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Aspectos étnico-raciais e de gênero na inserção universitária de jovens africanas no Brasil

ASPECTOS ÉTNICO-RACIALES Y DE GÉNERO EN LA INSERCIÓN UNIVERSITARIA DE JÓVENES AFRICANAS EN BRASIL

RESUMO

O presente estudo discute a inserção universitária de jovens africanas no Brasil por meio do Programa de Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G), a partir do conceito de interseccionalidade. Procura-se problematizar as narrativas de estudantes sobre suas trajetórias educacionais, a constituição de projetos vitais e profissionais e a percepção do contexto sociocultural brasileiro, dando ênfase à intersecção entre etnia/raça e gênero. Este estudo observou discrepâncias entre as representações de democracia racial no Brasil e as experiências de jovens africanas universitárias, além de ter enfatizado elementos constituintes das possibilidades de ser mulher em um contexto social marcado por racismo, sexismo e xenofobia, de forma diferente de seus países de origem.

PALAVRAS-CHAVE:
PEC-G; interseccionalidade; gênero; raça; etnia

RESUMEN

Este estudio analiza la inserción universitaria de jóvenes africanas en Brasil a través del Programa de Becas para Estudiantes de Grado (PEC G), a partir del concepto de interseccionalidad. Se objetiva analizar las narrativas de los estudiantes acerca de sus trayectorias educativas, el establecimiento de proyectos vitales y profesionales y la percepción del contexto sociocultural brasileño, con énfasis en la intersección entre la etnia/raza y el género. El estudio observó discrepancias entre las representaciones acerca de la democracia racial en Brasil y las experiencias de las jóvenes universitarias, especialmente sobre los componentes de las posibilidades de ser mujer en un contexto social marcado por el racismo, el sexismo y la xenofobia, de manera diferente de sus países de origen.

PALABRAS CLAVE:
PEC G; interseccionalidad; género; raza; etnicidad

ABSTRACT

The present study aims to understand the perspective of young African women, who attend university in Brazil through the Exchange Program for Undergraduate Students (PEC G), based on the concept of intersectionality. It will analyze narratives of students, who discuss their educational trajectories, the establishment of vital and professional projects, and their perception of Brazil’s sociocultural context, emphasizing the intersection between ethnicity/race and gender. This study noted discrepancies between the representations of racial democracy in Brazil and the experiences of young African students. It also emphasized different possibilities for what it means to be a woman in the social context of racism, sexism and xenophobia in Brazil compared to in the students’ countries of origin.

KEYWORDS:
PEC G; intersectionality; gender; race; ethnicity

INTRODUÇÃO

O Programa de Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G) do Governo Brasileiro apoia alunos de países em desenvolvimento com bolsas de estudo para cursarem o ensino superior no Brasil. Este programa é uma iniciativa do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação do Brasil, juntamente com universidades brasileiras, e se foca em países com os quais o Brasil tem mantido acordos educacionais e culturais1 1 Os selecionados devem ter, no mínimo, 18 anos e até, preferencialmente, 23 anos. No Brasil, o intercambista recebe o curso de graduação gratuitamente. No entanto, deve comprovar que é capaz de se sustentar no Brasil (com no mínimo US$ 400,00 mensais para as despesas); ter concluído o ensino médio, ter certificado médico de saúde física e mental e, para alunos fora da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, possuir proficiência na língua. A seleção para este programa foca pessoas que se encontram em programas de desenvolvimento socioeconômico, as quais devem ter compromisso de regressar ao seu país de origem. Conforme o Ministério da Educação, o PEC-G oferece oportunidades de formação superior a cidadãos de países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais. (sendo estes da África, Ásia, Oceania, América Latina e do Caribe). Serão apresentados os resultados de uma pesquisa realizada com jovens africanas em Porto Alegre (Brasil) vinculadas ao PEC-G, por meio de entrevistas qualitativas de caráter narrativo cujos eixos organizadores foram: as trajetórias educacionais; o processo de inserção na vida universitária brasileira e os seus projetos de vida e de profissão.

Partindo deste contexto, este estudo teve como objetivos gerais compreender como essas jovens organizaram as narrativas sobre suas trajetórias educacionais; como se construíram os projetos vitais e profissionais dessas jovens e como perceberam o contexto sociocultural em que estavam inseridas; assim como compreender as formas de organização de seus discursos identitários, principalmente na intersecção etnia/raça-gênero.

Como possibilidade de estabelecer análises críticas sobre os aspectos discursivos hegemônicos, alguns estudos de vertente feminista utilizam a perspectiva da interseccionalidade - uma forma de localizar as manifestações discursivas que produzem e reiteram sistemas de dominação de modo sócio-histórico. Originária de reflexões de feministas negras norte-americanas nas décadas de 1970 e 1980 - o Black Feminism -, a proposta teórica baseada na ideia de intersecção procurou relativizar o universalismo do termo “mulher” (Costa; Ávila, 2005Costa, Claudia de Lima; Ávila, Eliana de Souza. Gloria Anzaldúa, a consciência mestiça e o “feminismo da diferença”, Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 3, p. 691-703, set/dez. 2005., Piscitelli, 2008Piscitelli, Adriana. Interseccionalidade, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Revista Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2, p. 263-274, dez. 2008.). O conceito de interseccionalidade busca contemplar eixos de poder (como “raça”, etnia, classe e gênero) enquanto construtos que se mostram cruzando e resinificando-se nas relações sociais de forma rizomática.

O campo de análise da interseccionalidade, derivado das tensões provocadas pelo Black Feminism, põe em pauta uma multiplicidade de questões sociais vistas sob perspectiva integrada (Pocahy, 2011Pocahy, Fernando Altair. Interseccionalidade e educação: cartografias de uma prática-conceito feminista. Textura, v. 13, n. 23, p. 18-30, jan/jun. 2011.). Nesse sentido, não compreende um somatório de operadores de dominação - ou simplesmente o reconhecimento de sistemas opressivos que operam a partir das noções de gênero, etnia/raça, idade, classe, sexualidade, etc. -, mas questiona a hierarquização destes eixos relacionados aos sistemas assimétricos de poder. A perspectiva da leitura interseccional permite, desta forma, identificar as particularidades e as tensões a que são submetidos determinados grupos, bem como compreender a pluralidade dos agenciamentos discursivos que dão ensejo para categorizações sociais.

Para Moore (2000Moore, Henrietta Louise. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência, Cadernos Pagu, v. 14, p. 13-44, 2000.), “raça”, etnia e gênero são exemplos de aspectos importantes da vida social humana, em constante intersecção, assim como são marcadores significativos das diferenças sociais. Os posicionamentos das pessoas em relação aos aspectos étnico-raciais ou de gênero, na interseção de diversas formas discursivas, aparecem na formação do processo de subjetivação, tanto individual quanto coletivo. Portanto, eles existem como um conjunto de subjetividades que podem convergir ou se contradizerem, mas que situam determinada pessoa nas concepções do que é ser mulher, negra e de determinada classe e composição étnica.

