Acessibilidade / Reportar erro

EDITORIAL

Em um sentido mais amplo e compartilhado, a linguagem poderia ser definida como um sistema de signos socialmente convencionados que pretende, supostamente, representar a realidade. Sabemos, no entanto, que é também pelas sensações, gestos e afetos, entre outras formas de linguagem, que os humanos se comunicam e comunicam o mundo que eles tentam descrever e compreender. Para além disso, é pela linguagem e com a linguagem que construímos, desconstruímos e reconstruímos o mundo de diferentes maneiras. Umberto Eco, no célebre romance O nome da rosa,1 1 Eco, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 2009. entende que, embora todas as coisas desapareçam, delas conservamos os nomes mais puros. O próprio título do romance remete, segundo Eco, ao enunciado nulla rosa est (não há rosa), o que demonstra como a linguagem pode falar tanto das coisas existentes quanto das suprimidas ou inexistentes.

A linguagem consolida-se como um conceito filosófico e um problema de pesquisa na medida em que, a partir do pensamento moderno, passa-se a considerá-la um elemento que estrutura a relação humana com o mundo, com o conhecimento e com a construção de subjetividades. Assim, a linguagem torna-se também uma temática investigativa no campo educacional. Nesse sentido, a linguagem já não é apenas um instrumento de comunicação, mas algo intrínseco e constituinte do humano, algo que fala sobre as concepções possíveis e sobre a relação com o mundo, com o conhecimento, com os outros e conosco mesmos. Em sociedades complexas, costuma-se considerar, não sem divergências, que as formas de falar, de escrever e de se relacionar com as diferentes linguagens podem determinar ou identificar classes sociais e identidades culturais. Assim, a linguagem nos determina, nos identifica e nos modifica, por exemplo, nas relações que estabelecemos com gêneros, sexualidades, etnias, religiões, capacidades, gerações, pertencimentos geográficos, entre outras possibilidades identitárias. A linguagem constrói identidades e subjetividades não só porque influencia a forma como os sujeitos se pensam, mas, sobretudo, como os sujeitos pensam o outro, o diferente.

Os doze textos e a resenha apresentados neste número da Revista Brasileira de Educação (RBE) enfrentam as tensões entre linguagens, identidades e diferenças. Esse debate tem sido fundamental para o entendimento das dificuldades que temos enfrentado no contexto contemporâneo nacional, na defesa da valorização da diversidade nas políticas públicas em educação. Vale aqui lembrar, a título de exemplo, a persistência da disciplina de ensino religioso em diferentes estados e municípios; os casos de estudantes que se recusam a fazer trabalhos sobre religiões de matriz africana; o veto ao Programa Escola Sem Homofobia; a exclusão da promoção da igualdade de gênero e de orientação sexual do Plano Nacional de Educação e, mais recentemente, a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e a apresentação de projetos de lei, na Câmara e no Senado, com o apoio do movimento Escola Sem Partido. Assim, assistimos ao avanço de um neoconservadorismo em diferentes esferas da sociedade e, principalmente, no campo educacional, com sérias consequências para as políticas identitárias e das diferenças. Esse movimento neoconservador atua no intuito de mudar o propósito da educação, deixando de lado apostas mais inclusivas, ainda que limitadas, defendendo uma educação supostamente neutra e não ideológica. Entender esse neoconservadorismo é um desafio para o campo educacional. Nesse sentido, as pesquisas aqui apresentadas contribuem também para um debate mais fundamentado sobre nossos atuais desafios no campo da política e das práticas pedagógicas.

