetava outras dimensões da educação social. Explorando revistas pedagógicas espanholas e brasileiras, busquei compreender os fundamentos da educação da vontade nas retóricas de renovadores dos dois países presentes na imprensa periódica, como baliza de um amplo processo de renovação dos costumes pela via da renovação pedagógica no período.

PALAVRAS-CHAVE:
história da educação; educação dos sentidos e das sensibilidades; educação da vontade; renovação pedagógica

RESUMEN

Em los finales del siglo XIX y em las primeras décadas del siglo XX es patente en la prensa pedagógica de distintos países el énfasis en la educación de la voluntad. Las formas privilegiadas de educación de las sensibilidades, las retóricas sobre la educación de la voluntad recurrían a un conjunto de principios y prácticas, tales como el método intuitivo, la educación física y estética, la vida en la naturaleza, para consignar aquello que se puede llamar una educación moral de carácter laico que, al menos retoricamente, se basaba en la idea de libertad. Ritos, prácticas, disciplinas eran desarrollados para consignar aquel objetivo que aparecía de modo transversal en el currículo escolar y afectaba a otras dimensiones de la educación social. En las revistas pedagógicas españolas y brasileñas, busqué comprender los fundamentos de la educación de la voluntad en las retóricas de renovadores de los dos países presentes en la prensa periódica, como baliza de un amplio proceso de renovación de las costumbres por la vía de la renovación pedagógica, en el período.

PALABRAS CLAVE:
historia de la educación; educación de los sentidos y de las sensibilidades; educación de la voluntad; reformas educativas

ABSTRACT

During the final years of the 19th century and the first decades of the 20th century it is clear in the pedagogical press of different countries the emphasis on the education of will. Privileged ways of education of sensibilities, the rhetoric on the education of will used a set of principles and practices, among which the intuitive method, physical education, aesthetic education, and life in nature, so as to consign what can be called as a moral laic education that, at least rhetorically, is based in the idea of freedom. Thus, rites, practices, and subjects were developed to reach this objective, which appeared transversally in school curriculum and touched other social education dimensions. Researching Spanish and Brazilian pedagogical magazines, I searched to understand the fundamentals of the education of will present in the rhetoric of the renovators in the press of both countries, as evidences of a wider process of renovation of costumes through pedagogical renovation in the period.

KEYWORDS:
history of education; education of the senses and sensibilities; education of the will; pedagogical reform

Em que, então, consiste a sabedoria humana ou o caminho da verdadeira felicidade? Não exatamente em diminuir nossos desejos, pois, se eles estivessem abaixo da nossa potência, uma parte das nossas faculdades permaneceria ociosa, e não gozaríamos de todo o nosso ser. Também não consiste em ampliar nossas faculdades, pois, se nossos desejos ao mesmo tempo se ampliassem em maior proporção, tornar-nos-íamos mais miseráveis. Trata-se, pois, de diminuir o excesso de desejos relativamente às faculdades, e de igualar perfeitamente a potência e a vontade. (Rousseau, 2004ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 74)

A EDUCAÇÃO DA VONTADE COMO HORIZONTE DA EDUCAÇÃO INTEGRAL DO HOMEM

Em um dos grandes marcos do pensamento ocidental sobre a educação, Emílio, Jean Jacques Rousseau proporá, a partir do livro II, um amplo percurso para o pleno desenvolvimento de todas as faculdades do homem, explorando intensamente toda a potência da natureza captada pelos sentidos. Para o autor genebrino, as vontades do homem significam que ele pode bastar a si mesmo, diferentemente da criança, constrangida pela fantasia. As fantasias, “todos os desejos que não sejam verdadeiras necessidades”, só poderiam ser satisfeitas com auxílio de outros, o que faz a criança permanecer sob tutela, in fans (Rousseau, 2004ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 80).

Na esteira de suas teorizações, Johann Heinrich Pestalozzi e Friedrich Fröebel, além de outros grandes pedagogos, formulariam teorias que impactariam definitivamente o pensamento pedagógico a partir do século XIX. Basta lembrar que em Mis investigaciones sobre el curso de la naturaleza en la evolución de la humanidad, escrito em 1797, Pestalozzi afirmou que “O homem nesse estado (natural) é filho puro do instinto, que o conduz simples e inocentemente para todos os gozos dos sentidos” (Pestalozzi, 2003PESTALOZZI, J. H. Mis investigaciones sobre el curso de la naturaleza en la evolución de la humanidad. Madrid: A. Machado Libros, 2003.). Aí residiria o ponto de partida da educação do homem, que seria complementada com o estado social e o estado moral, perfazendo o conjunto das faculdades que definiriam um homem cultivado. Nisso que hoje se pode reconhecer como uma tradição, a apreensão da natureza - todo o mundo circundante - é um elemento fundamental para o desenvolvimento da inteligência e da moral, e se dá pela via corporal. Mais precisamente, se dá pela mobilização dos sentidos para a captura do mundo, ou da natureza, que desencadeará, sobretudo nas crianças, um processo de elaboração que propiciará o homem educado. Ou seja, nessa perspectiva existe uma tensão entre a natureza e o homem, mas uma tensão que integra o homem ao mundo físico, pois considera-se que ele mesmo é um desenvolvimento da natureza e os seus sentidos, com toda a sua potencialidade, são a maior expressão disso. Daí que os sentidos podem ser educados, para que o homem o seja, pois o mundo não se mostra ao homem plenamente sem a sua mediação. Isso propiciaria a educação ou o desenvolvimento das sensibilidades. Ao captar pela via dos sentidos o mundo físico, a criança apreenderia o mundo de uma maneira gradual e “natural”, pois seria da sua própria constituição o impulso em direção ao conhecimento, permitindo a sua diferenciação em relação àquele.

Mas o que seria a sensibilidade? Em certo sentido, seria a capacidade de decodificar no emaranhado na natureza aquilo que permitiria o refinamento do homem em direção à sua humanização, no sentido mesmo de sua plena realização. Assim, o homem educado, cultivado, seria aquele capaz de desenvolver “elevados sentimentos morais”, na medida em que se sente e se percebe como parte de um grande organismo - a humanidade - que compartilharia uma mesma trajetória de autoafirmação em relação ao estado da natureza. Nessa tradição, que perduraria pelo menos até as décadas iniciais do século XX, o homem se humanizaria pela educação.

No entanto, não devemos esquecer que já no século XIX, com o desenvolvimento das utopias revolucionárias, a educação se tornaria apenas uma das condições de superação da sociedade capitalista ou, em chave romântica, da civilização (Thompson, 1976THOMPSON, E. William Morris: de romântico a revolucionário. Valencia: Alfons el Magnanim, 1976.), sendo que para a plena realização daquele objetivo seria fundamental uma educação histórica do desejo. Assim, entre a utopia iluminista de Rousseau e a sua crítica a autores como William Morris, por exemplo - não por acaso dois expoentes do pensamento político moderno -, a vontade e a sua educação aparecem como um dos elementos fundamentais da humanização do homem e da sociedade, em registros que não podem ser reduzidos à dimensão meramente escolar, tampouco descartados como simplesmente ideológicos. A educação da vontade era uma condição da liberdade. Mas qual seria o substrato da educação da vontade?

