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“Paulofreireanismo”: instituindo uma teologia laica?* * Este texto é uma versão do trabalho encomendado GT06 apresentado na 36ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

“PAULOFREIREANISMO”: INSTITUTING A SECULAR THEOLOGY?

“PAULOFREIREANISMO”: LA INSTITUCIÓN DE UNA TEOLOGÍA SECULAR?

RESUMO

Dificilmente nos perguntamos “por que ainda somos freireanos?”, nem sequer desconfiamos se a resposta já não pode ter deixado de ser de natureza pedagógica. O fato é que as ideias de Paulo Freire conheceram, ao longo de sua história, um amplo processo de institucionalização que vai desde uma espécie de “culto à personalidade” do mestre, até sua entronização como patrono da educação nacional ou como marco de referência das políticas públicas federais. Este artigo procurou mostrar que essa institucionalização corresponde à lenta perda da substância subversiva que o caracterizava - o que chamo de “paulofreireanismo” -, caminhando para a constituição de uma teologia laica.

PALAVRAS-CHAVE:
paulofreireanismo; teologia laica; institucionalização

ABSTRACT

We hardly ask ourselves “why are we still Freirean?”, nor do we suspect that the answer to that question may no longer be pedagogical. The fact is that the ideas of Paulo Freire, throughout their history, went through a major process of institutionalization, ranging from a kind of “personality cult” of the master, reaching his enthronement as Patron of national education or as a reference for federal public policies. This article seeks to show that this institutionalization corresponds to the slow loss of the subversive substance that characterized it - what I call “paulofreireanismo” -, moving towards the constitution of a secular theology.

KEYWORDS:
paulofreireanismo; secular theology; institutionalization

RESUMEN

Difícilmente nos preguntamos “¿por qué seguimos siendo Freireanos?”, y ni siquiera sospechamos que la respuesta pueda haber dejado de ser pedagógica. El hecho es que las ideas de Paulo Freire se reunieron a lo largo de su historia un amplio proceso de institucionalización que van desde una especie de “culto a la personalidad” del Maestro, a su entronización como Patrono de Educación Nacional o como hito de referencia de políticas públicas federales. Este artículo pretendió demostrar que esta institucionalización corresponde a la lenta pérdida de la sustancia subversiva que lo caracterizaba - lo que yo llamo “paulofreireanismo” - avanzar hacia la constitución de una teología laica.

PALABRAS CLAVE:
paulofreireanismo; teología laica; institucionalización

Não há movimento de renovação que, no próprio momento em que se aproxima do objeto não resvale para o automatismo das velhas instituições e não tome a forma da tradição. (...) Podemos discorrer longamente sobre o destino das revoluções, políticas ou culturais: uma só característica lhes é comum, só uma certeza resulta de seu exame: a decepção que suscita em todos os que acreditaram nelas com fervor. (Cioran. Exercícios de admiração)

PETITIO PRINCIPII

O ensaio que segue não trata diretamente de Paulo Freire (1921-1997) como construtor de ideias educacionais, nem se coloca forçosamente “contra” ou “a favor” de sua obra: o homem e o educador têm, aqui, importância secundária em nossa argumentação e as lembranças, citações ou referências aos seus escritos se darão apenas quando o assunto tratado - o “paulofreireanismo” - assim o exigir. É evidente que não será possível, em um texto sobre o tema, ignorar completamente o papel que o autor pode ter exercido na recepção social de sua obra ou na institucionalização de seu pensamento. Rogo, no entanto, como uma espécie de petição de princípio, para que os eventuais leitores deste texto façam amplo uso de sua inteligência judicativa para não incorrerem em nenhuma confusão ou amálgama entre o autor (que atribui a sua obra uma significação) e seus epígonos, cuja tarefa de institucionalização de seu pensamento escapa, em geral, ao poder do autor.

Porque é disso que este ensaio trata: do processo de institucionalização do pensamento de Paulo Freire, que produziu uma corrente de seguidores, comentadores, divulgadores, pesquisadores e admiradores reunidos em instituições de ensino e pesquisa, que, em nome da preservação da memória intelectual daquele educador, o transformou em um “autor”: centro irradiador de citações, de comentários, de exegese, de teses e dissertações, vendo e identificando na obra do mestre uma palavra fundamental repleta de indicações e caminhos não apenas pedagógicos, mas também éticos, epistemológicos, estéticos, políticos ou culturais que orientam, mais do que ações educativas, formas de relacionamento intersubjetivo, relações cognitivas com o mundo e reflexões sobre práticas individuais ou coletivas, privadas ou públicas. Em resumo, este ensaio tratou da crítica à construção, não de um “método” ou de um “sistema”, mas de uma instituição Paulo Freire. É isto que estou chamando, aqui, de “paulofreireanismo”.

Poderíamos examinar o tema a partir de uma sociologia das instituições, o que significaria tratá-lo de forma “positiva”, quer dizer, considerar o percurso exercido por um movimento ou uma iniciativa social que nasce periférica e marginal e, pouco a pouco, vai abandonando tal marginalidade, penetrando em práticas não oficiais ou informais e passa, em seguida, a receber um reconhecimento formal e chega, finalmente, a se constituir em política de Estado que não depende mais de vontades individuais (ou de governos) e terminam recebendo um estatuto legal que assegura sua positividade jurídica. Não é nesse sentido que quero tratar o assunto, e sim a partir de seu lado, digamos, “negativo”: como perda da força subversiva original, sua conversão em um ismo característico, com sua feição doutrinária e teológica.

Reconheço que todo “ismo” é, no fundo, uma caricatura. O que significa dizer que estou consciente de que a obra e o pensamento de Freire também encontraram expressões de renovação original (sobretudo nas metodologias participativas de pesquisa), realizadas com grande respeito à sua letra e ao seu espírito e atualizando aquele saudável movimento que Paulo Freire tanto admirava na obra de Georges Snyders: continuidade e ruptura. Mas, a caricatura tem uma função figurativa específica e substantiva: ressaltar e produzir em alto relevo os traços principais de uma personagem ou, no nosso caso, de uma corrente pedagógica que se toma por continuadora de uma obra e de uma reflexão cujas ações resultam em uma séria ameaça de esterilização.

Essa institucionalização aparentemente independe das intenções que o próprio autor procurou imprimir à sua produção e raramente encontra, nele mesmo, expressões de resistência que possam impedir seus seguidores de promover tal institucionalidade. Hegelianismo, marxismo, confucionismo, budismo, gramscianismo, cristianismo, platonismo... são exemplos de como as ideias podem se constituir em sistemas narrativos (com suas condições de enunciação específicas e normatizadas) capazes de dar respostas consideradas válidas a respeito de algumas interrogações. A relação que o pensamento de um determinado autor pode guardar com a instituição que leva seu nome sugere, assim, uma indagação imediata, que é a de saber qual o grau de fidelidade ou de fidedignidade entre ambos ou, dito de outro modo, se o que se diz em seu nome poderia ser realmente endossado pelo autor.

O problema pode ser assim resumido: o que e como se faz para que as ideias de um autor se transformem em uma “doutrina” altamente institucionalizada? É isso que este ensaio procurou examinar, tratando especialmente daquilo que acima chamamos de paulofreireanismo.

ARGUMENTO

O problema - e que talvez nos ofereça uma hipótese de trabalho - pode ser expresso naquele dito de Mülhmann a respeito dos messianismos revolucionários no terceiro mundo: “quando uma ideia se institucionaliza, numa igreja ou num partido (mas também em uma Pedagogia!) é porque já perdeu a força originária onde, no entanto, ela tenta ainda fundar sua legitimidade” (Mülhmann, 1961Mülhmann, Johann. Les méssianismes révolutionnaires dans le Tiers Monde. Paris: Ed. de Minuit, 1961., p. 04).