O artigo de Rosana Medeiros de Oliveira abre a revista com um claro desafio: descolonizar o conhecimento. Para a autora, "A descolonização dos enunciados e visualidades é um movimento fundamental para um verdadeiro reconhecimento das diferenças". Nesse sentido, descolonizar significa um movimento epistemológico e político, que busca superar a visão colonizadora sobre as identidades socialmente subalternizadas, ou seja, "pessoas negras, mulheres, não heterossexuais, amazônidas, nordestinas, caipiras e roceiras". Com uma pesquisa sobre livros didáticos para a educação do campo, a autora demonstra dois aspectos centrais nos modos em que raça e gênero performam - são identidicados pelas linguagens - nesses livros: a colonialidade do saber e o estilo politicamente correto. Afinal, de que modo anunciamos o diferente nos livros didáticos, nas políticas públicas em educação e nas práticas pedagógicas? O artigo de Pedro Angelo Pagni, apresentado na seção Espaço Aberto, focaliza, por exemplo, o debate sobre como se constituem os discursos sobre deficiência e inclusão escolar, ou seja, sobre a linguagem e a construção do diferente como subalterno e estigmatizado. Também nessa perspectiva, o artigo de Juliana Reichert Assunção Tonelli refuta o conceito de dislexia tradicionalmente reconhecido como um distúrbio de aprendizagem da linguagem escrita localizado na pessoa que aprende os usos da língua. Nesse sentido, os três artigos suscitam a urgente necessidade de discursos mais justos, mais inclusivos, menos colonizados no contexto escolar, seja nos livros didáticos, como salienta Rosana Medeiros de Oliveira, seja nas políticas públicas, como defende Pedro Angelo Pagni, seja nas práticas pedagógicas, conforme ressalta Juliana Reichert Assunção Tonelli.

Rita de Cássia Marchi e Tiago Ribeiro Santos, por sua vez, retomam as questões de gênero e sexualidade com uma escolha ainda pouco explorada nas pesquisas educacionais: a construção das masculinidades. As experiências disciplinares e os rituais escolares são analisados como elementos que produzem e conservam identidades masculinas. Produzir e conservar é a principal chave de leitura desse artigo, que analisa o romance O Ateneu, de Raul Pompeia, em uma perspectiva bourdieusiana. "Fazer-se forte; fazer-se homem" não corresponde apenas a rituais disciplinares da metade do século XIX, mas a um discurso premente e imprescindível hoje para quem assume o desafio de educar para a construção de novas masculinidades.

O discurso sobre a diferença é, sem dúvida, um debate ético e político. Tal como os artigos de Rosana Medeiros de Oliveira e de Pedro Angelo Pagni, o trabalho de Víctor Abella García, Fernando Lezcano Barbero e Raquel Casado Muñoz coloca em questão a hierarquia de valores que são socialmente enunciados e - como estamos considerando neste editorial - construtores de identidades e subjetividades. Em uma pesquisa com adolescentes, os autores concluem que a hierarquia de valores, um tanto contraditoriamente, indica, por um lado, forte adesão ao hedonismo e, por outro, à transcendência e à abertura a mudanças. A pesquisa aponta a possibilidade de propostas didáticas para uma melhor motivação dos alunos e para a redução do fracasso escolar. Tal perspectiva é interessante, neste número da RBE, pois relaciona como o clima de preconceito, discriminação e intolerância na escola pode ser mais ou menos favorável para os processos de ensino e aprendizagem.

Ainda sobre a relação entre linguagens, identidades e diferenças, encontramos o artigo de Suzana Alves Escobar, Ana Maria de Oliveira Galvão e Ana Maria Rabelo Gomes. As autoras analisam o papel social e o valor agregado que "o escrito" ocupa no cotidiano de comunidades Xakriabá, principalmente em situações relacionadas à elaboração e ao desenvolvimento de projetos sociais em associações específicas desse grupo indígena. Por meio de uma pesquisa etnográfica, as autoras revelam usos e funções, costumes e tradições, diferenças e desigualdades, ausências e silenciamentos que envolvem a produção escrita para os Xakriabá, em suas relações internas e com os projetos subsidiados pelas políticas públicas.

Há, ainda, um conjunto de quatro artigos que abordam o debate sobre ensino e aprendizagem da língua materna, seja na formação e prática de professores, conforme Micheline Madureira Lage, ou no ensino fundamental, debate de Fabiane Puntel Basso; com pesquisas sobre políticas públicas, texto defendido por Juvenal Zanchetta Junior; sobre avaliação de larga escala, por Telma Ferraz Leal, Artur Gomes de Morais, Ana Cláudia Rodrigues Gonçalves Pessoa e Julliane Campelo do Nascimento. Nesse grupo de artigos, o primeiro é o de Micheline Madureira Lage, que analisa os direcionamentos (ou endereçamentos) do ensino de literatura em faculdades de letras, em sete universidades federais do estado de Minas Gerais. A pesquisa concluiu que sobre as relações entre literatura e ensino há um indicativo comum: a diversidade. Assim, a perspectiva tratada neste número da RBE - as tensões entre linguagens, identidades e diferenças - pode ser compreendida pelas vozes dos professores que fazem da linguagem o seu magistério.