MÚLTIPLAS PERSPECTIVAS, UMA MESMA FINALIDADE

Ao iniciar o verbete Volonté para o Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire, organizado por Ferdinand Buisson, Gabriel Compayré afirmava: “A educação da vontade é, seguramente, um dos problemas mais delicados da pedagogia. Como formar a vontade, ou seja, a personalidade, o livre governo de si, em uma época em que a regra é obedecer, na vida escolar, onde tudo é dependência, ou mesmo servidão?” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p.).1 1 O Dictionnaire de Pédagogie et d’Instruction Publique Primaire teve sua primeira edição publicada em 1887. Aqui utilizo a edição ampliada de 1911, disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807. A tradução para o português é de Daniel Teixeira Costa, a quem agradeço. Mas qual era o conteúdo e o fundamento dessa educação e como ela foi tratada em um período de renovação pedagógica na Espanha e no Brasil?2 2 Agradeço ao professor Paolo Bianchini por ter me chamado atenção para a presença do tema educação da vontade na obra de Vincenzo Gioberti, na Itália, mas sua exploração fugiria ao escopo deste artigo. A opção pela documentação espanhola, devidamente cotejada com documentação brasileira, não é casual ou arbitrária.

Para o caso espanhol, centrei-me na análise de um conjunto de textos publicados no Boletín de la Libre Institución de Enseñanza (BILE), uma das principais publicações pedagógicas periódicas espanholas entre os finais do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. No caso brasileiro, diante da dificuldade de analisar de maneira integrada tão grande diversidade regional, privilegiei a análise de fragmentos da revista A Escola (1906-1921), do estado do Paraná, além de um conjunto de trabalhos publicados no jornal Minas Geraes, de Minas Gerais, nas duas primeiras décadas do século XX, lembrando que o tema é recorrente ainda na revista O Ensino, esta também paranaense.

Muito poderia ser dito sobre tais escolhas. Que a revista espanhola é uma iniciativa privada, a Instituciõn Libre de Enseñanza, publicada a partir dos estímulos de Francisco Giner de los Rios, enquanto Minas Geraes é um jornal público, não necessariamente pedagógico, de caráter oficial, no qual era até mesmo manifestada a opinião de uma parte da Igreja espanhola conservadora sobre os rumos da educação no período. Já a revista A Escola foi publicada pelo Grêmio de Professores Públicos do Estado do Paraná, era subsidiada pelo governo do Estado e teve à sua frente Sebastião Paraná e Dario Velozzo. Alguns desses autores-diretores estavam entre os principais intelectuais de seu tempo no que se refere ao tema da renovação pedagógia, enquanto os colaboradores do Minas Geraes eram diversos e nem sempre podiam ser caracterizados como renovadores. Mas, a despeito dos problemas metodológicos que daí poderiam advir, meu propósito é muito mais buscar compreender os sentidos dados à educação da vontade em diferentes realidade educativas que evocavam a renovação pedagógica, como circularam diferentes sentidos para a sua compreensão, sem pretender traçar uma análise comparada de tais contextos. Interessa-me, mais, compreender como o tema aparecia no debate pedagógico do período, considerado de grande impulso no que tange à educação popular, ou à educação das massas, e um aparente paradoxo, uma vez que a educação da vontade insidiria sobre o indivíduo singular na busca de sua autonomia. Em todas essas fontes são localizadas claras referências à obra de Rousseau, bem como às formulações de Buisson sobre a educação da vontade, além de autores como Pestalozzi e Fröebel, ainda que em sua maioria essas referências estejam relacionadas com a educação escolar, mas restando espaço ao que chamamos de educação social. Essa recorrência, em alguma medida, dá certa unidade a esta documentação.

Assim, lembrando que a “educação moral e intelectual das massas” foi um ideal preconizado tanto por clérigos e liberais quanto por reformistas, revolucionários e livre-pensadores, vale o esforço de tentar entender o sentido da educação da vontade em diferentes registros, passando por padres católicos, anticlericais, reformistas e revolucionários de muitos matizes. Para uns, antídoto contra o racionalismo ou o intelectualismo; para outros, expressão mais cara da capacidade de ação do homem; para todos, condição básica de uma formação moral que permitisse o agir autônomo diante dos imperativos da sociedade.

Como exemplo, é importante lembrar que a vontade foi mobilizada por um intelectual como Antonio Gramsci para compater o pessimismo da razão que obliteraria a marcha revolucionária. Já, para o padre integrista Francisco Ozamis, em Minas Gerais, a vontade seria um contraponto à marcha acelerada da modernidade que ofuscaria a tradição. Mas, afinal, do que se tratava a educação da vontade na passagem do século XIX para o XX?

DIFERENTES SENTIDOS PARA A EDUCAÇÃO DA VONTADE

Percorrendo a revista A Escola, desde o seu surgimento em 1906, até seu fechamento em 1921, impressiona observar como a vontade aparece como uma das condições da educação em artigos que versavam sobre a geografia, a agricultura, a lição de cousas, a educação physica, a educação moral e cívica, a lingoa patria, a geometria, atravessando as justificativas para o ensino das mais diferentes rubricas escolares ao longo de toda a sua existência. Meu foco recaiu sobre os dez primeiros números da revista, nos quais há uma grande ênfase na empreita reformadora, aparecendo a palavra “vontade” em pelo menos 85 registros. Em dado momento, inclusive, alude-se ao livre-pensador Dario Velozzo como “o Compayré dos trópicos”, em clara alusão ao autor do verbete Volonté no já citado Dictionnaire de Buisson. Mas o que permitia a educação da vontade aparecer no rol de justificativas para tanto saberes diferentes e na pena de tão diferentes perspectivas pedagógicas, uma vez que a revista se mostrava bastante plural?

Um aspecto que une as retóricas de todos os autores dos textos aqui explorados é a apologia da ciência moderna. Em linhas gerais, a educação deixava de ser domínio do “intelectualismo abstrato” para converter-se no vetor de uma pedagogia fundada na ação, na atividade, na livre-iniciativa. Fisiologia, antropologia, psicologia - e as ciências da natureza, em geral - eram invocadas como marca da renovação pedagógica que propugnava a possibilidade de um novo homem. Como exemplo dessa ênfase nos primados da ciência, no âmbito da psicologia oitocentista, observamos no BILE, já no ano de 1885, um trabalho publicado na sequência de diferentes números, como era comum à época, com o título “Psicologia de la infancia”, de autoria de um certo Dr. Sikorski. A primeira das quatro partes do trabalho leva o subtítulo “La sensibilidad” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 152). A terceira parte, publicada duas edições depois, mas no mesmo ano, denomina-se justamente “La voluntad” (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 179). Articulando claramente as duas perspectivas, o autor defendia que a educação da vontade seria o ponto de culminância de um processo pelo qual o homem (a criança) superaria o estado da natureza, domando seus instintos pela satisfação controlada de seus sentidos. Os sentidos devidamente apaziguados seriam os responsáveis pelo desenvolvimento intelectual e moral, sendo esse último o resultado esperado de um processo que dotaria o indivíduo da capacidade de escolha e de ação, significando o desenvolvimento de sua autonomia para agir adequadamente na sociedade, pela mobilização adequada da capacidade intelectual. O autor, assim, defendia “El desarrollo precoz de voluntad, dirigido a dominar los movimientos de colera y demás pasiones” (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 179). Nesse registro, a vontade assumia claramente uma função apaziguadora dos instintos, potencializadora dos controles impostos pela sociedade ao indivíduo.