Isso significa dizer que a pergunta “por que ainda somos freireanos?” quer dizer a que tipo de indagação o pensamento de Freire ainda responde, e parece ter deixado, já há algum tempo, de ser uma indagação “pedagógica”: desconfio, pois, que somos freireanos por razões que deixaram de ter natureza “educativa”, “libertadora” ou “conscientizadora”. Contudo, essa questão pode ser completada com outra, já anunciada no início deste ensaio e sem a qual a primeira permaneceria incompleta: qual o sentido e as consequências dessa institucionalidade em torno de Paulo Freire, alçado - apenas para dar alguns exemplos - à condição de patrono, não de uma instituição, mas de uma prática social (a educação) e referência normativa (marco de referência) para as políticas públicas federais.1 1 Cf. Marco de Referências das Políticas Públicas em Educação Popular, documento elaborado, em 2014, por GT da Secretaria de Articulação Social da Presidência da República.

Iniciemos nosso escorço a partir de dois temas-interrogações que reúno a seguir e que principiam com a incômoda temática do “culto à personalidade” e, em seguida, com a da “fidelidade doutrinária”.

CULTO À PERSONALIDADE?

Podemos realmente falar aqui de “culto à personalidade”?

Temo que sim! A expressão, claro, lembra os piores momentos do stalinismo (e das políticas do Comintern), com suas imensas fotos, seus títulos de “nobreza” (Guia Genial, Grande Timoneiro, Comandante Supremo da Revolução etc.),2 2 Em relação a Paulo Freire (o que, no meu conhecimento, não aconteceu com nenhum outro educador brasileiro), também lhe foram atribuídos títulos característicos daquele “culto”: “Cidadão do Mundo”, “Andarilho da Utopia”, “Andarilho do Óbvio”, “Educador do Mundo”... seus cânticos e odes, seus desfiles, as narrativas de suas proezas (revolucionárias, sexuais, intelectuais etc.), suas frases lúcidas e arrebatadoras... Analisando esse culto, György Lukács (Carta sobre o stalinismo) mostra que ele funciona sob uma arquitetura piramidal, em que a figura do líder precisa ser reproduzida cada vez em menor escala até a base da pirâmide, e o segredo de sua estabilidade está em não deixar que ninguém saia de sua “posição”, duvide do valor desse culto ou permita que o sistema seja infectado por agenciamento externo (o que não deixa de ter semelhança com a ordem mandarinal). O que está em jogo, aqui, já havia sido observado quatro séculos antes pelo grande amigo de Montaigne, Étienne de La Boétie (1984Boétie, Etienne de la. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1984.), em que é a identificação com o “um” (ou uno) que assegura a fidelidade servil, a dependência moral e intelectual na qual tudo pode desabar bastando que alguém diga “Não!”, que retire seu ponto de apoio.

Convivo, no meio universitário, com colegas freireanos em quem posso constatar pelo menos uma coisa que chama a atenção, sobretudo tratando-se de um meio que se distingue, em sua condição profissional, por sua exigência “crítica”: diz respeito à sacralização do nome de Freire, de sua obra e de seu legado pedagógico que rara e excepcionalmente se fazem objeto de uma avaliação isenta e rigorosa. De fato, foram passagens rapidíssimas mostrando algumas fragilidades do pensamento de Freire em uma época de derrocada das figuras do sujeito, críticas em geral realizadas pelas correntes pós-estruturalistas, ou algo mais antigo, como a vinculação de uma fase de seu pensamento ao ideário nacional-desenvolvimentista, o que fez de Vanilda Paiva a Judas Iscariotis do paulofreireanismo, uma importante parte da obra de Freire posterior à Pedagogia do oprimido foi objeto de incontáveis entrevistas com amigos e admiradores (Shor, Faundez, Brandão etc.) ou partiu para a construção de “novas” pedagogias (da autonomia, da indignação, da esperança), mas, sobretudo, objeto de citações ad nauseam (“como dizia Freire”; “segundo Paulo Freire”, “de acordo com Freire”...), do que de uma avaliação mais severa, localizando e datando as linhas fortes de seu pensamento no contexto de uma atmosfera intelectual que tem suas raízes em uma determinada quadratura histórica, mas que, hoje, necessitaria ter sua validade conceitual demonstrada. Não é, como me disse uma freireana, “porque existem ainda oprimidos que a obra de Paulo continua válida”.3 3 O argumento lembra aquele de Sartre a respeito do marxismo: “A filosofia insuperável de nossa época, porque as contradições que a produziram ainda não foram superadas”. Uma filosofia ou uma pedagogia não são “superadas” (um termo que remete a uma determinada concepção de história das ideias) porque as “condições objetivas” de que tratam não existem mais, e sim porque outras ideias (filosóficas ou pedagógicas) propuseram novos conceitos capazes de ver a realidade de outra maneira, renovando, assim, a nossa própria capacidade de pensar aquelas “condições objetivas”, que podem, inclusive, permanecer as mesmas (embora, aqui, fosse necessário discutir esses termos e averiguar até em que a própria objetividade não seria um efeito de nomeação, de linguagem. Discussão que não faremos aqui). Mas claro que também seria possível fazer o contrário: antes de propor pedagogias pastorais ou salvacionistas, examinar se as formas da dominação ou opressão (as célebres “condições objetivas”) continuam as mesmas, se na transição da sociedade do trabalho para a sociedade do consumo a estratégia de administração pulsional, com sua ética correspondente e fabricando determinadas disposições de espírito - projetos de subjetivação - podem ainda ser consideradas como um problema de “consciência” (ingênua ou crítica). De qualquer maneira, essa camaraderie freireana termina por fragilizar exatamente aquilo que a obra dele tanto exigiu: a vigilância crítica!

Menos perdoável, no entanto, porque ratifica a suspeita de culto à personalidade, é ver espalhados, nos centros de educação deste país, imensos pôsteres daquele educador, com sua longa e profética barba sobre fundo de uma frase qualquer, em geral de forte apelo emocional e ideológico. Coisas como “ninguém liberta ninguém...”; “a educação não muda o mundo, muda as pessoas...”; “todo ato educativo é um ato político”... - e poderíamos multiplicar os exemplos! - atestando a interessante operação intelectual posta em prática pelos freireanos: realizar o trânsito de uma pedagogia com pretensões soteriológicas para uma espécie de teologia laica, com suas fraternidades, seus códigos identificatórios, seu léxico, sua vulgata, seus oficiantes e, finalmente, a sacralidade com que o seu nome é invocado, sua “presença” lembrada, sua imagem cultuada.

FIDELIDADE DOUTRINÁRIA?

Esse culto, tão comum nos centros e institutos que levam seu nome, exige, para assegurar seus mecanismos de reposição identitária o que chamei acima de fidelidade doutrinária. Essa fidelidade não significa forçosamente a proteção dos pressupostos da pedagogia com vistas a torná-la infensa à própria realidade, imune a qualquer possibilidade de contaminação; nem apenas a verificação constante do grau de respeito aos compromissos assumidos pelos oficiantes. Significa que os instrumentos conceituais de que se dispõe para julgar a sua validade e para avaliar as relações dela com a realidade são aqueles fornecidos pelo próprio sistema doutrinário, o que impede o fiel de ultrapassar os limites mentais oferecidos por aquele corpus, algo bastante semelhante às célebres autocríticas comunistas ou à confissão cristã, descritas e analisadas por Peter Berger (1980Berger, Peter. Perspectivas sociológicas. Petrópolis: Vozes, 1980.). É isso que estou chamando também de “apelo emocional e ideológico” que os clichês freireanos comportam. Aqui também reside uma das formas “terminais” da institucionalização de um pensamento: o jargão, o clichê, a frase batida e rebatida, cuja função é produzir os automatismos do pensar, impedindo a avaliação distanciada e judicativa dos enunciados. Em uma palavra: o que era, no início, potencialidade crítica, aqui se transforma em operação ideológica,4 4 Uso o termo “ideológico” na acepção de H. Arendt (O pensar), e não na de Marx (falsa consciência ou ideias da classe dominante). oferecendo antecipadamente as respostas às indagações e evitando a tarefa do pensar.

