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No entrecruzamento de linguagens...: a arte e o corpo para pensar a educação e a formação do humano* * Trabalho apresentado na 36ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

EN EL ENTRECRUCE DE LENGUAJES...: EL ARTE Y EL CUERPO PARA PENSAR LA EDUCACIÓN Y LA FORMACIÓN DE LO HUMANO

RESUMO

Este trabalho pretende introduzir uma discussão sobre o corpo biográfico (Danis Bois) e o imaginário (Gilbert Durand) na área da educação. O tema resulta de uma pesquisa cujo intuito foi trazer outros aportes para pensar a formação humana. Neste texto, fez-se um recorte para refletir os entrecruzamentos da arte e do corpo como linguagens que podem fomentar a educação e a formação humana. Defende-se que o corpo biográfico abriga a história do ser humano, em cujos gestos repercutem uma história singular e plural. Ressaltamos que este seja contemplado como uma matéria sutil e sensível, tão importante quanto às matérias pragmáticas e utilitárias. Sobretudo, ainda a ser desvelado por linguagens artísticas ou pelo menos que se utilize de outras racionalidades que não somente as hegemônicas e instituídas.

PALAVRAS-CHAVE:
corpo biográfico; linguagens; educação; formação humana

RESUMEN

Este trabajo pretende introducir una discusión sobre el cuerpo biográfico (Danis Bois) y el imaginario (Gilbert Durand) en el área de la educación. El tema resulta de una investigación, cuyo intuito ha sido traer otros aportes para pensar la formación humana. En este texto, se ha brindado un espacio para reflexionar los entrecruces del arte y del cuerpo como lenguajes que pueden fomentar la educación y la formación humana. Se defiende que el cuerpo biográfico abriga la historia del ser humano, en cuyos gestos reflejan una historia singular y plural. Resaltamos que esto se contemple como una materia sutil y sensible, tan importante como las materias pragmáticas y utilitarias. Sobre todo, aun por revelar a través de lenguajes artísticos o por lo menos que se utilice de otras racionalidades, que no solamente las hegemónicas e instituidas.

PALABRAS CLAVE:
cuerpo biográfico; lenguajes; educación; formación humana

ABSTRACT

This study aims at starting a discussion about the biographical body (Danis Bois) and the imaginary (Gilbert Durand) in the area of education. This theme results from a research whose objective was to bring new ideas to reflect on human. This paper describes a part of the study to reflect the intertwining between arts and bodies as languages which may trigger education and human development. The biographical body has been seen as a source that hosts the history of human beings whose gestures spread a singular and plural story. It should be understood as a subtle and sensitive matter which is as important as pragmatic and utilitarian matters. It still needs to be revealed by artistic languages or, at least, to use other rationalities, rather than merely the hegemonic and instituted ones.

KEYWORDS:
biographical body; languages; education; human development

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho pretende introduzir uma discussão sobre o corpo biográfico e o imaginário na área da educação. O intuito principal é trazer outras linguagens para pensar a formação humana. Nesse caso, as reflexões aqui contidas resultam de uma pesquisa realizada na formação inicial de professores em uma universidade pública do Brasil.

A pesquisa teve por objetivo a realização de um estudo sobre as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo de acadêmicas do curso de pedagogia. Para efetivar este estudo, elaborou-se um plano de trabalho focado na biografização corporal pela improvisação teatral, valendo-se de um processo de narração de si, cuja base foi a expressão teatral. A investigação centrou-se na proposição de que a memória do corpo faz parte do trajeto formativo de cada pessoa, cujas experiências ficam registradas como uma escritura.1 1 Escritura, nesse contexto, é entendida como os registros que ficam inscritos no corpo de cada estudante, no âmbito físico e psíquico, a partir das experiências vivenciadas no decurso de seu trajeto formativo de vida e que, de alguma maneira, refletem em sua interação com/no mundo. A somatória dessas escrituras compõe o reservatório imaginário do ser humano, a qual foi visibilizada pelo gesto.

A empiria foi desenvolvida em seis encontros, com quatro acadêmicas, privilegiando o gesto como linguagem à biografização de si, em um movimento de evocação das memórias dos acontecimentos vividos e visibilização das inscrições corporais. No decurso da pesquisa, foram usados dois tipos de registros: vídeo e diário da experiência. O vídeo foi utilizado para captar o máximo possível das manifestações corporais em cena e o diário da experiência para registrar o que foi sentido pelo corpo no decorrer do trabalho. A análise pautou-se na abordagem qualitativa a partir do seguinte:

  1. Análise descritiva e hermenêutica dos registros de vídeo, com base na interpretação dos gestos;

  2. Análise do diário da experiência em três etapas: classificatória, fenomenológica e hermenêutica;

  3. Convergência dos dados empíricos da pesquisa - dos núcleos simbólicos aos mitemas.

O trabalho que ora apresentamos investe na ideia de que o corpo é um saber relevante. Sabemos que ele tem sido esquecido, e nossa defesa é justamente que ele deva ser "acordado" para pensar a formação humana de professores. Isso posto, dará visibilidade a outras linguagens, como a do gesto e da arte. Linguagens que são reveladoras de como cada sujeito se constitui no decorrer de sua vida, a partir de experiências vividas, em conexão com as heranças biopsicossociais herdadas de seus ancestrais.

Dessa maneira, atribuir um status ao corpo pode revelar outras maneiras de pensar e projetar nossas relações no mundo, valendo-se de um conhecimento imanente advindo da subjetividade corporal, contemplando as dimensões de um sujeito singular-plural.2 2 Esse conceito é embasado em Josso (2009), que designa a problemática existente entre a tensão permanente que advém das exigências do coletivo ao qual pertencemos e da evolução das aspirações, sonhos e desejos individuais. Lembrando que o conhecimento imanente (Bois; Rugira, 2006______.; Rugira, J.-M. Relação com o corpo e narrativa de vida. In: Souza, E. C. (Org.). Autobiografias, histórias de vida e formação. Pesquisa e ensino. Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006. p. 31-46.) está relacionado diretamente à experiência corporal imediata, embora seja uma matéria silenciosa em nível experiencial.

Os dois campos teóricos referenciais deste estudo - corpo biográfico (Danis Bois) e imaginário (Gilbert Durand) - mostram a importância da memória do corpo como uma matéria silenciosa, bem como sua relação intrínseca no viver e no agir das pessoas em seus fazeres. No caso estudado, nosso foco foi a futura professora.

ARTE E CORPO NA FORMAÇÃO DO HUMANO: O EXERCÍCIO DE BIOGRAFIZAÇÃO CORPORAL

Pensar a educação e a formação do humano valendo-se da arte e do corpo mobiliza a construção de outros saberes nesse contexto. Saberes que rompem com a representação instituída do corpo e da arte como função utilitária, para englobar a sua dimensão sensível.3 3 Bois e Rugira (2006) chamam atenção para a necessidade de uma ressignificação da representação instituída sobre o corpo, propondo outra abordagem conhecida como o paradigma do sensível. Nessa perspectiva, abre-se espaço para uma proposta de trabalho focada no sujeito como investigador de si.