O mesmo BILE publicaria, ainda, em seus números 464 e 475, de 1899, texto de Ferdinand Buisson intitulado “La educación de la voluntad”. Tratava-se da “Lección de clausura del curso de Pedagogía que explica el autor en la Sorbona, y que viene a resumir sus lecciones en el curso último” (Buisson, 1899aBUISSON, F. La educación de la voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo XIII, n. 474, 1899a, p. 257-268., p. 257). Esse texto amplia as reflexões do autor expressas no verbete Educatión de la volonté, também citado em A Escola, do Paraná, no ano de 1906.

Publicado no Dictionnaire, e dialogando com o verbete Volonté, de Gabriel Compayré, que afirmava que “[...] a educação da vontade começa com os primeiros anos e a idade da obediência é também a idade da preparação para a liberdade” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
), o verbete Educatión de la volonté destacava:

Quando observamos cuidadosamente as diversas formas de atividade humana, em cada uma delas distinguem-se graus. São, em alguma medida, as etapas da vontade. Suas primeiras manifestações dificilmente merecem ser chamadas voluntárias, por serem elas incertas, fugitivas, caprichosas. Outras as sucedem, que têm mais fixidez de consciência e de continuidade e que acabam por se fixar às vezes até adquirirem o aspecto de uma permanência real: o hábito, de tanto repetir os mesmos atos, molda uma personalidade. (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p., grifo meu)

Fundamentando seus argumentos no domínio da psicologia, o autor defendia que a vontade poderia ser distinguida em três fases do processo de formação: a atividade física, que incluía a atividade sensorial, a atividade intelectual e a atividade moral. No que se refere à atividade sensorial, o texto afirma a importância das sensações e dos sentimentos, sendo que esses últimos, em linha evolutiva, significariam algo “[...] tornado permanente, inerente à pessoa e lhe fazendo como uma segunda natureza. É o mesmo ritmo no mesmo processo, que vai do instinto ao esforço e do esforço ao hábito” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
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, s/p.). Esse hábito, por sua vez, seria o fundamento da atividade moral, fim último da educação da vontade, uma nova sensibilidade:

Aqui, finalmente, todos sempre observaram a mesma progressão, que vai de alguns instintos morais, primeiramente bem confusos, bem fracos e bem vagos, a um esforço que os fixa e, quando este dura tempo suficiente, em um estado constante em que os atos que custavam mais agora se fazem ao mesmo tempo por si mesmos e como por um efeito insensível e irresistível do hábito. A pedagogia deve inspirar-se nessas indicações puramente esquemáticas, que caberia à psicologia desenvolver. (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p.)

Deslocando o centro dos seus interesses da psicologia para a pedagogia, o autor desenvolveu um conjunto de reflexões que permitem aquilatar a força da retórica sobre a educação da vontade naquele período, a qual seria mobilizada também no contexto brasileiro.

Por exemplo, em relatório publicado na revista A Escola, a professora Julia Wanderley Petrich defendia que

Depois da educação physica e intellectual se ocupará o professor da educação moral, porque é nesta mesma ordem que se observa o progresso humano. No vastíssimo campo da moral, que tendo por objeto as acções humanas, estuda e dirige as faculdades que os presidem (sic!) - a sensibilidade e a vontade - o preceptor desempenhará preponderante papel aperfeiçoando o caracter e o coração de seus alumnos, porque, como é sabido, o sentimento moral, unificando o ensino, eleva o mestre e dignifica a escola. Nas lições, nos passeios, a propósito de todas as occurrências, cumpre ao mestre o imperioso dever de despertar-lhes a consciência moral, incutindo-lhes no animo as ideias do dever e do bem; os sentimentos da dignidade e da honra. (Petrich, 1906PETRICH, J. W. Relatórios. A Escola, Curitiba, n. 1, p. 17-25, 1906., p. 19)

Concluía a professora asseverando que o professor deveria ser exemplo de “moral em ação”, pela sua prática e conduta de uma “vida modelar”. No registro da professora Petrich, a educação da vontade praticamente se confundia com a educação moral, sendo essa a mais alta expressão de uma nação civilizada e o fim último de todos os processos de formação.3 3 A trajetória de Julia Wanderley Petrich pode ser dimensionada no estudo de Araújo (2013).

Naquele mesmo ano, e na mesma revista, era publicado um “Curso de pedagogia”, que definia a moral, entre as obrigações do professor, da seguinte maneira: “O professor conduz a criança à prática do dever, mantendo-lhe e garantindo-lhe a liberdade de consciência” (Pereira, 1906PEREIRA, E. Curso de pedagogia. A Escola, Curitiba, n. 7, p. 122-126, 1906., p. 123). Já entre os “princípios relativos aos alunos” lê-se: “Desejo de instruir-se - a vontade é a base da educação moral”. Ao final do seu “Curso”, a autora afirma a educação moral como a principal entre os quatro ramos da educação: “Moral - tem por base a experiência, o raciocínio e a vontade” (Pereira, 1906PEREIRA, E. Curso de pedagogia. A Escola, Curitiba, n. 7, p. 122-126, 1906., p. 126). A vontade assumia, então, um lugar de destaque até mesmo nas prescrições metodológicas, uma vez que eram estabelecidos parâmetros para o seu desenvolvimento, sendo alguns deles a exercitação do corpo e os jogos. A ideia geral de que a mais elevada moral representaria um homem educado era invocada pelos mais novos conhecimentos da ciência que afetava a pedagogia moderna, ainda que no texto não estejam identificados os interlocutores da autora.