Discursos sociais relacionados aos aspectos de gênero ou étnico-raciais podem se articular de diversas formas. “Raça”, por exemplo, também pode interpelar as normativas do que se considera coerente com as formas de ser homem e mulher, mantendo discriminações articuladas por discursos opressores sexistas e racistas ao mesmo tempo (Moore, 2000Moore, Henrietta Louise. Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência, Cadernos Pagu, v. 14, p. 13-44, 2000.). Blackwell e Naber (2002Blackwell, Maylei; Naber, Nadine. Interseccionalidade em uma era de globalização: As implicações da Conferência Mundial Contra o Racismo para práticas feministas transnacionais, Revista de Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 189-198, jan/jun. 2002.) corroboram esta perspectiva, ao discutirem as questões de interseccionalidade entre gênero e “raça” e como estes dois construtos estão, muitas vezes, imbricados em formas de opressão, manifestadas em relações assimétricas de poder. Para tais autores, as opressões inter-relacionadas podem corroborar tanto com o aumento da violência racista como da discriminação de gênero, por exemplo. Nesses casos, mulheres negras são comumente tratadas como de menor valor e permeadas por um discurso de hipersexualização (Blackwell; Naber, 2002Blackwell, Maylei; Naber, Nadine. Interseccionalidade em uma era de globalização: As implicações da Conferência Mundial Contra o Racismo para práticas feministas transnacionais, Revista de Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 189-198, jan/jun. 2002.).

Nessa concepção, conteúdos ideológicos podem situar a mulher em diversos espaços de exclusão. Ampliam-se as diferentes formas de ser mulher como circunscritoras de possibilidades do feminino e as relações de gênero estabelecidas como aspectos que contribuem para um “tensionamento” das relações sociais. A premissa de que existe uma organização social das relações entre os sexos (Scott, 1989Scott, Joan. El problema de la invisibilidad. In: Gênero e História. México: Instituto Mora/UAM, 1989.), que transcende as diferenciações biológicas, necessita que se considerem marcadores sociais importantes. A perspectiva de gênero, tomada à luz da noção de construção social, está carregada de um fazer que opera na construção de um sujeito do gênero e, portanto, na lógica oposta à naturalização do feminino e masculino. Gênero, tomado como conceito operacional para a contestação da naturalização da diferença sexual em diversos espaços de discussão, seja na possibilidade de novos sujeitos históricos ou campos teóricos (Haraway, 2004Haraway, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra, Cadernos Pagu, v. 22, p. 201-246, 2004.), põe em pauta questões que estão situadas na experiência cotidiana e que tornam as análises mais contextuais e complexas depois das reflexões do Black Feminism.

Nessa perspectiva relacional, compreende-se etnicidade como um aspecto da intersecção social que engloba processos variáveis e intermináveis pelos quais os atores sociais identificam-se e são identificados pelos outros na base da dicotomização nós/eles, manifestando-se em redes discursivas (Barth, 1997Barth, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. 4ª ed. São Paulo: Unesp, 1997.; Jaspal; Cinnirella, 2012Jaspal, Rusi; Cinnirella, Marco. The construction of ethnic identity: insights from identity process theory. Ethnicities, v. 12, n. 5, p. 503-530, out. 2012.). Essa perspectiva é, portanto, estabelecida a partir de traços culturais que se supõem derivados de uma origem comum e realçada nas interações sociais. Tanto a noção de etnia como a de nação se situam no âmbito do sentimento coletivo e compreendem noções de pertencimento e diferenciação. Os aspectos étnico-raciais apresentam-se como uma rede de significados comuns que têm como função identificar-se com um grupo - supondo um senso de pertencimento - e com certas possibilidades de organização, baseados em questões como afinidade, estilo de vida, cultura, território e religião (Jaspal; Cinnirella, 2012Jaspal, Rusi; Cinnirella, Marco. The construction of ethnic identity: insights from identity process theory. Ethnicities, v. 12, n. 5, p. 503-530, out. 2012.). Um olhar voltado à experiência singular e suas interfaces socialmente identificáveis podem favorecer uma visão crítica baseada na experiência narrativa - no sentido de problematizar a noção de “raça” e etnia, dando visibilidade a discursos sociais que lhe atribuem determinados valores e possibilidades.

Não obstante, considerar aspectos culturais a partir do estranhamento das universitárias africanas em relação à sua vida no Brasil exige dar luz a aspectos históricos do país em relação ao racismo, que, mesmo apresentado de maneira diversa, se encontra, no Brasil, muito calcado pela noção de branqueamento. Segundo Bento (2002Bento, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In.: Carone, Iray; Bento, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.), a noção de branqueamento foi concebida pela elite branca e caracterizada pela responsabilização do oprimido, típico das ações de dominação. Dessa maneira, no que se refere ao branqueamento, observou-se um movimento em que se evita questionar a categoria “branco” - tendo como foco a problematização do outro (no caso, o negro) -, a qual não se enquadrava na norma vigente (a norma do mais branco que é equivalente ao dominante).

No Brasil, tal atitude dificultou as discussões sobre o racismo, o que gerou uma ideia negativa e estigmatizada de “não branco” como algo espectral que deveria ser extinto a partir da miscigenação com a elite branca, numa evidente noção higienista e europeizante (Bento, 2002Bento, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In.: Carone, Iray; Bento, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.). Esse discurso ideológico sustenta-se no temor, servindo de parâmetro para solucionar a suposta ameaça negra em um país em constituição. Este medo teria sido, segundo Bento (2002Bento, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In.: Carone, Iray; Bento, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.), um dos motivos pelo qual o Brasil incentivou a imigração, no início do século XX, a fim de proporcionar mais características brancas a um país extenso e ameaçador ao olhar europeu.

Quadros (2004Quadros, Waldir. Gênero e raça na desigualdade social brasileira recente. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 95-117, jan/abr. 2004.) indica que é possível perceber o impacto dessa ideologia, especialmente articulada com questões de gênero, para além do campo subjetivo. Por meio de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, evidencia-se que mulheres negras têm menos rendimentos relativos ao seu trabalho. Dados do Censo de 2002 mostram que mulheres negras obtinham apenas 31% de rendimento em comparação ao homem branco; portanto, uma mulher branca teria rendimento comparativamente de 62% em relação ao homem branco (Quadros, 2004Quadros, Waldir. Gênero e raça na desigualdade social brasileira recente. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 95-117, jan/abr. 2004.). Esta relação entre raça e gênero, sob outro aspecto, pode se mostrar pelo tipo de absorção da mão de obra negra no mercado de trabalho e na sociedade em geral, geralmente marcada por trabalhos menos valorizados e remunerados.

No Brasil, percebe-se que raça, gênero e etnia são construtos de grande impacto interseccional. Lidamos com relações de dominação calcadas tanto pela significação pejorativa dos aspectos físicos quanto pela definição dos grupos dominantes. Frutos dessas relações, Lima e Vala (2004Lima, Marcus Eugênio Oliveira; Vala, Jorge. As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, v. 9, n. 3, p. 401-411, set/dez. 2004.) identificam duas formas de preconceito predominantes no Brasil: o racismo cordial e o preconceito sutil. O primeiro é caracterizado pelas formas de manifestação de dominação que se caracterizam por serem típicas de uma sociedade multirracial, porém expressas de forma perigosamente jocosa, por meio de ditos populares, piadas e supostas brincadeiras. A chamada de preconceito sutil manifesta-se em relação a grupos exógenos. Apresenta-se por uma forma indireta e fria, e é caracterizada pela necessidade de uma suposta defesa dos valores tradicionais da cultura do grupo endógeno. Esses dois construtos podem estar imbricados, no sentido de que a concepção dos grupos endógeno e exógeno é tão relacional quanto uma forma “cordial” de hostilizar o outro.

