Acessibilidade / Reportar erro

Mediação pedagógica na educação de jovens e adultos: exigência existencial e política do diálogo como fundamento da prática* * Resultado parcial de pesquisa de doutorado financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Programa de Excelência Acadêmica (CAPES/ PROEX).

MEDIACIÓN PEDAGÓGICA EN LA EDUCACIÓN DE JÓVENES Y ADULTOS: NECESIDAD EXISTENCIAL Y POLÍTICA DEL DIÁLOGO COMO FUNDAMENTO DE LA PRÁCTICA

RESUMO

O presente trabalho se constituiu na investigação das circunstâncias e condições necessárias para que se processem mediações em situações de ensino e potencializem para o educando a aprendizagem do conteúdo que responda mais adequadamente à complexidade da educação de jovens e adultos (EJA), além de analisar como tais mediações criam condições de desenvolver o pensamento crítico dos estudantes e a práxis educativa nessa modalidade de ensino. O escopo deste escrito trata da dimensão mediadora do diálogo como fundamento da prática pedagógica na EJA. Trata-se de um recorte de pesquisa de doutorado, de abordagem qualitativa, no qual se desenvolve uma revisão teórica, contingenciada por observações empíricas em escola de EJA do ensino fundamental, em Santa Catarina, Brasil. A análise e a interpretação dos dados recuperam a perspectiva hermenêutico-dialética. Resultados apontam que a EJA é uma modalidade complexa e, nesse sentido, necessita de uma mediação que seja revestida de intencionalidade. Então não é qualquer ação pedagógica, é uma ação pedagógica crítica, fundamentada, planejada, intencional, na qual professor(a) e aluno(a) são sujeitos de aprendizagem.

PALAVRAS-CHAVE
mediação pedagógica; diálogo; educação de jovens e adultos

RESUMEN

El presente trabajo se constituye en la investigación de las circunstancias y condiciones necesarias para que se procesen mediaciones en situaciones de enseñanza y se potencie para el estudiante el aprendizaje del contenido que responda de la forma más adecuada a la complejidad de la educación de jóvenes y adultos (EJA), además de analizar cómo tales mediaciones crean condiciones para que se desarrolle el pensamiento crítico de los estudiantes y la praxis educativa en esta modalidad de enseñanza. Se trata de un recorte de investigación de doctorado, de abordaje cualitativo, en el que se desarrolla una revisión teórica, articulada por observaciones empíricas en una escuela de EJA de enseñanza primaria, en Santa Catarina, Brasil. Análisis e interpretación de los datos se recuperan perspectiva hermenéutico-dialéctico. Los resultados muestran que la EJA es un modo complejo y, en consecuencia, necesita una mediación que está recubierto con la intencionalidad. Así que no es una acción pedagógica, es una acción pedagógica crítica, razonada, planificada, intencional, en la que el maestro(a) y alumno(a) son objeto de aprendizaje.

PALABRAS CLAVE
mediación pedagógica; diálogo; educación de jóvenes y adultos

ABSTRACT

This research is an investigation on the circumstances and conditions needed for mediations in teaching situations and for the students increasing learning of the subjects that respond more adequately to the complexity of the youth and adult education (EJA), and how such mediations create conditions to develop critical thinking on students and the educational practice in this type of education. The scope of this writing is the mediating dimension of dialogue as the foundation of pedagogical praxis in adult education. This is an excerpt of the doctoral research of qualitative approach, in which a theoretical review is developed and that was possible through empirical observations in an adult education elementary school, in Santa Catarina, Brazil. These data analysis and interpretation retrieve the hermeneutic-dialectic perspective. Results show that EJA is a complex modality and, in that sense, it needs a mediation that is coated with intentionality. So this is not any ordinary pedagogical action, but a critical pedagogical action instead, substantiated, planned, intentional, in which both teacher and student are the subjects of learning.

KEYWORDS
mediation; dialogue; youth and adult education; pedagogical practice

INTRODUÇÃO

Na educação de jovens e adultos (EJA), tem-se buscado amparo em novos paradigmas teóricos e pedagógicos para responder a uma série de dilemas e indagações quanto à função de ensinar dos(as) professores(as)1 1 Ao longo do texto, utilizo o termo "professor" seguido da abreviação "(a)" para caracterizar o feminino desse ofício. Outras vezes, utilizo apenas professor e professora. Da mesma forma, o termo aluno(a) e/ou aluno e aluna. O ofício da docência e o papel dos(as) estudantes têm centralidade nas discussões referentes à problemática deste trabalho, o que implica o uso dos termos, em muitas passagens, com frequência, e eles precisam ficar explícitos. Não se trata de simples redundância, mas de evitar uma manifestação do uso masculino como presumível genérico de referência à professora e professor, aluno e aluna. Nesse sentido e consciente de que o emprego correto contribui para a equidade de gênero, não estou fazendo uso sexista, excludente e discriminatório da língua na expressão escrita que transmite e reforça as relações assimétricas, hierárquicas e não equitativas entre os sexos. Ressalto ainda que, quando abordo a análise de campo, os referidos termos também são usados dessa forma, porém para também preservar a identidade dos sujeitos entrevistados. dessa modalidade de ensino. Há uma grande e expressiva quantidade de produções e propostas educacionais apontando para a necessidade de um redimensionamento das práticas desenvolvidas nas instituições educacionais.

Porém, o processo não é bem como alguns teóricos e técnicos propagam; não basta a elaboração de propostas bem fundamentadas para mudar os paradigmas presentes na educação. Há toda uma cultura docente construída para lidar com as situações que o cotidiano suscita e que deve ser considerada. Essa constatação é corroborada por pesquisas atuais sobre formação e atuação docente, nas quais se destacam a função e a participação dos(as) professores(as) como fundamentais.