Mas podemos recuar aproximadamente vinte anos e recuperar algumas das considerações do Dr. Sikorski, publicadas no BILE, na Espanha, no ano de 1885 SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c..4 4 Não consegui obter maiores detalhes sobre Dr. Sikorski, que não fora identificado pelo periódico. Edouard Claparède, no primeiro capítulo de seu livro Psicologia del niño y pedagogia experimental, denominado reseña histórica, observa que os estudos sobre o desenvolvimento mental das crianças iniciaram-se em 1787, com Tiedemann. Mas teria sido a obra de Preyer, El alma del niño (1881), aquela que geraria entre os pais o hábito de adotar em diário os progressos alcançados no desenvolvimento das crianças. Preyer é o autor mais citado no trabalho de Sikorski, no BILE, o que permite pensar que talvez se trate do autor citado pelo suíço, embora ali apareçam referências a Galeno, Darwin, Spencer, Bain, Soltmann e até mesmo a Rousseau. Ainda segundo Claparède: “Em Kiev la paidologia tiene por campeón a Sikorsky, precursor de la pedagogía experimental por su famoso estúdio sobre el medio de medir la fadiga intelectual de los escolares, aparecido en 1879 en los Annales d’hygiéne publique (de Paris)” (Claparède, 1910, p. 52). Agradeço às professoras Regina Helena Freitas e Paula Cristina David Guimarães por se valerem dos seus contatos para tentar rastrear o autor. Parece tratar-se de Ivan Alekseevich Sikorsky (1842-1919), que foi psiquiatra e professor da Universidade de Kiev, além de um dos fundadores do Instituto de Crianças Deficientes Mentais. O trabalho publicado no BILE faz inúmeras referências à fadiga, inclusive a da vontade, e constantemente lembra a importância da higiene da educação. Em nota de apresentação da publicação, os editores observam que se trata de extrato de um trabalho intitulado La evolución psíquica del niño, publicado pelo autor (Sikorski, 1885a, p. 152). Primeiramente, ao caracterizar organização neuropsíquica da criança, o autor defenderá que ela se funda progressivamente em sentimentos, vontade, razão. Assim, a educação da vontade, complemento necessário da educação dos sentidos e das sensibilidades, seria a condição básica do desenvolvimento intelectual. Nota-se, portanto, uma diferença em relação àquela tônica presente nos registros das professoras paranaenses, que tinha a vontade como condição básica da educação moral, fim último da educação geral. Inclusive, nesse aspecto, uma longa nota do tradutor do trabalho do Dr. Sikorski, não identificado, é bastante crítica aos seus pressupostos, uma vez que ele superestimaria a inteligência em detrimento dos sentimentos e das emoções. Mesmo com esse tom crítico, o autor da nota destaca a importância de estudos empíricos para o desenvolvimento da antropologia “[...] y su profunda transcendência a los problemas pedagógicos” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 152). Assim, parecia estar em xeque a prevalência de formas metafísicas de conceber a educação das crianças e, por conseguinte, a sua vontade, uma vez que a capacidade da ciência para descortinar os processos mentais se fazia patente naquele registro.5 5 Devemos lembrar também o trabalho de William James, O que é um emoção?, de 1884, o qual igualmente faz referências à educação da vontade (Nascimento, 2013).

No entanto, a ciência ali advogada, ainda que o texto se referisse a inúmeros autores e seus estudos, metodologicamente se baseava apenas na observação diária e cuidadosa dos comportamentos da criança, sendo, no caso de Sikorski, basicamente a observação dos seus próprios filhos. Mas em que consistia o conteúdo de sua reflexão? Tratando da primeira infância, o autor defendia a necessidade de cuidado constante com as crianças, para que elas pudessem “[...] dominar la excitación emocional insípida” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 152), adquirindo a tranquilidade necessária para o seu bom desenvolvimento. O papel fundamental da educação nessa fase da vida seria “[...] hacer desaparecer más sensaciones y proporiconar todos los placeres en que instinctivamente tome gusto” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 154). Segundo o autor, “A partir del tercer o cuarto mes de la vida es el momento de aparecer los primeros gérmenes de la consciencia y la voluntad” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 154). Estas, fundadas na relação fisiológica entre mãe e filho, permitiriam “[...] los sentimientos futuros de solidaried humana y altruísmo” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 154).

Basicamente, o papel da educação da vontade significava o desenvolvimento de uma sensibilidade com a qual havia a possibilidade de a criança dominar suas emoções primevas, reprimir o medo e a cólera, aprendendo a dominar-se e apaziguar seus ímpetos instintivos. O progresso da educação do homem tenderia a submeter “[...] los instintos y las emociones a la razón, a las exigencias conscientes” (Sikorski, 1885a SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 156). Sendo a criança um ser “caprichoso”, caberia aos adultos ensiná-la a reprimir subitamente as suas emoções, contrapondo uma vontade débil, aquela ainda afeita aos instintos, a uma vontade exercitada, fruto da intervenção do educador. O domínio das emoções “No es en el fondo más que uma selección emocional, uma elaboración de sentimentos rigorosos por via de supresión de los elementos de debilidad” (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 157, destaque no original). Esse processo permitiria a educação de vontades vigorosas.

Considerando que o recém-nascido não teria vontade, o autor a definia como um princípio motor que só surgiria entre o quarto e o quinto mês de vida, significando a supressão ou redução do movimento reflexo pela excitação de algum dos sentidos. Esse processo desenvolveria a ação do princípio consciente e voluntário como principal motor do homem, surgindo a vontade “[...] en calidad de acto cada vez más desenvuelto” (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 179).

Traçando como que uma história natural da vontade, ela seria, para Sikorski tanto um princípio motor quanto um princípio repressivo dos movimentos, daí a importância da ginástica e dos jogos para a sua educação. Nesse ponto há clara similitude com os trabalhos publicados em A Escola, do Paraná, uma vez que ali fora dada grande ênfase à necessidade da educação do corpo para o desenvolvimento da vontade, ainda que o seu fim fosse a educação moral, como vimos. Veremos que também no jornal Minas Geraes a educação corporal (ou physica) seria uma condição fundamental da educação da vontade.

Mas, ainda no registro de Sikorski, existiria uma fadiga da vontade, o que faz crer que ela fosse uma faculdade do próprio homem, portanto passível de ser educada. Combatendo a fadiga da vontade, os educadores investiriam na liberdade e na independência das crianças, que se tornariam seres ativos e industriosos, capazes de criar e reagir, “[...] combatir el trabajo penoso y de organizar impulsos coordinados”, uma vez que o trabalho da criança seria tão frágil como suas convicções (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 180). Justamente aí atuariam os educadores:

Esta debilidad... de la voluntad infantil, esta elasticidad, esta plasticidad de las sensaciones y de los movimientos pueden utilizarse con el mayor êxito por el educador. Si esta educación comienza desde temprano, cuando la voluntad es aún muy flexible, y se prosigue sistematicamente, se asegurará la afirmación y desarrollo de esta facultad y del caráter. (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 180)

Assim, para o autor a vontade é uma faculdade que pode ser moldada conforme os fins últimos da educação - nesse caso, o desenvolvimento intelectual -, baseados em preceitos científicos que aliam a psicologia, a antropologia, a higiene e a pedagogia. Ela representaria um passo além do aparato biofísico dos homens, na medida em que representaria também a possibilidade de controle das paixões, dos impulsos instintivos, na direção de um indivíduo capaz de agir de maneira criativa - autônoma - contribuindo para o aperfeiçoamento da sociedade.

As maneiras de realizar a educação da vontade estavam centradas em três ações básicas do educador: o exemplo dos adultos, a comunicação à criança, com doçura e firmeza, daqueles estados em que a natureza se sobrepôs à vontade, e, por fim, a exposição dos motivos que levam os homens a agir de determinada maneira e não de outra. Ou seja, a vontade é um ato de autoconsciência, dirigido pela capacidade intelectual dos homens. Seguindo aquelas orientações, o educador seria capaz de desenvolver nas crianças suas “capacidades repressivas” em relação ao medo, à fome, ao ódio, por exemplo, uma vez que a criança seria portadora tanto de boas quanto de más tendências naturais.6 6 Em nota do tradutor, aparece outra crítica ao texto: “[...] tendencias, incluso los instintos, son resutantes del sistema de relaciones del individuo con el mundo y dependientes de ellos por lo mismo [...]” (Sikorski, 1885c, p. 182). Em várias notas de rodapé, o BILE contrapõe argumentos às considerações do autor, mostrando que não aceitava in toto suas afirmações. Mesmo assim, é destacada a contribuição dos estudos de caráter empírico (científico, experimental...) para a redefinição da pedagogia e do papel da educação em um mundo tido como “moderno”.

