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A comunidade disciplinar em Goodson: impasses em um registro pós-estrutural

LA COMUNIDAD DISCIPLINAR EN GOODSON: OBSTÁCULOS EN UN ENFOQUE POST-ESTRUCTURAL

RESUMO

Tendo em vista nossa trajetória de pesquisa investigando políticas de currículo em uma perspectiva discursiva, abordamos o pensamento de Ivor Goodson com foco na interpretação das comunidades disciplinares como subjetivações produzidas na política. Defendemos que Goodson propõe a noção de comunidade disciplinar como comunidade profissional que dinamiza a política curricular e vale-se do nome da disciplina na luta por seus interesses. Conjecturamos, no âmbito da teoria curricular, sua perspectiva de sujeito político - a comunidade disciplinar - visando apresentar alguns impasses gerados pelo pensamento da história das disciplinas escolares sobre a comunidade disciplinar, tendo em vista sua apropriação em um enfoque discursivo. Este texto, em síntese, focaliza o que Goodson nos faz pensar sobre as comunidades disciplinares e como sua noção de subjetividade disciplinar na produção das políticas de currículo é modificada ao incorporarmos aportes pós-estruturais em nossas pesquisas.

PALAVRAS-CHAVE
comunidade disciplinar; discurso; política de currículo

RESUMEN

Basados en nuestras investigaciones de las políticas de currículo desde un enfoque discursivo, discutimos sobre el pensamiento de Ivor Goodson con foco en la interpretación de las comunidades disciplinares considerándolas como subjetivaciones producidas en la política. Defendemos que Goodson propone la noción de comunidad disciplinar como comunidad profesional que activa la política curricular y se apoya en el nombre de la disciplina en la lucha por sus intereses. Conjeturamos, en el currículo, su perspectiva de sujeto político -a comunidad disciplinar-, con el intento de presentar algunos de los obstáculos generados por el pensamiento de la historia de las asignaturas sobre la comunidad disciplinar, en vista la apropiación de ese pensamiento desde un enfoque discursivo. Este texto apunta, en síntesis, lo que Goodson nos hace pensar sobre las comunidades disciplinares y como se cambia su noción de subjetividad disciplinar en las políticas de currículo cuando incorporamos el post-estructuralismo.

PALABRAS CLAVE
comunidad disciplinar; discurso; política de currículo

ABSTRACT

Based on our research about curriculum policy in a discursive approach, we discuss the Ivor Goodson´s thought focusing the interpretation of disciplinary community as such subjectivities produced in the policy. We argue that Goodson proposes the notion of disciplinary community as a professional community that impels the curriculum policy and uses the name of the school subject in the fight for their interests. We conjecture, in the context of curriculum theory, his perspective of political subject - the disciplinary community -, by trying to present some impasses generated by the conception of disciplinary community in the history of school subjects, considering the appropriation of this thought in a discursive approach. This paper, in summary, focuses on what Goodson makes us to think about disciplinary communities, and how his notion of disciplinary subjectivity is changed in the production of curriculum policy, insofar the post-structural approaches are introduced in our researches.

disciplinary community; discourse; curriculum policy

O PROPÓSITO DESTE TEXTO

As principais conclusões e modos de operar da história das disciplinas escolares de Ivor Goodson têm sido utilizados nas pesquisas em currículo no Brasil com grande destaque. Mesmo que outros autores, tais como André Chervel, Dominique Juliá, Stephen Ball, sejam também referências entre os investigadores preocupados com as questões relativas à organização disciplinar - sua história, sua estrutura em diferentes espaços e tempos, sua capacidade de controlar a significação do currículo -, as hipóteses de Goodson sobre a emergência, estabilização e mudança das disciplinas ao longo da história têm merecido atenção maior por parte dos curriculistas. No exterior, isso não se faz diferente (Garrat, 2000Garrat, D. Democratic citizenship in the curriculum: some problems and possibilities. Pedagogy, Culture & Society, Oxon: Routledge, v. 8, n. 3, p. 323-346, 2000.; Green, 1999Green, B. Curriculum, literacy and the state: re "right"-ing english? Pedagogy, Culture & Society, Oxon: Routledge, v. 7, n. 3, p. 385-407, 1999.; John, 2005John, P. The sacred and profane: subject sub-culture, pedagogical practice and teachers perception of the classroom uses of ICT. Educational Review, London: Routledge, v. 57, n. 4, p. 471-491, 2005.; Kirk; MacDonald; Tinning, 1997Kirk, D.; MacDonald, D.; Tinning, R. The social construction of pedagogic discourse in physical education teacher education in Australia. Curriculum Journal, London: Routledge, v. 8, n. 2, p. 271-298, 1997.; O'Neill, 2000O'neill, J. So that I can more or less get them to do things they really don't want to. Capturing the "Situated Complexities" of the Secondary School Head of Department. Journal of Educational Enquiry, Austrália: CREd, v. 1, n. 1, p. 13-34, 2000. Disponível em: <http://www.ojs.unisa.edu.au/index.php/EDEQ/article/viewFile/569/439>. Acesso em: 1º ago. 2016.
http://www.ojs.unisa.edu.au/index.php/ED...
; Popkewitz, 2010Popkewitz, T. The limits of teacher education reforms: school subjects, alchemies, and an alternative possibility. Journal of Teacher Education, Washington, DC: Sage, v. 61, n. 5, p. 413-421, 2010.).

No Brasil, particularmente, Antonio Flavio Moreira não só incorporou algumas das conclusões de Goodson em sua tese de doutorado (Moreira, 1990______. Currículos e programas no Brasil. 2. ed. Campinas: Papirus, 1990.), como contribuiu para a formação de um grupo de pesquisas focado na história das disciplinas escolares. Os trabalhos de Ferreira, Gomes e Lopes (2001)______.; Gomes, M. M.; Lopes, A. C. Trajetória histórica da disciplina escolar ciências no colégio de aplicação da UFRJ (1949-1968). Pro-Posições, Campinas: UNICAMP, v. 12, n. 1(34), p. 9-26, 2001., Lopes (1999)Lopes, A. C. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1999., Lopes e Macedo (2002)______.; Macedo, E. F. A estabilidade do currículo disciplinar: o caso das ciências. In: ______.; ______. (Orgs.). Disciplinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 73-94., Macedo (1998Macedo, E. Parâmetros Curriculares Nacionais: a falácia de seus temas transversais. Revista de Educação, Brasília: AEC, v. 27, n. 108, p. 73-89, 1998., 2000)______. O que significa currículo disciplinar? In: Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino - ENDIPE (Org.). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes, espaços e tempos. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 181-188. e os próprios trabalhos de Moreira (Moreira, 1998Moreira, A. F. Didática e currículo: questionando fronteiras. In: Oliveira, M. R. N. (Org.). Confluências e divergências entre didática e currículo. Campinas: Papirus, 1998. p. 11-26.; Ferreira; Moreira, 2001______.; Moreira, A. F. A história da disciplina escolar ciências nas dissertações e teses brasileiras no período 1981-1995. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte: UFMG, v. 3, n. 2, p. 133-143, 2001.) são exemplos desse primeiro momento profícuo. Posteriormente, mesmo esse grupo tendo se reorganizado em outras instituições e formatos, seus integrantes mantiveram pesquisas influenciadas por essa direção inicial. Tais pesquisas levaram a novos trabalhos desses mesmos autores e também de novos integrantes no campo que se envolveram com o estudo dos textos de Goodson. Em relação a esse segundo momento, podemos destacar os trabalhos de Ferreira (2007)Ferreira, M. S. Investigando os rumos da disciplina escolar ciências no Colégio Pedro II (1960-1970). Educação em Revista, Belo Horizonte: UFMG, n. 45, p. 127-144, jun. 2007., Gomes, Selles e Lopes (2013)Gomes, M. M.; Selles, S. E.; Lopes, A. C. Currículo de ciências: estabilidade e mudança em livros didáticos. Educação e Pesquisa, São Paulo: USP, v. 39, n. 2, p. 477-492, abr./jun. 2013., Lopes (2008)______. Políticas de integração curricular. Rio de Janeiro: EdUERJ/FAPERJ, 2008., Lopes e Macedo (2009______.; ______. An analysis of disciplinarity on the organization of school knowledge. In: Ropo, E.; Autio, T. (Orgs.). International conversations on curriculum studies: subject, society and curriculum. Boston: Sense Publishers, 2009. p. 169-185., 2011)______.; ______. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.; Macedo (2007)______. Currículo e ciclos de aprendizagem. In: Fetzner, A. (Org.). Ciclos em revista: implicações curriculares de uma escola não seriada. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2007. p. 35-46., Martins (2007aMartins, M. C. Histórias do currículo e currículos narrativos: possibilidades de investigação na história social do conhecimento. Pro-Posições, Campinas: UNICAMP, v. 18, n. 2, p. 39-50, maio/ago. 2007a., 2007b)______. Currículo e formação de professores de história: uma alegoria. Educação em Revista, Belo Horizonte: UFMG, v. 1, n. 45 p. 145-158, jun. 2007b., Oliveira (2009)Oliveira, R. F. A agenda do Legislativo Federal para as políticas curriculares no Brasil (1995-2007). Educação e Pesquisa, São Paulo: USP, v. 35, n. 3, p. 541-555, 2009., Rosa (2007Rosa, M. I. P. Experiências interdisciplinares e formação de professore(a)s de disciplinas escolares: imagens de um currículo-diáspora. Pro-Posições, Campinas: UNICAMP, v. 18, n. 2, p. 51-64, maio/ago. 2007., 2010)______. Formação docente, identidade profissional e a disciplina escolar. Zetetike, Campinas: UNICAMP, v. 18, p. 23-45, 2010., Selles e Ferreira (2010)Selles, S. E.; Ferreira, M. S. Analyzing experimentation in Brazilian science textbooks from a socio-historical approach. Revista de Educación de las Ciencias, Bogotá: OEI, v. 11, n. 2, p. 44-47, 2010. e Souza (2009)Souza, R. F. A renovação do currículo do ensino secundário no Brasil: as últimas batalhas pelo humanismo (1920-1960). Currículo sem Fronteiras, [s.l.]: [s.n.], v. 9, n. 1, p. 72-90, jan./jun. 2009.. Esse conjunto de pesquisas, seguidos de muitos trabalhos de teses e dissertações orientados por esses autores ou por pesquisadores de outras redes, é emblemático do quanto a teorização de Goodson é profícua para o campo do currículo em nosso país.