Nessas pesquisas, destacam-se as propostas baseadas em um processo didático no qual as atividades compartilhadas são enfatizadas e a avaliação é considerada não mais uma constatação e classificação, e sim uma possibilidade de redimensionamento constante da aprendizagem e do ensino. O papel do(a) professor(a) não se reduz a ser um mero repassador de conhecimentos, mas sim a um mediador, instigador e problematizador.

A caracterização da multiplicidade conceitual de mediador e mediação é complexa (simbólica, cultural, social, epistemológica e pedagógica). Suas tipologias mediativas constituem um campo que é heterogêneo, uma vez que a cultura humana é multifacetada. Envolve a transmissão de códigos culturais, valores e normas e também constitui uma dimensão educativa porque atua sobre as habilidades cognitivas dos sujeitos.

Vai além de uma simples interação porque é movimento transformador, modificador e construtor da pessoa. Há, portanto, uma abrangência genérica e específica. Isso posto, caracteriza a mediação como possuidora tanto de uma axiologia quanto de uma dimensão afetiva. O conceito mediação compreende tanto as apropriações e intersecções entre cultura, política e fenômeno educacional, quanto as apropriações, recodificações e ressignificações particulares aos receptores. Entretanto há os que a definem como tudo aquilo que interfere na forma como percebemos e entendemos o mundo. A lente pela qual lanço o foco de atenção nesta pesquisa é a mediação articulada com o campo educativo da EJA, como uma atividade especificamente humana, constituída na complexidade das relações sociais. O argumento central sustenta-se no entendimento de que a mediação pedagógica não é qualquer atividade, é uma práxis desenvolvida com finalidade - uma postura perante o mundo.

As questões que podem permear as propostas que legitimem uma didática para a EJA, considerando uma práxis educativa como uma práxis política (Freire, 1987______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.), e que em determinado tempo e espaço estabeleçam os vínculos necessários dentro de um quadro cultural de problematização dessa mesma cultura, ganham força porque essa problematização não é neutra, envolve todos os homens e mulheres que produzem cultura e, dialeticamente, a têm introjetada.

Nesta pesquisa, essas questões, ao problematizarem o sentido de mediação que responde mais adequadamente à complexidade da EJA - e como tais mediações criam condições de desenvolver o pensamento crítico dos estudantes e a práxis educativa nessa modalidade de ensino -, buscam investigar as circunstâncias e condições necessárias para que se processem as mediações nas situações de ensino que potencializem para o(a) aluno(a) a aprendizagem do conteúdo trabalhado.

Assim, a forma que utilizo para apresentar essas questões e problematizar os sentidos de mediação na EJA busca reafirmar o que Melucci (2005, p. 33)Melucci, A. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005. caracteriza de "virada epistemológica" - a centralidade da linguagem, que "é culturalizada, de gênero, étnica, sempre ligada a tempos e lugares específicos". Logo, uma realidade que não se explica por si só, mas sim em um sistema interligado de conexões, interconexões, de mediações, cujos sentidos emergem dos processos nos quais o conhecimento é produzido mediante trocas dialógicas constituintes e constituídas de cultura.

Para efeito deste trabalho, faço o recorte introdutório de uma das categorias de análise investigadas na tese. No que diz respeito a práticas pedagógicas da EJA e dos sentidos mediadores que dela emana, reflito valendo-me de uma das dimensões que surge do próprio contexto escolar de alunos e alunas, professores e professoras de pessoas jovens e adultas que estão caminhando no cotidiano da escola pública. Trajetória compartilhada com professores(as) de diversas áreas do conhecimento e com alunos(as) das quatro séries do terceiro seguimento da EJA em uma escola pública do estado de Santa Catarina. O lugar de onde falo, o chão onde me localizo, somados ao tempo em que estive envolvida como profissional da educação, é o chão da escola de educação de pessoas jovens e adultas. Sou uma pedagoga, educadora e formadora de professores falando da didática, da prática de ensino, das mediações pedagógicas na educação de pessoas jovens e adultas.

É com base nas gravações, nas observações das salas de aula, na leitura exaustiva dessas gravações, nas observações e entrevistas desses diálogos que surge uma das dimensões que serão apresentadas: a dimensão mediadora do "diálogo". Recheada de um fundo teórico, mas também de uma trajetória, emerge de um contexto escolar, da visão de professores(as) e de alunos(as). Por isso, é um exercício de compartilhar. Não se trata de discutir a EJA com base em políticas públicas, em compreensão do contexto histórico da prática no país, por um viés filosófico. Todas essas dimensões são fundamentais, mas é valendo-se do que os(as) professores(as) e alunos(as) inseridos(as) na escola dizem que temos de pensar as práticas pedagógicas mediadoras do processo de ensino e aprendizagem na EJA.

A investigação permeou objetivos que são considerados interdependentes e fundamentais para a compreensão da constituição de uma didática que atenda às especificidades da EJA, quais sejam: Como os(as) professores(as) desenvolvem sua prática na EJA? Quais as possibilidades de maior articulação entre os pressupostos teóricos e as práticas educativas em se tratando de EJA?

A prática docente, caracterizada pelas mediações pedagógicas na modalidade EJA e realizada pelos(as) professores(as) para lidar com as exigências e urgências do cotidiano, constitue o foco deste estudo, abordando a dimensão mediadora que tem o diálogo como fundamento da prática pedagógica da EJA, fim específico das reflexões aqui propostas.