A educação do corpo, a disposição do espírito e a atenção necessária para a reprodução de ideias seriam o caminho para uma “racionalidade disciplinada”, sendo que o adulto “[...] no debe entorpecer el trabajo creador del niño” (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 183). A atenção implicaria, então, “[...] formar el hábito de trabajo”, mas se deveria lembrar que a “[...] educación rígida y severa oprime la voluntad y los sentimientos [...]; un carácter servil indica uma voluntad débil” (Sikorski, 1885c SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c., p. 179, destaque do original). O autor encerra sua exposição evocando Rousseau e criticando o que chama de uma educação descuidada, a qual comprometeria todo o processo de desenvolvimento individual e social da criança. Nesse registro, se a educação da vontade partiria do aparelho sensitivo, os sentimentos não deixavam de constituir uma parte importante no processo de formação.

Já Buisson tratava a vontade como um amplo domínio que se confundia com a educação. Segundo o verbete Educatión de la volonté, do Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire, “[...] a educação da vontade não é um capítulo da educação, é o ponto de convergência de todos os capítulos, ou melhor, é a educação humana inteira” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p). Criticando a presença excessiva dos educadores no processo de formação das crianças, o autor afirmava:

Pensar, sentir e querer para os outros, não é esse o papel do educador, pelo menos se é laico. Ele tem apenas uma ambição: desaparecer. Ele tem horror do que fez outrora o orgulho de alguns professores: moldar seus alunos à sua própria imagem. Ao contrário, ele quer que eles possam o máximo possível se modelar a si mesmos com o ideal de que ele os terá ajudado a descobrir e que ele os terá feito amar. Agir de fora ou agir de dentro: esses são os dois sistemas de governo moral, da criança, primeiro, e do homem, mais tarde. Se partirmos desse princípio, que é aquele da moralidade laica, não temos mais do que aplicá-lo aos três períodos que distinguimos na educação da vontade. (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p., destaques meus)7 7 Não parece abusivo sugerir que Buisson se movia em uma perspectiva similar àquela de Joseph Jacotot, grande crítico da “ordem explicadora do mundo” pedagógico e difusor da necessidade de educar a vontade dos que querem aprender. Sobre a trajetória e as ideias de Jacotot, ver Rancière (2005).

Para o autor, a educação estava dividida em períodos que seguiriam a própria marcha do desenvolvimento humano: o período da educação inicial - os instintos; o período da educação ativa - o esforço; e o período de educação final ou de confirmação dos resultados - o hábito. Esses seriam estágios de evolução da vontade, os quais deveriam ser potencializados gradativamente pelos educadores, tendo como resultado a correção moral e um homem livre, consciente, autônomo, independente de qualquer juízo externo (seria social?). Buisson escreve sobre modéstia, virtude, honestidade, bem. Citando Aristóteles, afirmava: “A verdadeira virtude é um hábito; entendo por essas palavras, uma disposição adquirida através de sucessivos esforços tão numerosos e tão enérgicos que eles tornaram, por assim dizer, impossível uma solução diferente daquela do bem”. A vontade seria, pois, educada para produzir esses hábitos duradouros, estáveis, de um homem “calmo e seguro” de si.

Assim, afirmando que, “Em resumo, a pedagogia da vontade está intimamente ligada à psicologia da vontade”, Buisson (1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p.) rematava:

A psicologia nos ensina que a vontade não é um poder especial distinto de outros poderes paralelos na alma humana. É a própria força da alma humana em sua unidade e variedade, é a vida espiritual em todos os seus graus, desde a espontaneidade rudimentar do instinto até a posse plena e clara de si mesmo para a atividade consciente, livre e racional. A partir disso a pedagogia concluirá: não há educação especial da vontade. Toda educação é uma educação da vontade ou não é nada. Nós formamos a vontade aprendendo a pensar, a sentir e a agir normalmente.

Citando William James, concluía: “a vontade se forja com esforços. Existem muitas medidas para medir a vontade humana. A mais exata e a mais segura é aquela expressa por esta pergunta: ‘De quanto esforço você é capaz?’” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
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, s/p.). A vontade, pois, é “treinamento, resultado do hábito que insensivelmente nos flexiona a maneiras de agir, de sentir e de pensar que constituem uma segunda natureza, uma natureza adquirida, uma personalidade” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
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, s/p.). Para o autor, a perspectiva pedagógica moderna, no que tange à educação da vontade, conciliaria a três principais teorias da educação moral: a teoria otimista de Rousseau e sua “ênfase na bondade nativa do homem”; a teoria estoica e kantiana, “que faz um incessante chamado ao esforço e à liberdade”; e a teoria cristã, “que valoriza o efeito dos hábitos, da autoridade aceita, das práticas estabelecidas”. Para o autor, cada uma dessas teorias corresponderia às fases de desenvolvimento do homem: a do instinto, a do esforço e a do hábito. Nesse sentido, “A pedagogia conclui que a boa educação é aquela que tende mais e que melhor consegue formar a pessoa humana, lhe dar o controle de si, criar finalmente a autonomia moral, que Kant opõe à heteronomia, como se oporiam os movimentos do organismo vivo àqueles do mais perfeito autômato” (Buisson, 1911BUISSON, F . Educatión de la volonté. Dictionnaire de pédagogie et d’instruction publique primaire. Tradução livre de Daniel Teixeira Costa. 1911. Disponível em: Disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807 . Acesso em: 28 out. 2013.
http://www.inrp.fr/edition-electronique/...
, s/p.).

Não é ocioso observar que em todas as referências à educação da vontade a presença de Rousseau se faz sentir. Mesmo que em chave “negativa”, como no caso do padre integrista espanhol Francisco Ozamis, que escreveu um conjunto de artigos no Minas Geraes, na segunda década do século XX.8 8 Muitos dos trabalhos publicados pelo padre Francisco Ozamis no jornal Minas Geraes foram republicados em livro, em 1915. Aqui foram utilizados os dois conjuntos de artigos. Para maior detalhamento sobre a trajetória do padre espanhol, bem como acerca de suas ideias sobre educação, em especial a educação moral e a educação física, ver a dissertação de mestrado de Vieira (2013). Para o religioso,

Há no homem, falando na linguagem moderna da psycologia, dois psychismos, inferior e superior. São as duas leis de S. Paulo nos fallava, representando a lei dos membros em positiva e franca rebeldia contra a razão. Podemos distinguir fazendo parte do psychismo inferior os sentidos, sentimentos e a phantasia. O psychismo superior abrange os actos da intelligencia e da vontade. [...] Os vestígios do vício, que não raro como estygma marca os organismos da mocidade entraram pelos sentidos, os sentimentos e a phantasia [...]. (Ozamis, 1913OZAMIS, F. Orientações pedagógicas. VII Educação Physica. Minas Geraes, Belo Horizonte, 1913, p. 7., p. 7)