Com o que pode ser chamado de uma virada pós-crítica1 1 Foge ao escopo deste trabalho tecer considerações teóricas sobre a problemática do uso do termo "pós-crítico", já consagrado. Para isso, recomendamos a leitura de Lopes (2013). Aproveitamos para salientar que o termo "virada", igualmente consagrado, não é utilizado por nós com a ideia de que todas as produções curriculares no Brasil passam a ser pós-estruturais e pós-modernas a partir dos anos 1990. Queremos destacar a entrada dessas produções e a mudança de agenda de pesquisa ocorrida no campo. Talvez uma pesquisa atualizada em relação ao que é produzido sobre teses e dissertações no Brasil, tal como o trabalho de Lopes, Macedo e Paiva (2006), realizado para o período 1996-2006, viesse a chegar à mesma conclusão de que autores de registro histórico-crítico ainda são dominantes. Não obstante, provavelmente os registros que abalam o predomínio histórico-crítico se tenham ampliado. do campo do currículo no Brasil nos anos 1990, mais expressiva no âmbito do Grupo de Traba lho Currículo (GT12) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) (Carvalho, 2012Carvalho, J. Campos gravitacionais discursivos sobre as políticas de currículo. In: Ferraço, C. E.; Gabriel, C.; Amorim, A. (Orgs.). Políticas de currículo e a escola. Campinas: UNICAMP, 2012. p. 1-24.), passa a ser desenvolvido no campo um hibridismo entre tendências críticas e pós-críticas (Lopes; Macedo, 2014______.; ______. The curriculum field in Brazil since the 1990's. In: Pinar, W. (Org.). International handbook of curriculum studies. New York: Routledge, 2014. p. 86-100.). No que diz respeito especificamente aos trabalhos sobre políticas de currículo em campos disciplinares, ou que incorporam discussões de história das disciplinas escolares aos estudos de currículo em geral, esse hibridismo nos parece especialmente significativo. Opera-se na tentativa de articular as conclusões sobre disciplinas e comunidade disciplinar com dimensões discursivas e pós-estruturais, principalmente quando as investigações em pauta focalizam uma disciplina específica. De forma particular, em nosso grupo de pesquisa, o aprofundamento da incorporação de aportes discursivos tem nos levado à necessidade de problematizar com mais vigor os impasses gerados por esse hibridismo (Abreu, 2010Abreu, R. G. A comunidade disciplinar de química na produção de políticas curriculares para o ensino médio no Brasil. 2010. 206f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.; Busnardo, 2010Busnardo, F. M. G. A comunidade disciplinar de ensino de biologia na produção de políticas de currículo. 2010. 98f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.; César, 2012César, N. T. B. Políticas de currículo para a formação de professores no ensino de química. 2012. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; Matheus, 2009Matheus, D. Políticas de currículo em Niterói, Rio de Janeiro: o contexto da prática. 2009. 166f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.; Oliveira, 2012a______. Políticas de currículo: lutas por significação no campo da disciplina história. 2012. 250f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012a, Rio de Janeiro.; Torres, 2011Torres, W. N. Políticas de currículo em educação de jovens e adultos (EJA). 2011. 140f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.).

Em trabalho anterior (Lopes, 2011______.; ______. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.), foi desenvolvida a problematização da noção de disciplina tendo em vista os enfoques discursivos. A partir dessa interpretação, defendemos que os campos disciplinares não são divisões epistemológicas, mas articulações políticas2 2 Sobre articulações, ver Laclau (2011), ou, no campo do currículo, Lopes (2012a). encadeadas por subjetivações contingentes envolvidas com as disciplinas. Com tal leitura, compreendemos ser necessário também a problematização do que se entende por comunidade disciplinar. Quem são os sujeitos dessa comunidade? No que essa compreensão de sujeito é abalada, na medida em que passamos a operar com processos de subjetivação no registro pós-estrutural? De que maneira a noção de comunidade disciplinar em Goodson mostra-se (in)compatível com as discussões pós-estruturais sobre a subjetivação?

A escolha de Goodson para a abordagem neste artigo, em detrimento dos diferentes autores da história das disciplinas escolares aqui mencionados, não se deve apenas ao fato de esse autor ser altamente significativo na trajetória de nosso grupo de pesquisa ou pela importância de seu pensamento no campo do currículo, como já destacamos, ancora-se, sobretudo, no fato de ser ele, do nosso ponto de vista, quem mais avança, no que se refere aos estudos de história das disciplinas escolares, no questionamento de uma visão epistemológica de disciplina e na defesa de uma concepção de comunidade disciplinar desvinculada de determinismos exclusivamente associados à estrutura econômica. Em outras palavras, é porque Goodson mostra-se muito potente e emblemático, no âmbito do pensamento sócio-histórico, na tentativa de articular estrutura e ação, determinismos estruturais e possibilidades de escape do sujeito, que nos parece válido problematizar discursivamente suas conclusões no campo do currículo de registro pós-estrutural.

Vale enfatizar que não se trata de questionar Goodson por não assumir uma abordagem pós-estrutural. Na perspectiva discursiva, não nos parece pertinente restringir um autor ou uma teorização às categorias de certo ou errado, adequado ou inadequado em termos absolutos, ou mesmo operar com a pretensão de superar suas argumentações. Interessa-nos compreender o que Goodson possibilita na interpretação da comunidade disciplinar e o que bloqueia no que concerne aos enfoques discursivos.

Por essa razão, organizamos o texto de modo que, em sua primeira seção, são introduzidos os marcadores de investigação com os quais suscitamos a tensão perante a noção de sujeito. Procuramos argumentar como Goodson avança, em relação a outras teorizações críticas e sócio-históricas, construindo a noção de comunidade disciplinar escolar como comunidade de profissionais docentes que se valem do nome da disciplina na luta por seus interesses, apoiando-se nos vínculos sociais dos processos de escolarização.

Em um segundo momento, atentos para os estudos de Goodson sobre as disciplinas, conjecturamos limites e possibilidades de seu pensamento no âmbito da teoria curricular de registro pós-estrutural, focalizando sua perspectiva de sujeito político - a comunidade disciplinar - como dinamizadora das políticas de currículo. Apresentamos alguns impasses gerados pelo próprio pensamento da história das disciplinas escolares sobre a comunidade disciplinar. Em um terceiro trecho, discutimos possibilidades de desconstrução de momentos do pensamento de Goodson, com foco na interpretação das comunidades disciplinares como subjetivações produzidas na política.

Porque investigamos o modo como se desenvolve a produção das políticas de currículo por intermédio daqueles envolvidos na produção dos discursos voltados às disciplinas, mas também com discursos outros que circulam no âmbito do que se pensa como educação básica, é que julgamos ser importante focalizar tais subjetividades performadoras da política. Ponderamos, portanto, que menos do que um trabalho sobre o que Goodson pensa a respeito das comunidades disciplinares, este texto é sobre o que Goodson nos faz pensar sobre as comunidades disciplinares e como sua noção de subjetividade disciplinar na produção das políticas de currículo é modificada ao incorporarmos aportes pós-estruturais em nossas pesquisas. Dito de outra forma, este artigo não visa criticar Goodson por não atender aos aportes discursivos, mas investigar os impasses gerados em sua teorização com base nas apropriações pós-estruturais que fazemos em nossas investigações.