O “PROGRAMA” METODOLÓGICO DO PAULOFREIREANISMO

Em abril de 1963, foi publicado, no n° 4 da Revista Estudos Universitários (Revista de Cultura da Universidade do Recife), um longo artigo de Paulo Freire no qual, passado todos os anos que nos separam dele, pôde-se constatar o balbucio de todo o programa “metodológico” do paulofreireanismo. Se, no mesmo número, o professor Jarbas Maciel, auxiliar de Freire na Secretaria de Extensão Cultural da antiga Universidade do Recife (atual UFPE), propõe um “Sistema Paulo Freire” (uma verdadeira miscelânea ideológica de que trataremos mais adiante), nosso educador propõe o seu “método”, também elaborado no molde de “etapas”. Ali, Freire deixa claro que o “método” supõe uma epistemologia inteiramente centrada em uma filosofia do sujeito: o portador último das significações, detentor de uma “consciência” sobre a qual ele pode agir e transformar, e em que se concentra a possibilidade de tratar o mundo como algo a ser transformado, retomando a clássica distinção epistemológica do sujeito-objeto tal como tratada pela fenomenologia. A originalidade do “método”, no entanto, está em promover uma curiosa transposição - na verdade, já presente nas formulações do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) - em que consciência individual e realidade nacional terminam por se encaixar em modelos de “transitividade” semelhantes! Do lado da segunda (realidade nacional), a ideia de que o Brasil vivia um trânsito entre o colonial (inautêntico) e o nacional (autêntico), entre a sociedade fechada (“sem povo”), marcada pelo latifúndio, e a sociedade aberta que a promessa democrática indicava. Em cada uma dessas condições sócio-históricas a preocupação está centrada na correspondência, hegeliana, entre forma de consciência individual e condição histórica. Mas não é qualquer consciência individual que interessa aqui, mas apenas a dos “proletários e subproletários”, que mais tarde ganharão o nome genérico de “oprimidos”. Essa condição não se aplica, por exemplo, a um intelectual como o próprio Freire, que já se encontra do lado da transitividade crítica!

Do lado ainda da consciência individual temos os célebres termos com que Freire nomeia a consciência (dos outros), a da transitivação-ingênua, se mergulhada nas estruturas objetais da sociedade fechada (homem-objeto), ou de transitivação-crítica, quando emerge para a sociedade aberta e torna-se “sujeito de sua própria história” (homem-sujeito). Tudo acompanhado de uma rápida e curiosa nota sobre a “apetência educativa das populações urbanas” e “certa inapetência das rurais, ligada à intransitivação de sua consciência” (como se o meio geográfico, rural ou urbano, definisse prontidões de aprendizagem segundo “apetências educativas”!).5 5 A tese de que o meio geográfico pode determinar certas disposições psicológicas é antiga entre nós e teve, entre seus mais influentes promotores, Euclides da Cunha. E para completar esse quadro de claríssima inspiração dual-estruturalista e sistêmica, banhado em iluminismo pedagógico, a distinção entre povo e massa (provavelmente extraída de suas leituras de Ortega y Gasset, que inspirara, com o seu A rebelião das massas, de 1930, toda aquela geração de intelectuais, inclusive os Isebianos).

É surpreendente, nesse artigo, ver Freire retomar a construção que Jarbas Maciel fará em matéria na mesma revista, evocando a teoria do reflexo condicionado de Pavlov como “uma das etapas da relação dos homens com a realidade”, teoria que inspirava um dos fundamentos de seu “Sistema”. Francamente, teorias pavlovianas - impulso inicial das correntes comportamentalistas e que nos remetem, no campo pedagógico, aos anos sombrios do behaviorismo e do tecnicismo - são absolutamente incompatíveis com concepções dialogais de educação assentadas sobre fenomenologias da consciência (intencionalidade). Juntar dialogicidade com pavlovianismo é tentar a quadratura do círculo!

O que vai ficando evidente, desde os primeiros ensaios do método e do sistema, é esse desiderato de nomear, qualificar a consciência do outro e buscar em supostas teorias científicas, ou entendidas como tais, o substrato que permitiria oferecer graus elevados de legitimidade institucional à pedagogia.

As teorias ditas sistêmicas, das quais deriva o gestionarismo atual - e digo isso consciente da formulação simplista que segue, mas suficiente para o caso - entendem que as instituições são uma espécie de caixa racionalizante na qual nós introduzimos insumos ou fomentos (input) que se transformam no seu interior e nos fornece, ao final, um resultado previsto no plano inicial (output), mesmo que aqui se trate de consciências: o problema é quando se tenta realizar o tour de force de juntar sistema com libertação!

Saber, afinal, se o mestre tinha consciência, naquele momento, de tais riscos e até onde ele poderia intervir sem deslegitimar sua própria pedagogia que, como ocorre com certas “criaturas”, começava a se tornar independente de seu criador,6 6 Como afirmaria Jarbas Maciel, no artigo citado, sustentando a “irreversibilidade do sistema” que “não dependeria mais das vontades individuais”. parece-me uma tarefa condenada ao fracasso, uma vez que não temos como avaliar a consciência que um autor poderia manifestar em relação não somente à recepção social de sua obra, mas também ao uso futuro que fariam dela.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO: TEMAS GERADORES E UNIVERSO VOCABULAR

A questão, portanto, acerca de se ter ou não consciência dos riscos contidos na recepção de qualquer obra, como já afirmamos, remete a um enigma moral dificilmente decifrável.

Naquele que eu considero um verdadeiro programa-manifesto do paulofreireanismo, o artigo a que me referi acima, Freire desenvolve a ideia que conhecerá uma grandiosa fortuna pedagógica: a das palavras e dos temas geradores.

Sempre me chamou a atenção o fato de Sócrates e Jesus não terem escrito uma única palavra, embora fossem pessoas cultas e letradas. Não sei onde se encontra a razão para tal decisão, mas é possível supor que ambos estavam convencidos do valor da palavra viva, no interior de um “jogo de linguagem” em que gestos, entonações, inflexões vocais e expressões faciais faziam parte de uma intersubjetividade direta e sem intermediários ou tradutores. O diálogo, aqui, alcançava sua dimensão mais precisa: ele “era travessia de algo pela palavra” (Dia Logein, em grego) e caracterizava aquele mais importante pilar da vita activa a que se refere Hannah Arendt, a ação, em que os homens se tornam visíveis uns aos outros por meio de sua palavra: ação fugaz que se desfaz no momento em que eles, os homens, se separam. Mas “entre eles” - inter homines esse - está o mundo, não como mundo geográfico e físico, mas como mundo de significações. O problema, a meu ver, se dá quando palavras que têm um sentido e um significado no interior de uma malha semântica e lexical de uma cultura de classe (“popular”), com articulações inteiramente compreensíveis no interior dessa cultura e daquela malha, são selecionadas por alguns intelectuais-educadores, segundo critérios estranhos àquele universo linguístico (suas dificuldades ortográficas ou fonéticas), listadas segundo seu grau ou poder de “conscientização”, quer dizer, de se fazerem objeto de um “desvelamento” ideológico de coisas aparentemente escondidas à consciência do homem ordinário - mas visíveis por aquele que as seleciona - e capazes de, se trazidas à luz, favorecer emergências e transitividades dessa mesma consciência. Não é mais o Sócrates ou o Jesus da filosofia viva, da reflexão vivida, da vida refletida, mas o Platão ou o Paulo de Tarso da doutrina escrita, reservada e ensinada: recolher palavras, selecioná-las em função de um impreciso potencial conscientizador, ou em função de certa concepção do social (e da relação entre consciência e realidade), significa devolver aqueles vocábulos aos seus usuários revestidos de uma nova roupagem supostamente libertadora da consciência porque são capazes de desvelar o opressor hospedado em cada um deles.