Francisco Ozamis também fundamentava seus argumentos na ciência, sobretudo na psicologia e na higiene. Ao desenvolver um conjunto de reflexões sobre a necessidade da educação física no processo de formação, ele atestava que ela deveria justamente potencializar a vontade e permitir a inibição das paixões:

É necessário que o mundo das imagens, sentimentos e paixões se submeta ao critério da razão esclarecida. As paixões são forças que a vontade utiliza quando lhe são subordinadas. A soberania da vontade tem essas inimigas, quando não foram vencidas, pois escravas se transformam em dominadoras. É um dos pontos principaes do trabalho educativo dar á vontade reservas de virtude e energia para os momentos em que o dever se apresenta difficil. É bitola dos grandes caracteres e resistência ao mal e a Victoria da liberdade sobre o mau instincto. (Ozamis, 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915., p. 256-258)

Sobre a sensibilidade, a ser vencida pela vontade, afirmava:

A sensibilidade é outro inimigo da vontade livre. O homem há de vigiar o desdobramento do sentimento. Porque quase todos os moveis dos nossos actos encontram secretos impulsos na sensibilidade. Os gozos puros da virtude, escreveu um illustre philosopho, são o premio do triumpho da razão sobre a sensibilidade. É mister envidar todos os esforços para reforçar a sensibilidade physica, porque os execessos da sensibilidade nos levam ao suicídio pelo aborrecimento, ou a uma morte prematura. Entre os meios práticos podem indicar-se o conhecimento próprio, o trabalho e a direcção de um educador. [...] Um meio geral que muitos philosophos pagãos recommendaram é o exame de consciencia ou reflexão regressiva sobre o dia. O exame de consciência nos dá conhecimento da nossa psychologia particular, acautela-nos para o futuro e nos augmenta o brio para novas luctas. (Ozamis, 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915., p. 256-258)

Se as finalidades eram distintas - formação intelectual para Sikorski, formação moral para Ozamis -, assim como o entendimento da importância dos sentidos e das sensibilidades, não é demais observar que Ozamis em alguma medida se aproximava dos argumentos de Sikorski no que se refere ao ato consciente de esclarecimento que tinha como fulcro a psicologia moderna. Se, para ele, o fim da educação era a educação moral do indivíduo, o hábito, o sacrifício seriam caminhos seguros para a sua plena realização, sendo a vontade primordial para o seu pleno desenvolvimento. Mas não se tratava de uma moral qualquer, ou mesmo abstrata: “A educação há de servir para a vida prática. [...] hoje acrescentamos que a nação precisa de homens práticos, profissões uteis e trabalhos sociais” (Ozamis, 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915., p. 102). A educação da vontade pressuporia o desenvolvimento de indivíduos de caráter:

O caracter é uma especie de pyramide cuja base constitue as paixões e cujo vértice forma os actos da vontade, tendendo a crear o habito pela actuacao repetida. [...] O homem de caracter não recua sinao perante o mandato imperativo da consciencia iluminada pelos reflexos incorruptíveis da moral. A civilização não é obra de grandes talentos sinão porque as idéas se puzeram ao serviço de enérgicas vontades, que, aliás, foram a expressão de vigorosos caracteres. O homem de caracter é o esculptor de sua alma e o cinzalador da estatua civilizadora da sociedade. Qual é, porém, o fundo, a sombra e o substractum do caracter? Certamente é a ordem moral, visto que todas as suas applicacoes e consequencias são de ordem moral, que visa a direccao firme da vontade. [...] A moral não abafa o caracter individual, affirma-o, dirige-o, nobilita-o, santifica-o, utiliza-o, para o bem próprio, bem dos semelhantes e gloria da Nação. (Ozamis, 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915., p. 225-226)

Nesse sentido, a educação da vontade pressupõe para todos esses autores o esforço, o hábito, o controle das paixões, na tentativa de produzir um indivíduo capaz de viver em liberdade. Esses elementos dão o amálgama necessário a diferentes expressões da educação da vontade, com a constante invocação da ciência moderna, expressa tanto na psicologia quanto na pedagogia experimentais. A educação e a pedagogia, mesmo quando oriunda do discurso religioso, combatiam o “intelectualismo abstrato” e a memorização para advogar a potência “natural” dos homens para gerir seu próprio destino, desde que sua vontade fosse educada para agir de acordo com a sua consciência em prol de sua felicidade e da paz social. Uma diferença residia no papel do educador nesse processo. Para Buisson, Sikorski e a maioria dos autores aqui tratados, as ações centradas nos professores deveriam dar lugar à iniciativa dos alunos, uma vez que a vontade remete à autodeterminação. Para Ozamis, em contrapartida, a vontade do professor deveria conduzir a vontade dos alunos. A despeito dessa diferença, tratava-se, pois, de um amplo conjunto de ideias que visavam à elevação moral e intelectual de todos os indivíduos, que não esquecia a força do meio no processo de formação de “vontades fortes”, mas que em muitos casos (não todos!) fazia tábula rasa das clivagens sociais, culturais e econômicas.

Sabe que em cada um desses seres há instinctos, inclinações, aptidões, toda uma herança, por vezes bem pesada, e que terá que favorecer ou reprimir. Do conjunto de ideas que possue quais deverá transmitir, para que, instruindo o alumno, possa ao mesmo tempo guiar suas inclinações, despertar suas aptidões latentes, fazel-o apto para dirigir-se a si próprio, em sendo ao mesmo tempo um ser social? Cabe despertar nessa alma infantil a consciência de si mesma, desenvolver uma vontade forte, uma elevada idea do seu dever? Em uma palavra: que deverá ensinar-le para educal-o? (Moreau, 1906MOREAU, A. A pedagogia e a escola. A Escola, Curitiba, n. 9-10, p. 155-161, 1906., p. 155)

Esse conjunto de reflexões é de autoria de Alicia Moreau, feminista e socialista inglesa radicada na Argentina, e foi traduzido de El Tiempo, de Buenos Aires, edição de 25 de setembro de 1906. Segundo nota dos editores, tratava-se de uma conferência ditada em uma das sessões do Congreso del Libre Pensamiento, em Buenos Aires. Na revista A Escola, tais considerações foram publicadas com o título A pedagogia e a escola. O texto cita Fröebel, Bebel, Le Bon e Pestalozzi e segue em linhas gerais a sequência evolutiva sensações, instrução, vontade e educação como processo de afirmação de um indivíduo livre e autônomo. Aqui também aparece com destaque a contribuição das ciências naturais contra o “palavrório e o cultivo da memória”. Criticando a educação tradicional, a autora comentava:

[...] educação é ação social; o ideal educativo de uma ephoca reflete seu caracter, suas aspirações, suas tendências e está baseado no conceito que se tem do indivíduo. Se pretendem fazer um homem forte e formoso, de espírito subtil, com vivo sentimento da belleza e sua independência, e levantam gimnasios, templos da forma, o menino grego, arrancado do lar, é um futuro soldado cuja educação consiste em dar-lhes músculos fortes e vontade enérgica.