Tais vivências de discriminação também compõem o panorama da vida de imigrantes educacionais de países africanos no Brasil. Em pesquisas realizadas com alunos africanos no contexto universitário, Andrade e Teixeira (2009Andrade, Ana Maria Jung de; Teixeira, Marco Antônio Pereira. Adaptação à universidade de estudantes internacionais: um estudo com alunos de um programa de convênio, Revista brasileira de orientação professional, v. 10, n. 1, p. 33-44, jun. 2009.) constataram que não só os níveis de adaptação dos alunos foram bons, como também os motivos de busca por serviços no Brasil se deram por orientação de carreira, busca de moradia e assistência à saúde, a despeito da discriminação racial percebida. As maiores dificuldades, segundo os autores, estão relacionadas à “família”, à “saúde”, ao preconceito e à moradia. Gusmão (2011Gusmão, Neusa Maria Mendes de. África e Brasil no mundo acadêmico: diálogos cruzados. In: COOPEDU - Congresso Portugal e os PALOP Cooperação na Área da Educação. Lisboa, CEA. p. 283-299, 2011.), no entanto, aponta que alunos que migraram para estudar no Brasil acabaram encontrando grupos formais ou informais de apoio social, corroborando a noção de cooperação internacional por parte desses alunos, além do desafio de organizar a sua noção de si, nessa interface África/Brasil.

As experiências mapeadas de estudantes oriundos da África no Brasil ilustram tanto a necessidade de se assimilarem as práticas pedagógicas existentes, como de se apropriarem dos conflitos étnico-raciais decorrentes essa inserção (Morais; Silva, 2011Morais, Sara Santos; Silva, Kelly Cristiane da. Estudantes de países africanos de língua oficial portuguesa nas universidades brasileiras: tensões de sociabilidade e dinâmicas identitárias. In: IX Congresso Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Salvador: Universidade Federal da Bahia. Anais... p. 1-17, ago. 2011.). Como apresenta Hirsch (2009Hirsch, Olivia Nogueira. “A gente parece um camaleão”: (re)construções identitárias em um grupo de estudantes cabo-verdianos no Rio de Janeiro, Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 65-81, jan/abr. 2009.), os universitários africanos muitas vezes se surpreendem com a discriminação racial encontrada no Brasil, posto ela ser contraditória aos estereótipos difundidos e validados sobre o contexto brasileiro na África - sendo apresentado por vezes como um “paraíso social” e detentor de oportunidades de vida mais diversificado e amplo (Subuhana, 2009Subuhana, Carlos. A experiência sociocultural de universitários da África Lusófona no Brasil: entremeando histórias. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 103-126, jan/abr. 2009.).

Já em um mapeamento sobre a percepção dos brasileiros em relação aos alunos africanos, encontra-se que são considerados tímidos e excessivamente educados e formais. Além disso, ainda persiste entre os universitários brasileiros concepções fantasiosas sobre “costumes tribais” da vida cotidiana nos centros urbanos africanos (Fonseca, 2009Fonseca, Dagoberto José. A tripla perspectiva: a vinda, a permanência e a volta de estudantes angolanos no Brasil. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 23-44, jan/abril. 2009.). O pouco conhecimento a respeito das culturas africanas parece ser um dos motivos que levam os estudantes brasileiros a criarem ou reforçarem estereótipos e preconceitos acerca de uma suposta África “selvagem”. Ainda, a memória vinculada a uma África selvagem contrasta com a percepção de excessiva polidez dos alunos africanos (Fonseca, 2009Fonseca, Dagoberto José. A tripla perspectiva: a vinda, a permanência e a volta de estudantes angolanos no Brasil. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 23-44, jan/abril. 2009.). Dessa forma, desde uma perspectiva interseccional, busca-se uma aproximação à realidade das alunas vinculadas ao PEC-G em Porto Alegre, Brasil, elencando a singularidade de suas trajetórias de vida e projetos futuros com sua inserção no contexto universitário local.

MÉTODO

Participaram deste estudo quatro estudantes africanas intercambistas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), sendo duas de Guiné-Bissau e duas de Cabo Verde. As quatro participantes tinham entre 19 e 25 anos. Todas as jovens vieram para o Rio Grande do Sul pelo PEC-G. A coleta de dados foi realizada por meio da proposta de entrevistas narrativas (Flick, 2009Flick, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed , 2009.), e toda informação gerada foi digitalizada e reunida em um corpus único, seguindo a perspectiva proposta por Garay Uriarte et al. (2002Garay Uriarte, Ana; Rueda, Lupicínio Íñiguez; González, Maite Martínez; Justicia, Juan Muñoz; Parejo, Susana Pallarés; Sixto, Félix Vázquez. Evaluación cualitativa del sistema de recogida de sangre en Cataluña. Revista Española de Salud Pública, v. 76, p. 437-450, out. 2002.), que foi inspirada na teoria fundamentada (grounded theory). Trata-se de uma inspiração, já que consiste na utilização de alguns dos pressupostos da teoria fundamentada clássica. Tradicionalmente, a teoria fundamentada exigiria o retorno aos objetivos da pesquisa a cada nova coleta de dados; a (re)organização constante do material coletado; e a codificação e a categorização das informações, conjuntamente à discussão para a formação de uma teoria sistemática a partir dos próprios dados coletados (Charmaz, 2009Charmaz, Kathy. A construção da teoria fundamentada. Trad. Joice Elias Costa. Porto Alegre: Artmed, 2009.). Entretanto, o processo assumido na presente pesquisa não contemplou um dos itens classicamente relacionados, ou seja, o retorno aos objetivos a cada nova entrevista, permanecendo no processo as outras características que identificam esse marco metodológico.

Considerando o âmbito de análise assumido, utilizaram-se entrevistas narrativas, pois estas favorecem a obtenção de informações subjetivas - como experiências de vida e questões pessoais das narradoras. Para estimular tais narrativas e situar a pesquisa eticamente, explicaram-se, objetivamente, os procedimentos da pesquisa e iniciou-se a entrevista com perguntas abrangentes “gerativas de narrativa”, possibilitando ao entrevistado criar uma narrativa com início, meio e fim, por exemplo: “Como foi a sua trajetória escolar?”; “Como está sendo estudar aqui no Brasil?”. Nesse sentido, as narrativas construídas ao longo da entrevista foram compreendidas como análogas às experiências de vida, tecidas pela percepção de quem as vivenciou e dirigidas com base numa noção de audiência.

Abarcando algumas conexões possíveis entre teoria fundamentada e análise discursiva, Keller (2005Keller, Reiner. Analysing Discourse: An approach from the Sociology of Knowledge. Forum Qualitative Sozialforschung, v. 6, n. 3, p. 1-13, jan. 2005.) sugere que se articulem análises discursivas e sociológicas a partir dos pressupostos da teoria fundamentada. O exercício de sistematização destas abordagens, segundo Keller (2005Keller, Reiner. Analysing Discourse: An approach from the Sociology of Knowledge. Forum Qualitative Sozialforschung, v. 6, n. 3, p. 1-13, jan. 2005.), poderia dar conta de uma oscilação muito presente nas análises qualitativas em ciências humanas, que, muitas vezes, pendem entre macrodiscursos e análises excessivamente particulares, compreendidas como extremos. A sugestão de Keller (2005Keller, Reiner. Analysing Discourse: An approach from the Sociology of Knowledge. Forum Qualitative Sozialforschung, v. 6, n. 3, p. 1-13, jan. 2005.) objetiva o desenvolvimento de estudos nos quais se estabeleçam interfaces mais elaboradas acerca das práticas sociais. A análise das narrativas, dentro desta perspectiva integrativa, por exemplo, permitiria que se compreendesse como os indivíduos articulam suas experiências e refletem sobre as suas posições em relação aos discursos dominantes, a partir de uma noção processual e contextual (Burck, 2005Burck, Charlotte. Comparing qualitative research methodologies for systemic research: the use of grouded theory, discourse and narrative analysis. Journal of Family Therapy, v. 27, n. 1, p. 237 262, ago. 2005.).