No entanto, quem estaria autorizado a recolher aquelas palavras/temas-geradores e “devolvê-las” sob uma formatação “crítica” aos seus usuários habituais, que em suas vidas cotidianas jamais fariam semelhante uso semântico? Há, aqui, algo que lembra a Alegoria da Caverna (República. Livro VII): essa libido educandi presente em toda a pedagogia pastoral, que sempre supõe (mas essa talvez seja a condição de toda a pedagogia!) que a consciência do outro é insuficiente, precária ou ingênua. Desde Platão que praticamos, como intelectuais, uma espécie de ortopedia da consciência do outro que marca as práticas pedagógicas com o timbre de uma promessa: a de que ao final de um doloroso percurso de imersão em si mesmo (reconhecer que sua interioridade-consciência está contaminada por ilusões e aparências) se vislumbra a promessa da libertação dessas invisíveis dominações. O segredo (ou melhor, a libido potentiae) dessa operação reside no fato de que como não posso enxergar diretamente meu “interior-hospedaria-de-opressores” (Santo Agostinho dizia que a alma não pode ser investigada pelos sentidos), e ele só pode se revelar pelo uso da linguagem, então, é modificando o sentido que dou a cada palavra que remeterei minha consciência à autoavaliação, em uma operação que nos reenvia à tradição filosófica do hegelianismo (refiro-me ao tríptico alienação-autoconsciência-libertação).

No princípio dos anos 1960, quando em Recife ainda se iniciava a experiência do Movimento de Cultura Popular (MCP), confeccionou-se uma cartilha (Livro de Leitura para Adultos) em que as palavras geradoras já vinham definidas antecipadamente, o que provocou certo afastamento de Paulo Freire daquele movimento, sob a alegação de que sem o respeito ao universo vocabular dos educandos, do qual aquelas palavras deveriam ser extraídas, todo o princípio em que a alfabetização “conscientizadora” se fundava estaria comprometido. Era, pois, para Freire, uma questão de princípio político-pedagógico, e não de estratégia educativa.7 7 Cf. Entrevista a Janete Azevedo, 1984, e também o artigo citado em Estudos Universitários, 1962.

É preciso ver essa recusa de Freire com precaução e distanciamento. O problema não estava em palavras definidas antecipadamente, ato supostamente “autoritário” e que contrariava os fundamentos de seu ideal pedagógico. A questão se situa em outro ponto, de calado mais profundo, e que apenas esbocei acima: na extração das palavras de seu contexto linguístico original (“popular”), sua reapropriação por intelectuais-educadores vincados por certas opções político-pedagógicas, sua ressemantização (com perdão pela expressão batida!) em uma formatação ideológica distinta e, finalmente, sua devolução ao contexto original, agora banhadas em intenções políticas e pedagógicas muito diferentes das de seu uso linguístico original. Isso, a meu ver, coloca em questão a ideia mesma de “partir da realidade do educando” que, dessa forma, preserva a aparência democrática (dialogal) da pedagogia, mas impõe significados (segundo critérios de legitimidade ideológica discutíveis) que não são mais os dos educandos. Há a propósito, uma passagem em André Malraux (1965Malraux, André. Anti-mémoires. Paris: Gallimard , 1965.) em que, em seu encontro com Mao Tsé-Tung, este teria dito ao grande escritor francês algo como “precisamos devolver às massas, de forma clara e organizada, aquilo que recebemos dela de forma obscura e dispersa”. Embora a “tese” pareça possuir um elemento “revolucionário” e educativo, no fundo esconde um contrabando ideológico em que a atividade crítica só começa após essa intervenção intelectual, e não antes, quando o uso apenas ordinário das expressões impede processos de “conscientização”. Mecanismo sutil, aqui reside o ponto inicial da institucionalização de um pensamento: sua constituição em “método”.8 8 8 Paulo Leminski, em seu fabuloso Catatau, faz o filósofo René Descartes (que ele chama pelo nome latino, Cartesius), perdido no Pernambuco de Maurício de Nassau, dizer que “Mas ora sei que todo método é método de preservar-se da irrupção de novas realidades”.

Alguém já disse que quem lê e relê sempre as mesmas obras termina por adquirir certa tranquilidade em sua relação com a realidade: há sempre uma frase daquele autor lido e relido capaz de conter a impulsiva e inesperada realidade com o bridão de suas rédeas teóricas. Quando isso acontece é porque o autor, caso já tenha falecido, conhecerá sua segunda “morte”, que corresponde, justamente, à institucionalização de seu pensamento.

O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO

DO MÉTODO AO SISTEMA

Já nos primeiros passos da pedagogia freireana, no início dos anos 1960, o professor Jarbas Maciel, que participara com Paulo Freire da experiência do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, no mesmo número da Revista Estudos Universitários (Maciel, 1963Maciel, Jarbas. Fundamentação filosófica do sistema Paulo Freire. Revista Estudos Universitários, n. 4, abr.-jun. 1963.. p. 25-60), propõe não mais um “método” Paulo Freire, mas um “sistema” Paulo Freire de educação para o que ele elabora, nesse artigo, sua “fundamentação teórica”. No que consistia?

Tal “sistema” se desenvolvia em seis etapas:

  1. alfabetização infantil;

  2. alfabetização de adultos;

  3. ciclo primário rápido (textos antológicos reduzidos, rápida formação profissional);

  4. universidade popular (serviço de extensão cultural);

  5. Instituto de Ciências do Homem da Universidade do Recife; e

  6. Centro de Estudos Internacionais da Universidade do Recife.

Aqui, neste longo (e confuso!) artigo podemos assistir, ainda na dor do parto de uma pedagogia, sua primeira tentativa de ir além de um “método” para constituir um “sistema” abrangendo não apenas todas as etapas da escolarização das camadas populares, como também o desejo de internacionalizar (universalizar) um pensamento supostamente entendido como portador de uma resposta pedagógica para a “hominização” do homem.

O artigo é uma verdadeira pérola de ecletismo teórico, misturando Cristianismo, lógica tomista-aristotélica, lógica apofântica (aquela capaz de esclarecer ou iluminar a realidade por intermédio de proposições verdadeiras), teoria escolástica da suposição formal e material, teoria do reflexo condicionado de Pavlov, pragmática existencial concreto-sensível-vegetativa (!), teoria dos sistemas.... Uma verdadeira salada ideológica que chega a causar espécie o fato de o próprio Paulo Freire ter aceito essa vertigem protofilosófica do professor Jarbas Maciel como fundamentação teórica de seu “sistema”. O fato é que Paulo nunca repetiu essa mistura e creio que jamais falou de sua pedagogia como um “sistema”.9 9 Quando se referiu a esse “sistema”, foi repetindo uma frase da professora Dulce Dantas no artigo na mesma revista.

O professor Jarbas (Maciel, 1963Maciel, Jarbas. Fundamentação filosófica do sistema Paulo Freire. Revista Estudos Universitários, n. 4, abr.-jun. 1963.), falando da Extensão Universitária e seu papel na democratização da cultura, chega a afirmar, a certa altura de seu artigo, que: “O maior exemplo histórico do grau máximo de comunicação entre os seres humanos foi o Cristo (p. 16)”; ou “o grau máximo de democratização possível (da comunicação cultural) é o Cristianismo (p. 16)” (!), ou coisas como “o homem analfabeto é apenas parcialmente um ser de relações (p. 19)”. O mais interessante desse “sistema” é que “uma vez posto a funcionar, não para mais, é processo irreversível e que, dada a sua grande objetividade, independe da atuação isolada dos indivíduos que o apliquem ou o queiram deformar” (p. 21). Chega a ser desconcertante! Mas há algo de revelador nessa salada ideológica jarbista: a ideia, não de todo declarada, de que um sistema pedagógico possa ter a mesma natureza de uma religião, o Cristianismo, entendido como o grau máximo de humanidade autêntica. Estavam lançados os fundamentos “teóricos” para a transformação do paulofreireanismo em uma teologia laica.

De resto, qual a ambição de todo sistema? Pretender que toda a movediça e imprevisível realidade do mundo (a passada, a presente e também a futura) possa caber no interior de uma explicação global; supor que toda irrupção histórica do não previsto seja entendida como disfunção sistêmica. “Sistema”, com efeito, é o nome do medo que temos da emergência da incerteza e da imprevisibilidade que as relações humanas comportam.