Se veem no homem um ser impuro, decaído, uma alma dolente encerrada em mesquinha prisão, e preparam o indivíduo para uma vida futura imaginária, pretendem formar ascetas, homens que vivam com o perpétuo horror de si mesmos. (Moreau, 1906MOREAU, A. A pedagogia e a escola. A Escola, Curitiba, n. 9-10, p. 155-161, 1906., p. 156)

Na contramão daquelas tendências, a autora destacava:

O ideal educativo evoluciona, pois, com a sociedade; e o conceito moderno que olha uma determinada classe com absoluto olvido das outras, livre dos sonhos e ilusões mórbidas de ephocas em que o poder religioso afogava toda veleidade de independência; o conceito moderno, baseado no conhecimento scientifico do homem, é o desenvolvimento amplo e concreto de todas as aptidões funcionais, de todas as inclinações do indivíduo que lhe permittam buscar a felicidade contribuindo para a de todos, sem considerações de sexo ou casta. (Moreau, 1906MOREAU, A. A pedagogia e a escola. A Escola, Curitiba, n. 9-10, p. 155-161, 1906., p. 156)

A ideia de uma vida ativa estava evidente nas reflexões da autora, que fazia apologia da civilização, da ciência, da liberdade: “Dar-lhe-a confiança no próprio esforço e lhe temperará a vontade, pois, como diz Berthelot, saberá que a felicidade e o bem estar não se adquirem com vans palavras, nem por uma vida puramente contemplativa, nem com practicas mysticas” (Moreau, 1906MOREAU, A. A pedagogia e a escola. A Escola, Curitiba, n. 9-10, p. 155-161, 1906., p. 160). A vontade e sua educação representavam o reconhecimento de uma outra era, na qual “A sciencia despertou o homem e o auxilia na conquista da sua liberdade; deo cérebro aos que eram braços apenas, e dar-lhe-a meios de resolver a formula - a cada um conforme suas necessidades - e atingir seos mais bellos ideaes” (Moreau, 1906MOREAU, A. A pedagogia e a escola. A Escola, Curitiba, n. 9-10, p. 155-161, 1906., p. 161). A autora concluía seu libelo convocando os educadores:

Demol-a como base a educação e com Sergi digamos: trabalhemos para a nova phase da civilização; pela emancipação do pensamento chegaremos a emancipação de toda escravatura; trabalhemos para libertar o homem do phantasma religioso e para libertal-o do maior flagelo: a guerra; proclamemos o amor e a paz universaes pela emancipação completa e pelo respeito a vida humana. (Moreau, 1906MOREAU, A. A pedagogia e a escola. A Escola, Curitiba, n. 9-10, p. 155-161, 1906., p. 161)

Ainda no mesmo periódico, Ermelino de LeãoLEÃO, E. Pedagogia. A Escola, Curitiba, n. 2, p. 72-77, 1906., saudando o Compêndio de pedagogia de Dario Velozzo, também destacava nesse autor a ênfase na psychologia moderna, exigindo que a obra educativa se fundasse no “exercício da inteligência, da vontade, da memória, da imaginação, e da consciência” (Leão, 1906LEÃO, E. Pedagogia. A Escola, Curitiba, n. 2, p. 72-77, 1906., p. 75). A educação moderna exigiria mestres capazes de persuadir os alunos, sem nunca lhes impor regras ou doutrinas, “iluminando o cérebro à luz da Verdade, do Bem, do Bello e da Justiça”.

Temos nas palavras de uma personagem socialista e feminista, como Alicia Moreau, publicada no Paraná, uma expressão do que a vontade significaria para a construção de um novo mundo. Já em Minas Gerais, um padre perfeitamente conectado com a modernidade representada pela ciência assim se expressava:

[...] não ha grandeza social sem a direcção das energias individuaes. É a razão por que quantos amam a Patria e sentem pela humanidade o fervor altruísta ainda jamais poderão esquecer a instrucção, e principalmente a educação dos indivíduos, porque dessas abelhas, fabricantes do mel, se forma a colmeia social. A educação, e sua filha a instrução fazem do homem uma entidade perfeita e útil para si e para o social. (Ozamis, 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915., p. 3)

Esse mesmo padre destacava a importância de uma pedagogia da vontade, ancorada em uma “technica psychologica”. Em suas explanações sobre a educação do corpo, havia lugar para uma gymnastica da vontade, muito próximo do que verificamos em outros documentos, com destaque ao fato de a religião católica contrabalançar os efeitos da modernidade.

O ponto crucial dessa pedagogia da vontade está na technica psychologica por meio da qual adquire essa faculdade, dominio completo sobre os seus actos e sobre toda existência. A gymnastica da vontade há de consistir: fácil ao difficil, em contrariar-se, vencer-se e mortificar-se. Lembre-se do axioma inglez: querer é poder, mas para saber querer é necessário repetir esforços, resistir aos assaltos, formar hábitos e adquirir reservas de energia pela accumulação de coefficientes praticos da actuação individual. [...] essa força de vontade não adquirirá a tempera de aço nos casos difficeis e não dará a moralidade perfeita, si não vier ao seu encontro o poder sobrenatural da religião de Jesus Christo. (Ozamis, 1913OZAMIS, F. Orientações pedagógicas. VII Educação Physica. Minas Geraes, Belo Horizonte, 1913, p. 7., p. 7)

Para o autor, “É a moral então que opera esta transformação no individuo” (Ozamis, 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915., p. 223).

A educação da vontade, então, pelo menos no período da virada do século XIX para o século XX, destacava a formação do homem - além da sua instrução - como condição básica de soerguimento da sociedade moderna, civilizada, ativa, industriosa, pelo investimento no indivíduo. Seria o indivíduo a possibilidade de uma sociedade erigida em outras bases. Talvez isso pareça pouco ou inatual nos dias de hoje, mas não devemos esquecer que o desejo de um indivíduo livre, esclarecido e dotado de vontade como condição da transformação do mundo marcou tanto as utopias revolucionárias do fim do século XIX e começo do XX quanto as retóricas liberais republicanas em países fortemente marcados no período pela tradição monárquica, casos de Brasil e Espanha.

Além disso, a ênfase na utilidade do indivíduo, do conhecimento e da inteligência, logo, da educação, se sofria os fortes influxos do utilitarismo, também era destacada como condição de uma nova forma de organização social, contra o parasitismo, a inação e até mesmo o ócio que marcava as elites do século XIX (e, em muitos registros, o “povo”). Assim, a educação da vontade, mais que uma simples operação ideológica, mais que uma simples forma de “moralismo”, configurou-se com base em uma crença nas potencialidades do homem e nas possibilidades de transformação do mundo, em um claro exemplo de busca da construção de uma nova moral - fortemente alicerçada na retórica científica, em alguns casos; e na tradição, em outros, como nas peças literárias de William Moris (Thompson, 1976THOMPSON, E. William Morris: de romântico a revolucionário. Valencia: Alfons el Magnanim, 1976.). A educação da vontade não era burguesa, romântica ou proletária, mas estava presente de forma transversal em diferentes projetos para o desenvolvimento do gênero humano, apostando na superação do estado na natureza e em sua perfectibilidade, além da crença que uma inflexão em direção ao indivíduo seria condição de realização daquela utopia de um mundo melhor para todos.