O sujeito, ao colocar-se em um processo de estudo de si, tem a possibilidade de acessar um conhecimento "imanente corporizado" que, segundo Bois, nasce da experiência do momento vivido no aqui-agora. Resultando assim a construção de um saber proveniente de um "deixar-se pensar" e "deixar-se refletir" que são consequências de um pensamento que acontece no ato da vivência artística e corporal, e não de uma atividade mental de pensar ou refletir sobre alguma coisa já vivida, por exemplo. É um corpo presente ao aqui-agora e extremamente atento a tudo que lhe acontece no interior da experiência. Ao assumir tais características, esse corpo, segundo Josso (2010, p. 178-179)______. As narrações do corpo nos relatos de vida e suas articulações com os vários níveis de profundidade do cuidado de si. In: Vicentini, P. P.; Abrahão, M. H. M. B. (Orgs). Sentidos e potencialidades e usos da (auto)biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 171-192., passa a ser

plenamente ator de sua vida e capaz de engendrar a vida como um companheiro, de início. Um corpo consciente de si e cuidando de si para o outro que tem dentro de si. Uma relação com seu corpo de fora, seu corpo de dentro e um corpo dentro que é uma parte de si.

Nesse processo, o sujeito é consciente e percebe tudo o que vive e sente, deixando emergir da relação com seu corpo as subjetividades corporais e imaginárias. Ou seja, há um interesse pela criação corporal que acontece no decorrer do vivido. A pessoa é convidada a assumir uma postura de sujeito ator-espectador e a "vivenciar" o que se passa durante o momento da experiência concreta: "'vivenciar' o corpo, o movimento, suas percepções, seu pensamento [...] tomar consciência do que é sentido de forma mais clara e distinta, mais aprofundada; [...] para cercar os contornos ou compreender o significado" (Bois, 2008b______. O eu renovado. Introdução à somato-psicopedagogia. São Paulo: Ideias & Letras, 2008b., p. 143-144). O significado é construído pela descrição da experiência vivida no nível fenomenológico, metafórico e simbólico.

Nessa perspectiva, houve a elaboração de uma proposta focada na biografização corporal pela improvisação teatral em que o corpo foi protagonista e o porta-voz das escrituras do "ser de carne" (Josso, 2008aJosso, M.-C. As instâncias da expressão do biográfico singular plural. Junção de uma abordagem intelectual à abordagem sensível na busca de doações do corpo biográfico In: Bois, D.; Josso, M.-C.; Humpich, M. (Orgs.). Sujeito sensível e renovação do eu. As contribuições da fascioterapia e da somato-psicopedagogia. São Paulo: Paulus; Centro Universitário São Camilo, 2008a., 2008b______. As histórias de vida como territórios simbólicos nos quais se exploram e se descobrem formas e sentidos múltiplos de uma existencialidade evolutiva. In: Passeggi, M. C. (Org.). Tendências da pesquisa (auto) biográfica. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008b. p. 23-50., 2009______. A imaginação e suas formas em ação nos relatos de vida e no trabalho autobiográfico: a perspectiva biográfica como suporte de conscientização das ficções verossímeis com valor heurístico que agem em nossas vidas. In: Peres, L. M. V.; Eggert, E.; Kurek, D. L. (Orgs.). Essas coisas do imaginário... diferentes abordagens sobre narrativas (auto) formadoras. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livro, 2009. p. 118-147.). Para isso, foi necessário deixar de lado a palavra para entrarmos em contato com uma linguagem específica, revelada por meio de intenção e atitude do gesto no ato de re-(a)presentar momentos vividos, valorizando a experiência do aqui-agora. Ou seja, instaurar um processo de biografização, deixando de lado o processo mental e reflexivo da narração para focar-se na representação da narrativa, tendo como base a expressão teatral. Nesse viés, o corpo assumiu um papel importante, pois passou a ser o elemento organizador e revelador das experiências vividas a partir da lógica da estrutura narrativa.

Para instaurar um processo de biografização, na perspectiva corporal, incitando o sujeito a aventurar-se a um caminhar para si (Josso, 2010______. As narrações do corpo nos relatos de vida e suas articulações com os vários níveis de profundidade do cuidado de si. In: Vicentini, P. P.; Abrahão, M. H. M. B. (Orgs). Sentidos e potencialidades e usos da (auto)biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 171-192.) e a experimentar sua construção biográfica, utilizamos a improvisação teatral, que, segundo definição de Desgranges (2006)Desgranges, F. Pedagogia do teatro. Provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006., caracteriza-se por exercícios em que seus atuantes executam uma cena de maneira improvisada, isto é, sem ensaio, valendo-se de uma combinação prévia ou de uma situação proposta pelo coordenador do processo. No contexto da educação, tem por objetivo promover o desenvolvimento pessoal, ou seja, o enriquecimento dos meios de expressão por intermédio de jogos de caráter dramático ou teatral4 4 O jogo dramático traz uma visão mais contextualista, como referenciam os estudos de Olga Reverbel (1989), que vislumbra no jogo a possibilidade de utilizá-lo como instrumento para auxiliar no ensino e na aprendizagem de outras disciplinas. O jogo teatral, com base nos estudos de Viola Spolin (2004) e Ingrid Koudela (2001), autoras às quais nos ancoramos, contemplam uma abordagem de visão essencialista enfatizando que a arte e o fazer artístico se sustentam por si e são uma forma de conhecimento. com foco voltado à criação no momento presente, valorizando as ações, os gestos, a maneira que cada um se envolve no ato de criação.

Pela improvisação teatral é possível desenvolver um trabalho de caráter experimental, incitando o atuante a elaborar e exprimir "maneiras particulares de compreender o mundo, os acontecimentos cotidianos, tanto no que concerne à vida pessoal, quanto no que refere às questões sociais, coletivas" (idem, p. 89). Faz-se necessário, então, inventar uma forma particular de compreender essas coisas, como também colocar a imaginação em ação, em um processo de invenção que concretizará uma determinada ideia em cena. Para isso, o ser humano busca em suas experiências, no decorrer de sua vida, e que ficaram guardadas em seu reservatório interior, os elementos que lhe darão suporte para efetivar a criação em cena. No cenário da pesquisa, o trabalho teatral mobilizou o corpo-memória, como já mencionamos em outro momento, por meio do exercício de imaginação simbólica, propiciando a re-(a)presentação de sensações experimentadas anteriormente.

Na pesquisa, a improvisação teatral trabalhou temas que contemplaram momentos relacionados a determinados períodos da vida das acadêmicas, sem uma elaboração prévia,5 5 Foi proposta a atividade e imediatamente as participantes começavam a encenar. Houve momentos em que foi dado um tempo para breves combinações, quando a atividade era realizada em duplas. sendo o momento registrado em vídeo por nós (pesquisadoras), e no Diário da Experiência6 6 O Diário da Experiência caracterizou-se por ser um caderno em que as estudantes registravam suas impressões em relação ao vivido. Não havia um modelo a ser seguido, foram sugeridas algumas possibilidades, como: relatar, com palavras, desenhos, imagens ou texto narrativo. Cada uma tinha total liberdade de escrita. por elas (acadêmicas). Cabe ressaltar que o campo teórico dos estudos do imaginário contribuiu significativamente para a efetivação da pesquisa no curso de pedagogia, pois proporcionou investirmos no exercício de imaginação simbólica, pela convocação do corpo à re-(a)presentação, de maneira improvisada, incitando as participantes a vasculharem em seus guardados e, pelo gesto, visibilizar as escrituras que ficaram impressas em seu corpo com uma abordagem instauradora que levou em consideração o ser humano e a teia simbólica que o constitui.

Isso porque o ser humano, nas interações com o meio, constrói um repertório de saberes e experiências definidores da maneira como ele vai constituindo-se. Nesse processo, o imaginário tem um papel fundamental, sendo o grande denominador no qual se encontram todas as criações do pensamento humano, ativando, assim, por uma perspectiva simbólica, diferentes modos de compreensão do mundo.