DICIONARIZAÇÃO

É preciso, aqui, fazer a distinção entre o que significa o pensamento de um autor no interior de uma instituição e a institucionalização do pensamento de um autor. No primeiro caso, um autor pode perfeitamente criticar os hábitos e as normas consagradas em uma instituição (a cultura institucional) e, ao assumi-la, como Paulo fez ao receber, por exemplo, a direção do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da antiga Universidade do Recife e ao ver na Extensão (no caso rural) formas autoritárias de “doação” ou “transmissão” de saber aos camponeses, procurar modificá-las por meio de uma pedagogia dialogal (Comunicação). Isso é perfeitamente compreensível: introduzir rupturas na tradição, quebrar a cadeia do continuum para que o pensamento possa continuar a pensar, impedindo que tenhamos sempre as mesmas respostas para novas indagações ou para os objetos que se dão a pensar e que aparecem no horizonte intelectual, essa é a tarefa do pensador que revigora e até muda o perfil de uma instituição. Bem diferente é a institucionalização do pensamento de um autor.

A dificuldade principal que a institucionalização de um pensamento nos impõe é que, se no início, ele nos fornecia e propunha palavras novas para designar e conotar realidades ordinárias (a da “opressão”, por exemplo), nos obrigando a dar novos significados às nossas experiências, com a institucionalização aquelas novas palavras passam a compor e se fixar em um “dicionário”. Definindo sinônimos e usos normatizados da língua, a dicionarização de um léxico (existe, aliás, um dicionário Paulo Freire, organizado pelo professor Danilo Streck (Streck et al., 2008Streck, Danilo; Redin, Euclides; Zitkoski, Jaime José (Org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica , 2008.). Mas, aqui, é necessário distinguir um esforço de definição, de sinonimização e semantização de um léxico, nem sempre evidente, com o seu enquadramento conceitual sistemático e institucionalizante), a dicionarização, retomo, ordena e limita o campo em que um pensamento está autorizado e legitimado a designar coisas, e fora dele tais coisas perdem seu sentido ou não são pronunciáveis. “Não usarás outras palavras para me pensar” poderia ser o primeiro mandamento de toda “dicionarização” de uma ideia (o corolário bem que poderia ser “Não permitirás que se introduzam germes lexicais em meu dicionário”). Se imaginarmos que o “método” parte, em uma ponta, da palavra como experiência vivida do educando e, lá na outra ponta, vemos toda a sintaxe do “método” aprisionado no interior de um... dicionário, penso que podemos obter uma ideia precisa do que estou chamando de institucionalização! Assim, pensar que a permissão para que o outro pronuncie a sua palavra (como pronúncia do mundo anterior à da palavra escrita: o oprimido não é um “analfabeto oral”; a expressão é de Freire) significaria introduzi-lo na liberdade é, na verdade, praticar algumas sutis operações, como

  • esquecer-se - como vimos - de que essa palavra inicial não se esgota aqui: ela é “trabalhada” pelo educador, que a devolve ao seu usuário ideologicamente modificada segundo as opções do próprio educador;

  • supor a crença em uma conversão da consciência por meio da palavra (uma espécie de terapêutica política, o “pensar certo”), um gênero de freudismo sem divã, mas com “círculos de cultura”;

  • insistir em uma aceitação do sujeito de consciência, construção moderna, em que a origem de toda significação, de toda cognição, de toda moralidade está situada em um sujeito-já-aí dotado de categorias que antecedem suas experiências possíveis, enquanto ego transcendental; e

  • é imaginar que as formas da opressão ainda atingem preferencialmente, nessa sociedade do hiperconsumo (para alguns) e do hiperindividualismo, a consciência, e não o desejo sobre o qual as pedagogias da consciência praticamente nada têm a dizer.

DISCIPLINARIZAÇÃO

O passo decisivo dessa institucionalização pode ser observado na disciplinarização deste pensamento: sua tradução e normatização em cátedra universitária. Levantemos - concedendo o benefício da dúvida - algumas interrogações a respeito desse processo:

  • a criação de disciplinas acadêmicas, tais como a de “educação popular”, atestaria o fracasso do impulso inicial em que ela assentaria todo seu potencial subversivo, e que agora se encontraria apaziguado sob a forma curricular?

  • ou, antes, ela indicaria que a universidade, apesar de todo seu conservantismo corporativo, seria sensível a modelos alternativos de educação ainda em trânsito para formas mais sistemáticas?

A aceitação de qualquer dessas questões/hipóteses aqui esboçadas não nos livraria do fato de que a disciplinarização do paulofreireanismo no interior da instituição universitária não é necessariamente um avanço, uma conquista política ou um reconhecimento do valor imanente daquela narrativa: é retirar dele o saber marginal, não oficial, que o marcava em seus pródromos; é submetê-lo a uma lógica “formativa” envolvendo suas didáticas, o ordenamento de conteúdos, a avaliação, a classificação dos indivíduos, a bibliografia consagrada, os exames regulares etc., além de transformar completamente o sentido da própria educação popular, que não está mais voltada para as classes subalternas, não trata mais com adultos analfabetos, não pretende mais “conscientizá-los”. O que se faz aqui é a leitura, o aprendizado e o comentário da obra do mestre, o que não tem, a rigor, mais nada a ver com “educação popular”!

“Estou cansado de ser subalterno: agora eu quero ser hegemônico!”, disse-me, recentemente, um educador popular. Essa frase talvez resuma, muito apropriadamente, essa libido institutionis: criar os mecanismos capazes de submeter a sociedade a consensos ético-políticos (se entendermos hegemonia em sua acepção mais comum, a gramsciana). Isso significa apenas repisar uma compreensão do social herdada dos mesmos parâmetros do ideário burguês (que criou o que chamamos de sociedade civil), reduzindo, desse modo, o princípio da pluralidade que deveria marcar a forma como vemos o mundo, que funda as pedagogias dialogais e que, sem ele, teríamos de abolir a própria ideia de espaço público. O curioso é que esses gramscianos (adeptos de políticas hegemonistas) também afirmam e reafirmam suas próprias virtudes “pluralistas”, o que significa querer realizar a proeza teórica de juntar hegemonia com pluralismo (é como querer casar o pote de ferro com a panela de barro: na hora H, a hegemonia bate e o pluralismo, coitado, apanha!). Porém, a frase de meu colega resume o fenômeno da institucionalização àquele aspecto que chamei de “positivo”: quando adquire legitimidade para sair da esfera “privada” (no sentido gramsciano) e se tornar política pública de Estado.

O mais elevado patamar desse amplo programa de institucionalização doutrinária se dá quando a educação popular (leia-se paulofreireanismo) se torna Política Nacional de Educação Popular vinculada à Secretaria de Articulação Social da Presidência da República e que culmina com a elaboração e publicação de um marco de referência (2014)!

EDUCAÇÃO POPULAR COMO MARCO DE REFERÊNCIA PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS FEDERAIS: UMA PEDAGOGIZAÇÃO DA SOCIEDADE?

O problema central que enxergo nesse marco é o do interesse do Estado em se tornar “pedagogo”, por meio de uma operação estratégica que transforma as relações políticas que estão na base dos agenciamentos públicos (e a formação dos atores sociais - em geral, “populares” - seja para elaborá-las, seja para monitorá-las) em relações pedagógicas: uma espécie de pedagogização das políticas públicas, políticas que são sempre o resultado de amplos e contínuos conflitos em torno de significados sociais, aplicando-se o “método” freireano para concebê-las e executá-las. Como se seguindo o modelo da problematização, conscientização, transformação na formação dos atores e na discussão das políticas pudéssemos obter a legitimidade ideológica que um suposto “diálogo libertador” ofereceria, apoiando-se, além do mais, em conceitos como amorosidade, curiosamente tomado como princípio... epistemológico!10 10 Tenho dúvidas, aliás, se tal conceito, normalmente associado à esfera privada (a ideia arendtiana de Amor Mundi e aos homens não tem nenhum sentido “epistemológico”) pode orientar políticas “públicas”. No entanto, o nó da questão não é o “método”: é o princípio que o orienta.