Tendo nas noções de esforço, hábito e ação seus fundamentos principais, a educação da vontade marcou o debate pedagógico naquele período de renovação política, cultural e educacional. Cabe verificar como se deu o seu desenvolvimento nas mais diferentes expressões do que se convencionou chamar de educação renovada, ancoradas em diferentes doutrinas políticas e sociais - liberalismo, pragmatismo, anarquismo, socialismo, positivismo - em um período de fortes clivagens políticas, no qual a utopia revolucionária começava a abalar as bases de organização das sociedades capitalistas ocidentais. Embora esse seja um tema para outros trabalhos, não é demais destacar que a educação da vontade parece ter se fundado na utopia que o homem pode ser senhor do seu processo de formação, logo, ser o artíficie da transformação social sem a tutela de outros.

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  • SIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a.
  • SIKORSKI . Psicologia de la infancia II. La inteligencia. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 162-169, 1885b.
  • SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c.
  • THOMPSON, E. William Morris: de romântico a revolucionário. Valencia: Alfons el Magnanim, 1976.
  • VIEIRA, Y. V. G. Retóricas sobre educação physica, sport e exercício físico no jornal Minas Geraes entre 1913 e 1916. 2013. 104p. Dissertação (Mestrado em Estudos do Lazer) - Universidade Federal de Minas Gerais, 2013.
  • *
    Este trabalho é resultado parcial do projeto “A educação da vontade na história: o tempo livre como uma possibilidade formativa (entre os últimos anos do século XIX e início do século XX)”, desenvolvido com o Núcleo de Pesquisas sobre Educação dos Sentidos e das Sensibilidades (NUPES), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), n. 470687/2011-8; Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), n. AUX-PE-PNPD 2587/2011; e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), n. APQ 00635/11.
  • 1
    O Dictionnaire de Pédagogie et d’Instruction Publique Primaire teve sua primeira edição publicada em 1887. Aqui utilizo a edição ampliada de 1911, disponível em: http://www.inrp.fr/edition-electronique/lodel/dictionnaire-ferdinand-buisson/document.php?id=3807. A tradução para o português é de Daniel Teixeira Costa, a quem agradeço.
  • 2
    Agradeço ao professor Paolo Bianchini por ter me chamado atenção para a presença do tema educação da vontade na obra de Vincenzo Gioberti, na Itália, mas sua exploração fugiria ao escopo deste artigo. A opção pela documentação espanhola, devidamente cotejada com documentação brasileira, não é casual ou arbitrária.
  • 3
    A trajetória de Julia Wanderley Petrich pode ser dimensionada no estudo de Araújo (2013ARAÚJO, S. A. C. Professora Julia Wanderley: uma mulher-mito (1874-1918). Curitiba: Editora UFPR, 2013.).
  • 4
    Não consegui obter maiores detalhes sobre Dr. Sikorski, que não fora identificado pelo periódico. Edouard Claparède, no primeiro capítulo de seu livro Psicologia del niño y pedagogia experimental, denominado reseña histórica, observa que os estudos sobre o desenvolvimento mental das crianças iniciaram-se em 1787, com Tiedemann. Mas teria sido a obra de Preyer, El alma del niño (1881), aquela que geraria entre os pais o hábito de adotar em diário os progressos alcançados no desenvolvimento das crianças. Preyer é o autor mais citado no trabalho de Sikorski, no BILE, o que permite pensar que talvez se trate do autor citado pelo suíço, embora ali apareçam referências a Galeno, Darwin, Spencer, Bain, Soltmann e até mesmo a Rousseau. Ainda segundo Claparède: “Em Kiev la paidologia tiene por campeón a Sikorsky, precursor de la pedagogía experimental por su famoso estúdio sobre el medio de medir la fadiga intelectual de los escolares, aparecido en 1879 en los Annales d’hygiéne publique (de Paris)” (Claparède, 1910CLAPARÈDE, E. Psicologia del niño y pedagogia experimental. Madrid: Libreria de Francisco Beltrán, 1910., p. 52). Agradeço às professoras Regina Helena Freitas e Paula Cristina David Guimarães por se valerem dos seus contatos para tentar rastrear o autor. Parece tratar-se de Ivan Alekseevich Sikorsky (1842-1919), que foi psiquiatra e professor da Universidade de Kiev, além de um dos fundadores do Instituto de Crianças Deficientes Mentais. O trabalho publicado no BILE faz inúmeras referências à fadiga, inclusive a da vontade, e constantemente lembra a importância da higiene da educação. Em nota de apresentação da publicação, os editores observam que se trata de extrato de um trabalho intitulado La evolución psíquica del niño, publicado pelo autor (Sikorski, 1885aSIKORSKI. Psicologia de la infancia I. La sensibilidad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 152-157, 1885a., p. 152).
  • 5
    Devemos lembrar também o trabalho de William James, O que é um emoção?, de 1884, o qual igualmente faz referências à educação da vontade (Nascimento, 2013NASCIMENTO, R. S. Tradução: “O que é uma emoção?” (William James, 1884). Clínica e Cultura, São Cristóvão: UFS, v. II, n. I, p. 95-113, jan./jun. 2013. ).
  • 6
    Em nota do tradutor, aparece outra crítica ao texto: “[...] tendencias, incluso los instintos, son resutantes del sistema de relaciones del individuo con el mundo y dependientes de ellos por lo mismo [...]” (Sikorski, 1885 SIKORSKI. La voluntad. Boletín de la Libre Institución de Enseñanza, Madrid, tomo IX, p. 179-183, 1885c.c, p. 182). Em várias notas de rodapé, o BILE contrapõe argumentos às considerações do autor, mostrando que não aceitava in toto suas afirmações. Mesmo assim, é destacada a contribuição dos estudos de caráter empírico (científico, experimental...) para a redefinição da pedagogia e do papel da educação em um mundo tido como “moderno”.
  • 7
    Não parece abusivo sugerir que Buisson se movia em uma perspectiva similar àquela de Joseph Jacotot, grande crítico da “ordem explicadora do mundo” pedagógico e difusor da necessidade de educar a vontade dos que querem aprender. Sobre a trajetória e as ideias de Jacotot, ver Rancière (2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.).
  • 8
    Muitos dos trabalhos publicados pelo padre Francisco Ozamis no jornal Minas Geraes foram republicados em livro, em 1915 OZAMIS, F . Princípios de educação. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1915.. Aqui foram utilizados os dois conjuntos de artigos. Para maior detalhamento sobre a trajetória do padre espanhol, bem como acerca de suas ideias sobre educação, em especial a educação moral e a educação física, ver a dissertação de mestrado de Vieira (2013VIEIRA, Y. V. G. Retóricas sobre educação physica, sport e exercício físico no jornal Minas Geraes entre 1913 e 1916. 2013. 104p. Dissertação (Mestrado em Estudos do Lazer) - Universidade Federal de Minas Gerais, 2013.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2018
  • Aceito
    11 Jun 2018
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