O imaginário é como um lago existencial "que dá significado para nossa existência individual ou grupal", segundo Machado da Silva (2006, p. 22)Machado da Silva, J. As tecnologias do imaginário. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2006.. Sobretudo, ele é uma bacia semântica (Durand, 2001______. O imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001.), da qual derivam imagens, afetos, experiências e sensações. Nesse "lugar" fica acumulado tudo o que é significativo para nós e que nos impulsiona a agir cotidianamente.

Diante disso, pode-se dizer que o imaginário contempla as aptidões inatas e as heranças ancestrais ao meio social e cultural em que o sujeito está inserido. Portanto ele é o conector que estrutura o entendimento humano - que, para Durand (2001)______. O imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001., passa a ser um conector obrigatório pelo qual se forma qualquer representação humana,7 7 Para Durand (1988, 1996, 2002), a representação é sempre uma re-(a)presentação do objeto ausente. Por isso, ao longo do texto são utilizadas as duas formas de escrita: representação e re-(a)presentação. que é tramada nas articulações simbólicas que advêm das intimações de toda a ordem do vivido, arraigado em uma bio-história pessoal.

Essa conexão proporciona uma maneira singular de o indivíduo interagir, intimando-o a um movimento de expansão e renovação embasado em um processo de simbolização que o faz efetivamente participar da totalidade do mundo. É na confluência dessas articulações que se dá a composição de imagens. Imagens que partem de um trajeto antropológico com suas trocas entre as pulsões sociais, culturais e psíquicas.

Em outras palavras, os acontecimentos vividos pelo ser humano no decorrer de sua vida e que de algum modo lhe tocaram instalam, segundo Bois (2008b)______. O eu renovado. Introdução à somato-psicopedagogia. São Paulo: Ideias & Letras, 2008b., "um estado particular", sendo armazenados em forma de memória em suas células e no seu universo cognitivo, afetivo e gestual. Essa memória é "constituída por uma mistura de hábitos, de crenças e de saberes oriundos de tempos imemoriais, transmitidos a cada um por meio de condições específicas à sua inscrição sócio-histórica" (Lapointe; Rugira, 2012Lapointe, S.; Rugira, J.-M. Para uma ética renovada do cuidar. À escuta do corpo sensível. Educação e Realidade, Porto Alegre: UFRGS, v. 37, n. 1, p. 51-70, jan./abr. 2012., p. 53).

Nesse aspecto, a relação homem-mundo perpassa o corpo em dois sentidos: como repercussão de uma história herdada e de acontecimentos vividos, que produzem memórias que se inscrevem no corpo e podem afetar tanto o aspecto anatômico/fisiológico quanto o aspecto psíquico/emocional; e como elemento motor à ação, pois busca nessas inscrições as bases que servem de referências para sua interação efetiva no mundo.

Assim, o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral contemplou esse duplo movimento, pois incitou as estudantes a lançarem-se em um processo de "garimpagem" dos acontecimentos marcantes de sua vida, tendo em vista a re-(a)presentação do vivido por meio do gesto. Por sua vez, o gesto buscou nos registros corporais a tonalidade necessária para "colorir" a cena, sendo um indício de visibilidade do imaginário na escritura do corpo. Investir nessa visibilização foi o caminho no qual apostamos para mostrar a importância do corpo como um saber relevante a ser contemplado na formação de professores e que poderia auxiliar a pensar o projeto de (auto)formação.

AS CONVERGÊNCIAS ENTRE IMAGINÁRIO E CORPO BIOGRÁFICO

Pela realização do exercício corporal foi possível construir a fundamentação teórica e analítica, pois nos alicerçamos em uma experiência concreta. A partir daí, buscamos tecer as convergências e as relações entre imaginário e corpo biográfico, com o intuito de legitimar a importância do campo teórico do imaginário para um estudo sobre o corpo, mais especificamente o corpo biográfico, como já mencionado.

Antes de entrar na fundamentação teórica sobre o corpo biográfico e evidenciar a contribuição dos estudos do imaginário nesse conceito, faz-se necessário esclarecer a concepção de corpo que apresentamos neste trabalho. A abordagem do corpo está ancorada em uma concepção ampla que engloba vários autores (Corbin; Courtine; Vigarello, 2009Corbin, A.; Courtine, J.-J.; Vigarello, G. Prefácio à história do corpo. In: ______.; ______. (Dir.). História do corpo 1. Da renascença às luzes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 7-13.; Crema,1998Crema, R. Prefácio. In: Leloup, J.-Y. O corpo e seus símbolos. Uma antropologia essencial. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 9-12.; Leloup, 1998Leloup, J.-Y. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.; Leroi-Gourhan, 1965Leroi-Gourhan, A. O gesto e a palavra. Memórias e ritmos - v. 2. Lisboa: Edições 70, 1965.; Pereira, 2010Pereira, M. A. A dimensão performativa do gesto na prática docente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: ANPEd; Campinas: Autores Associados, v. 15, n. 45, p. 555-597, set./dez. 2010.; Queré, 2008Queré, N. Os vestígios da experiência. Para uma compreensão da engramagem corporal da história individual. O caminho de ressonância de um choque. In: Bois, D.; Josso, M.-C.; Humpich, M. (Orgs.). Sujeito sensível e renovação do eu. As contribuições da fasciaterapia e da somato-psicopedagogia. São Paulo: Paulus; Centro Universitário São Camilo, 2008. p. 207-232.; Singer, 2005Singer, C. Para onde você vai com tanta pressa, se o céu está em você? São Paulo: Martins Fontes, 2005.). Faremos um recorte optando pela ideia de um corpo que tem biografia (Bois, 2008aBois, D. Da fasciaterapia à somato-psicopedagogia. Análise biográfica do processo de surgimento de novas disciplinas. In: Bois, D.; Josso, M.-C.; Humpich, M. (Orgs.). Sujeito sensível e renovação do eu. As contribuições da fasciaterapia e da somato-psicopedagogia. São Paulo: Paulus; Centro Universitário São Camilo, 2008a. p. 43-74., 2008b______. O eu renovado. Introdução à somato-psicopedagogia. São Paulo: Ideias & Letras, 2008b.) e como "habitáculo" (Josso, 2009______. A imaginação e suas formas em ação nos relatos de vida e no trabalho autobiográfico: a perspectiva biográfica como suporte de conscientização das ficções verossímeis com valor heurístico que agem em nossas vidas. In: Peres, L. M. V.; Eggert, E.; Kurek, D. L. (Orgs.). Essas coisas do imaginário... diferentes abordagens sobre narrativas (auto) formadoras. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livro, 2009. p. 118-147.), no qual ficam registradas as experiências humanas.

Essas concepções em torno do corpo do ser humano reforçam o pressuposto de que a história humana tem uma inscrição individual e coletiva, à medida que trazemos todas as marcas ancestrais. É na conjuntura entre as intimações subjetivas e objetivas, entre os imperativos humanos em nível psíquico e fisiológico, imanentes da espécie zoológica e o que provém do meio social, cultural e histórico que o homem evolui e o imaginário é produzido. O imaginário, para Durand (1996, p. 65)______. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., "é o reservatório concreto da representação humana em geral, onde se vem inscrever o trajecto reversível que, do social ao biológico, e vice-versa, informa a consciência global, a consciência humana".