MEDIAÇÃO: O DIÁLOGO COMO FUNDAMENTO

Falar de mediação e de dialogia é falar da presença do "outro" e da dinamicidade do signo. É falar da tensão, a reversibilidade, da impregnação da "palavra". [...] Assim, a experiência verbal individual emerge e se configura em meio à incessante interação da enunciação dos outros, num processo, ao mesmo tempo, de incorporação/reação à palavra de outrem.

Smolka, 1991Smolka, A. L. B. (1991). Múltiplas vozes em sala de aula: aspecto da construção coletiva do conhecimento na escola. Revista de Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas: UNICAMP, n. 18, p. 15-28, jul./dez., p. 17

A palavra, enquanto signo, é revelada em toda atividade pedagógica - é pelo domínio da palavra que o sujeito torna-se professor(a), que o(a) aluno(a) vai se constituindo, é pela palavra que ambos se identificam como docentes e discentes. É por meio da palavra, de sua significação legítima, que esses sujeitos da atividade pedagógica comunicam a realidade efetiva nas condições reais de comunicação verbal. A palavra permite a constituição do sujeito na e por meio da linguagem. Não se trata aqui de lidar com uma palavra enquanto unidade da língua, nem com a significação dessa palavra, mas sim com o enunciado acabado e com um sentido concreto, ou seja, seu conteúdo.

No dizer de Freire em Educação como prática da liberdade (1975, p. 150)Freire, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.: "[...] que a palavra seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como força de transformação do mundo". Transformação social que é, de acordo com Gadotti, mediada pelo diálogo. Segundo esse autor, para Freire, "[...] os seres humanos se constroem em diálogos, pois são essencialmente comunicativos. Não há progresso sem diálogo. Para ele, o momento do diálogo é o momento para transformar a realidade e progredir" (Gadotti, 1989Gadotti, M. Convite à leitura de Paulo Freire. São Paulo: Scipione, 1989., p. 46).

É por isso que para estabelecer a dialogicidade como fundamento e caminho para a prática pedagógica na EJA é necessário que o(a) professor(a) introduza uma cultura do diálogo em sala de aula. São as experiências de aprendizagem mediadas pelo diálogo que possibilitam aos(as) alunos(as) a preparação para a captação do mundo, para que eles compreendam a realidade que os cerca e possam intervir nela, superando assim a situação de meros espectadores.

Pela mediação dialógica que acontece nas interações em sala de aula, os sujeitos da aprendizagem produzem estratégias intelectuais que vão lhes permitir produzir ou apropriar-se de conhecimentos. Esse movimento dialógico potencializa a mediação de si mesmo (internalização), permitindo que o sujeito liberte-se da sua consciência ingênua e chegue a patamares de significação que a simples exposição a estímulos ou experiências físicas e cognitivas com os objetos de conhecimento não lhe proporcionaria.

Nesse sentido, o diálogo torna-se a concretização do próprio exercício para a liberdade, uma vez que, segundo Freire (1981, p. 92, grifos do original)______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.,

[...] a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, épronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitospronunciantes, a exigir deles novopronunciar.

Eminentemente dialógica e produtora de sentidos, a fala nos diários de campo e nos registros das entrevistas revelam a importância dessa dimensão formadora do diálogo. A oportunidade de entrevistar favorece, assim, não só o conhecimento do outro, mas o reconhecimento de si mesmo. O término da entrevista reverteu-se para mim e para os(as) professores(as) em espaço de reflexão. Mais que entrevistas, conversas, fios de diálogo, narrativas, aqui reside uma dimensão formadora.

Isso porque o sujeito é dialógico, tendo em vista que o homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si mesmo (Bakhtin, 1992Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992., p. 180). A constituição dialógica do sujeito em Bakhtin emerge e sustenta-se na enunciação entendida como um processo social em que o eu institui-se mediado no outro e como o outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade que se pode e se deve compreender a questão do sujeito da teoria bakhtiniana.

Mas como se caracteriza e se institui o diálogo mediador e formador na ação pedagógica orientada para o ensino e a aprendizagem da EJA? E como estudantes e docentes vão se constituindo sujeitos dessa ação dialógica? Os depoimentos dos(as) professores(as) e alunos(as) apresentados na sequência deflagram o exercício do diálogo como fundamento da ação pedagógica orientada. Exercício que só é possível em razão da mediação entendida como algo que se dá entre o(a) professor(a) e alunos(as). É ela que permite o contato e a comunicação entre os sujeitos. Mais que isso, destaca Vygotsky (1998)Vygotsky, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998., é a mediação que proporciona a significação, pois o significado2 2 Os significados são construídos socialmente por meio da linguagem e, portanto, tomam o diálogo como elemento central de uma prática reflexiva (Vygotsky, 1987). A palavra, para Bakhtin (1992), é organizadora da própria atividade mental, a qual se situa em território social, ou seja, está sempre no exterior, orientada pelas relações sociais. Funciona como um signo que permitea mediação, levando-nos a compreender como ocorre o processo de internalização. não é igual à palavra, nem é igual ao pensamento.

Buscando compreender os sentidos da mediação no movimento dialógico da prática pedagógica da EJA, passo então a analisar os fragmentos das entrevistas3 3 Na descrição das entrevistas, letras em forma de siglas serão utilizadas para codificar os entrevistados sem identificá-los literalmente. Para professores(as), a sigla será PE - professor(a) entrevistado(a) -, seguida do número identificador. Para alunos(as), a sigla será AE - aluno(a) entrevistado(a) -, seguida do número identificador. com os(as) professores(as) e aluno(as).