GOODSON: DISCIPLINA, SUJEITO E LUTA POLÍTICA

Os vínculos do trabalho de Goodson com a sociologia do currículo e mais propriamente com as principais conclusões da nova sociologia da educação são constantemente reiterados.3 3 Ver, por exemplo, Viñao Frago (2006). Menos frequentemente é assinalado como a inserção de seus trabalhos não se dá sem constrangimentos teóricos nos movimentos aos quais se vincula. Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. propõe um corpus teórico-analítico baseado em uma preocupação historicista e, simultaneamente, em uma relevância situacional, ocasionada pela estrutura social de/em dado momento, somada à compreensão de que o engajamento e a decisão subjetiva são oportunizados pelo imbricamento contextual da história e da estrutura social. Com essa abordagem, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. pensa a história das disciplinas escolares a partir do envolvimento de indivíduos vinculados profissionalmente a determinada disciplina, em dado contexto social e tendo em vista, ao mesmo tempo, o enfoque histórico do campo disciplinar e da escolarização. Por ser profissional de determinado campo disciplinar é que o docente vincula-se a uma comunidade. Uma vez entrelaçados esses elementos que pontuam sua teorização, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. compreende a história do currículo, a história da própria escolarização.

Teoricamente, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. critica muitas leituras recorrentes entre seus possíveis correligionários, na nova sociologia da educação e no movimento de reconceptualização. O autor (1993, p. 193) considera "noções cruas" as perspectivas puramente crítico-reprodutivistas, pautadas na concepção de que os professores escolares estão em condição de passividade em relação à política. Ao contrário, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. pontua que, entre os principais motivos para a influência de um enfoque acadêmico na disciplina escolar, está a alocação de recursos e a garantia de emprego e possibilidades de sucesso profissional aos professores. Tal perspectiva (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993.) inverte significativamente a leitura comum entre os sociólogos da educação, capaz de conceber a influência de um discurso acadêmico na disciplina escolar como uma simples e unidirecional forma de dominação, de exercício de poder.

Segundo Goodson, as relações de poder não estão tão concentradas quanto uma leitura rígida poderia propor. Ao argumentar que não há uma dominação pura, sem interesse e operação dos grupos disciplinares escolares, pensamos que Goodson não está destituindo, no âmbito de uma corrente crítica mais ampla, a capacidade de determinada elite do conhecimento, defensora da ciência, de enfatizar suas formas de conhecer como padrões legítimos. Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. defende, também, o reconhecimento dos professores das escolas, componentes das comunidades disciplinares escolares, como operando em favor de uma maior vinculação do conhecimento escolar ao acadêmico, justamente por terem em conta que a maior proximidade e identificação com a disciplina de maior prestígio pode legar à disciplina escolar melhores condições de sobrevivência no currículo. A atuação de tais professores seria motivada por interesses materiais e uma carreira promissora. Isso seria alcançado por meio da luta pela manutenção e estabilização da disciplina, bem como por sua promoção como detentora de um conhecimento de alto status, com vistas à ocupação de lugar prestigiado no currículo oficial.

Daí a crítica de Goodson aos pesquisadores de base filosófica e sociológica. Em relação ao primeiro grupo, cujos trabalhos de Hirst, Peters e Phenix4 4 Para mais detalhes, sugerimos: Hirst, P. H. The logical and psychological aspects of teaching a subject. In: Peters, R. S. (Ed.). The concept of education. London: Routledge and Kegan Paul, 1979, p. 44-53; Hirst, P. H.; Peters, R. S. The logic of education. London: Routledge and Kegan Paul, 1970; Phenix, P. The realms of meanings. New York: McGraw-Hill, 1964. são considerados seminais, Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. argumenta que pensam a disciplina acadêmica como matriz da escola e o conhecimento escolar como dependente do conhecimento científico/acadêmico, sendo, portanto, uma versão do conhecimento universitário adaptada para fins de ensino. Segundo o autor, essa interpretação favorece a hierarquização do conhecimento, colocando as disciplinas científica e acadêmica como encabeçando a produção de conhecimento e tornando viável a legitimação da coordenação acadêmica do currículo escolar.

Já no segundo grupo, dos estudos de base sociológica crítica, trabalhos como os de Young são criticados por negligenciarem a atuação de diferentes grupos disciplinares na defesa e promoção das disciplinas escolares. Tal posição é apresentada, embora Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. se alinhe à nova sociologia da educação na leitura de que o currículo e as disciplinas escolares são construções sócio-históricas fortemente relacionadas aos interesses dominantes. O que Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. propõe - em sintonia e com simultâneo afastamento da nova sociologia da educação - não é a desconsideração dos interesses dominantes, mas que tais interesses também são mobilizados (talvez, até explorados) na interação dos diferentes grupos com eles. Com tal perspectiva, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. acena para um enfoque teórico no qual diferentes grupos sociais operam ativamente na (relação com a) produção de tradições, podendo até mesmo se utilizar de retóricas dominantes para propulsionarem interesses próprios.

É com esse olhar que Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. busca compreender o trabalho de grupos disciplinares na promoção das disciplinas. Com sua visão, Goodson passa, segundo Ball (1983)Ball, S. A subject of privilege: english and the school curriculum, 1906-1935. In: Hammersley, M.; Hargreaves, A. (Orgs.). Curriculum practice: some sociological case studies. New York: Routledge, 1983. p. 61-88., a ter sua teorização orientada pelo pensamento interacionista weberiano, ainda que o próprio Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. critique a interpretação interacionista para a investigação das disciplinas escolares por pensar que esse enfoque enfatiza a prática escolar, as negociações realizadas no contexto da escola, como explicativas dos processos de legitimação e mudança dos conhecimentos. A leitura interacionista, em sua perspectiva, poderia acabar por reinserir um viés aproximado à visão sociológica que criticara, uma vez que agora seria supervalorizada a prática escolar em detrimento dos interesses alheios à escola, hermetizando-a como totalidade explicativa dos processos sociais produtores do currículo.

A recusa de um modelo explicativo baseado puramente no viés filosófico, da sociologia do conhecimento ou do interacionismo weberiano, dá-se na apropriação dos estudos históricos. Segundo Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., uma abordagem histórica sobre as disciplinas escolares pode encetar a problemática de seus processos criadores e promotores, não contemplados em Knowledge and control (Young, 1971Young, M. (Org.). Knowledge and control. New York: Macmillan, 1971.). Reiterando sua crítica à nova sociologia da educação, Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. pontua que pensar as disciplinas escolares como construções sócio-históricas de determinado momento não é suficiente - apesar de ser também plausível - para entender a atuação dos grupos operantes na militância em favor de uma disciplina. Segundo Goodson (1985)Goodson, I. Towards a curriculum history. In: ______. (Org.). Social histories of the secondary curriculum. Londres: The Falmer, 1985. p. 47-53., a insuficiência das preocupações sociológica e filosófica está na desconsideração do caráter evolutivo do fenômeno das disciplinas. Para ele, o enfoque estrutural ou de ordem social reduz a problemática, porque assume um viés despreocupado para com os aspectos históricos que seriam capazes de explicar as tomadas de decisão em diferentes épocas e por diferentes atores.

Chamamos atenção para o entrave gerado por Goodson em sua relação com o movimento da nova sociologia da educação, ao apontá-la como não compreensiva de um olhar histórico. Pensamos que certa resistência de Goodson para com a perspectiva sociológica crítica, que povoa as reflexões de Knowledge and control, não se dá em razão de discordância do ideário crítico, mas de uma perspectiva de crítica sócio-histórica que, segundo o autor, não considera o desenvolvimento dos subgrupos que operam na relação com as disciplinas. A história, configurada por ele como central na compreensão da construção social das disciplinas escolares, não pode ser simplesmente uma história da estratificação social pela via econômica, uma história sustentada pelo conflito entre classes sociais.

Argumentamos que a substância histórica do currículo para Goodson não faz sentido se for outra que não a mobilizada pelos praticantes disciplinares. Essa leitura de história difere da perspectiva que focaliza a estrutura econômica, apropriada por muitos dos pensadores críticos que compuseram o movimento da nova sociologia da educação e a utilizaram como base para a construção de análises para a educação e, por conseguinte, para o currículo, em escala macroanalítica, mais preocupados com generalizações nas quais o centro reconhecível seria a vinculação entre relações sociais de produção e o caráter reprodutivo da escola (Oliveira, 2011Oliveira, A. Rede de ressignificações nas políticas curriculares: a Revista Brasileira de História na década de 1980. In: Lopes, A. C.; Dias, R. E.; Abreu, R. (Orgs.). Discursos nas políticas de currículo. Rio de Janeiro: Quartet, 2011. p. 49-75.).

Isso não significa que Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. não tenha em vista as determinações econômicas como influentes na produção curricular e, principalmente, na manutenção e promoção das disciplinas escolares. O próprio autor pontua a relação entre esses grupos organizados e o poder dominante com vistas à melhoria nas condições de trabalho. Em Goodson, o que não pode ser eufemizado por uma macroanálise crítica é o caráter singular e articulado de tais grupos ao longo da história e em contextos sociais específicos. Ressalta-se como outra característica de seu trabalho (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997.) a preocupação não só em inter-relacionar macro e microanálise, mas também em introduzir a etnografia como forma de compreensão da atuação, fusão e/ou conversão e produção de diferentes valores pelos grupos disciplinares em diferentes épocas.