As representações humanas, enquanto imagem pregnante de sentido, nada mais são do que

esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam "pelas acomodações anteriores do sujeito". (Durand, 2002______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 41)

Dessa maneira, podemos pensar o corpo como a inscrição viva e concreta do trajeto formativo de cada pessoa. Nesse sentido, é importante pensar que cada acadêmica, ao chegar ao curso de pedagogia, traz em seu corpo os registros de um vivido. Registros que compõem a dimensão biográfica do corpo e que são fundadores no nível físico, cognitivo, afetivo e psíquico do que elas se tornaram e vêm tornando-se no decorrer de sua vida. Tudo isso integra o reservatório imaginário no qual cada estudante busca suas referências para interagir no espaço em que está inserida.

Por mais que o corpo esteja presente, como bem evidenciou Josso (2010)______. As narrações do corpo nos relatos de vida e suas articulações com os vários níveis de profundidade do cuidado de si. In: Vicentini, P. P.; Abrahão, M. H. M. B. (Orgs). Sentidos e potencialidades e usos da (auto)biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 171-192., em tudo o que fazem ao longo de sua vida, nem todas têm consciência do seu corpo biográfico, pois para acessá-lo e visibilizá-lo é necessário assumir uma postura de pesquisador de si, lançando-se a uma "garimpagem" minuciosa de seu patrimônio vivencial. Assim, eis a pesquisa, que enfocou o corpo biográfico das estudantes do curso de pedagogia valendo-se de um processo de evocação das memórias e re-(a)presentação do vivido por meio da linguagem gestual. Esse direcionamento envolveu as experiências marcantes na vida de cada participante, abarcando traços bio-psico-cósmico-sociais e históricos e também culturais da história de cada um, por meio do exercício de biografização corporal pela improvisação teatral.

Nessas convergências entre o imaginário e o corpo biográfico, encontramos o árduo trabalho de sistematização sobre este último, inicialmente elaborado por Danis Bois (2008aBois, D. Da fasciaterapia à somato-psicopedagogia. Análise biográfica do processo de surgimento de novas disciplinas. In: Bois, D.; Josso, M.-C.; Humpich, M. (Orgs.). Sujeito sensível e renovação do eu. As contribuições da fasciaterapia e da somato-psicopedagogia. São Paulo: Paulus; Centro Universitário São Camilo, 2008a. p. 43-74., 2008b)______. O eu renovado. Introdução à somato-psicopedagogia. São Paulo: Ideias & Letras, 2008b. e posteriormente estudado por Marie-Christine Josso (2008aJosso, M.-C. As instâncias da expressão do biográfico singular plural. Junção de uma abordagem intelectual à abordagem sensível na busca de doações do corpo biográfico In: Bois, D.; Josso, M.-C.; Humpich, M. (Orgs.). Sujeito sensível e renovação do eu. As contribuições da fascioterapia e da somato-psicopedagogia. São Paulo: Paulus; Centro Universitário São Camilo, 2008a., 2008b______. As histórias de vida como territórios simbólicos nos quais se exploram e se descobrem formas e sentidos múltiplos de uma existencialidade evolutiva. In: Passeggi, M. C. (Org.). Tendências da pesquisa (auto) biográfica. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008b. p. 23-50., 2009______. A imaginação e suas formas em ação nos relatos de vida e no trabalho autobiográfico: a perspectiva biográfica como suporte de conscientização das ficções verossímeis com valor heurístico que agem em nossas vidas. In: Peres, L. M. V.; Eggert, E.; Kurek, D. L. (Orgs.). Essas coisas do imaginário... diferentes abordagens sobre narrativas (auto) formadoras. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livro, 2009. p. 118-147., 2010)______. As narrações do corpo nos relatos de vida e suas articulações com os vários níveis de profundidade do cuidado de si. In: Vicentini, P. P.; Abrahão, M. H. M. B. (Orgs). Sentidos e potencialidades e usos da (auto)biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 171-192.. O corpo biográfico constitui-se na tecetura de três dimensões: a vivência, a memória e o imaginário, permeada por uma temporalidade aqui nomeada como motores (a)temporais no trajeto antropológico. A ideia de motores (a)temporais é entendida como o movimento que o sujeito empreende ao garimpar seu reservatório imaginário com vistas à presentificação das memórias que foram significativas no decurso de seu trajeto de vida.

Vejamos a figura elucidativa entre a teoria de Danis Bois e a antropologia do imaginário:

Figura 1
Pontos de convergência entre o modelo teorizado por Danis Bois e o campo teórico do imaginário.

A vivência, na teoria de Bois, pode ser compreendida como a dimensão fundamental para o desenvolvimento de um trabalho focado no corpo biográfico. Na pesquisa, a vivênvia associou-se ao exercício de biografização corporal, enfocando a linguagem gestual como primordial na narração de si. A partir do momento em que se focou na relação entre a vivência e o corpo biográfico ancorada na teoria em questão, adentrou-se na dimensão fenomenológica (dimensão sensível). Nela, o corpo não é meramente objeto, mas protagonista de reservatórios e memórias.

Desse modo, a vivência no contexto em questão caracterizou-se pela postura de sujeito ator-espectador que cada estudante assumiu durante o momento de experienciação com o seu corpo, exigindo uma atenção voltada ao aqui-agora. Isso significou estar presente no exercício corporal e em si mesmo o tempo todo. Foi o que aconteceu com as estudantes que participaram do estudo. Em cada encontro, elas foram desafiadas a biografarem-se somente com a linguagem gestual, representando, em cena, momentos de seu trajeto formativo. Percebe-se que, a partir do momento em que exercitaram o corpo atuante no seio da experiência, deixaram-se tocar pelo que foi significativo em suas vidas. E, assim, revelaram indícios que auxiliaram a perceber as inscrições em seu corpo. Assumiram o papel de sujeito consciente, pela percepção do que viviam e sentiam, deixando emergir da relação com o corpo as suas subjetividades corporais, que acionaram a memória, concedendo o acesso a seus reservatórios imaginários.

Nesse processo, tentou-se apreender as memórias. Elas são um registro do vivido que assegura ao ser humano não apenas a consciência de sua existência, mas, acima de tudo, representa a possibilidade de regressar e (re)criar os momentos que foram fundantes em uma vida. Em outras palavras, a memória comporta um caráter eufemizante, constituindo um dos caminhos para driblar o tempo e o destino. No estudo em questão, a memória significou a possibilidade de reencontro com um tempo vivido, experimentando uma relação experiencial com o corpo. Rompeu-se com a lógica temporal, buscando os acontecimentos significativos do passado que marcaram cada uma das acadêmicas. É fruto de uma criação que atribui uma espessura ao que foi vivido, valendo-se de uma esfera fantástica, desvinculando-se das ordens do tempo.

Nesse sentido, a memória possibilita organizar, por meio de um fragmento, o conjunto que compõe o todo, impregnada pelas significações do momento. Para Durand (2002, p. 403)______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.,

a organização que faz com que uma parte se torne "dominante" em relação a um todo é bem a negação da capacidade de equivalência irreversível que é o tempo. A memória - como imagem - é essa magia vicariante pela qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado [...] que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial.

A memória é essa magia vicariante, à medida que possibilita ao ser humano, por meio de um processo (a)temporal, reencontrar-se com o que foi significativo em sua vida, em forma de imagens que remetem às experiências vividas. Imagens que atribuem um novo sentido ao tempo presente, renovando a esperança diante das adversidades de um tempo que a todo o momento relembra a esse ser a sua finitude.