Quando questionados se há momentos de interlocução, confronto de ideias, levantamento de questões em suas aulas e com que frequência, expressam:

Bastante, porque, quando você parte para o diálogo, dá oportunidade para o confronto de ideias, esse tipo de coisas. Na troca, na conversa você consegue abrir mais. É claro que tem alunos que ficam no anonimato, só escrevem, mas eu prefiro o aluno que se abre para o diálogo. (PE3)

Constantemente. Não consigo entender uma aula em que eu esteja sozinha falando e eles diante de mim como se estivessem ligados a uma TV. (PE4)

Sim, os alunos se colocam, se posicionam, concordam, discordam, vão construindo ideias. (PE2)

Outro aspecto que marca as entrevistas do ponto de vista da dimensão mediadora do diálogo é expresso considerando o seguinte questionamento: "Baseado na sua experiência, como os(as) alunos(as) começam a aprender o conteúdo que você ensina?"

Quando se tornam mais falantes, mais participativos, emitem opiniões, questionam, fazem links, pontes, associações com os fatos, trazem contribuições. (PE2)

Primeiro através da oralidade, e depois a escrita que vai confirmar o que aprendeu. (PE3)

Ah! Quando ele me faz sorrir, perceber as coisas que ele desenvolveu. Perceber pela expressão, sobretudo oral e nas emoções. Por exemplo: A cacofonia.4 4 Cacofonia ou cacófato é o nome que se dá a sons desagradáveis aos ouvidos, formados muitas vezes pela combinação de palavras que, ao serem pronunciadas, podem dar um sentido pejorativo, obsceno ou mesmo engraçado produzido pela união dos sons. Quando eu levo textos musicais, eles rapidamente entendem e percebem que cometem mais cacofonia. Até mais do que gírias. Ele questiona, participa. (PE4)

Questionado sobre o que significa essa participação, PE4 responde: "Principalmente o diálogo, a oralidade e depois a escrita. Porque a oralidade é questão central para se chegar à escrita".

Quando um(a) aluno(a) é interrogado(a) sobre o que representa para ele(a) uma boa aula, revela: "Quando o professor chega, passa a matéria, a gente aprende e discute. Hoje eu aprendo coisas simples que eu não sabia e vou no caminho pra casa discutindo sobre o que aprendi" (AE5.1).

Esse depoimento nos aproxima da ideia de consciência de ser e estar no mundo, pois:

O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver como ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas de quem nele se insere. É posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História. (Freire, 1996______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 60)

O testemunho dos alunos(as) é portanto revelador de uma educação de jovens e adultos que vem se desafiando a uma prática dialógica que busca romper com décadas de ajustamento, de acomodação de inexperiência democrática, como nos diz Freire (1975, p. 74)Freire, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.:

O problema do ajustamento e da acomodação se vincula ao do mutismo a que já nos referimos, como uma das consequências imediatas de nossa inexperiência democrática. Na verdade, no ajustamento, o homem não dialoga. Não participa. Pelo contrário, se acomoda a determinações que se superpõe a ele. As disposições mentais que criamos nestas circunstancias foram assim disposições mentais rigidamente autoritárias, acríticas.

Quando os(as) alunos(as) são questionados se o(a) professor(a) percebe quando conseguiram aprender o conteúdo, AE5.1 revela: "Sim (sorri), porque, quando todos aprendem, nós discutimos sobre o assunto e se não aprendemos ficamos em silêncio".

Quando indagados sobre qual a melhor maneira de o(a) professor(a) ensinar, AE5.2 expressa: "Explicando bem, não é com texto, é falando". Outro(a) aluno(a) enuncia: "O que eu mais gosto é o jeito do professor de história e geografia explicar. Eles debatem, interagem, o diálogo entre o professor e os alunos. Ou escrita, também adoro escrever" (AE8.3).

Professores(as), quando questionados(as) sobre como percebem quando os(as) alunos(as) aprendem, expõem, de maneira geral, conforme declara PE4: "Percebo pela expressão, sobretudo oral e nas emoções [...]. Principalmente, o diálogo, a oralidade e depois a escrita.".

Questiono o(a) professor(a) PE3 sobre "o silêncio", indagando: Mas e o(a) aluno(a) que é calado(a), tímido(a), que não manifesta pelo diálogo? O(A) professor(a) responde: "Acho que o aluno calado me incomoda mais do que o aluno falante" (PE3).

Essa preocupação do(a) professor(a) remete-nos a Vygotsky (1998, p. 169)Vygotsky, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998., posfaciado por Steiner e Souberman, quando afirma que a fala humana é, de longe, o comportamento de uso de signos mais importante ao longo do seu desenvolvimento. Esse é um campo de mediações caracterizado pela "mediação simbólica", que tem na linguagem o elemento mediativo constituído pelo universo simbólico de signos.

Essa afirmação aponta também as reflexões de Lukács quando diz que o desenvolvimento do ser é unitário, porém, realizado de forma contraditória. Isto é, em decorrência de que o homem é, ao mesmo tempo, produtor e produto da sociedade, e o fator que permite ao homem alcançar a consciência, no decorrer do processo de sua humanização, é a fala:

[...] o gênero - nesse nível ontológico, no nível do ser social desenvolvido - não é mais uma generalização à qual os vários exemplares se liguem "mudamente", [...] ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a síntese ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si. (Lukács, 1978Lukács, G. Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978., p. 14)

Observo assim, pelo ponto de vista ontológico, a importância da fala na produção da constituição dos sujeitos, como revela também a esse respeito o(a) professor(a) PE2. Nesse ponto da entrevista, a pergunta é a mesma anterior, porém com uma complementação, como segue: Com o(a) aluno(a) tímido(a), qual é o caminho? O caminho é fazer com que ele(a) deixe de ser tímido(a) e se expresse? Ou tu achas que a timidez não deve ser respeitada do ponto de vista daquele limite?