Coloca-se, assim, a possibilidade de conjecturá-lo como aproximado do que se poderia ler como pensamento interacionista weberiano,5 5 Apesar de considerarmos que a caracterização da obra de Weber escapa veementemente aos limites deste trabalho, merecendo, em respeito ao autor, uma abordagem mais acurada, acionamos elementos que julgamos pertinentes em sua obra, tendo em vista sua influência nos trabalhos de Goodson. Segundo Giddens (2005), o pensamento de Weber se recusa absolutamente à formulação de leis gerais e esquemas deterministas baseados em teorias gerais do progresso. As relações econômicas, apesar de reconhecidas em sua capacidade de influenciar o processo histórico, são vistas como de validade contingente e possuem importância específica e variável, merecendo fazer parte de um processo mais amplo de investigação empírica sobre os elementos que interagem em circunstâncias particulares. uma vez que, apesar de concordar com/considerar determinada leitura materialista histórica, sintomática do pensamento marxista que baliza muitos trabalhos da corrente crítica, não a tem como única explicação das conexões históricas e sociais. Ele considera uma gama de outros elementos, tais como a interação entre atores motivados que, embora estejam inseridos em um contexto social, são capazes de constituir e transformar os elementos de regulação social (regras e valores, por exemplo) por meio de diferentes sentidos que atribuem a eles. Com essa perspectiva, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. propõe uma leitura de estrutura social e, simultaneamente, de intervenção subjetiva no contexto dessa estrutura, costurada por um viés histórico e etnográfico atento às diferentes dinâmicas e configurações dos grupos disciplinares no decorrer do tempo.

A história social de uma disciplina escolar, dos grupos que se identificam com ela e em favor dela advogam, é que deve ganhar centralidade nas investigações com vistas à análise dos processos de legitimação do conhecimento, da escolarização (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993.). Segundo Goodson (idem), baseado em estudos como os de Esland e Dale e também nos de David Layton sobre a história das matérias escolares, apesar de muitas matérias possuírem uma correspondente universitária, isso não faz com que tenham seus mecanismos de funcionamento, estrutura interna e finalidades sociais alinhados com a disciplina acadêmica.

Em vez disso, Goodson (idem) chama atenção para o fato de que não só as disciplinas escolares não são derivadas de disciplinas acadêmicas, como muitas são anteriores cronologicamente às disciplinas universitárias,6 6 Como exemplo, sugerimos Goodson (1990). estas sim mais fortemente vinculadas ao campo científico. Com essa posição, Goodson (idem) pontua que esses aspectos são capazes de explicar a legitimação do conhecimento, das disciplinas no currículo oficial, ao passo em que, uma vez em desenvolvimento nas escolas, em virtude de demandas sociais, forma-se uma base de lançamento para a disciplina acadêmica, com a finalidade inicial da formação de profissionais treinados no campo disciplinar.

Motivado por esses indícios, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997.) lança mão da investigação das disciplinas escolares, voltando-se às relações que as levam a possuir dado status (alto, intermediário ou baixo) e configuração. Em seus trabalhos, acena para um elemento comum entre algumas disciplinas de maior prestígio no currículo escolar: a estreita vinculação entre a disciplina escolar e a disciplina acadêmica (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997.). No entanto, o modo como se constitui a relação entre essas disciplinas é diferente: cada uma possui história distinta, marcando a impossibilidade de estabelecimento de leis rígidas e/ou gerais para a compreensão de seus processos dinamizadores.

A história do campo científico, da disciplina escolar, da escolarização, as demandas sociais em determinado momento, as demandas do mercado são colocadas por Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. como toda a gama de entradas possíveis aos efeitos causadores de mudanças na configuração de uma disciplina escolar e, consequentemente, do currículo. Nesse sentido, Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. propõe a compreensão da comunidade disciplinar como ancoragem à investigação sobre a influência de tais efeitos (re)configuradores de uma disciplina escolar. A centralidade do foco na comunidade disciplinar consiste na leitura de que são esses atores os que desempenham papel principal na promoção da disciplina escolar, pois a mobilizam com vistas à aquisição de benefícios profissionais.

Com Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., considerando a hierarquização do conhecimento e, consequentemente, das disciplinas, pode-se argumentar que, em um possível estado apoteótico (com territorialização no âmbito científico, acadêmico e escolar), uma disciplina é mobilizada por pesquisadores do campo disciplinar científico, professores universitários e escolares. Esses diferentes grupos, articulados em diferentes períodos históricos sob um nome comum (o da disciplina), constituem, segundo Goodson, a comunidade disciplinar. Tais grupos operam na "gestão" da disciplina, influenciando, gerando e cancelando oportunidades, mudando fronteiras e prioridades, sofisticando a burocratização com a institucionalização de associações especializadas, com normas e ética próprias.

Na concepção de Goodson (1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., uma comunidade disciplinar não é um grupo homogêneo, mas constitui-se a partir da relação de subgrupos internos, facções profissionais com perspectivas diferenciadas. Ressalta, também, que no âmbito de uma comunidade disciplinar, por seus grupos internos possuírem diferentes concepções, existem disputas e divergências pelas quais se firmam acordos e negociações. Para Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., a comunidade disciplinar opera, entre outras possibilidades, na tentativa de manter a estabilidade curricular da disciplina e, simultaneamente, promovê-la no mercado do conhecimento.

Apesar de a comunidade disciplinar não ser vista como homogênea, mas fracionada internamente, é admissível ponderar que Goodson a concebe como possuidora de uma positividade capaz de integrar os indivíduos atuantes em seu interior: a identificação profissional com o mecanismo simbólico disciplinar. Desse modo, é possível interpretar que a ação política só se desenvolve entre os pares, os praticantes da disciplina. Destacamos que, em alguns momentos, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997. e Goodson e Dowbiggin (1993)______.; Dowbiggin, I. Cuerpos dóciles: aspectos comunes de la historia de la psiquiatría y la enseñanza. In: Ball, S. (Org.). Foucault y la educación. Madrid: Morata, 1993. p. 107-131. chegam a priorizar, com base na hierarquização social do conhecimento, a ação de indivíduos que atuam como autoridades científicas e/ou universitárias na comunidade disciplinar.

Assim, ainda que reconheçam o papel ativo dos professores da educação básica, coloca-os em posição subordinada, sendo capazes de atuar por meio da resistência, tendo de lidar com o que supostamente seria originado no campo acadêmico e político em geral (Goodson, 2008______. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008.). Além disso, a ação política também pode ser tracejada pelas associações disciplinares, nas quais representantes profissionais da escola e da universidade negociam as tomadas de decisão (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993.).

Argumentamos que a primazia do contexto universitário desenvolve-se em virtude de sua abordagem teórico-metodológica, ancorada em uma visão etnográfica e sócio-histórica crítica e influenciada pelos trabalhos de David Layton (1972)Layton, D. Science as general education. Trends in Education [s.n.t.], 1972.. Uma de suas hipóteses é a de que uma disciplina passa de uma tradição utilitária e pedagógica, pautada nos anseios discentes e vinculada aos problemas cotidianos dos alunos, para uma tradição acadêmica, com corpo de conhecimento padronizado, com problemáticas acadêmicas e sistematização dos procedimentos caros à reprodução do conhecimento disciplinar. Em seu último estágio definidor, passa a existir um corpo profissional identificado, com valores estabelecidos e com organização e seleção de conteúdos determinadas pelos acadêmicos especialistas, pesquisadores da área, legitimadores, portanto, do conhecimento disciplinar (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993.). A comunidade disciplinar é então delineada como composta por professores e pesquisadores pertencentes àquele campo disciplinar. Esse delineamento é que nos leva a discutir os vínculos com a subjetivação.

Enfatizamos, ainda, que no registro teórico de Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., apesar de comporem a comunidade disciplinar, os professores das escolas estão em posição secundária de intervenção política, limitados perante os profissionais do campo que respondem pelo conhecimento acadêmico. Tal segmentação pode ser vista como correspondente à hierarquização social dos conhecimentos, haja vista o próprio autor salientar a necessidade de legitimação social pela via da institucionalização do campo no âmbito universitário/científico.

A COMUNIDADE DISCIPLINAR EM GOODSON: DESESTABILIZANDO O SUJEITO

No registro das considerações de Goodson, é concebível pensar na promoção da disciplina como a produtora de uma ambivalência, por meio da qual seus promotores iniciais, os professores, militam por um status que lhes passa a subordinar em certa medida. Mais que isso, a aquisição do prestígio concedido pela legitimação acadêmica leva a que a disciplina escolar só seja pensada como válida se suas finalidades estiverem vinculadas às finalidades acadêmicas, sendo, portanto, minimamente necessária a importação de matizes do contexto universitário para a escola. Se é uma demanda dos professores das escolas a elevação da disciplina ao nível acadêmico e científico, ao alcançar tal status, o mesmo subgrupo escolar passa a se sujeitar à disciplina acadêmica, agora legisladora sobre o campo disciplinar, definindo o que é um problema, uma metodologia, um profissional. Com isso, estabelecem-se valores e perspectivas diferenciadas, finalidades sociais distintas entre as disciplinas acadêmica e escolar. Pensamos ser essa uma oportunidade à formação de novos subgrupos organizados em torno de leituras e capazes de disputar entre si, aspirando à ressignificação do campo. Esses subgrupos se solidarizam em torno de problemáticas que podem incluir, extrapolar, ou mesmo escapar à discussão puramente epistemológica sobre o pensamento disciplinar.