Utilizou-se a perspectiva da análise crítica do discurso (Van Dijk, 2010Van Dijk, Teun Adrianus. Discurso e Poder. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.) como uma forma de articular os resultados com discursos que circulam socialmente em nível macroestrutural. A análise crítica de discurso, segundo Van Dijk, 2010Van Dijk, Teun Adrianus. Discurso e Poder. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.), não se estabelece unicamente como metodologia, mas propõe uma visão crítica e implicada socialmente. A análise crítica do discurso tem como prerrogativa situar os aspectos comunicacionais numa concepção de prática social, bem como permite que se coloquem em pauta mecanismos sociais que legitimam desigualdades e injustiças num processo de reprodução das relações de dominação ou de abuso do poder.

RESULTADOS

Realizou-se uma análise através dos fragmentos discursivos por meio de eixos temáticos e criaram-se, inicialmente, três eixos a priori: trajetória de vida, presente e futuro. Essas categorias abarcaram, de maneira geral, as narrativas das estudantes, dando origem a diversos elementos que ajudam a mapear as questões relevantes de sua experiência no Brasil, tais como: vida familiar; escola na África; decisão de imigrar; adaptação; projeto profissional e projeto de vida. Tais eixos de análise permitiram identificar (como construtos baseados em dados empíricos) a centralidade dos discursos das participantes nas categorias relacionais (a posteriori) “gênero” e “aspectos étnico-raciais” (Tabela 1).

Tabela 1:
Categorias interseccionais de gênero e aspectos étnico-raciais presentes nas narrativas das participantes.

Inicialmente, na categoria “trajetória de vida”, enfatizou-se o momento de vida anterior à vinda ao Brasil, sendo verificados alguns aspectos emergentes, tais como apoio familiar para a realização do intercâmbio, consonante com uma cultura familiar de migração e determinados valores e expectativas da família em relação às estudantes. Esses construtos se imbricam em uma ideia de formação, futuro profissional e vivência fora do país de origem como características muito valorizadas no contexto familiar. A proximidade da família com a ideia do intercâmbio é presente na experiência de irmãs e irmãos ou parentes próximos que já haviam estudado no exterior. Entretanto, a experiência de vida e o estudo no exterior nem sempre podem servir de parâmetro adaptativo para a realidade enfrentada. As experiências familiares e comunitárias de estudo na França, em Portugal, na antiga URSS ou na China pouco se pareceram com o que foi encontrado no Brasil. Além disso, a representação do Brasil desenvolvida pelos produtos midiáticos (especialmente telenovelas) e religiosos brasileiros em seus países reforçavam a ideia de tropicalidade e, principalmente, “democracia racial”.

Nessa conjunção, as experiências vinculadas à escola nos Países de origem foram frequentemente citadas, por vezes corroborando as expectativas de carreira bem-sucedida e baseada na importância de uma educação consistente. As estudantes referiram que a educação formal é entendida por elas e sua família como fundamental, por isso estudaram em colégios privados e confessionais. Relacionaram “bons colégios” a questões de alto nível de cobranças quanto a boas notas e postura - intrinsecamente associada à preparação para o futuro. Nesses colégios, as estudantes puderam conviver com religiosas e religiosos brasileiros, que também as influenciaram na escolha pelo intercâmbio - apresentando-as à cultura e certos costumes do Brasil.

Outro item que desponta nas análises da trajetória de vida é a decisão de imigrar, em que são evidenciadas como razões pelas participantes estudarem fora de seu país o processo de formação educacional e a perspectiva de melhora da situação econômica em longo prazo. Essa decisão de migrar por um período é apresentada por Rocha-Trindade (1995Rocha-Trindade, Maria Beatriz. Sociologia das migrações. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.) como “migração temporária”, ou seja, essa migração temporária ocorreria visando, por exemplo, à obtenção de títulos de graduação ou de pós-graduação em programas de ensino superior.

Dentro dessa categoria mais ampla encontrou-se ainda a subcategoria “experiência comunitária e visão de Brasil”, em que se evidenciam não somente as influências da família e de amigos na decisão de estudar fora de seu país, como também uma visão positiva do Brasil enquanto país acolhedor a estrangeiros - no qual as temáticas em relação à “raça” e etnia, quando apareciam, eram colocadas num sentido de proximidade e afinidade. Interseccionado a estas questões emergem muitas afirmações relativas a uma educação ampliada e à importância de experiências em culturas diferentes, com referências a mães e mulheres na família com ensino superior e experiências internacionais de intercâmbio.

Cabe ressaltar a possibilidade de empoderamento que essa experiência migratória possibilita. Viajar e entrar em contato com outra realidade social promove novas experiências e coloca a pessoa em questão em relação com recursos simbólicos e materiais, os quais podem não existir e/ou serem de difícil acesso no país de origem. Com efeito, Nathália ressalta que:

[...] é, e a tecnologia também sabe, aqui tem muitas coisas avançadas, para estudar na África tu sofre [sic] bastante, tu não tem [sic] muito [...]. A internet é muito cara, tu não tens acesso, tem [sic] livros, os livros antigos, tu tens que estudar para fixar, não tem [sic] bons laboratórios, não tem [sic] grandes bibliotecas (Nathália, 20 anos).

Outra questão que surge nesse empoderamento remete a saída de uma posição de maior dependência para outra de maior autonomia; neste caso, estar em outro país, sem o contato direto com a família possibilitaria à pessoa assumir responsabilidades que outrora não assumia, colocando-a como responsável pelos afazeres cotidianos. Assim, Nathália rememora:

[...] chegava o dinheiro, eu fazia e escrevia tudo, tenho que pagar o aluguel, a luz, a água e carregar a carteirinha (transporte). Fazer tudo isso já é uma responsabilidade que a pessoa fica ganhando, mas eu não tinha isso, se ficasse lá nunca ia ganhar isso, nunca ia saber isso, nunca. A experiência é boa também, tu sabes, tu sofres (Nathália, 20 anos).

Já na categoria “presente”, estes aspectos relacionados ao processo de adaptação ao Brasil foram melhor abordados. Nesse sentido, as seguintes subcategorias emergiram como temáticas importantes nas narrativas: processo adaptativo e faculdade no Brasil. Em tal âmbito, a concepção do Brasil como país receptivo foi questionada, entrando em conflito com falas que ressaltavam as dificuldades nas relações sociais, apontando o racismo como uma das grandes dificuldades que estavam tendo no país. As participantes trouxeram em suas narrativas a percepção do grande individualismo dos brasileiros e a sua falta de hospitalidade ao receber estrangeiros. Também relataram não terem tido uma recepção acolhedora ao chegarem ao Brasil, e por isso sentiram que os brasileiros são “frios” na relação com desconhecidos. O individualismo, para as participantes, pauta as relações interpessoais vivenciadas no Brasil, contrastando com seus países de origem.