A memória, segundo Izquierdo (1989)Izquierdo, I. Memórias. Estudos Avançados, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 89-112, maio/ago. 1989. Disponível em: <http//www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141989000200006&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 nov. 2011.
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, é resultado das coisas que no decorrer da vida a pessoa percebe ou sente. Relaciona-se diretamente ao armazenamento e evocação, também chamada de recordação ou lembranças, de informações adquiridas pelas experiências vividas. A aquisição dessas memórias chama-se aprendizado. Para o autor (idem, p. 90),

o aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso; não existe atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela memória. Aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer atos-motores ou ideativos simples e complexos, etc.; e nossa vida depende de que nos lembremos de tudo isso.

Nesse sentido, a memória assume um papel fundamental, pois o armazenamento de tudo o que aprendemos no decorrer da vida, em forma de lembrança, é fator determinante à evolução do ser humano. Assim, a aquisição de outras aprendizagens dependerá da memória produzida anteriormente.

Diante disso, é necessário também fazer outra ressalva: a não mobilidade de desejos e sentimentos ou mesmo a indiferença diante um fato vivido podem não ser incorporadas "como conhecimento e aprendizado" (Brandão, 2008Brandão, V. M. A. T. Labirintos da memória. Quem sou? São Paulo: Paulus, 2008., p. 10). Isso geralmente repercute na não recuperação desse fato, pois ele não se transformou em memória de longa duração. Nessa lógica, pode-se pensar que somente ficam gravados aqueles acontecimentos que tiveram um significado para a pessoa, e visibilizá-los possibilita refletir sobre momentos que foram fundantes no decorrer do trajeto formativo. Dessa maneira, a memória, com base em Brandão (idem), pode ser pensada como um processo autoformativo.

É pertinente acrescentar também que a formação das memórias do indivíduo está associada a experiências não vividas diretamente, mas transmitidas de geração para geração por intermédio do grupo familiar e social que integra. Isto é, uma memória decorrente de um processo grupal/coletivo.

Leroi-Gourhan (1965, p. 13)Leroi-Gourhan, A. O gesto e a palavra. Memórias e ritmos - v. 2. Lisboa: Edições 70, 1965. relaciona a memória como uma manifestação grupal/coletiva baseada na linguagem, em que o grupo social "apenas sobrevive através do exercício de uma verdadeira memória na qual se inscrevem os comportamentos". A educação insere-se nesse contexto para agir no comportamento operatório do homem, que traz um condicionamento genético e também um condicionamento nascido da experiência individual.

A memória de construção individual, assim como a inscrição dos programas de comportamento pessoal, são totalmente canalizados pelos conhecimentos, cuja conservação e transmissão são asseguradas em cada comunidade étnica pela linguagem. Surge assim um autêntico paradoxo: as possibilidades de confrontação e de libertação do indivíduo baseiam-se numa memória virtual cujo conteúdo é pertença da sociedade. (idem, p. 22)

Do ponto de vista da memória autobiográfica em histórias narradas, a linguagem encaminha um processo de reflexão, compreensão, reorganização e ressignificação de trajetórias e projetos de vida e também de trabalho, em uma articulação de memórias individuais e também grupais/coletivas, dando-lhes, conforme Brandão (2008, p. 15)Brandão, V. M. A. T. Labirintos da memória. Quem sou? São Paulo: Paulus, 2008., um "sentido-significado". Para a autora, "essa história, que é nossa e dos grupos aos quais pertencemos, diz-nos quem somos, auxilia e fortalece a nossa identidade, ilumina nosso caminho na busca de sentidos para nosso ser-estar no mundo" (idem, ibidem).

Conforme Izquierdo (2004)______. Questões sobre memória. São Leopoldo: UNISINOS, 2004., tanto a formação quanto a extinção da memória relacionam-se ao resultado de interação bioquímica que pode facilitar ou dificultar a cognição, o aprendizado, a utilização e a sua formação. O processo consiste em entender que tudo o que incide nos sentidos é reelaborado, podendo vir a ser uma aprendizagem e, consequentemente, uma nova memória. Brandão (2008)Brandão, V. M. A. T. Labirintos da memória. Quem sou? São Paulo: Paulus, 2008. insere-se nessa discussão, ressaltando a influência de dois aspectos em relação a esse processo. Segundo a autora,

de um lado, temos as condições neurobiológicas que permitem a formação e a consolidação das memórias; por outro, a emoção que acompanha o fato vivido, sem a qual não haveria esta chamada consolidação e, portanto, a possibilidade de resgate ou rememoração. Nada somos além do que recordamos... Mas também do que esquecemos, seja as lembranças silenciadas (voluntárias ou involuntariamente), seja os não ditos. (idem, p. 12)

Assim, a memória pode ser caracterizada como flutuante (Delory-Momberger, 2010Delory-Momberger, C. Álbuns de fotos de família, trabalho de memória e formação de si. In: Vicentini, P. P.; Abrahão, M. H. M. B. (Orgs.). Sentidos e potencialidades e usos da (auto)biografia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. p. 95-11.), pois ela é constituída tanto das lembranças quanto dos esquecimentos. Portanto, a formação de memórias concretiza-se via corpo, que assume o papel de refletor das experiências vividas. O corpo está presente em todas as circunstâncias da vida do ser humano. É por meio dele que sentimos cada sensação, emoção, e que nos aventuramos em ações exploratórias, concretizando o processo de aprendizagem.

Na pesquisa, referência desta escrita, o corpo foi o evocador das memórias decorrentes dos eventos vividos ao longo da vida do sujeito, com o intuito de acessar os reservatórios de imagens pessoais, para daí visibilizar as escrituras que foram sendo assimiladas e acomodadas no corpo das estudantes. Ressalta-se que as escrituras que se mostraram pregnantes advieram das experiências provenientes da infância e da demanda da educação formal e não formal (família e escola). Essa abordagem alicerçou-se na premissa de Bérgson (1999, p. 178)Bérgson, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ao afirmar que "é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida". Ou seja, para que a lembrança reapareça à consciência é necessário o encontro da memória pura até o ponto preciso em que se realiza a ação.

Nessa perspectiva, o foco da pesquisa foi direcionado às memórias de longa duração e declarativas de ordem episódica ou autobiográfica - ligadas ao período da infância em conexão com o momento presente. Esse direcionamento teve como objetivo evocar os acontecimentos significativos daquela época, buscando no gesto de cada acadêmica indícios a evidenciar o corpo biográfico. As tonalidades que perpassaram o gesto durante o exercício de biografização corporal foram levadas em consideração como um indício do modo que determinado acontecimento tocou e reverberou na maneira como as acadêmicas se constituíram no que são hoje. Essa abordagem efetiva-se como o caminho escolhido para acessar o reservatório imaginário de cada estudante, evidenciando o trajeto antropológico que compõe a sua história biopsiquicossocial. É nesse ponto que se evidencia a relação imaginário e corpo biográfico, pois o imaginário permite acessar um conjunto de imagens, símbolos, crenças, valores, sentimentos, afetos, vestígios que constituem a história biográfica do indivíduo.

Para Durand (2002)______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002., o imaginário vai se produzir na conjuntura entre o pessoal e o meio cultural, o subjetivo e o objetivo, constituindo-se na trajetividade entre o gesto pulsional e o meio material e social. São nos entrelaçamentos entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas que o imaginário ganha uma ancoragem corporal que se alicerça na ligação entre a motricidade primária, o inconsciente e a representação.