Destacamos a necessidade de crítica de tal leitura não só por estabelecer uma subordinação dos grupos escolares aos universitários, como também pela compreensão de que as articulações se dão entre subgrupos constituídos a partir de um background histórico. Por entender que os militantes de uma comunidade disciplinar são os praticantes da disciplina, Goodson (1993)______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993. enfatiza a existência de uma identidade preconcebida, um dado em comum a todas as identidades articuladas com a/na comunidade: ser profissional daquela disciplina.

Defendemos que Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997. constrói a reflexão sobre as operações da comunidade disciplinar como em um trabalho de retroalimentação com vistas ao crescimento dos domínios disciplinares. Todo trabalho em favor da institucionalização acadêmico-científica de uma disciplina geraria, por conseguinte, maior solidez no currículo escolar, passando a ter profissionais diplomados e reprodutores das marcas ou limites disciplinares. Com o aumento da participação do nome disciplinar nos mais distintos espaços (acadêmico, científico e escolar), com a formação disciplinar na universidade, com as pesquisas e a fundação de associações disciplinares, com o consequente aumento de burocratização, o campo ganharia maior notoriedade e nitidez social, difundindo suas nuançes timbradas e, assim, fortalecendo a edificação da disciplina escolar no currículo.

A retroalimentação de que falamos viabilizaria que o nome da disciplina, como símbolo, legasse maiores possibilidades e oportunidades corporativas, uma vez que o aumento do espectro de profissionais e especializações polinizaria a retórica disciplinar, mencionada por Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., em diferentes espaços e tempos, propagando a importância social da disciplina e, por conseguinte, alargando seus domínios em diferentes contextos. Isso se ainda estivermos falando que todo o trabalho, eminentemente, é para a estabilização do emprego e de melhorias nas perspectivas profissionais dos professores escolares.

Por outra via, seria ainda possível argumentar que, diante da expansão do campo profissional, as decisões tomadas em prol da disciplina já não estão baseadas somente em benefícios profissionais para professores escolares, mas também sofrem influência de agendas dos demais profissionais disciplinares que atuam em diferentes posições no campo, sejam estes pesquisadores, representantes de associações, professores universitários etc., que cooperam para a manutenção e expansão dos limites da disciplina e, em comum, possuem o interesse de que o campo disciplinar, bem como suas formas de conhecer, se dissemine. Nesse cenário, a disciplina é pensada como "coalizão" (idem, p. 190), na qual perpassam diferentes identidades, valores e interesses. As profissões possibilitadas pelo campo disciplinar devem, então, ser pensadas como uma gama de diferentes objetivos que se mantêm sutilmente alinhavados sob um nome comum em períodos particulares da história.

Segundo Goodson (idem), a disciplina é, portanto, um símbolo frouxo, vago. É preenchida por diferentes valores e visões de mundo conflitantes entre si e que mudam de acordo com o tempo. Os elementos capazes de mantê-la integrada tendem a ganhar mais força à medida que a dispersão de versões sobre a disciplina passa a ser reduzida em virtude de um bem maior para os profissionais: a promoção do que se entende por disciplina escolar à condição de acadêmica. Nessa condição de disciplina acadêmica, de "ciência real" (idem, p. 191), outorgada por acadêmicos, é gerada a coalizão disciplinar, capaz de integrar seus profissionais e delimitar os rótulos do próprio campo, com suas problemáticas e interesses comuns.

Até esse momento, Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997. preocupa-se em sistematizar o desenvolvimento disciplinar por intermédio dos atores e suas performances em diferentes períodos na promoção de uma disciplina escolar. O autor (1995), no entanto, acena para fatores externos à comunidade disciplinar que operam no favorecimento à emergência ou promoção de uma disciplina. Entre tais fatores, estariam incluídas as demandas industriais e comerciais, a produção de livros didáticos, a atuação de agências externas à escola ou universidade, bem como uma ampla gama de atores sociais externos ao campo disciplinar, à escola e à universidade, que podem atuar na difusão das marcas disciplinares por meio do debate público.

Com essa pontuação, Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. enfatiza os elementos retóricos e ideológicos na publicização do conhecimento disciplinar como algo que vale a pena ser institucionalizado e disseminado socialmente. Complementa, ainda, que estruturas e forças externas se impõem não somente como fonte de ideias, propostas ou constrangimentos, mas como definidoras e orientadoras na produção de novos conteúdos, categorias, funções sociais e atividades aos quais a escola e o campo disciplinar, em geral, devem manter-se aproximados para atrair suporte e legitimação (idem, p. 192).

A negociação com as forças externas, segundo Goodson (idem), é de suma relevância para a construção do campo disciplinar, pois é com base na capacidade de uma disciplina responder aos anseios sociais que ela alcança status, prestígio, território e maior alocação de recursos. Tais anseios, forças externas, não podem ser pensados somente em termos de grupos formais (pais, empregadores, sindicatos e universidades), mas com todo um conjunto mais amplo, proposto como "público" (idem, ibidem), como a esfera pública que abarca os grupos formais antes citados, mas também pensadores, políticos, gestores, entre muitos outros.

Nesse sentido, Goodson (idem) suscita, também, que a atuação dos profissionais disciplinares possui restrições por estar condicionada pelas forças externas. A prática disciplinar só é autorizada socialmente quando corresponde a demandas externas ao próprio campo disciplinar. Do contrário, não consegue sobreviver à negligência social, perdendo, ou não ganhando, relevância no debate público e tornando-se, portanto, prescindível. Concordando com Reid (1984)Reid, W. Curriculum topics as institutional categories: implications for theory and research in the history and sociology of school subjects. In: Goodson, I.; Ball, S. (Orgs.). Defining the curriculum: histories and ethnographies. Lewes: The Falmer, 1984. p. 67-76., Goodson (idem) assinala que a projeção adequada de rótulos, bem como a associação destes ao imaginário público mais amplo, com retóricas plausíveis de justificação, pode ser vista como o cerne da construção sócio-histórica da comunidade disciplinar.

TENSIONANDO A COMUNIDADE DISCIPLINAR DE GOODSON NO REGISTRO PÓS-ESTRUTURAL

Considerar a comunidade disciplinar, tal como percebida por Goodson - toda a gama de profissionais praticantes do campo ao longo do tempo - como central na definição das políticas impõe limites quando se pretende uma leitura pós-estrutural. Leva, ainda no registro teórico do autor, a duas possibilidades iniciais de olhar para essa categoria. A primeira consiste em ler que a comunidade disciplinar, como categoria analítica, não é abrangente o bastante para compreender os atores envolvidos na produção da política, uma vez que restringe a identificação à vontade comum em obter benefícios corporativos, sendo o benefício profissional o elemento de equalização e integração dos diferentes profissionais praticantes da disciplina.

Implicada na primeira, a segunda se volta a considerar que as forças externas, discutidas pelo autor, não são tão externas assim, mas são capazes de influenciar os profissionais disciplinares, ou mais do que eles, pois podem imprimir mais força à produção da política para um campo disciplinar ao constranger seus praticantes (organizações de categoria, associações disciplinares etc.) a responder a anseios externos ao campo, podendo transformá-los, até mesmo, em problemáticas disciplinares, haja vista a necessidade de interlocução entre o campo e o contexto social mais amplo, que lhe reconhece e reitera importância.

Para Goodson (idem), a busca por produzir respostas disciplinares às demandas sociais, circulantes no debate público, é uma questão latente e fundamental à manutenção de uma disciplina. É nesse sentido que se pondera a necessidade de difusão de rótulos disciplinares, capazes de ressoarem no debate público como via à resolução de problemas ou mesmo como elemento de defesa e manutenção do edifício disciplinar ante a uma crítica ao campo. Essa leitura já problematiza a centralidade da comunidade disciplinar na definição das políticas. Mais que isso, põe em tela quanto uma política mais ampla, que está para além dos limites do disciplinar, constitui constrangimentos que dinamizam aquilo que se tem por disciplinar.

Pontuamos que limitar a comunidade disciplinar, entendida como sujeito político central na promoção disciplinar, aos profissionais praticantes do campo e, consequentemente, considerar que toda a possibilidade, ou motivação, ao envolvimento na política curricular é fundamentalmente condicionada por questões corporativas é, ao longo da obra de Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., uma questão-convite à retomada de sua perspectiva de sujeito e luta política.

Ainda que em trabalhos recentes Goodson (2008)______. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008. já não focalize discussões diretamente voltadas às disciplinas escolares, o autor dá continuidade à perspectiva de um sujeito capaz de interagir com uma leitura de estrutura determinante. Tal sujeito, no contexto de suas formulações teóricas iniciais, pautadas em estudos etnográficos e sócio-históricos críticos, ou no contexto de seus atuais estudos, que incorporam as narrativas e histórias de vida de professores, é pensado pelo autor (Goodson, 1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 2008______. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008.) como consciência (de sua leitura de mundo, corporação disciplinar, escola, de sua história de vida/disciplina/carreira). A atuação desses sujeitos, vistos por Goodson como possuidores e/ou conhecedores da história do campo disciplinar, da escolarização, diz respeito às tomadas de atitude, às decisões desencadeadas por eles na política em dado contexto.