A questão do racismo foi evidenciada em momentos das narrativas das jovens, as quais explicitaram também o preconceito sofrido por questões de gênero - quando dizem ter percebido, em alguns momentos, uma discriminação diferente daquela dos homens negros estudantes (que segundo elas, teriam uma socialização mais efetiva). Concomitante a isso, percebe-se outro elemento nas narrativas, em que tanto a migração para o Brasil, quanto a possibilidade de um processo de amadurecimento se encontram presentes, como assinalado por Diandara:

[...] esperar e ver com os próprios olhos, por que se não vão se espantar, por que tem outro pensamento, chega aqui e vê outra coisa, aí se você se decepciona e já quer voltar [sic]. Eu já vi muitas pessoas aqui que chegaram com outra visão, vieram aqui, viram outra coisa e querem voltar, porque achavam que não era isso e acabaram se acostumando, aí eu vou dizer pra eles vir [sic] porque aí eles vão conhecer outra cultura, vão fazer amizades [...] e então, se mergulha e vai em frente [sic], veste a camisa e segue (Diandara, 23 anos).

Essa visão em relação ao país não foi isolada, como corrobora Valéria:

Eu ia avisar para eles prepararem, primeira coisa, o espírito, a moral, porque viver longe da família e sofrer o preconceito é demais, mas - como meu irmão que vai terminar o colégio ano que vem - ele quer vir para cá, e eu disse não, melhor ir para outro país, que é bem melhor [...]. Meu irmão mais velho está na França, mas ele nunca me disse que sofreu preconceito ou não (Valéria, 22 anos).

Houve ainda a demonstração da sensação de que os brasileiros não se importam muito em interagir com quem está ao seu lado, em comparação aos africanos, que, segundo elas, fazem amizades mais facilmente. Essas percepções mais individualistas sobre os brasileiros foram, por vezes, relacionadas ao fato de serem negras africanas, principalmente quando da comparação com mulheres vindas de outros países. No que se refere especificamente a essas passagens, as informações relacionadas à convivência conflituosa com os brasileiros eram expressas por meio da descrição de situações como:

Foi horrível, foi muito difícil. Quando decidi vir para o Brasil, eu achei que chegaria aqui e não teria muita dificuldade de conviver com as pessoas [...]. Cheguei um dia na sala de aula e tinha trabalho em grupo - quando lembro penso até em chorar, eu era a única negra, na faculdade em geral [...]. Tinha trabalho e a professora disse: ‘Vai ter trabalho agora, procure um grupo e peça para entrar para fazer o trabalho’. Só que quando fui falar com as pessoas, ninguém me deu bola, me isolaram, parecia quando tu tiras alguma coisa do caixote e deixa fora, sabe? (Valéria, 22 anos).

A participante acrescenta que, além desta visão negativa em relação à sua presença, na situação descrita, existem outros aspectos que parecem se relacionar. A percepção dos brasileiros em relação aos africanos, para Valéria, foi corroborada pelas notícias veiculadas nos meios de comunicação brasileiros: “diferente dos brasileiros, a nossa mídia mostra as coisas legais do Brasil. Diferente daqui, que não mostra nada a não ser coisas ruins da África”. Essa percepção que emerge na entrevista, em que Valéria liga a vivência em sala de aula e a percepção em relação à mídia brasileira, é intercalada por diferenciações sobre as relações interpessoais no Brasil e na África. Nota-se que, na entrevista de Valéria, os processos de diferenciação são sempre referidos em relação aos brasileiros e africanos, não em relação às pessoas de seu país de origem, especificamente. Isso é ressaltado em vários momentos, a exemplo da expressão povo africano - que é problematizada, mas reiterada -, e colocada em oposição aos brasileiros.

A convivência com as pessoas, o modo de ser dos brasileiros é bem diferente do nosso. Eu posso dizer [...] que os africanos são, posso dizer que são povos livres, não de liberdade, mas eles se interagem diferente dos brasileiros. Por exemplo, acho os brasileiros muito individualistas, cada um por si e Deus por todos. [...] A gente ajuda uns aos outros, diferentemente dos brasileiros que conheço (Valéria, 22 anos).

Nesta categoria, despontaram também falas que mesclavam as vivências em território estrangeiro com experiências denotando tanto interfaces entre racismo e discriminações de gênero, como sistemas de discriminação étnica (referente aos negros(as) brasileiros(as) para com os negros(as) africanos(as)). Por demérito dos negros africanos com os brasileiros, há preconceito dos negros brasileiros porque estes vieram escravizados para o Brasil, enquanto que os africanos, não. Por isso, os negros brasileiros seriam (de acordo com as entrevistadas) mais submissos aos padrões impostos pelos brancos:

Não sei se é porque os negros africanos são ousados, os negros africanos não temem nada, entendeu? Se tu fizeres alguma coisa para um africano e ele não gostar, ele fala na tua cara, seja você branco, preto, mulato, seja o que for ele fala na tua cara, diferente dos negros brasileiros, entendeu? [...] Diferença dos negros africanos eu reparo no dia-a-dia, eu acho que é por causa disso, ou porque saíram da África e foram escravizados aqui e depois veio, mas não sei o motivo do preconceito dos negros brasileiros com os negros africanos, mas acho que é por causa disso, porque não ocupam grandes cargos aqui (Valéria, 22 anos).

Neste momento do espaço narrativo-identitário de Valéria, observamos como a noção de pertencimento não está vinculada propriamente ao fato de ser negro, mas sim uma negra africana. Da mesma forma que este processo de diferenciação ocorre pelo encontro das entrevistadas com brancos(as) e negros(as) brasileiros(as), as jovens africanas colocam em pauta a diferença dos sentimentos gerados quando do encontro com os outros estudantes - como ao sentirem-se tratadas de forma diferenciada das estudantes europeias no Brasil, por exemplo.

Outra questão que é trazida nas falas das participantes é o convívio das jovens com o grupo de estudantes de mesma origem étnica. Essa noção de integração e grupo emergiu, principalmente, vinculada a outros intercambistas. Esses grupos de intercambistas não estavam referenciados à Universidade na qual elas estudavam no momento da entrevista. No que se refere à relação de amizade entre os intercambistas, as participantes Diandara e Inês ressaltam que é fonte de grande apoio no processo de estadia no Brasil:

É uma casa de estudante, tem gente de outras partes do Brasil, de outros países, tem muitos africanos também, têm guineenses também, acho que são nove ou oito guineenses. [...] Quando tem uma festa, aí se interage, mas aquela coisa de amigos de infância (Diandara, 23 anos, bissauense).