A representação parte de um trajeto antropológico que resulta da constante troca, no nível imaginário, entre os impulsos subjetivos e assimiladores do sujeito e as intimações objetivas que partem do meio cósmico e social (Durand, 2002______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.). Nesse trajeto, ela é

a afirmação na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de "vaivém" contínuo nas raízes inatas da representação do sapiens e, na outra "ponta", nas várias interpelações do meio cósmico e social. Na formulação do imaginário, a lei do "trajeto antropológico", típica de uma lei sistêmica, mostra muito bem a complementaridade existente entre o status das aptidões inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos verbais nas estruturas "dominantes" e os complementos pedagógicos exigidos pela neotonia humana. (Durand, 2001______. O imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001., p. 90)

Na vida das estudantes pesquisadas, as expressões de suas linguagens - gestos e escritas no diário - foram reverberações das marcas impressas no corpo, nas quais estava subsumido o trajeto antropológico do anthropos.

Nesse contexto, os gestos adquirem o papel de protagonistas do movimento de interação e simbolização do homem no mundo. Assim, a linguagem gestual apresenta-se como potente e detonadora de imagens que muitas vezes a palavra não consegue dar conta. Dessa maneira, "o 'corpo inteiro colabora na constituição da imagem' e as 'forças constituintes' que coloca na raiz da organização das representações parecem-nos muito próximas das 'dominantes reflexas'" (Durand, 2002______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 50).

Ressalta-se que os gestos são considerados, por Durand, primórdios do imaginário. O autor, em seu livro As estruturas antropológicas do imaginário (2002, p. 41), refere-se a Bachelard para evidenciar que

os eixos das invenções fundamentais da imaginação são os trajetos dos gestos principais do animal humano em direção ao seu meio natural, prolongado pelas instituições primitivas tanto tecnológicas como sociais do homo faber.

Isso significa que nossos gestos são construídos pelas vivências no meio (social, cultural e histórico) no qual estamos inseridos, bem como pelo movimento subjetivo da relação do homem com e no mundo, valendo-se do pensamento simbólico. Cabe ressaltar que o ser humano também traz vestígios de gestos passados, seja do seu trajeto pessoal, seja do trajeto do antrophos. Por isso, a antropologia do imaginário defende que "qualquer gesto chama a sua matéria e procura o seu utensílio, e que toda a matéria extraída, quer dizer, abstraída do meio cósmico, e qualquer utensílio ou instrumento é vestígio de um gesto passado" (idem, p. 41-42).

A união entre os gestos e as representações acontece por meio do schème,8 8 Traduzido em português como "esquema" (utilizamos neste trabalho as duas formas de escrita). Durand busca o termo em Sartre, Burloud e Revault d'Allonnes, que por sua vez beberam em Kant. que é a generalização dinâmica e afetiva da imagem, promovendo a junção entre os gestos inconscientes da sensório-motricidade, as dominantes reflexas e as representações, sendo o esboço ou mesmo esqueleto dinâmico e funcional da imaginação, que constituem as principais classes de formação das imagens. O schème aparece como "o 'presentificador' dos gestos e das pulsões inconscientes" (idem, p. 60). É pela motricidade do corpo que Durand, conforme ressalta Teixeira e Araújo (2011)Teixeira, M. C. S.; Araújo, A. F. Gilbert Durand. Imaginário e educação. Niterói: Intertexto, 2011., identifica a linguagem primeira do homem, o verbo, que nada mais é que a expressão corporal de cada ser humano.

Dessa maneira, o imaginário expresso na motricidade do corpo revela a dimensão fundante na constituição do conceito de corpo biográfico, uma vez que direciona a pensar o corpo como um manancial racional e não racional de impulsos para a ação. Por ser possuidor de sentidos, emoções, sentimentos, afetos, imagens, símbolos e valores decorrentes do trajeto antropológico de cada sujeito, traz os vestígios da história individual e também da história da humanidade. Esses são os fomentos dos reservatórios imaginários humanos!

Diante do que foi exposto e retomando a imagem do diagrama, a relação entre o imaginário e o corpo biográfico efetiva-se por uma ideia motora que agregou as outras dimensões que integram a constituição do conceito. Ou seja, sem uma vivência específica - o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral - não haveria a evocação de memórias dos acontecimentos vividos e, consequentemente, não seria possível tentar visibilizar esse imaginário e, por sua vez, problematizar o corpo biográfico.

DA RELAÇÃO ENTRE IMAGINÁRIO E CORPO BIOGRÁFICO: UMA AMOSTRA EMPÍRICA

Para exemplificar como se dá a convergência entre o imaginário e o corpo biográfico no processo de análise, trazemos uma amostra empírica. Essa amostra é resultado do processo de análise do trabalho de biografização corporal pela improvisação teatral, mencionada no início do texto. A convergência, nesse momento, pode ser observada na interpretação simbólica dos gestos e da escrita dos sujeitos da pesquisa. Enfocamos o último passo da análise, ou seja, o mitema, como resultado da convergência dos dados empíricos, evidenciando nesta escrita o marco das conexões entre os campos teóricos do imaginário e do corpo biográfico.

Cabe ressaltar que a ideia de "mitema" é baseada em Durand (1996)______. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. a partir de Lévi-Strauss (s.d.)Lévi-Strauss, C. Antropologia estrutural. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s.d. (1958 1. ed.)., que o definiu como uma espessa unidade constitutiva, uma espécie de "átomo" basilar à construção do discurso mítico. "É a menor unidade do discurso mítico que é redundantemente significativa, isto é, repetitividade" (Teixeira; Araújo, 2011Teixeira, M. C. S.; Araújo, A. F. Gilbert Durand. Imaginário e educação. Niterói: Intertexto, 2011., p. 63). Não se reduz a uma única palavra ou mesmo sintaxe, constituindo-se por um conjunto semântico, abarcando a palavra significada, o atributo e o verbo. Assim, entende-se por mitema o agrupamento de palavras que de algum modo exercem o papel mitêmico. O mitema, que para Durand (1996, p. 256)______. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. "é o elemento significativo mais pequeno de um mito, caracterizado por sua redundância, a sua metábole", é constituído por um "pacote de relações", imbuído de significações impregnadas de filamentos condensados. Na pesquisa, o mitema representou o sentido latente subsumido na memória inscrita no corpo de cada estudante.

Diante disso, trazemos o mitema da estudante Cm:9 9 Cabe ressaltar que foram quatro as estudantes que participaram da pesquisa, aceitando o convite que fora encaminhado por e-mail a duas turmas do curso de pedagogia. Elas foram nomeadas pela inicial do nome: L; Cm; M; C. O DESEJO DO VOO NO CORPO CATIVO.

Para chegar ao mitema, foi necessário um árduo trabalho de análise que englobou a realização da observação gestual com base nos registros de vídeos, com o intuito de perceber a "voz" que emanava do corpo por meio dos gestos, pelo viés da hermenêutica. Além da análise do Diário da Experiência de cada estudante, buscando as imagens simbólicas que apareceram na escrita, evidenciando as dimensões do corpo biográfico como núcleos pregnantes que contribuíam para um pensar sobre a biografia do corpo e a relação com o imaginário. Das pregnâncias que emergiram da análise dos registros de vídeo e das imagens simbólicas do Diário da Experiência, agrupamos as repetições significativas em núcleos com o mesmo sentido simbólico associados às escrituras do corpo. Isso nos possibilitou adentrar um campo simbólico de sentidos, significações e representações, desencadeadas por um conjunto de fragmentos, frases curtas, enunciados (Peres, 1999Peres, L. M. V. Dos saberes pessoais à visibilidade de uma pedagogia simbólica. 1999. 157f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999.) e imagens visuais.

Das análises realizadas, encontramos os núcleos que nos propiciaram chegar ao mitema da estudante Cm. São eles: o corpo livre x o corpo aprisionado, a repressão, reverenciar/servir/cuidar o outro em conjunção com a imagem simbólica de pássaro preso em cativeiro e do aprisionamento expressam o desejo do voo no corpo cativo, mitema da estudante Cm.