A busca pelo aprofundamento sobre a conscientização política desses sujeitos, sobre as razões (de carreira, currículo e conhecimento) que os levam, em dado momento, a atuarem em favor de uma bandeira, resultou, inicialmente, na incorporação dos estudos etnográficos (Goodson, 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995.), alinhados à perspectiva de Lévi-Strauss. Por intermédio desses estudos, passou a conceber que a abordagem de diferentes subgrupos disciplinares levaria à construção de um cenário geral da política. Posteriormente, parecendo visar compreender não só as motivações dos subgrupos, mas, individualmente, as de professores em sua relação com o campo disciplinar, com a escola e, principalmente, com a política, Goodson (2008)______. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008. passou a introduzir a narrativa e a história de vida de docentes como metodologia para acessar as missões individuais e projetos de vida de professores.

O aprofundamento das investigações histórico-etnográficas sobre os sujeitos envolvidos na seara disciplinar leva a que Goodson (1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 2008)______. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008. passe a buscar, na inter-relação das reflexões autobiográficas e de história de vida com a teoria social, métodos para a compreensão das atitudes individuais dos profissionais disciplinares e sua consequente capacidade de refração e intervenção nos processos políticos. Para o autor, a adoção desse referencial, considerado potente na penetração da realidade subjetiva, torna possível a compreensão dos sentidos atribuídos por tais sujeitos ao processo político. Nesse caso, a história de vida de cada sujeito analisado oportuniza o preenchimento de um suposto vácuo, visto por Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. como inerente aos processos políticos. Goodson (idem) avaliza, então, um olhar investigativo, organizado a partir dos referenciais da história de vida, atentos à experiência e às expectativas docentes, cujo foco está na interação da realidade pessoal do sujeito com a política.

Entre diferentes elementos da obra de Goodson, resguardando as distinções entre seus estágios, destacamos a leitura comum de um sujeito influenciado historicamente, concebido a priori por seus desafios atuais, mas posicionado/exposto em um contexto estrutural/social específico, com o qual negocia com base na consciência de suas demandas, problemas e aspirações. A concepção de uma subjetividade pré-existente, consciente de sua história, projeta, em Goodson, a decisão como cálculo. O sujeito decide por meio da conscientização dos processos sócio-históricos que o ensejam na luta política. Esse sujeito não é sistematicamente determinado pela estrutura, mas interage com ela, resistindo, negando suas determinações e atuando de forma orientada, com vistas à satisfação de suas demandas. Essa leitura é enfatizada pelo enfoque de Goodson em considerar a possibilidade de decisão subjetiva, movida pela consciência de sua condição, seu status profissional e da disciplina, em oportunidades produzidas pelo imbricamento contextual da história e da estrutura social.

O caráter de uma consciência subjetiva e as leituras dos condicionantes ao engajamento político são aspectos tão nítidos para Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. que emblematizam os interesses materiais da comunidade na busca por benefícios profissionais e corporativos. Além disso, ressalta a coordenação dos fatores históricos e sociais como pavimentação às articulações políticas no contexto da comunidade disciplinar e, posteriormente, no modo como cada docente vai lidar com a estrutura sócio-histórica em que se encontra.

Em consonância com a noção de sujeito do ideário sócio-histórico, Goodson concebe uma subjetividade consciente e ideologicamente orientada, que se utiliza de válvulas abertas pela inter-relação da história com uma estrutura social contemporânea determinante. A despeito disso, opõe-se a uma série de concepções de mundo puramente estruturais, sociológicas, historicistas, marxistas, bem como às suas derivações e busca de uma concepção pluricausal - já discutidas aqui e consideradas restritivas por Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., 2008)______. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008.. Defendemos ser em razão dessa estratégia teórico-metodológica que seu trabalho mostra-se tão importante para o campo do currículo em suas constantes tentativas de superar tanto leituras deterministas das estruturas sobre as significações curriculares quanto posturas que advogam as chances de escape do sujeito perante entraves estruturais.

Tendo em vista as preocupações pós-estruturais que buscamos dar relevo nessa abordagem, destacamos que a análise de Goodson mantém, todavia, a tentativa de estabilização de dinâmicas as quais não se pode controlar, não se pode delimitar. Goodson não deixa de denegar uma série de elementos, de foracluir, mesmo em seu constructo teórico, fatores determinantes para compreensão mais ampla da política.

Sobre esses fatores, chamamos atenção para a negligência de Goodson em ler as identificações externas à comunidade disciplinar, tais como o movimento de pais, do mercado, assim como o debate público mais amplo, como forças secundárias, ou auxiliares, a serem utilizadas ou consideradas pela comunidade disciplinar, tendo em vista suas estratégias de promoção e sucesso profissional. Pontuamos que, se esses elementos externos, destacados por Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., devem ser considerados mecanismos de pressão para o campo disciplinar, é porque se entende como importante responder a tais anseios sociais, aos quais a disciplina está exposta e necessita para manter-se como tal, para ser lida como válida e necessária.

Ainda que visem obter maior alocação de recursos e poder, os praticantes disciplinares, ao negociarem com tais forças externas, cuja fundamentação não tem um enfoque epistemológico ou diz respeito à história disciplinar, são influenciados por discursos não necessariamente focados em questões defensivas ou promotoras da profissionalização do/no campo disciplinar. Uma das possibilidades de pensar por aqui é ter em mente que a manutenção do nome da disciplina (seus padrões de mudança, seus rótulos) pode estar muito mais relacionada à tentativa de sustentar um espaço de atuação política que, ainda que gravite virtualmente sobre questões entendidas como disciplinares, nada mais é do que um indelimitável corpo vazio, vago, produzido e sustentado em razão das articulações encadeadas e na consequente significação provisória do que é a disciplina no contexto da política curricular.

Defendemos que esses fatores que escapam à centralidade da ação política, segundo Goodson, podem ser considerados intensamente capazes de produzir sentidos e mobilizar discursos na política curricular para um campo disciplinar. Demandas pessoais, missões de grupos coletivos, perspectivas históricas, organizações externas ao campo, apelos públicos amplos, falas de autoridades, entrevistas, filosofias etc., são elementos consideráveis na compreensão das decisões políticas, sejam eles internos ou externos. Estejam envolvidos ou não por um manto institucional ou corporativo. Nossa argumentação volta-se à leitura possível de que, em vez de concebermos o dinamismo interno aos campos disciplinares como capaz de definir as políticas de currículo, pensamos que o contexto mais amplo das políticas é que oportuniza a que as disciplinas, por meio de suas instituições, sustentem-se como momentos de subjetivação. Perspectivar as disciplinas dessa maneira é reiterá-las como movimentos contínuos de resposta às articulações em que consistem as políticas de currículo.

Ao chamar atenção para possíveis limitações teóricas de Goodson em uma leitura pós-estrutural do objeto em questão, ao focalizar a desconsideração de alguns fatores, por ele mesmo ressaltados, em sua formulação investigativa, no âmbito de sua concepção de mundo, não estamos visando à complementação das proposições do autor, mas compreender os limites de suas contribuições quando investigamos as políticas para uma disciplina no registro pós-estrutural.

Pontuamos que, em sua formulação sistemática, Goodson reduz todo um conjunto de implicações discursivas mais amplas à condição acessória. Acenamos para a perspectiva de que não é na sistematização de quem está fora ou dentro e fazendo o que que será possível compreender discursivamente as relações internas e hierarquizadas do campo disciplinar, bem como suas relações com o debate público e suas negociações com vistas a benefícios profissionais. Muito menos é nossa preocupação tomar como pressupostas lutas e articulações políticas de subjetividades, concebidas com base em uma visão de história e sociedade, delineadas por nuançes estruturalistas. Propomos atentar para aquilo que é estabilizado nas formulações do autor, visamos desconstruir o que se encontra sedimentado.

Se considerarmos a política para um campo disciplinar como luta pela significação do que vem a ser currículo (Lopes, 2012b______. A qualidade da escola pública: uma questão de currículo? In: Taborda, M.; Faria Filho, L. M.; Viana, F.; Fonseca, N.; Lages, R. (Orgs.). A qualidade da escola pública. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012b. p. 15-29.), essa política é motivada não só por reivindicações dos praticantes disciplinares, mas também por todos os sentidos que operam influenciando, em dado contexto, na produção da política. Assim, a ideia de comunidade disciplinar, tal como desenhada por Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., 1997)______. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997., não é suficiente para a compreensão do sujeito que se produz produzindo a política.

Isso se evidencia ao longo de seus trabalhos ao supor, inicialmente, que a comunidade disciplinar é configurada por subgrupos diferenciados, que lutam entre si na busca pela hegemonia de uma visão de disciplina. Subgrupos que, ainda que possam se opor, cooperam mutuamente com vistas à promoção da disciplina, uma vez que, mesmo não concordando em todos os termos, possuem como positividade os anseios profissionais e prestígio social. Há a pressuposição de que os conflitos discursivos dão-se pela transparência e é possível inferir que os mencionados subgrupos são homogêneos em seu interior, até que uma dissidência funde uma nova facção.