O que fala é fácil, o que não fala é difícil. Eu acho que o caminho, aí entra a Noite Cultural.5 5 Referindo-se ao projeto de trabalho do núcleo, desenvolvido por professores e turmas do núcleo da EJA pesquisada, intitulado "Noite Cultural". Não, eu acho que a timidez... ela te cobre, te diminui, a timidez... ela impede você de ter uma convivência social, de te desenvolver socialmente. [...] ela castra você como pessoa e a pessoa não é feliz... Não me venha dizer que a pessoa é feliz, porque eu era muito introvertido, tá me entendendo? [...] Eu era muito tímido quando era adolescente, e eu só consegui, digamos, ter uma postura; eu era uma cara que estudava, eu lia, era sempre voltado para as questões de estudo, mas eu sinceramente só comecei a ter alegria na minha vida quando eu consegui fazer um amigo que teve, assim, a generosidade de dividir todos os amigos dele comigo. [...]. Ele era uma pessoa extrovertida, comunicativa, e eu comecei a me manifestar através dessa amizade. A gente percebe que quando a pessoa se manifesta socialmente ela consegue interagir mais nas aulas, ela consegue captar mais, ela se sente melhor, esse é o ganho da Noite Cultural, esse é o ganho dessa noite onde as pessoas se colocam. (PE2)

Esse depoimento do(a) professor(a) leva-me ao encontro da pedagogia da autonomia, das reflexões empreendidas por Freire sobre a disponibilidade para o diálogo - exigência para o ensino -, quando ele(a) refere que:

O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História. (Freire, 1996______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 153-154, grifos meus)

A ideia de Freire reporta-se aos depoimentos dos(as) professores(as) quando indagados(as) sobre como percebem quando o(a) aluno(a) aprendeu:

Pelo desenvolvimento dele em sala de aula, ele se abre. Pelos resultados dos trabalhos, da exposição oral, do diálogo, que eu trabalho muito. É aí que você vai percebendo, pela discussão dele. (PE3)

Percebo pela animação, ele discute o assunto, manifesta oralmente o interesse expressando seu entendimento. (PE1)

Quando ele interage, faz perguntas, acrescenta outras questões, responde com clareza, faz pergunta de um conteúdo para outro. (PE2)

Essas falas revelam uma prática pedagógica inovadora de educadores dialógicos comprometidos a escutar sensivelmente a voz dos(as) alunos(as). Uma prática dialógica que viabiliza a vivência democrática na qual cada pessoa tem o direito de se expressar, de ser ouvido e de intervir de forma crítica e consciente na realidade, pois só no diálogo é possível a práxis crítica.

Assim, quando questionados sobre o momento em que percebem o início da aprendizagem do conteúdo ensinado pelo professor, os(as) alunos(as) revelam:

Quando eu sinto que tenho segurança em falar as coisas. Por exemplo, no teatro, uma vez, eu até improvisava porque já tinha entendido. (AE8.3)

Quando fico feliz, vejo que peguei, quero sempre saber mais, mais informações. (AE6.2)

Quando consigo passar pro colega. (AE7.1)

A experiência da aprendizagem mediada na prática pedagógica desses sujeitos não está explícita nessas falas, no que se refere ao movimento didático mediador de estabelecer comparações, relações, complementações, análise e síntese entre um conhecimento e outro. Contudo, como visto, o resultado desse movimento é expressamente revelador desse processo.

O depoimento do(a) aluno(a) AE7.1 mostra que a prática pedagógica orientada pela mediação é capaz de desenvolver a autonomia do(a) educando(a), de modo que, de sujeito mediado, ele torna-se também mediador, uma vez que consegue explicar a aprendizagem construída, no caso exemplificado, quando diz que consegue "passar para o colega". Mas também quando ele consegue resolver as tarefas propostas por meio de instrumentos mediadores, como exercícios propostos e textos escritos, bem como interagir com os outros sujeitos da atividade pedagógica.

Bakhtin e Freire compreendem a linguagem como o processo histórico e de interação entre os seres humanos. O ser humano é subjetividade, mas a sua subjetividade só se estabelece na relação dialógica com o outro, ou seja, na intersubjetividade. O sujeito só se constitui pelo reconhecimento do outro, da alteridade, do diferente. Assim, constituir o eu pelo reconhecimento do tu é o princípio da subjetividade, que, por sua vez, está condicionada ao princípio da intersubjetividade, que é potencializadora do diálogo mediatizador da comunicação e da emancipação humana.

Na sequência, pergunto ao(à) professor(a) PE4 como ele(a) percebe o aprendizado do aluno(a) tímido(a), aquele(a) que não se manifesta oralmente:

Não concordo com a timidez, vou além, porque creio que toda timidez é uma forma de baixa autoestima. Na prática consigo trazê-lo para o diálogo. Observo que ele é tímido no grande grupo, mas, entre seus pares, há indicador de potencial. Observo, nas andanças em sala de aula, o que esse tímido gosta e trago para o grande grupo. (PE4)

O depoimento desse(a) professor(a) remete-se à reflexão de Wells (1998, p. 130)Wells, G. Da adivinhação à previsão: discurso progressivo no ensino e na aprendizagem em ciências. In: Coll, C.; Edwards, D. Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula: aproximações ao estudo do discurso educacional. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 107-142. quando diz:

Com muita frequência, a sensibilidade de um professor diante da necessidade de construir a autoestima dos alunos pode levar a uma falta de predisposição para desafiá-los intelectualmente. No entanto, ao manter em expectativas elevadas sobre o que pode ser alcançado pelos alunos ao ajudá-los a obter isso, os professores podem ajudá-los a acreditar em suas próprias capacidades para aprender.