No que se refere às categorias provenientes do eixo “futuro”, como “projeto de vida” e “projeto profissional”, podemos perceber que, embora os projetos apresentados pelas participantes contenham e se baseiem em possibilidades oferecidas em suas cidades natais, mantêm-se o desejo em articular outras experiências internacionais com demandas em relação a casamento e família. As certezas geradas pelas experiências familiares de imigração parecem terem sido testadas na experiência no Brasil, o que, em alguns casos, acaba por associar o projeto de vida a modelos mais tradicionalmente designados ao feminino como, por exemplo, numa visão tradicional de casamento e maternidade. Ainda quanto à constituição de um pensamento em relação ao futuro, cabe destacar dois aspectos: por um lado, o fator “casamento” se encontra presente nos planos e planejamentos das participantes, ainda que visto com certa insegurança, e, por outro, o peso que a família tem na constituição desse planejamento, execução e manutenção. Assim, duas visões são expostas e emergiram durante as entrevistas, a exemplo da fala de Nathália:

Casar eu quero casar, mas eu não sei. Eu quero casar com uns 29, 30 anos, eu quero casar. Ainda quero focar mais nos estudos para ter uma coisa, pelo menos ter uma casa (Nathália, 20 anos).

Por outro lado, Inês comenta:

Eu pretendo ficar na casa dos meus pais o máximo de tempo que eu puder. É, eu digo isso agora, mas eu não sei depois o que vai acontecer, mas eu não tenho a intenção de me casar tão cedo, eu acho que vou ficar na casa dos meus pais por um bom tempo (Inês, 25 anos).

Percebemos a influência que os discursos tradicionais sobre família têm nos projetos de vida dessas jovens e a sua função na definição de casamento. O papel da influência familiar é bem grande nos projetos de vida em solo africano (Leandro, 2004Leandro, Maria Engrácia. Dinâmica social e familiar dos projetos migratórios: uma perspectiva em análise. Análise Social - Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, v. 39, n. 170, p. 95-118, 2004.; Subuhana, 2009Subuhana, Carlos. A experiência sociocultural de universitários da África Lusófona no Brasil: entremeando histórias. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 103-126, jan/abr. 2009.). Tal fator que se destaca e se mescla com a questão do casamento é a importância da família no planejamento de vida das participantes em uma leitura em que interagem concepções tradicionais com leituras mais contemporâneas sobre a noção de família.

DISCUSSÃO

Estabelecer discussões sobre o processo migratório destas jovens no Brasil supõe sistematizar e compreender situações de diferença, identificação e violência simbólica. Essas noções, articuladas por meio de marcadores como etnicidade, nação, gênero e “raça”, situam-se historicamente como temas de estudo sobre a imigração contemporânea no Brasil, mas ganham uma nova perspectiva a partir da noção de interseccionalidade. Segundo Juteau (2009Juteau, Danielle. Etnicidade e nação In: Hirata, Helena et al. Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. p. 90-96.), para as feministas que se debruçam sobre tais temáticas, este tipo de perspectiva de estudo caminha por uma dupla meta: apreender como se dão as relações das mulheres com os grupos étnicos e nações e examinar como se articulam esses fatores no cotidiano das mulheres.

Neste âmbito de discussão, reitera-se tanto a heterogeneidade da categoria mulher, quanto se percebe a necessidade de operacionalizar certos fatores, que são compreendidos como aspectos contemplando uma análise interseccional da situação destas mulheres contemporâneas: idade, etnicidade e nacionalidade. Essa operacionalização e exercício de atenção ao cotidiano permitem que não só se examinem discursos desiguais que se articulam socialmente - no intuito de manter assimetrias entre pessoas no que se refere a questões econômicas, políticas, culturais e ideológicas -, mas que se construam mudanças e resistências em âmbito discursivo. Nas entrevistas, nota-se, no entanto, que o processo de dominação pode se mostrar de diversas formas, por exemplo, na vinculação de conteúdos sexistas a racistas muito presentes nas relações sociais cotidianas no Brasil.

Por conta de fatores como estes, compreende-se que o processo de adaptação à vida universitária brasileira (majoritariamente branca) por essas estudantes teve aspectos complexos para além de questões já mapeadas em outros trabalhos publicados - como a diferença nos hábitos alimentares; nas vestimentas; na distância em relação à família e amigos e nos costumes do país de origem (Fonseca, 2009Fonseca, Dagoberto José. A tripla perspectiva: a vinda, a permanência e a volta de estudantes angolanos no Brasil. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 23-44, jan/abril. 2009.). As narrativas das jovens permitem compreender os aspectos de mudança do status social relacionados à suas vivências no Brasil, assim como identificar certos conflitos no campo étnico racial que, ao mesmo tempo que compreendem certos sistemas de dominação (por exemplo, em suas leituras sobre as relações interétnicas entre brasileiros), demonstram possibilidades de existência distintas daquelas vividas em seus países de origem.

O contexto brasileiro, apesar de uma corrente concepção de país de democracia racial, apresenta dados alarmantes sobre o racismo e a violência de gênero. Segundo dados do IBGE (2009)IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa das Características Étnico-raciais da População. Brasil. 2009. Disponível em: <Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=264529014 >. Acesso em 21 ago. 2014.
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, há cerca de 13 milhões de pessoas autodeclaradas “negras” no país - e, caso se junte a esse número o contingente populacional autodeclarado “pardo”, o número beira os 97 milhões de pessoas (quase 6 milhões a mais do que o contingente autodeclarado “branco”). O contexto do ensino superior não foge a esta realidade. As assimetrias de raça e gênero acompanham contextos educacionais da pré-escola à pós-graduação no Brasil, com uma grande diferença de acesso à educação, principalmente de negros e pardos em relação a brancos. Essas diferenças se acentuam no decorrer da elevação dos níveis de escolaridade, chegando a grandes disparidades no que concerne à graduação e pós-graduação (Barreto, 2015Barreto, Paula Cristina da Silva. Gênero, raça, desigualdades e políticas de ação afirmativa no ensino superior. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 16, p. 39-64, 2015.).

Em relação à taxa de escolaridade, comparativamente entre brancos e negros, o estudo de Silva (2013Silva, Tatiana Dias. Panorama social da população negra. In: Silva, Tatiana Dias; Goes, Fernanda Lira (orgs.). Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Brasília: Ipea, 2013. p. 13-28. Disponível em: <Disponível em: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/images/stories/pdf/livro_igualdade_racialbrasil01.pdf >. Acesso em jun. 2015.
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) indica que a análise dos anos entre 2000 e 2010 é representativa da situação, apesar das investidas políticas ao acesso de pretos e pardos. No que concerne aos discentes nos níveis de formação mestrado/doutorado, em 2010, o percentual de brancos era de 80,7%, enquanto que o de negros era de 17,1%. Quanto ao ensino superior, o percentual de brancos era de 73,2% e o de negros, 24,7%. No ensino médio, o número de brancos galgava os 54,3% e o de negros, 44,2%. Somente no ensino fundamental a proporção entre brancos e negros foi de, respectivamente, 47,6 e 51,0% (Silva, 2013Silva, Tatiana Dias. Panorama social da população negra. In: Silva, Tatiana Dias; Goes, Fernanda Lira (orgs.). Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Brasília: Ipea, 2013. p. 13-28. Disponível em: <Disponível em: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/images/stories/pdf/livro_igualdade_racialbrasil01.pdf >. Acesso em jun. 2015.
http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/i...
). A análise de tendência realizada por Silva (2013Silva, Tatiana Dias. Panorama social da população negra. In: Silva, Tatiana Dias; Goes, Fernanda Lira (orgs.). Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Brasília: Ipea, 2013. p. 13-28. Disponível em: <Disponível em: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/images/stories/pdf/livro_igualdade_racialbrasil01.pdf >. Acesso em jun. 2015.
http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/i...
) pode ser complementada pela pesquisa de Bittare e Almeida (2006Bittar, Mariluce; Almeida, Carina Maciel de. Mitos e controvérsias sobre a política de cotas para negros na educação superior. Revista Educar, n. 28, p. 141-159, 2006.), na qual, ao analisar os dados provenientes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Legislação e Documentos (INEP), encontraram que, apesar de o Brasil ser o país com o maior número de pessoas de origem africana negra do mundo, ficando atrás unicamente da Nigéria, somente 2,8% dos estudantes negros e pardos completam seus estudos no ensino superior.