Juvenal Zanchetta Junior, por sua vez, analisa as opções teórico-metodológicas empregadas pelo Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) relacionadas à leitura de textos literários de ficção, sobretudo aqueles em que a imagem é predominante. Por intermédio de uma pesquisa-ação, o autor se reporta aos resultados de levantamento de impressões de leitura de textos de ficção por imagens pelos professores participantes do PNAIC. A pesquisa conclui que o PNAIC confere forte caráter tangencial ao ensino da literatura em sua proposta didática. Já o artigo de Telma Ferraz Leal, Artur Gomes de Morais, Ana Cláudia Rodrigues Gonçalves Pessoa e Julliane Campelo do Nascimento se debruça sobre o desempenho de crianças em leitura na Provinha Brasil, relacionando os resultados das crianças com as práticas de suas professoras. Para tanto, os autores realizaram análise documental e observações de aulas. A pesquisa pôde certificar que os impactos nos resultados da Provinha Brasil decorreram do ensino da base alfabética e que o nível de leitura exigido das crianças não demandava habilidades de compreensão de textos mais elaboradas. O quarto artigo, nesse grupo, é o de Fabiane Puntel Basso, que buscou identificar e analisar as atividades de ensino de leitura e escrita em duas classes de 1º ano de escolaridade. O estudo foi realizado em duas escolas localizadas na região metropolitana de Grenoble (França) e concluiu que, para uma melhor compreensão da complexidade do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, a principal característica do ensino deve ser a heterogeneidade, ou seja, a variação das práticas pedagógicas. Em uma tentativa preliminar de comparação entre os quatro artigos, podemos concluir que talvez o valor da diferença que emerge da experiência de Grenoble possa nos ajudar a compreender ainda mais a realidade brasileira, seja o PNAIC, seja a Provinha Brasil, seja a formação de professores em língua portuguesa.

Vale destacar ainda o artigo de Rodrigo Bastos Cunha sobre o conceito de letramento científico, seus usos e suas complexas relações com a chamada difusão científica em jornais. O autor propõe um diálogo mais qualificado entre o campo do ensino de ciências e o jornalismo para explorar a potencialidade da noção de letramento em ciências. Andrisa Kemel Zanella e Lúcia Maria Vaz Peres nos apresentam outro prisma para se pensar as tensões entre linguagens, identidades e diferenças: o corpo. Pela articulação entre arte e educação, as autoras identificam e conceituam o "corpo biográfico" e o "corpo imaginário". Analisam, assim, os entrecruzamentos da arte e do corpo como linguagens que podem fomentar a formação humana. Defendem, nessa perspectiva, que o corpo abriga a história do ser humano, em cujos gestos repercutem uma trajetória singular e plural.

Por fim, na resenha apresentada por Luciana Mesquita da Silva para a obra de Isabel Alarcão e Bernardo Canha, a colaboração na aprendizagem é compreendida como um instrumento a serviço do desenvolvimento, como um processo de realização e, ao mesmo tempo, uma atitude de abertura. Tal perspectiva reforça e complementa a defesa da tensão entre linguagens e construção de novas identidades na escola.

Segundo Gaston Bachelard, em As terras e os devaneios da vontade,2 2 Bachelar, G. As terras e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. a linguagem está nos postos mais altos de comando da imaginação e do conhecimento. Consideramos que este número da RBE contribui com esse "devaneio da vontade" de conhecer e de imaginar o mundo, o outro e a si próprio, de maneira rigorosa, plural, singular e instigante.

Boa leitura!

Rio de Janeiro, janeiro de 2017

  • 1
    Eco, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 2009.
  • 2
    Bachelar, G. As terras e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017
ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@anped.org.br