A atitude do(a) professor(a) demonstra o reconhecimento e a importância que dá aos aspectos emocionais, afetivos e sociais da interação da vida de sala de aula, como parte integral da aprendizagem mediada. Aspectos que são fonte de significação, de pertencimento ao grupo e de identidade de si.

Nessa perspectiva, fica evidente a importância do diálogo na estrutura das práticas pedagógicas dos(as) docentes(as) do núcleo pesquisado à medida que promovem debates que tentam estimular o desenvolvimento da solidariedade, da participação e do envolvimento do(a) aluno(a) nos grupos. Por isso, considero o diálogo condicionante fundamental para uma boa interação entre professores(as) e alunos(as).

Essa percepção também se revela na entrevista com o(a) aluno(a) AE7.1. Questionado sobre o que é para ele(a) ser um(a) bom(oa) professor(a), expõe: "Para mim, um bom professor é um professor inteligente em todas as maneiras, não só o conhecimento, a inteligência, mas também que saiba reconhecer o aluno". Indagado então sobre o que seria um professor ruim, ressalta: "É um professor que não tem diálogo, não tem respeito".

Esse enunciado nos leva ao encontro de Freire (1981)______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., quando diz que, antes mesmo da ocorrência do diálogo, é necessária uma profunda fé nos homens, em cuja base de sustentação está o amor. Freire atribui um valor especial ao amor na defesa do diálogo: "Não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao mundo e aos homens [...]. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo" (Freire, 1981______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 93-94). Assim, a prática do diálogo consiste numa ação comprometida com a humanidade.

Na continuidade, é solicitado ao(a) aluno(a) entrevistado(a) AE7.1 que explique sua resposta ao afirmar que: "Um bom professor é um professor inteligente em todas as maneiras, não só o conhecimento, a inteligência, mas também que saiba reconhecer o aluno". Ao que o(a) aluno(a) responde exemplificando:

Porque o conhecimento, tipo assim, se eu sou um professor de matemática, de português ou de qualquer outra, lógico, eu vou entender da minha matéria, eu vou saber explicar, mas não basta só aquilo ali, tem que ter alguma coisa a mais. (AE7.1)

Seguindo a reflexão do(a) entrevistado(a), constata-se a necessidade do vínculo entre o diálogo e o fator afetivo que "suleará" a virtude primordial do diálogo e o respeito aos estudantes não somente como receptores, mas enquanto indivíduos. Afinal, indaga Freire (1975, p. 107)Freire, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.: "E o que é o diálogo?" E responde apoiado em Jaspers: "uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se de amor, humildade, esperança, fé e confiança". E mais:

[...] Se o diálogo é o encontro dos homens para Ser Mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso. (Freire, 1981______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 97).

O diálogo na relação pedagógica ajuda os(as) educandos(as) a organizarem reflexivamente o seu pensamento, inserindo-os no processo histórico para que renunciem seu papel de simples objetos e exijam a sua atuação enquanto sujeitos. Para que aconteça a real educação, a principal forma de comunicação é o diálogo. "Sem diálogo não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação" (Freire, 1987______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987., p. 83).

A seguir, o depoimento do(a) professor(a) mostra o diálogo permanente no movimento didático da sala de aula como princípio suleador6 6 Expressão utilizada por Paulo Freire no livro Pedagogia da esperança (1992), no intuito de substituir o termo norteador, nortear, de conotação ideológica - norte: acima, superior; sul: abaixo, inferior. Sulear pensamentos e práticas é uma perspectiva que se anuncia, no pensamento freireano, para fortalecer a construção de práticas educativas emancipatórias. Freire convoca nosso olhar para os elementos suleadores, contra-hegemônicos, para denunciar a suposta neutralidade epistemológica de uma ciência atrelada aos interesses capitalistas, quase sempre produzidos nos países do norte. O termo sulear, portanto, chama atenção para o caráter ideológico do termo nortear, pois sulear expressa a intenção de dar visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica eurocêntrica dominante a partir da qual o norte é apresentado como referência universal. A fundamentação para o uso dessa expressão, ausente dos dicionários de língua portuguesa, encontra-se emFreire (1992, p. 218). Boaventura de Sousa Santos apresenta esse debate no livro O Fórum Social Mundial: manual de uso, de 2005. da prática pedagógica orientada na EJA. O(A) docente expressa essa compreensão com base em sua vivência em sala de aula e no cenário que enuncia a resposta ao questionamento sobre o que é uma aula de boa qualidade:

É uma aula que o aluno dialoga, que o aluno pergunta, que o aluno participa, que você sente que o aluno, por exemplo, compreendeu, e ele também fica feliz quando ajuda, entende? Quando ele consegue dar a contribuição dele, quando ele interage contigo, quando ele questiona, você vê que essa é a aula boa, quando dá satisfação. (PE2)

Nesse cenário de enunciações, no qual a palavra, a oralidade e a participação são os instrumentos mediadores constitutivos do diálogo como movimento propulsor do desenvolvimento cognitivo mediado, o aprendizado é um processo profundamente social. Processo que se apresenta também na declaração do(a) professor(a) PE4, quando indagado sobre quem "faz" as mediações, se o(a) professor(a) ou se o(a) aluno(a), exemplifica:

Ambos, às vezes eu lanço um tema e eles vão fazendo mediações, me situando na proposta deles. Eles vão trazendo subsídios. Os adolescentes do ensino regular são meio perversos, excluem com seus dialetos enquanto na EJA eles estão sempre procurando, têm postura, dialogam com o professor, têm seus próprios temas de interesse. (PE4)

Essas enunciações testemunham uma prática da EJA, reveladora de potencialidade heurística da mediação pedagógica, cuja potencialidade emana da reflexão que as próprias mediações elucidam, principalmente no que diz respeito à formação efetiva do ser humano. Desse modo, compreendo que operar com conhecimentos que não sejam significativos reproduz uma educação sem sentido, e o papel da mediação pedagógica seria então o de recuperar o significado da instituição escolar, o sentido do espaço educativo na/para a EJA.

A consciência crítica sobre as estruturas sociais que geram a desigualdade, o papel da educação na sustentação ou modificação dessas estruturas e a valorização do diálogo como princípio educativo, aliados à noção de reciprocidade na relação professor(a)-aluno(a), constituem pilar importante da formação do educador de jovens e adultos.

Logo, é preciso considerar o ensinamento de Freire: o diálogo é o instrumento para libertação, não é apenas um método, mas uma estratégia para o(a) professor(a) respeitar o saber do(a) aluno(a) que chega à escola, pois ele contém em si aquilo que os seres humanos têm de mais próprio: a palavra, e ela se materializa no diálogo. Por isso, na visão libertadora freireana, sem a palavra dos homens e mulheres não pode haver libertação. Destarte, a base pedagógica defendida no pensamento de Freire (1981)______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. expressa uma crítica radical à pedagogia bancária, que se caracteriza como uma pedagogia do antidiálogo, em que a unilateralidade da relação professor(a)-aluno(a) reflete situações de dominação, hierarquia e silêncio.

O relacionamento professor(a)-aluno(a) precisa estar pautado no diálogo, ambos se posicionando como sujeitos no ato do conhecimento, numa relação horizontal. O autoritarismo que permeava a relação da educação tradicional precisa ser banido para dar lugar à pedagogia do diálogo. Contudo, essa relação horizontal não acontece de forma imposta, mas sim naturalmente, quando educando(a) e educador(a) conseguem colocar-se na posição do outro, tendo a consciência de que são, ao mesmo tempo, educandos(as) e educadores(as).

É nesse sentido que Freire e Shor (1986, p. 18)Freire, P..; Shor, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. veem no "ciclo gnosiológico" dois momentos que se relacionam dialeticamente: um deles é o momento do conhecimento do já conhecido, e o outro é o da produção do novo, o que para eles significa estimular nos(as) educandos(as) sua potencialidade criativa.

O que esses enunciados mostram é que a educação dialógica é um momento mais que cognitivo e racional, pois engloba dimensões outras, como a afetividade, a sensibilidade, a intuitividade e as intencionalidades. Por isso concordo com Freire (1981)______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.: o dado fundamental das relações de todas as coisas no mundo é o diálogo.

O diálogo é o sentimento de amor tornado ação; o diálogo amoroso, que é o encontro dos seres humanos que se amam e que desejam transformar o mundo. Segundo Freire (idem), o diálogo não é só uma qualidade do modo humano de existir e agir. O diálogo é a condição desse modo, é o que torna humano os homens e mulheres.

As declarações a seguir também sinalizam esse cenário dialógico como possibilidade humana de "Ser Mais",7 7 Ser Mais é uma categoria que se encontra situada na obra de Freire como um conceito-chave para sua concepção de ser humano. Zitkoski (2010, p. 369, grifos meus)explica que: "A vocação para a humanização, segundo a proposta freiriana, é uma característica que se expressa na própria busca do ser mais através da qual o ser humano está em permanente procura, aventurando-se curiosamente no conhecimento de si mesmo e do mundo, além de lutar pela afirmação/conquista de sua liberdade". quando os(as) professores(as) são questionados(as) sobre como verificam o progresso intelectual do(a) aluno(a) e o desenvolvimento de suas capacidades, como percebem que os(as) alunos(as) assimilam consciente e ativamente a matéria e mobilizam suas capacidades mentais e habilidades:

Pelos diálogos, em sala de aula, que você vai vendo que eles ligam as coisas, os fatos das aulas anteriores. Você percebe que o aluno se ligou, que não foi vã sua aula. Já o aluno calado é problemático. (PE3)

Os alunos interessados, eles conseguem conversar sobre o assunto porque são coisas do dia a dia. (PE1)

Na fala, na maneira de falar, de questionar, que passam a ser mais inteligentes, mas bem elaboradas. A forma como se posicionam como evoluem do primeiro texto ao último texto escrito. (PE4)

As falas de professores(as) e alunos(as) vêm confirmando o que Assmann (1998, p. 29)Assmann, H. Metáforas novas para reencantar a educação. Epistemologia e didática. Piracicaba: UNIMEP, 1998. propõe: o ambiente pedagógico deve ser, antes de mais nada, lugar de fascinação e interatividade, e toda a morfogênese do conhecimento deve ser compreendida à luz da experiência humana de prazer pela vida, de sentir-se bem em determinado lugar e no convívio com as pessoas. Nesse sentido, a mediação na prática pedagógica da EJA pode se constituir em um processo de reencantamento para a ação educativa, o qual se realiza a partir da paixão pela comunicação, da autodescoberta do potencial humano de autorrealização, consubstanciado pelas interações e experiências para a construção de novos conhecimentos.