A ideia de fazer do Estado o educador da sociedade foi colocada inicialmente pelos jacobinos durante a Revolução Francesa (especialmente Saint Just e Le Peletier de Saint-Fargeau) que advogavam a precedência da igualdade em relação à liberdade e, assim, à época da Convenção (dominada pelo Terror robespierreano), as ideias que Condorcet apresentara à Assembleia em 1789 (“Cinq mémoires sur l’instruction publique”), defendendo o princípio de autonomia do professor e da liberdade de escolha dos conteúdos, foram vencidas pelo princípio igualitarista da escola republicano-jacobina. A questão toda estava centrada em uma determinada ideia política de “povo” (fundamento “uno e indivisível” da Nação) que a escola deveria produzir. Pois é: o “povo” (“Esta palavra que serve para qualquer coisa!”, como diria Mirabeau) ou os “oprimidos”, como queiram, não é algo que está-aí, vagando pelo social à espera de que os políticos venham manipulá-lo ou que os intelectuais venham libertá-lo; o povo é uma criação discursiva com conotações muito diversificadas em cada época histórica, servindo - como conceito - a interesses muito diferentes e está longe de representar qualquer forma de homogeneidade em sua composição semântica. O que um Estado-educador parece intentar, aqui, é formar por intermédio de uma ideia humanista de “homem” - conceito seriamente questionado hoje, inclusive e, sobretudo, em suas consequências pedagógicas - um projeto de nação que retoma pressupostos muito semelhantes ao debate que se deu nos anos 1950 e 1960. Quando o Estado quer ser educador11 11 Não seria surpreendente encontrar alguma coincidência com a divisa do atual governo federal (“Brasil: pátria educadora”). e considera como legítima sua exclusiva opção de construção de políticas públicas por meio de um “método pedagógico emancipador”, temos o direito, eventualmente, de desconfiar: afinal, foi em nome da emancipação da sociedade que o stalinismo, usando do poder intelectual supostamente emancipatório do marxismo, inventou os Gulags!

Aqui é o Estado que se apropria de uma pedagogia (algo que, em princípio, está associado às teorias que sustentam e orientam as práticas educativas. A educação, não custa lembrar, diz respeito ao que se é; a instrução ao que se sabe. Uma pátria educadora quer formatar subjetividades, e não distribuir saberes escolares), erige-a em “método” de formação subjetiva de agentes das políticas públicas e, finalmente, transforma a própria política pública - “o Estado em ação” - (Azevedo; 1997Azevedo, Janete. Educação como política pública. Campinas: Cortez, 1997.) em um procedimento pedagógico sobre a sociedade. Qualquer semelhança com injunções totalitárias - produtoras de pedagogias de Estado - não é mera coincidência! E, não resisto à ironia, se eu quisesse que a Pátria educasse meu filho, eu o matricularia... na Pátria!

Ah, sim! A quem possa interessar, Condorcet - que defendia a liberdade como anterior à igualdade - terminou guilhotinado (1792) a mando de Robespierre. Saint-Just também!

UMA TEOLOGIA LAICA?

Não conheço nenhuma outra proposta pedagógica que tenha elaborado seus fundamentos a partir das noções modernas de “crítica”, de “liberdade”, de “sujeito” e de “consciência” e exposto suas ideias e expectativas (pedagógicas, humanas e sociais) em linguagem tão vincada por uma nomenclatura religiosa como o paulofreireanismo!

Não é o fato de Paulo Freire ter sido ele mesmo confessadamente de formação cristã (um Cristianismo fortemente influenciado pelo personalismo de Mounier), se cercado de amigos e colaboradores (ao menos, no início de seu percurso intelectual e institucional) também seguidores dessa fé e de atribuir aos títulos de suas obras referências diretas a uma concepção cristã de vida (oprimidos, esperança, indignação): o que é surpreendente é o projeto de importar tais princípios para o interior de uma pedagogia supostamente laica e mundana (que Freire supunha ter semelhanças com o gramscianismo) e que, em sua “modernidade”, advoga a responsabilização dos homens pela condução de sua vida em direção à liberdade. Não é à toa que a maioria dos freireanos que conheci experimentou, professou ou se formou no interior de uma fé de inspiração cristã, como se encontrasse no freireanismo a expressão pedagógica secular de sua fé salvacionista!

Secular? Nem tanto! Tomemos o tema da esperança, por exemplo: uma consciência laica e republicana não pode aceitar a “esperança” nem como princípio político nem pedagógico. A esperança é uma das três virtudes teologais (junto com a fé e a caridade) e quando recrutamos essa virtude para o campo pedagógico é porque pretendemos atribuir-lhe um mandato pastoral. Na vivência da esperança há sempre a necessidade de uma travessia,12 12 Os paulofreireanos preferem a expressão “caminho” ou “caminhada” que, na tradição paulina, é o lugar onde se dá a conversão (o caminho de Damasco). o que supõe um ponto de partida em que (somos e) tomamos consciência de nossa imperfeição ou de nossa “queda” (em linguagem laica, alienação ou ingenuidade política), após o que se impõe um longo trajeto, uma passagem, uma transitividade (muitas vezes dolorosa e arriscada) em que, ao final, poderemos vislumbrar não propriamente a Terra Prometida, mas o modelo de homem “humanizado” que a promessa contém. A travessia está contida em todo diálogo,13 13 Não mais o diálogo com o Deus paulino ou o diálogo interior da vertente agostiniana, mas o diálogo com outros homens igualmente “oprimidos”. já que o sufixo grego Dia significa exatamente “travessia” ou “através de”. Uma vez atravessado (mas uma travessia coletiva, supondo que sozinho ninguém chegará ao outro lado) e vencidas as tentações em cada passo do percurso (em linguagem laica, as da sociedade de consumo que me incitam a me tornar “massa”), vencidas no interior de cada consciência, claro, é quando me constituo “povo”. Não como “povo eleito”, mas como “povo-sujeito”.

O resumo que condensa essa curiosa articulação entre laicidade pedagógica moderna e expectativas soteriológicas - o que estou chamando aqui de “teologia laica” - aparece no dístico freireano da célebre vocação-para-ser-mais. Na sua origem latina, vocatio, vocationis diz respeito a uma voz interior, a um chamado irresistível que orienta todo o nosso destino: contrariá-lo seria romper com aquilo que somos e conduzir uma vida inautêntica e infeliz, como pode ser a vida de alguém que está em constante contradição consigo mesmo. Por outro lado, a ideia de ser-mais, cuja origem podemos encontrar em Pico della Mirandola em seu conhecido Discurso sobre a dignidade do Homem (século XV), posteriormente retomada pelos modernos, de Rousseau a Sartre, sob a forma da “incompletude” e, portanto, do homem como um ser de liberdade, capaz de escapar das determinações sociais e culturais em que nasceu e escolher seu próprio “destino”, que, assim, deixa de ser um “chamado” para ser uma escolha consciente. Ora, juntar vocação com ser-mais não chega a ser propriamente uma contraditio in limine: é um projeto, ao mesmo tempo moderno e pré-moderno, em que o laicismo pedagógico (republicanismo) se alia à esperança contida nas religiões salvíficas. Mas, talvez, aqui, resida uma primeira razão pela qual “ainda somos freireanos”.

Em 1991, Gilles Kepel publicou um interessante livro chamado La revanche de Dieu em que analisava o fenômeno recente que, nós, ocidentais, chamamos de fundamentalismo e integrismo, expresso em uma retomada de formas religiosas tradicionais que, de certa maneira, nós esperávamos ver paulatinamente superadas com o avanço da ciência e de instituições seculares. O autor identifica nessa retomada não apenas a vacuidade das utopias marxistas e liberais, mas, sobretudo, uma forma de resistência ao esfarelamento da sociedade, sua anomia, a ausência cada vez mais visível de projetos comuns: uma sociedade sem Deus não significou menos angústia e ansiedade, nem fez progredir a crença moderna de que caberia aos homens, por meio do uso da razão, dominar as forças de seu destino. “É a cidade secular que se encontra num impasse”, diz o autor. Penso que a questão “por que ainda somos freireanos?” talvez encontre aqui, na tese de Kepel, um primeiro balbucio de resposta.