A análise do impacto das políticas de inserção dos alunos de origem negra centra-se, majoritariamente, em dados de universidades públicas (por exemplo: Andrade; Teixeira, 2009Andrade, Ana Maria Jung de; Teixeira, Marco Antônio Pereira. Adaptação à universidade de estudantes internacionais: um estudo com alunos de um programa de convênio, Revista brasileira de orientação professional, v. 10, n. 1, p. 33-44, jun. 2009.; Cervi, 2013Cervi, Emerson Urizzi. Ações afirmativas no vestibular da UFPR entre 2005 a 2012: de política afirmativa racial a política afirmativa de gênero. Revista Brasileira de Ciências Políticas, n. 11, p. 63-88, 2013.; Daflon et al., 2013Daflon, Verônica Toste; Feres Junior, João; Campos, Luiz Augusto. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148, p. 302-327, 2013.; Fonseca, 2009Fonseca, Dagoberto José. A tripla perspectiva: a vinda, a permanência e a volta de estudantes angolanos no Brasil. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 23-44, jan/abril. 2009.; Gusmão, 2011Gusmão, Neusa Maria Mendes de. África e Brasil no mundo acadêmico: diálogos cruzados. In: COOPEDU - Congresso Portugal e os PALOP Cooperação na Área da Educação. Lisboa, CEA. p. 283-299, 2011.; Morais; Silva, 2011Morais, Sara Santos; Silva, Kelly Cristiane da. Estudantes de países africanos de língua oficial portuguesa nas universidades brasileiras: tensões de sociabilidade e dinâmicas identitárias. In: IX Congresso Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Salvador: Universidade Federal da Bahia. Anais... p. 1-17, ago. 2011.; Souza; Brandalise, 2015Souza, Andreliza Cristina de; Brandalise, Mary Ângela Teixeira. Democratização, justiça social e igualdade na avaliação de uma política afirmativa: com a palavra, os estudantes. Ensaio: Avaliação de Políticas Públicas de Educação, v. 23, n. 86, p. 181-212, 2015.; Subuhana, 2009Subuhana, Carlos. A experiência sociocultural de universitários da África Lusófona no Brasil: entremeando histórias. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 103-126, jan/abr. 2009.; Turgeon et al., 2014Turgeon, Mathieu; Chaves, Bruno Sant’Anna; Wives, Willian Washington. Políticas de ação afirmativa e o experimento de listas: o caso das cotas raciais na universidade brasileira. Opinião Pública, v. 20, n. 3, p. 363-376, 2014.), com déficit importante de pesquisas que apontem dados sobre a presença de alunos negros em universidades privadas. A única exceção encontrada foi o relato de uma pesquisa realizada na mesma instituição da presente análise (Sarriera, et al., 2002Sarriera, Jorge Castellá; Wagner, Adriana; Frizzo, Kátia Regina; Berlim, Cynthia Schwarcz. Experiência Multicultural em um Grupo de Conveniados Africanos do Programa PEC-G, Psico (PUCRS), v. 33, n. 2, p. 447-460, 2002.). Além de despontar como um campo de estudo que ainda precisa ser mais pesquisado no Brasil como um todo, o acesso de negros ao ensino superior no Rio Grande do Sul, em especial, necessita de uma análise contextual, uma vez que o estado apresenta, segundo dados do IBGE em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR (Brasil, 2013Brasil. Portal Brasil. Estudo aponta distribuição da população por cor ou raça. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2013/11/estudo-aponta-distribuicao-da-populacao-por-cor-ou-raca >. Acesso em: 6 jul. 2015.
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), o menor número de autodenominados negros no país.

É relevante lembrar que, apesar de dados federais mostrarem indicadores de qualidade de vida altos no Sul do Brasil (como menor mortalidade infantil e menor taxa de analfabetismo), tais dados raramente discutem sua intersecção com outros marcadores sociais, como raça e gênero. Estudos similares ao de Olinto e Olinto (2000Olinto, Maria Teresa Anselmo; Olinto, Beatriz Anselmo. Raça e desigualdade entre as mulheres: um exemplo no sul do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 4, p. 1137-1142, 2000.) já indicaram como, no caso das mulheres no Sul do Brasil, esses marcadores sociais são indicadores de desigualdades no mesmo contexto regional. Atenta-se, portanto, que mesmo não encontrando estudos no contexto das universidades privadas no Sul do Brasil, o conjunto de pesquisas disponível aponta para um potencial latente de desigualdade, preconceito e dificuldades de acesso ao contexto universitário no Rio Grande do Sul. Estudos realizados em Porto Alegre indicam também que aspectos como moradia, alimentação e instabilidade do clima são elencados pelos estudantes (Andrade; Teixeira, 2009Andrade, Ana Maria Jung de; Teixeira, Marco Antônio Pereira. Adaptação à universidade de estudantes internacionais: um estudo com alunos de um programa de convênio, Revista brasileira de orientação professional, v. 10, n. 1, p. 33-44, jun. 2009.). É importante indicar, neste sentido, que se articulam ao contexto racializado e sexista brasileiro - e particularmente da região Sul - algumas expectativas de estudantes estrangeiros sobre o Brasil, as quais estão relacionadas, por exemplo, a um estereótipo internacional de tropicalidade, vinculando imagens e representações do país associadas ao carnaval (à imagem internacional do(a) negro(a) brasileiro(a)) (Scheyerl; Siqueira, 2008Scheyerl, Denise; Siqueira, Sávio. O Brasil pelo olhar do outro: representações de estrangeiro sobre os brasileiros de hoje. Trabalhos Linguisticos Aplicados, v. 47, n. 2, p. 375-391, 2008.) e sua suposta democracia racial, em que o país se apresenta como uma opção viável e interessante aos estudantes estrangeiros.

Dentro do panorama complexo que as estudantes encontram no Brasil, pode-se identificar que, nas falas das entrevistadas, o processo de diferenciação com os outros ocorre de diversas formas e engloba questões relacionadas à “raça”, à etnia e ao gênero como construções calcadas num posicionamento em relação a um interlocutor situacional. Nesse processo, por vezes, ser africana é posto em maior evidência, por vezes ser negra toma o papel central das narrativas, assim como, em alguns momentos, o ser mulher caracteriza o exercício de si neste novo contexto. Essas possibilidades de posicionamentos identitários nas narrativas, ao mesmo tempo que organizam a fala, posicionam as entrevistadas frente a sua audiência: universitários, em sua esmagadora maioria brancos, de uma universidade privada do extremo Sul do Brasil. Há de se notar que estes marcadores de diferença e identificação se mesclam de formas diversas nas falas das participantes, numa relação de interlocução.