Destacamos que essa concepção de mundo expressa-se até mesmo na operação teórica de Goodson, uma vez que, em seus primeiros trabalhos, com vistas ao acesso às razões e à conscientização dos sujeitos em relação à política, o aprofundamento metodológico deu-se com base em estudos etnográficos sobre a comunidade disciplinar/subgrupos. Em um segundo momento de sua obra, visando à continuidade de sua busca pela compreensão dos fatores condicionantes/interferentes das/nas políticas, passou a introduzir a narrativa e a história de vida de professores para compreensão do modo como interagem com a política, concordando ou opondo-se a ela, desde sua experiência, de seus valores e concepções de escolarização.

Nesse cenário, retoma-se uma concepção de subjetividade encadeada/determinada historicamente e capaz de negociar com a estrutura valendo-se da racionalização de sua condição sócio-histórica. Uma leitura de subjetividade aproximada da perspectiva do sujeito moderno, mas que simultaneamente tem suas possibilidades políticas limitadas por uma concepção de estrutura passível de ser interpretada como aquela proposta pelo estruturalismo. O enlaçamento de tais concepções sustenta um cenário em que o sujeito histórico, consciente, lida com uma estrutura determinante e opressora que muda de época em época. Sendo assim, é possível a ideia de um sujeito determinado estrutural e sequencialmente. Então, se a estrutura condiciona possibilidades de atuação restritas à própria estrutura, que muda de tempos em tempos, temos a visão de que a história que imbui o sujeito nada mais é que a história de uma subjetividade concebida sequencial e traumaticamente, por diferentes estruturas em diferentes períodos. O sujeito, então, assim como proposto pelo estruturalismo, é secundário ante a determinação estrutural. O que Goodson enfatiza é que o sujeito não está passivamente exposto a ela, mas resiste/interage com as possibilidades que ela gera.

O contexto histórico ao qual Goodson (1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995. refere-se, cenário de produção da política, no qual se intersectam as histórias disciplinares, de vida docente, com a estrutura social de dado momento, constitui-se como consequência de decisões tomadas em posições ocupadas pelos sujeitos em uma estrutura sócio-histórica anterior. O que se tem, ou o que é proporcionado por determinado contexto, então, são possibilidades de traçar estratégias pautadas nos desdobramentos históricos que já lançaram o sujeito, em sua contemporaneidade, em dada posição na estrutura social. A concepção de subjetividade, em virtude dos rebatimentos ou resultados do processo histórico, pode ser pensada como predisposta a determinado conjunto de decisões no contexto em que se insere. O contexto é o espaço-tempo, ou lócus, de continuidade dos resultados de decisões tomadas conscientemente em outras épocas e, portanto, se estabelece saturado por elas, é decorrente delas. A esse respeito, Goodson (idem) argumenta que as pessoas não estão vagando pela vida, elas reconhecem a pressão estrutural e histórica em suas vidas profissionais e pessoais, atuando contextualmente com base em tais referenciais.

Consideramos que as concepções de Goodson sobre a produção da política curricular, as construções disciplinares e, nesse bojo, a luta e a subjetividade política, imprimem uma leitura de mundo restrita quanto à compreensão de outros elementos produtores da política, que rasuram seus enfoques estruturais e escapam à sistematização, consciência e fixidez identitária. Apesar de a formulação de Goodson não se pautar por uma univocidade teórica, ao ser deslocada em um registro pós-estrutural, ela permanece limitada em sua suposição de que a interseção de diferentes elementos (história, estrutura, consciência subjetiva) oportunizaria a ação social e a mudança, ao atenuar seus prismas restritivos em uma construção teórica que os conjecture como interdependentes e complementares.

Chamamos atenção para a ideia de que a articulação de matrizes historicistas e estruturalistas, tendo em vista a relativização de seus (lidos) potenciais deterministas nucleares, não evita, por si só, que seja mantida a consideração de suas capacidades em delimitar ou prescrever o social e, portanto, condicionar possibilidades a um sujeito suposto como consciente dessa organização social. O abrandamento das concepções puramente historicistas, estruturalistas e iluministas/modernas do sujeito, ao integrá-las em um corpus teórico específico, possibilita a interpretação de que ainda assim não é possível operar fora de suas amarras. O adiamento de uma visão de mundo com a interposição de outra alarga o espaço, mas continua a restringir a concepção de política, luta e subjetividade nessa política, circunscrevendo-a a um terreno permitido pelo imbricamento de uma história, de uma estrutura e de uma subjetividade prevista.

Nesse sentido, se queremos nos vincular a enfoques pós-estruturais - e essa, como tantas, é uma decisão que pode ou não ser tomada -, somos levados a ler, na construção de Goodson, proeminentes fatores estruturantes sobre o social, a subjetividade e a política de currículo. Pensamos que a expectativa de um centro de referência, que bem pode ser a estrutura, a história, a consciência subjetiva ou mesmo uma visão integrada desses últimos, é assegurada pelo enfoque de Goodson, oportunizando a visão de uma organização teórico-metodológica que impossibilita a ruptura com um olhar classista, segmentado e categorizante de dinâmicas que, a nosso ver, estão para além da sistematização de pressupostos.

Em concordância com a perspectiva teórica pela qual lemos o currículo e as políticas de currículo (Lopes, 2012a______. Democracia nas políticas de currículo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Campinas: Autores Associados, v. 42, n. 147, p. 700-715, set./dez. 2012a., 2012b______. A qualidade da escola pública: uma questão de currículo? In: Taborda, M.; Faria Filho, L. M.; Viana, F.; Fonseca, N.; Lages, R. (Orgs.). A qualidade da escola pública. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012b. p. 15-29.; Lopes; Macedo, 2011______.; ______. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.), defendemos que Goodson não possibilita a consideração da contingência como propulsão das articulações políticas e, conjuntamente, a precipitação de um sujeito sem fundamentação histórica ou estrutural de compromisso com uma comunidade, associação profissional ou conhecimento. Desconsidera identificações que, em seu próprio registro teórico, escapam à sistematização, sendo secundarizados politicamente e pensados como provedores de motivos para a atuação estratégica de sujeitos conscientes que operam na coalizão em que se constitui o campo disciplinar. Tal índice incita a problematizações no modo como concebe a política curricular, ao supor fronteiras nitidamente estabelecidas, capazes de dizer quem produz sentidos para as políticas e por quais fatores.

Em uma possível busca pela exatidão na definição dos grupos e suas moralizações, Goodson atenua a perspectiva de que sentidos circulantes e, assim, passíveis de articulação ao campo/nome disciplinar, são potentes em produzir/fortalecer discursos nas políticas. Goodson (1993______. School subjects and curriculum change. Londres: The Falmer, 1993., 1995)______. The making of curriculum. Londres: The Falmer, 1995., em sua vigilância para com os limites territoriais do que entende por comunidade disciplinar, tende a bloquear a leitura de que não há um território definido e que a ideia de um limite só é motivo de preocupação quando uma (significação de) ameaça ao nome disciplinar é produzida. A concepção de Goodson, voltada às suas preocupações teóricas, leva em consideração que a política é desenvolvida por identidades em confronto, quando propomos, pela teoria do discurso, pensar que a política produz as identificações (Costa; Lopes, 2013______.; Lopes, A. C. Sobre a subjetividade/alteridade: conversas com Derrida e Laclau nas políticas de currículo. In: Tura, M. L. R.; Garcia, M. M. A. (Orgs.). Currículo, políticas e ação docente. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p. 51-71.).

Se a significação e, portanto, a produção de políticas curriculares para um campo disciplinar são geradas por diferenças sociais, que não possuem uma fundamentação (Lopes, 2012a______. Democracia nas políticas de currículo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Campinas: Autores Associados, v. 42, n. 147, p. 700-715, set./dez. 2012a., 2012b______. A qualidade da escola pública: uma questão de currículo? In: Taborda, M.; Faria Filho, L. M.; Viana, F.; Fonseca, N.; Lages, R. (Orgs.). A qualidade da escola pública. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012b. p. 15-29.), seja ela disciplinar ou não, que podem não estar falando para a disciplina, mas podem ser ouvidas por identificações com a disciplina, influenciando na significação do campo discursivo disciplinar, temos uma possibilidade de apreender a produção política como se desdobrando por intermédio de dinâmicas que extrapolam o desenho subjetivo e identitário fixado por Goodson, com seu embasamento histórico e estrutural. Tal possibilidade coloca-se com a incorporação de uma leitura de discurso que necessariamente implica a reconceptualização do social, da luta e da subjetividade política. É essa aposta que buscamos fazer com os enfoques discursivos.