Uma pedagogia completamente “secularizada”, como a que praticamos hoje - e em uma tendência cada vez mais crescente -, sofre de uma patologia que já havia sido apontada, entre outros, por Marcuse. Trata-se da ideia de unidimensionalidade (Marcuse, 1976Marcuse, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.) em que, para sermos breves, Marcuse procura mostrar que a velha tradição do romantismo alemão, separando as esferas da Kultur (mundo das realizações espirituais, da arte, da literatura) e da Zivilisation (mundo da vida ordinária, do trabalho, da produção e das trocas), permitia que tivéssemos possibilidade de escapar (pela literatura, por exemplo) dos automatismos da vida cotidiana dominada por relações de mercado, e garantia a sobrevivência da utopia como crítica e como imaginação. Mas, no momento em que a utopia se torna, ela própria, mercadoria, essa “aderência” à facticidade da vida, essa espécie de presente contínuo, dissolve o poder subversivo da imaginação. Essa é a noção marcuseana de unidimensionalidade.

Ora, uma educação que se despreocupou em formar, uma pedagogia exclusivamente centrada nas exigências subjetivas do mercado (flexibilidade, empregabilidade, adaptabilidade..., para o que a competência socioemocional é a última aquisição!) só pode encontrar um contraponto em um projeto de “reencantamento” transcendente do pedagógico, um projeto que nos lance para além da facticidade da vida e alimente nossas esperanças de que o homem pode ultrapassar, pela ação concertada com outros homens, as determinações da vida ordinária; que o presente não é um cão mordendo a própria cauda e que poderíamos, em algum ponto de nosso percurso, restaurar a dignidade da crítica e a sensibilidade utópica. Nesse exato sentido, o paulofreireanismo preservaria, em sua ambígua dimensão secular e teológica, o potencial de expectativas sociais (que a Kultur outrora proporcionava) normalmente frustradas pela ordem “presentista”.

O último ponto deste ensaio, e que completa o percurso de nossa “teologia laica”, toca na questão propriamente “profética” do paulofreireanismo. Aqui, a ideia de profecia não tem nenhuma relação com as inúmeras mistificações e charlatanismos que vicejam em uma sociedade desorientada e com psiquês em frangalhos ou com visionários de opereta, arautos de artes divinatórias. O sentido da profecia que trataremos aqui é aquele contido no Antigo Testamento, cuja mensagem fundamental era uma advertência aos que acreditavam em outra coisa (riqueza, opressores) que não em seu Deus, Profetas que não aceitavam uma ordem injusta e que condenavam a opressão social e a exploração, como se pode ler em Amós (Am. 4:1). Podemos, desde logo, identificar a matriz profética contida no paulofreireanismo, expressa no binômio denunciar-anunciar. Em Oséias (na sua denúncia das desigualdades sociais e dos abusos do poder), Isaías (denúncia da autossuficiência humana) e Miquéias (com sua ênfase nas injustiças sociais e, como um autor moderno avant la lettre, ao denunciar os atentados contra a “dignidade humana”), a profecia é, antes de tudo, um ensinamento, um convite à ação, uma advertência moral contra o “pecado” (como no resmungão Jeremias!) e um chamado para realizar a vida digna de seu Deus. Estão contidos, aqui, os elementos da denúncia e do anúncio, parâmetros do binômio profético presentes em nossa “teologia laica”.

Mas, o que é denunciado no paulofreireanismo? De maneira muito grosseira, diria que sua denúncia recai sobre a incapacidade de examinarmos nossa própria consciência - porque nos faltam os instrumentos para tal -, de fazermos de nossa interioridade a hospedagem de formas sutis de opressão, de aceitarmos modelos de educação que, de maneira intransparente, instalam colonizadores em cada um de nós e, por fim, de conceber o mundo como algo dado, não sujeito às transformações, não histórico ou, para usar uma expressão mais adequada ao tema, não “problematizável”.

Em que consiste, em contrapartida, o anúncio?

O anúncio não se dá na descrição do que seria a sociedade futura e suas relações, e sim na necessidade imperiosa de fazermos a transição de nossa consciência para procedermos a este ersatz do Apocalipse:14 14 “Apocalipse” no sentido grego da palavra: revelar o que está encoberto. a ideia freireana de desvelar. A noção de desvelamento trata a realidade como se existisse um “por trás” das aparências que a ideologia nos impõe (um tema platônico, aliás!), uma “verdade resplandecendo seus fogos” (como no poema de Drummond) e cujo reconhecimento exigiria outra qualidade da consciência (crítica), a partir do que poderíamos medir o grau de ingenuidade ou de alienação em que estamos, compreender nosso inacabamento essencial, vislumbrar nossa “humanização” e, finalmente, compreender e praticar pedagogias libertadoras que anunciam, via dialogicidade e amorosidade, aquilo que poderíamos ser e que as formas insidiosas da opressão nos impedem.

De resto, receio que estejamos diante de um léxico (denúncia, anúncio, desvelamento, verdade, pensar certo, opressão, ingenuidade, libertação, diálogo, travessia, vocação, amorosidade etc., etc.) que, visto de certa distância, demonstra sua indisfarçável veia religiosa. Mas talvez esteja aqui o enigmático encanto que o paulofreireanismo exerce sobre seus seguidores: ele lhes devolve um sentimento de comunidade, atado pelos laços de uma mística teopedagógica ratificada a cada instante pela própria doutrina que os mecanismos institucionais induzem e reproduzem.

CONCLUSÃO: UM MANUAL DA SEGUNDA MORTE

Cornelius Castoriadis afirmou certa vez que a melhor maneira de honrar o pensamento de um autor é criticá-lo. Com certeza, a assertiva inversa também é verdadeira: desonrar um autor seria condená-lo ao que alguém já chamou de “crítica roedora dos ratos”, à indiferença e à obscuridade das bibliotecas. Quando o legado de um autor não se faz mais objeto de avaliação crítica, não é propriamente o autor que estamos condenando à morte (embora isso também seja verdade): é o próprio “pensar” que o autor certamente estimulou que se encontra ameaçado. São seus epígonos, pois, a quem devemos processar pela cumplicidade fatal da institucionalização esterilizante!

Assim, pode-se morrer mais de uma vez! Guevara, morto nas florestas bolivianas, conheceu sua segunda “morte” na banalização de sua imagem, fotografada por Korda, estampada em camisetas e spots publicitários e, finalmente, alçado à condição - pouquíssimo “revolucionária”, aliás - de Latin lover. Quando John Lennon anunciou que o “sonho havia acabado”, ele denunciava o fato de que a ruptura cultural promovida pelos “jovens” dos anos 1950 e 1960 havia sido recuperada e pacificada em seu poder de subversão pelo mercado (indústria cultural): era o fim de seu potencial de “mudar o mundo”. Eis o significado que atribuo ao que estou chamando de “segunda morte”.