No que se refere ao convívio e às relações interpessoais no Brasil, ter uma interligação com outros estudantes (africanos ou não) é um fator-chave de recurso psicossocial de proteção à saúde mental (Pizzinato; Sarriera, 2008Pizzinato, Adolfo; Sarriera, Jorge Castellá. Identidade: elementos de etnicidade entre os escolares no Brasil. Interamerican Journal of Psychology, v. 42, n. 2, p. 1-9, 2008.). No entanto, preocupa o fato de que não tenham destacado a vivência na universidade como a principal fonte de relações interpessoais positivas, com exceção de alguns professores da universidade, destacados como figuras centrais de apoio afetivo e instrumental. Além disso, percebe-se que as relações de amizade, principalmente com estudantes de outras unidades de ensino, se davam em função de serem conterrâneos. Este tipo de vínculo é muito positivo para as adaptações social e cultural de estrangeiros e a vivência em novos territórios - para Gusmão (2011Gusmão, Neusa Maria Mendes de. África e Brasil no mundo acadêmico: diálogos cruzados. In: COOPEDU - Congresso Portugal e os PALOP Cooperação na Área da Educação. Lisboa, CEA. p. 283-299, 2011.), amizades com pessoas do mesmo país diminuem a solidão e o estresse e proporcionam comunicação cultural e apoio social.

A vivência universitária no Brasil também questionou algumas certezas familiares sobre o projeto de vida pré-migratório, no qual se destacava o estudo universitário no exterior como um processo que “assegurava” o futuro profissional na África. A atual insegurança em relação ao futuro - longe de ser um problema - segue em consonância com o que vivem muitos jovens na contemporaneidade, caracterizando-se pelo discurso hedonista e de responsabilização do indivíduo, inserido em uma sociedade neoliberal, que legitima a responsabilidade individual como único fator determinante em seu sucesso profissional (Valore; Selig, 2010Valore, Luciana Albanese; SELIG, Gabrielle Ana. Inserção profissional de recém-graduandos em tempos de inseguranças e incertezas. Estudos e pesquisas em psicologia, v. 10, n. 2, p. 390-404, 2010.).

Com efeito, o planejamento apresentado pelas participantes nos remete a uma leitura das possibilidades de projetos de vida, sob o prisma das relações de gênero e considerando o impacto de ser mulher nesse processo. O empoderamento da mulher em relação a questões que concernem seus exercícios sobre si por vezes se explicita pensando em casarem-se ou adaptarem-se a modelos tradicionais do feminino - mas dentro do tempo por elas estabelecido e com um momento e formas consonantes com outras possibilidades identitárias vivenciadas nas sociedades ocidentais (como a maternidade tardia, por exemplo). Além disso, este processo de autonomia contribuiu para que assumissem responsabilidades e tomassem atitudes frente a situações do cotidiano, as quais não tomariam em seus países de origem (como a manutenção da casa e as vivências de racismo ou exclusão) e que foram interpretadas como fortalecedoras.

Cabe destacar ainda a surpresa das participantes ao se depararem com uma realidade brasileira diferente das representações midiáticas difundidas internacionalmente. Por conta do choque entre os mitos propagados e assimilados e a realidade concreta e experiencial do país, as diferentes visões das participantes se relacionam com as conversas e expectativas que tiveram com suas respectivas famílias antes da viagem; ou seja, há uma realidade por elas vivida que contrasta com aquela propagada sobre o Brasil. Ao mesmo tempo que o Brasil é, segundo as participantes, retratado em seus países como um lugar de democracia racial e de receptividade multicultural, a África é representada no Brasil como um continente de populações atrasadas e de costumes tribais (Subuhana, 2009Subuhana, Carlos. A experiência sociocultural de universitários da África Lusófona no Brasil: entremeando histórias. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 103-126, jan/abr. 2009.). A caracterização dos negros brasileiros como submissos à cultura branca ocidental, em virtude do passado escravista do Brasil, também chama a atenção. Ainda que pareça contrapor-se às leituras de africanidade dos brasileiros (Subuhana, 2009Subuhana, Carlos. A experiência sociocultural de universitários da África Lusófona no Brasil: entremeando histórias. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 103-126, jan/abr. 2009.; Fonseca, 2009Fonseca, Dagoberto José. A tripla perspectiva: a vinda, a permanência e a volta de estudantes angolanos no Brasil. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 23-44, jan/abril. 2009.; Gusmão, 2011Gusmão, Neusa Maria Mendes de. África e Brasil no mundo acadêmico: diálogos cruzados. In: COOPEDU - Congresso Portugal e os PALOP Cooperação na Área da Educação. Lisboa, CEA. p. 283-299, 2011.), caracterizar a população brasileira de origem africana apenas por este aspecto do passado colonial também reduz e estereotipa a complexidade dessa herança na formação cultural do país. Talvez essa necessidade de diferenciação dos brasileiros de origem africana seja uma forma de lidar com os aspectos étnico-raciais marcados como diferenciadores dos brasileiros como um todo.

Esse panorama parece reiterar questões mapeadas há mais de uma década no mesmo contexto, com essa população. Em pesquisa com estudantes da mesma universidade (Sarriera et al., 2002Sarriera, Jorge Castellá; Wagner, Adriana; Frizzo, Kátia Regina; Berlim, Cynthia Schwarcz. Experiência Multicultural em um Grupo de Conveniados Africanos do Programa PEC-G, Psico (PUCRS), v. 33, n. 2, p. 447-460, 2002.), verificou-se que as maiores dificuldades no âmbito acadêmico diziam respeito a fatores como o afastamento da família e amigos, o acesso à moradia, o despreparo das universidades para a diversidade, assim como um convívio social permeado por formalidades diferentes do país de origem. Cabe ressaltar que este estudo (Sarriera et al., 2002Sarriera, Jorge Castellá; Wagner, Adriana; Frizzo, Kátia Regina; Berlim, Cynthia Schwarcz. Experiência Multicultural em um Grupo de Conveniados Africanos do Programa PEC-G, Psico (PUCRS), v. 33, n. 2, p. 447-460, 2002.) pôs em pauta a dificuldade do exercício de cidadania, que, segundo os autores, não se dá sem a reflexão sobre os aspectos sociais como os elencados nesta análise interseccional.

CONCLUSÕES

Esta pesquisa convida a refletir acerca da necessidade de se articularem análises críticas sobre a presença de estudantes estrangeiros no Brasil e, especialmente, os de origem africana. Neste caso em específico, considerando um conhecido histórico do país marcado por uma composição racista e sexista, parece necessário refletir não só sobre os aspectos de funcionamento do ensino superior como organização, mas das implicações institucionais que a interseccionam - e que envolvem discursos de dominação vinculados a racismo, sexismo e xenofobia, como apontam as participantes. Parece-nos que a concretude das experiências vividas por essas jovens mulheres deve atentar para que possíveis dificuldades de adaptação no país sejam observadas de forma interseccional, considerando que uma rede de relacionamentos interpessoais atinge diretamente as questões fundamentais de saúde e bem-estar de outros coletivos minoritários da sociedade brasileira. Além disso, a vivência universitária no Brasil parece ter contrastado com as representações midiáticas prévias de democracia racial e tropicalidade das participantes. Aparentemente, essa divergência propiciou a discussão de uma construção de projeto de vida e formação com influência clara das trajetórias familiares e comunitárias, integrando - não sem ambiguidade - elementos tradicionais e contemporâneos das possibilidades de ser mulher e profissional em seus países de origem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2015
  • Aceito
    27 Out 2015
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