Esse mitema agrega o dualismo da antítese presente na vida da estudante. Cativo está relacionado a um ser escravizado, apreendido, encarcerado, preso, dominado.10 10 Conforme dicionários on-line: Michaelis e Dicionário do Aurélio. Esses atributos caracterizam Cm como as experiências no decorrer de seu trajeto formativo, que resultaram em um aprisionamento interno que a faz servir e colocar-se à disposição, seja de um outro ou de uma determinada situação. Porém, esse mitema converte-se em um cativar que abrange a ideia de atrair, encantar, seduzir, receber a estima ou a simpatia, transformando o lado mórbido do ser aprisionado em um ser que cuida do outro e aprendeu a se satisfazer com esse ato de doação. Doação que direciona o seu olhar sempre para fora e nunca para si.

Associa-se o sentido que perpassa o mitema a uma postura heroica que Cm assumiu em sua vida para driblar o aprisionamento que a condicionou a uma determinada maneira de agir, fazendo-a aceitar tal condição de vida. A estrutura heroica gira em torno da luta constante do herói contra o monstro, hiperbolizada por símbolos antitéticos que englobam a luta do bem contra o mal por meio de um combate das trevas pela luz e da queda pela ascensão, por exemplo (Durand, 2002______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.). Ela insere-se no regime diurno11 11 Conforme o estudo realizado por Durand no livro As estruturas antropológicas do imaginário (2002), a lógica dinâmica de composição de imagens organiza-se em dois regimes, um diurno e um noturno, que são produzidos ao longo do trajeto antropológico na conjunção entre o psicofisiológico e o sociocultural, desdobrando-se em três estruturas polarizantes: uma heroica, uma mística e, por fim, uma sintética. das imagens, associada a uma dominante postural e gira em torno dos verbos de ação, separação, segregação. Essa estrutura centra-se em um personagem que com sua arma combaterá o monstro.

Percebe-se nos gestos representados por Cm durante o exercício de biografização corporal que as repressões vividas ao longo de sua vida representam o monstro que hoje ela precisa combater para viver. Isso porque essas repressões levaram-na a assimilar uma forma de se colocar no mundo atrelada a um corpo que está a serviço de alguma coisa. Por isso, a ideia de aprisionamento, relacionada ao corpo preso a uma situação de vida, mas que em sua expressão em outro contexto, como nos encontros, demonstra o desejo de liberdade.

A espada, nesse universo, pode ser vista como o elemento simbólico ligado ao mitema e que conjuga a luta do herói contra o monstro. Segundo o dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 392)Chevalier, J.; Gheerbrant, A. Dicionário de símbolos. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009., a espada representa a bravura, possuindo dupla função: de destruição e de construção. Símbolo do guerreiro, é também associada à Guerra Santa. Também se vincula à justiça, como a imagem da balança, separando o bem do mal e golpeando o culpado.

Nesse sentido, visualiza-se a espada como a postura que Cm adotou em sua vida para conseguir driblar as dificuldades e adaptar-se ao que lhe foi imposto, em uma esperança latente de que a luz prevaleça sobre as trevas. A espada separa a figura da "dor" causada pelo aprisionamento que sente e que está atrelada a uma servidão, para nesse ato de servir encontrar o conforto que necessita para seguir a vida - representado na compaixão do outro por seus atos de bravura. O desejo do voo no corpo cativo abarca um olhar sempre de dentro para fora, ou seja, não há espaço para manifestar desejos, vontades, necessidades de si. Sempre que há o movimento contrário, há uma proibição que se acredita que esteja vinculada a uma solicitação que parte de si própria em relação ao que tem de cumprir, impedindo-a de continuar, fazendo-a parar e retomar o estado anterior.

No entanto, percebe-se que o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral representou a possibilidade de, ao olhar para si, expressar livremente seus desejos, levando-a a se deparar com outro monstro: os medos que a envolvem e que talvez sejam a causa que a fazem continuar e aceitar sua condição de aprisionamento. Como se o confronto consigo mesma representasse seu maior inimigo.

Assim, observa-se em Cm, com base em suas memórias re-(a)presentadas, o registro de uma repressão que ficou inscrita em seu corpo biográfico. Repressão determinante na maneira como ela age cotidianamente e que foi relacionada a um corpo dócil, amoroso e também expressivo - como antítese de um corpo que poderia estar enrijecido. Cabe ressaltar que se associa essa repressão de Cm a não querer rememorar a infância como um forte indício de que essa fase foi determinante do que hoje ela se transformou.

O mitema da estudante Cm, somado aos mitemas das outras estudantes, aqui não apresentados, evidenciou, simbolicamente, que o corpo é uma escritura viva das experiências que são significativas na vida do ser humano. Tais experiências vão sendo registradas em sua anatomia, repercutindo na dimensão física, cognitiva, afetiva e psíquica, que o faz semelhante, mas nunca igual à outra pessoa.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propormos uma discussão pontual sobre o imaginário e o corpo biográfico, buscamos dar visibilidade para o corpo como um saber relevante a ser contemplado no contexto educativo, especificamente na formação, em especial para este trabalho, com o intuito de fazer um exercício de entrecruzar a arte e o corpo para pensar a educação e a formação.

Sendo o corpo o "habitáculo" (Josso, 2009______. A imaginação e suas formas em ação nos relatos de vida e no trabalho autobiográfico: a perspectiva biográfica como suporte de conscientização das ficções verossímeis com valor heurístico que agem em nossas vidas. In: Peres, L. M. V.; Eggert, E.; Kurek, D. L. (Orgs.). Essas coisas do imaginário... diferentes abordagens sobre narrativas (auto) formadoras. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livro, 2009. p. 118-147.) que abriga a história do ser humano, em cujos gestos repercutem a história singular e plural, defendemos que ele - corpo - seja contemplado e escutado como uma matéria sutil e sensível, tão importante quanto as matérias pragmáticas e utilitárias, ainda a ser desvelado por linguagens artísticas ou pelo menos que se utilize de outras racionalidades que não somente as hegemônicas e instituídas.

O que queremos dizer com isso é que a memória corporizada, visibilizada ou não por meio de gestos, pode ser resultado do modo como assimilamos os acontecimentos vividos em consonância à herança biológica e ancestral. Essa assimilação, invariavelmente, pode não estar associada a um processo consciente, mas direta ou indiretamente o que é significativo fica em nós, em suas diferentes formas. Por exemplo: alegria, tristeza, medo, segurança, saúde, doença, entre outras possíveis manifestações.

Tudo isso constitui as escrituras do corpo biográfico, que na pesquisa foi problematizada por meio dos mitemas como representantes do reservatório do imaginário de cada pesquisada. Tais mitemas apresentam de algum modo as imagens fundadoras emergentes da sua narrativa e a possível relação com a maneira como elas interagem no meio em que estão inseridas.

Desse modo, o corpo pode ser comparado a uma "escritura de argila" (Crema, 1998Crema, R. Prefácio. In: Leloup, J.-Y. O corpo e seus símbolos. Uma antropologia essencial. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 9-12.) que revela o nosso texto mais concreto que está sempre sendo reescrito. À medida que as intimações vão se apresentando a cada pessoa, novas escrituras são somadas ao corpo biográfico, atribuindo outras tonalidades ao repertório gestual.

Nesse sentido, o gesto é a expressão do imaginário nas escrituras do corpo biográfico, pois ele já é o resultado de como as memórias inscritas no corpo reverberaram no modo como cada acadêmica vinha sendo e se tornando ao longo de seu trajeto formativo. E também na maneira como cada uma interagiu no exercício de biografização corporal.