Penso que o paulofreireanismo é uma forma (inconsciente?) de promover a segunda morte daquele educador! Aliás, o próprio Freire falava de uma espécie de “magistercídio”: a necessidade que temos todos de “matar” simbolicamente nossos mestres para que possamos assumir nossa autonomia intelectual (algo semelhante ao parricídio psíquico freudiano, analisado em Totem e Tabu). De seu caráter marginal e subversivo, perseguido pelas forças da reação, preso e exilado, tendo as obras proibidas de publicação no Brasil, passando pela tentativa de construção de um “sistema” (Jarbas Maciel), dos verdadeiros “milagres” ocorridos em Angicos (para todos os efeitos a “Jerusalém do paulofreireanismo”), do MCP, da Secretaria de Educação do Município de São Paulo, dos inúmeros “diálogos” e entrevistas elogiosas com amigos, da criação dos incontáveis institutos e centros “Paulo Freire”, da disciplinarização universitária da educação popular, da elevação de sua figura à condição de patrono da educação nacional e, finalmente, da confecção de um marco de referência para basear nos princípios da educação popular (dialogicidade, amorosidade, problematização etc.) as políticas públicas do governo federal..., são exemplos da fortuna reservada ao seu pensamento, que guarda a marca sedutora do humanismo moderno, centrado numa concepção de homem e de sujeito de consciência que os freireanos teimam em não enxergar seus limites e problemas conceituais (o que, como dissemos, seria fatal para a doutrina), escrito em uma linguagem de matiz teopedagógica..., que conduzem a uma pedagogia transformada em uma espécie de ontologia da esperança (vocação-para-ser-mais), anunciada em frases de efeito pastoral muito atraente e, ao fim, todo esse conjunto institucionalizado em organismos nos quais tenho dificuldades cada vez maiores em enxergar processos de libertação ou de conscientização, seja lá o que isso signifique.

* * *

Sugiro, para terminar este já longo ensaio, um exercício de imaginação que, admito, foi inspirado pela leitura de um romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov. Imaginemos que a Paulo Freire tivesse sido dada a ocasião de retornar à terra dos vivos para perambular entre educadores “freireanos”, observar e avaliar o destino terreno de seu pensamento, visitar as instituições que portam seu nome e se visse, em um determinado momento, reconhecido por um desses próceres do paulofreireanismo, diretor de um importante instituto que porta seu nome, gestor de importantes contratos de formação “conscientizadora” e, para sua imensa surpresa, se deparasse com a profunda insatisfação provocada pelo seu segundo advento. Penso que o romance de Dostoiévski pode ser, mais do que esclarecedor, prenunciador do destino das ideias.

Ivan Karamazov fala de um projeto de poema com seu irmão, Aliocha, sobre o Segundo Advento de Jesus, que deu o azar de cair em Sevilha, no século XVI e é preso pelo Cardeal Grande Inquisidor, nonagenário que, na véspera mesmo desse encontro, mandara queimar um lote de 70 homens na fogueira. Reproduzirei, aqui, apenas um extrato do diálogo inventado por Ivan (sob protesto de seu irmão!) que creio apropriado ao argumento que desenvolvi ao longo deste ensaio:

“És tu? És tu?

Não respondas, cala-Te. E o que poderias Tu dizer? Sei muito bem o que Tu dirias. Não tens o direito de acrescentar nada ao que disseste outrora. Por que vieste nos perturbar? Pois vieste para isto, para perturbar. (...) Amanhã condenar-Te-ei queimar na fogueira como o pior dos hereges.

(...) O Inquisidor enfim se cala, aguarda a resposta do prisioneiro. Mas o silêncio é opressor. Em silêncio Ele se aproxima e beija os lábios pálidos do nonagenário. Esta é toda a Sua resposta.

- Vai e não volta mais... não volta... não volta nunca mais!”

Confesso, ao terminar este ensaio, que algumas vezes sou assaltado pela estranha ideia - acho que de inspiração antropológica - de que a história dos homens foi dolorosamente vincada pela ansiedade da “salvação”: desde salvar o homem da polis, do pecado e da tentação, da ignorância e da alienação; salvá-lo das forças do destino, da história, da natureza, de si mesmo, da dominação dos outros, salvá-lo até da escola e, mais recentemente, da própria pedagogia... Esse desiderato soteriológico foi acompanhado de linguagem igualmente diversa: religiosa, econômica (marxismo), literária, política e, chegamos ao ponto, também pedagógica. Receio que paulofreireanismo seja mais uma das expressões pedagógicas desse atávico desejo de redenção.

É provável que os paulofreireanos tenham percebido que a grande obsessão moderna - a liberdade - talvez tenha se transformado em uma quimera insustentável fora de uma filosofia da consciência (o que não significa que não possamos redescrevê-la); também é possível que tenham se dado conta de que os homens estão aparentemente dispostos a trocar a liberdade pela ordem e pela submissão que as instituições asseguram (uma liberdade que, afinal, foi uma fonte permanente de angústia e temor); que estão prontos a negociar, enfim, a autonomia moral e intelectual pela felicidade que o consumo promete. Se isso for verdade, nossos freireanos terão de aceitar a vitória de uma antropologia realista sobre a promessa utópica da “humanização”. Mas, insistindo no freireanismo - e eis aqui o segundo motivo pelo qual “ainda somos freireanos” -, seus seguidores garantiriam, em uma espécie de razão cínica (Sloterdijck, 2012Sloterdijk, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo. Estação Liberdade, 2012.), que o nome do mestre continuasse a ser invocado e cultuado (uma garantia de legitimidade), mas, como na passagem de Dostoiévski, sob a impreterível condição de que... não voltasse nunca mais, nunca mais!

REFERÊNCIAS

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  • Sloterdijk, Peter. Crítica da razão cínica São Paulo. Estação Liberdade, 2012.
  • Streck, Danilo; Redin, Euclides; Zitkoski, Jaime José (Org.). Dicionário Paulo Freire Belo Horizonte: Autêntica , 2008.
  • *
    Este texto é uma versão do trabalho encomendado GT06 apresentado na 36ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).
  • 1
    Cf. Marco de Referências das Políticas Públicas em Educação Popular, documento elaborado, em 2014, por GT da Secretaria de Articulação Social da Presidência da República.
  • 2
    Em relação a Paulo Freire (o que, no meu conhecimento, não aconteceu com nenhum outro educador brasileiro), também lhe foram atribuídos títulos característicos daquele “culto”: “Cidadão do Mundo”, “Andarilho da Utopia”, “Andarilho do Óbvio”, “Educador do Mundo”...
  • 3
    O argumento lembra aquele de Sartre a respeito do marxismo: “A filosofia insuperável de nossa época, porque as contradições que a produziram ainda não foram superadas”.
  • 4
    Uso o termo “ideológico” na acepção de H. Arendt (O pensar), e não na de Marx (falsa consciência ou ideias da classe dominante).
  • 5
    A tese de que o meio geográfico pode determinar certas disposições psicológicas é antiga entre nós e teve, entre seus mais influentes promotores, Euclides da Cunha.
  • 6
    Como afirmaria Jarbas Maciel, no artigo citado, sustentando a “irreversibilidade do sistema” que “não dependeria mais das vontades individuais”.
  • 7
    Cf. Entrevista a Janete Azevedo, 1984, e também o artigo citado em Estudos Universitários, 1962.
  • 8
    8 Paulo Leminski, em seu fabuloso Catatau, faz o filósofo René Descartes (que ele chama pelo nome latino, Cartesius), perdido no Pernambuco de Maurício de Nassau, dizer que “Mas ora sei que todo método é método de preservar-se da irrupção de novas realidades”.
  • 9
    Quando se referiu a esse “sistema”, foi repetindo uma frase da professora Dulce Dantas no artigo na mesma revista.
  • 10
    Tenho dúvidas, aliás, se tal conceito, normalmente associado à esfera privada (a ideia arendtiana de Amor Mundi e aos homens não tem nenhum sentido “epistemológico”) pode orientar políticas “públicas”.
  • 11
    Não seria surpreendente encontrar alguma coincidência com a divisa do atual governo federal (“Brasil: pátria educadora”).
  • 12
    Os paulofreireanos preferem a expressão “caminho” ou “caminhada” que, na tradição paulina, é o lugar onde se dá a conversão (o caminho de Damasco).
  • 13
    Não mais o diálogo com o Deus paulino ou o diálogo interior da vertente agostiniana, mas o diálogo com outros homens igualmente “oprimidos”.
  • 14
    “Apocalipse” no sentido grego da palavra: revelar o que está encoberto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2015
  • Aceito
    11 Fev 2016
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