CONCLUSÕES

Procuramos argumentar que a produtividade do pensamento de Goodson sobre as comunidades disciplinares na história do currículo não torna esse pensamento imune aos impasses gerados por uma leitura pós-estrutural das subjetividades políticas. Se há concordância com a ideia de sujeito descentrado e com a proposição de que as políticas produzem subjetivações (Derrida, 2006a______. Dar la muerte. Barcelona: Paidós, 2006a.; Hall, 2003Hall, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.; Laclau, 2011______. Emancipação e diferença. Rio e Janeiro: EDUERJ, 2011.), os limites discursivos de uma comunidade disciplinar não podem ser definidos previamente às ações políticas. Tampouco podem ser enumerados os atores sociais que produzem sentidos para as políticas de currículo, em nome de uma disciplina, como lideranças estáveis e estabilizadoras, como autoridades constituídas por um registro epistemológico, mesmo que socialmente construído, indiferente à própria política. Por intermédio do nome de uma disciplina escolar e da própria disciplinarização da escola, são sedimentadas interpretações curriculares, tenta-se estabilizar um currículo, ações pedagógicas são constituídas, para além e para aquém das ações dos profissionais docentes legitimados como porta-vozes desse nome. Investigar a política de currículo buscando conter de uma vez por todas as fronteiras do que se nomeia como comunidade disciplinar torna-se tarefa vã e obrigatoriamente imprecisa.

Um dos investimentos que nosso grupo de pesquisa tem realizado de modo que possa operar com o registro disciplinar nas políticas é evitar o foco em traços identitários profissionais das comunidades disciplinares e buscar a referência às subjetivações produzidas pela política curricular (Abreu, 2010Abreu, R. G. A comunidade disciplinar de química na produção de políticas curriculares para o ensino médio no Brasil. 2010. 206f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.; Costa, 2012Costa, H. H. C. Políticas de currículo e ensino de geografia: perspectivas sobre discurso, subjetividade e comunidade disciplinar. Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas: UNICAMP, v. 2, n. 4, p. 150-172, jul./dez. 2012.; Oliveira, 2012a______. Políticas de currículo: mediação por grupos disciplinares de ensino de ciências e matemática. In: ______.; Macedo, E. (Orgs.). Currículo de ciências em debate. Campinas: Papirus, 2004. p. 45-75., 2012b)______. Políticas de integração curricular. Rio de Janeiro: EdUERJ/FAPERJ, 2008.. Investigar quem fala em nome da disciplina torna-se menos importante do que entender as articulações que constituem discursos disciplinares e assim subjetivam os coletivos que falam em nome da disciplina, que dela se utilizam como oportunidade de envolvimento na política. Tais discursos são sempre traduções que tentam conter o diferir que não pode ser contido completamente (Derrida, 1991Derrida, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991., 2006b______. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006b.). Nomeamos discursos - construtivistas, histórico-críticos, instrumentais, neomarxistas, fenomenológicos, interacionistas, psicológicos, sociológicos, freirianos - por tentativa de remeter aos espectros de discursos pedagógicos que sabemos não poder estabilizar, uma vez que textos originais demarcados não são plenitudes às quais possamos fazer referência (Siscar, 2013Siscar, M. Jacques Derrida: literatura, política, tradução. Campinas: Autores Associados, 2013.). Não há como repetir a sintaxe ou o contexto do texto de partida. Toda reiteração é sujeita à suplementação, aos jogos de linguagem atinentes ao diferir.

Tal compreensão nos remete a duas estratégias teóricas que concluímos com base em aportes discursivos com os quais nos comprometemos. A primeira delas é a contextualização radical da investigação política. Tentamos remeter-nos às circunstâncias e estruturas institucionais, no sentido derridiano, de dada leitura. Investigamos sempre um contexto - que não é delimitado espacial ou temporalmente, mas pelas cadeias de substituições possíveis que constituem um dado discurso. Nesse contexto, uma dada comunidade contingente fala em nome da disciplina, decide em nome do que se supõe ser a verdade do conhecimento disciplinar. Por essa decisão a comunidade disciplinar é subjetivada, julga e se compromete, justifica ações e cria a história que sustenta a razoabilidade dessas mesmas ações e decisões.

A segunda estratégia remete ao foco nas demandas, tal como proposto por Laclau (2005)Laclau, E. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.. Esse autor, debatendo com enfoques sociológicos de investigação da política, propõe que não se focalize os grupos sociais supostos como já constituídos, mas as demandas que são mobilizadas e que, uma vez articuladas, são capazes de organizar diferentes grupos. Uma demanda social é caracterizada por Laclau (idem) como solicitações e expectativas que, uma vez não atendidas, podem transformar-se em reivindicações em defesa das quais variados grupos se unem em uma luta política. Essa estratégia nos afastaria de uma essencialização das identidades dos sujeitos que atuam nas políticas por entender tais identidades como constituídas pela forma como as demandas são incorporadas na prática articulatória.

Nas políticas de currículo, procuramos construir a noção de demanda curricular e nela a noção de demanda disciplinar: as demandas em nome do currículo, das disciplinas escolares, as demandas educacionais e as relativas às próprias questões profissionais, da carreira, que não necessariamente se separam tão claramente umas das outras. Na enunciação delas, são feitas referências à tradição curricular, aos discursos pedagógicos sedimentados, mas a própria luta política modifica tanto tradições quanto demandas, constituem outros discursos em virtude das articulações contextuais.

A disciplina é assim uma construção discursiva. Não é o conjunto de saberes primordiais a serem apropriados pelos integrantes de uma comunidade que sem os quais dela estariam excluídos. A comunidade disciplinar, por sua vez, não é o conjunto de profissionais que se organizam na defesa de seus interesses e carreira. A comunidade disciplinar, pela argumentação que construímos, é o conjunto de subjetividades constituídas em operações provisórias no campo discursivo da disciplina. A comunidade e as subjetividades/identificações não possuem uma origem, uma gênese. Seus saberes são construídos ao passo em que as subjetivações disciplinares também o são. É por meio de diferentes lutas políticas que campos disciplinares são organizados, organizando simultaneamente as identificações disciplinares.

  • 1
    Foge ao escopo deste trabalho tecer considerações teóricas sobre a problemática do uso do termo "pós-crítico", já consagrado. Para isso, recomendamos a leitura de Lopes (2013)______. Teorias pós-críticas, política e currículo. Educação, Sociedade & Culturas, Porto: CIIE, n. 39, p. 7-23, 2013.. Aproveitamos para salientar que o termo "virada", igualmente consagrado, não é utilizado por nós com a ideia de que todas as produções curriculares no Brasil passam a ser pós-estruturais e pós-modernas a partir dos anos 1990. Queremos destacar a entrada dessas produções e a mudança de agenda de pesquisa ocorrida no campo. Talvez uma pesquisa atualizada em relação ao que é produzido sobre teses e dissertações no Brasil, tal como o trabalho de Lopes, Macedo e Paiva (2006)______.; ______.; Paiva, E. Mapping researches on curriculum in Brazil. Journal of the American Chemical Society, Wisconsin: ACS Publications, v. 2, n. 1, p. 1-30, 2006., realizado para o período 1996-2006, viesse a chegar à mesma conclusão de que autores de registro histórico-crítico ainda são dominantes. Não obstante, provavelmente os registros que abalam o predomínio histórico-crítico se tenham ampliado.
  • 2
    Sobre articulações, ver Laclau (2011)______. Emancipação e diferença. Rio e Janeiro: EDUERJ, 2011., ou, no campo do currículo, Lopes (2012a)______. Democracia nas políticas de currículo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Campinas: Autores Associados, v. 42, n. 147, p. 700-715, set./dez. 2012a..
  • 3
    Ver, por exemplo, Viñao Frago (2006)Viñao Frago, A. Historia de las disciplinas escolares. Historia de la Educación, Salamanca: Universidad de Salamanca, v. 1, n. 25, p. 243-269, 2006. Texto traduzido e disponível em: <www.rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/article/download/93/102>. Acesso em: 4 abr. 2013.
    www.rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/arti...
    .
  • 4
    Para mais detalhes, sugerimos: Hirst, P. H. The logical and psychological aspects of teaching a subject. In: Peters, R. S. (Ed.). The concept of education. London: Routledge and Kegan Paul, 1979, p. 44-53; Hirst, P. H.; Peters, R. S. The logic of education. London: Routledge and Kegan Paul, 1970; Phenix, P. The realms of meanings. New York: McGraw-Hill, 1964.
  • 5
    Apesar de considerarmos que a caracterização da obra de Weber escapa veementemente aos limites deste trabalho, merecendo, em respeito ao autor, uma abordagem mais acurada, acionamos elementos que julgamos pertinentes em sua obra, tendo em vista sua influência nos trabalhos de Goodson. Segundo Giddens (2005)Giddens, A. Sociologia. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005., o pensamento de Weber se recusa absolutamente à formulação de leis gerais e esquemas deterministas baseados em teorias gerais do progresso. As relações econômicas, apesar de reconhecidas em sua capacidade de influenciar o processo histórico, são vistas como de validade contingente e possuem importância específica e variável, merecendo fazer parte de um processo mais amplo de investigação empírica sobre os elementos que interagem em circunstâncias particulares.
  • 6
    Como exemplo, sugerimos Goodson (1990)______. Tornando-se uma matéria acadêmica: padrões de explicação e evolução. Teoria & Educação, Porto Alegre: Pannonica, v. 1, n. 2, p. 230-254, 1990..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Ago 2014
  • Aceito
    Mar 2015
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