Além disso, o gesto é, genuinamente, o imaginário para Gilbert Durand (2002)______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002., por ser ele universal e atemporal. Ressaltamos ainda que no corpo habita uma memória (corporizada), a qual se constitui em um saber ser-fazer. Ela poderá ser ou não ser visibilizada por meio de gestos. O importante é saber que ela está ali como um processo consciente ou não, mas certamente significativa. Compreendemos assim que nos gestos encontramos os indícios que fazem o sujeito (re)agir no contexto em que está inserido como porta de acesso às escrituras que compõem o reservatório imaginário de cada ser humano.

É importante destacar que a proposição do exercício de biografização corporal sem palavras ocasionou nos sujeitos da pesquisa um choque perceptivo, como diria Machado da Silva (2006)Machado da Silva, J. As tecnologias do imaginário. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2006., que de certa maneira foi afrouxado pela utilização da linguagem teatral, que transitou entre a linguagem direta e ficcional como motivadora das ações em cena. As estudantes, ao colocarem-se como personagens de sua vida, re-(a)presentaram acontecimentos que consideramos fundantes de seu trajeto formativo. Dizemos isso, pois, se tais acontecimentos não fossem, não teriam vindo à tona.

A linguagem imediata do gesto, por meio de comprometimento e prontidão ao aqui-agora, foi detonadora para a narrativa de si. Isso gerou a mobilidade corporal no espaço acadêmico, propiciando visibilizar um conjunto de elementos - como imagens, símbolos, crenças, valores, sentimentos, afetos - que integra a biografia do corpo de cada uma delas.

Ao colocar o corpo em foco, outras percepções emergiram e, então, o elemento biográfico e formador cedeu lugar à possibilidade de entrar em contato com um tipo de conhecimento que emanou de si e conjugou uma história vivida e também herdada. Esse movimento pode ter feito disparar valorizações, desejos e também projetos, proporcionando um sentir/viver o corpo. Não seriam esses conteúdos também relevantes para serem abordados na formação inicial de professores? Pensamos e defendemos que sim, pois, ao lhe ser conferido tamanha importância, proporcionou, por alguns momentos, uma desvinculação dos paradigmas que atribuem status à supremacia da razão para abarcar a subjetividade que perpassa a conduta humana, dando vazão para o universo simbólico das ações de cada sujeito, indo do individual para o coletivo e repercutindo desde as escolhas de cada um até sua postura no contexto que está inserido.

A tudo isso designamos escrituras do corpo biográfico, que no desenvolvimento e finalização da pesquisa foi problematizada como imagens fundadoras e emergentes de narrativas de si, bem como narrativas do outro.

Percebe-se com isso que o investimento no que antes era desconhecido e um tanto inusitado hoje se revela como mais um instrumento a contribuir nas pesquisas (auto)biográficas no que concerne à discussão da dimensão biográfica do corpo. Além disso, o que foi desenvolvido apresenta-se como uma possibilidade metodológica de inserção do corpo como um saber necessário à promoção de uma abordagem mais humana no contexto formativo, em que diferentes linguagens podem conversar.

Sendo assim, a contribuição do imaginário (que tem na arte uma de suas fontes) como campo teórico ao conceito de corpo biográfico proporciona uma abordagem que extrapola não somente uma história individual, mas nos remete a pensar as conexões coletivas que nos habitam e que apreendemos como os valores que foram sendo incutidos ao longo da vida das estudantes.

  • *
    Trabalho apresentado na 36ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).
  • 1
    Escritura, nesse contexto, é entendida como os registros que ficam inscritos no corpo de cada estudante, no âmbito físico e psíquico, a partir das experiências vivenciadas no decurso de seu trajeto formativo de vida e que, de alguma maneira, refletem em sua interação com/no mundo.
  • 2
    Esse conceito é embasado em Josso (2009)______. A imaginação e suas formas em ação nos relatos de vida e no trabalho autobiográfico: a perspectiva biográfica como suporte de conscientização das ficções verossímeis com valor heurístico que agem em nossas vidas. In: Peres, L. M. V.; Eggert, E.; Kurek, D. L. (Orgs.). Essas coisas do imaginário... diferentes abordagens sobre narrativas (auto) formadoras. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livro, 2009. p. 118-147., que designa a problemática existente entre a tensão permanente que advém das exigências do coletivo ao qual pertencemos e da evolução das aspirações, sonhos e desejos individuais.
  • 3
    Bois e Rugira (2006)______.; Rugira, J.-M. Relação com o corpo e narrativa de vida. In: Souza, E. C. (Org.). Autobiografias, histórias de vida e formação. Pesquisa e ensino. Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006. p. 31-46. chamam atenção para a necessidade de uma ressignificação da representação instituída sobre o corpo, propondo outra abordagem conhecida como o paradigma do sensível.
  • 4
    O jogo dramático traz uma visão mais contextualista, como referenciam os estudos de Olga Reverbel (1989)Reverbel, O. Um caminho do teatro na escola. São Paulo: Editora Scipione, 1989. (Série Pensamento e Ação no Magistério), que vislumbra no jogo a possibilidade de utilizá-lo como instrumento para auxiliar no ensino e na aprendizagem de outras disciplinas. O jogo teatral, com base nos estudos de Viola Spolin (2004)Spolin, V. O jogo teatral no livro do diretor. Tradução de Ingrid Dormien Koudela e Eduardo Amos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. e Ingrid Koudela (2001)Koudela, I. D. Jogos teatrais. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001., autoras às quais nos ancoramos, contemplam uma abordagem de visão essencialista enfatizando que a arte e o fazer artístico se sustentam por si e são uma forma de conhecimento.
  • 5
    Foi proposta a atividade e imediatamente as participantes começavam a encenar. Houve momentos em que foi dado um tempo para breves combinações, quando a atividade era realizada em duplas.
  • 6
    O Diário da Experiência caracterizou-se por ser um caderno em que as estudantes registravam suas impressões em relação ao vivido. Não havia um modelo a ser seguido, foram sugeridas algumas possibilidades, como: relatar, com palavras, desenhos, imagens ou texto narrativo. Cada uma tinha total liberdade de escrita.
  • 7
    Para Durand (1988Durand, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1988., 1996______. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., 2002)______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002., a representação é sempre uma re-(a)presentação do objeto ausente. Por isso, ao longo do texto são utilizadas as duas formas de escrita: representação e re-(a)presentação.
  • 8
    Traduzido em português como "esquema" (utilizamos neste trabalho as duas formas de escrita). Durand busca o termo em Sartre, Burloud e Revault d'Allonnes, que por sua vez beberam em Kant.
  • 9
    Cabe ressaltar que foram quatro as estudantes que participaram da pesquisa, aceitando o convite que fora encaminhado por e-mail a duas turmas do curso de pedagogia. Elas foram nomeadas pela inicial do nome: L; Cm; M; C.
  • 10
    Conforme dicionários on-line: Michaelis e Dicionário do Aurélio.
  • 11
    Conforme o estudo realizado por Durand no livro As estruturas antropológicas do imaginário (2002), a lógica dinâmica de composição de imagens organiza-se em dois regimes, um diurno e um noturno, que são produzidos ao longo do trajeto antropológico na conjunção entre o psicofisiológico e o sociocultural, desdobrando-se em três estruturas polarizantes: uma heroica, uma mística e, por fim, uma sintética.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2014
  • Aceito
    25 Jun 2015
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