O espaço pedagógico da EJA é um espaço fértil de possibilidades de articulação de outras realidades culturais, outros saberes, assim como a vida o é: uma rede de relações dialógicas que se articula indefinidamente com saberes complexos, um encontro de homens e mulheres no qual o conhecimento só faz sentido quando é voltado para a construção do diálogo permanente. Isso porque é pelo diálogo que os seres humanos tornam-se sujeitos de suas ações, e é com o saber dessas ações que passam a adquirir respeitabilidade à medida que passam a empreender atitudes comprometidas com o conhecimento.

Nessa perspectiva, esta pesquisa sinaliza que a mediação da ação orientada na EJA não deve focar-se apenas no aprimoramento do ato de ensinar e aprender, mas substanciar uma ação humanizante, em que a alegria, o prazer e a esperança sejam os elementos fomentadores do interessante entre os sujeitos aprendentes.

Percebo nos enunciados, nos argumentos, nas expressões, nos gestos e ações dos professores(as) e alunos(as) uma defesa à abertura para o outro, ao encontro entre sujeitos e culturas, uma defesa ao diálogo como fundamento da prática educativa e da construção de identidades - professores(as) e alunos(as) aprendendo a "Ser Mais", a expressarem sua leitura de mundo, seu universo simbólico, suas práticas cotidianas. Como expressa também o(a) professor(a) PE1 quando indagado(a) sobre a compreensão que tem de mediação:

É a troca. Eu ouço muito os alunos, eu acho muito importante você ouvir o que o aluno tem a dizer, tanto da sua disciplina, como do modo que você está ensinando, o que ele pensa do modo que você esta ensinando, do que ele pensa do modo de como você está tratando ele, porque você pode pensar que está tratando ele muito bem, mas, na verdade, não está, por isso eu gosto muito de conversar. Eu abro muito espaço para isso. (PE1)

O(A) mesmo(a) professor(a), quando questionado(a) acerca de quais são as características dos conhecimentos dos(as) educandos(as), se consegue identificar alguns saberes que eles trazem de sua vida e lançam mão ao longo das aulas, se aproveita esses saberes e se apontaria algum construído com eles, expõe:

Ah, sim, com certeza, com certeza, muita coisa. Só a gente tendo um pouquinho de boa vontade que a gente aprende muita coisa com eles, os jeitos diferentes, pergunto muita coisa pra eles. [...] Apesar de ter algumas falhas, porque nada é perfeito nesse progresso sistemático; acontece bastante, desde uma quinta série, quando ela está iniciando, quando ela iniciou, e veja ele agora, acho que o exemplo principal é se pedir pra eles debater, conversando com eles [...] melhorou mil por cento. Aí, na sexta série, já vão melhorando mais, pra sétima eles vão melhorando, pra oitava eles vão melhorando mais ainda. (PE1)

Pergunto se o exemplo que ele deu é o que se chama de progressão das séries da EJA, porque ele acompanha todas as turmas e séries, e se vê essa progressão no discurso ou na escrita dos(as) alunos(as):

Na escrita, no discurso, na falta de vergonha, na falta de vergonha de se comunicar; se tu der a oportunidade, eles perdem a vergonha, tu tem que criar condições, não permitir aquelas gracinhas no começo da aula. [...]. Há sim, com certeza, a própria quinta série mesmo do começo pra agora melhorou mil por cento. [...] No decorrer da própria série, a quinta série melhorou tanto, tanto na escrita, aluno que não conseguia escrever, que não sabia escrever, daí eu disse: "Isso não, vamos". (PE1)

Questionado(a) se identifica a referida progressão, sobretudo na quinta série, por serem geralmente alunos(as) que vêm de fora com alguma dificuldade, o(a) professor(a) explica:

Dificuldade, medo, [...] e eu digo: "Ó pessoal, tem que pegar firme, tem que ser assim, assim, e tem que se esforçar um pouquinho; vocês da parte de vocês, eu da minha". É que eu não sou de rir muito na primeira aula, eu vou me abrindo aos poucos. (PE1)

Na continuidade da entrevista, insisto em compreender o sentido da progressão que o(a) docente menciona. Para isso, questiono se essa progressão percebida nos(as) alunos(as), em sua comunicação, escrita e na forma de se expressarem, chama mais atenção quando eles(as) ingressam na EJA, na 5ª série, ou é também expressiva nas séries seguintes.

Ela é muito expressiva na quinta série. Aí, quando eles começam na sexta série, já começam a ficar naquele nível, já tão... continuam a falar, a escrever mais daí a progressão vai, vão estabilizando. (PE1)

Também é indagado se ele nota essa progressão nos(as) alunos(as) jovens, que recentemente saíram de outras escolas com histórico de reprovação, ou se observa esse fenômeno apenas nos(as) alunos(as) mais velhos e/ou que estão há mais tempo fora da escola. O(A) professor(a) exemplifica com a fala de um(a) aluno(a), rememorando uma situação em sala de aula:

A progressão dos jovens também é muito grande. [...] Isso, muito grande. [...] Tem um menino aqui na quinta série de 15 anos, ele fala com a gente que é uma maravilha, mas escrever ele diz que não consegue [...] expliquei pra ele, vai, vai, vai e daí eu disse vai, vai, vai, foi, foi, foi, acabou fazendo. Um dos melhores, agora foi, foi, foi, e agora tá aí. Aí esses próprios alunos novos, a progressão deles é muito grande, por que eles sabem falar bem. [...] "Professor, eu não sei botar no papel, eu não vou fazer o teu trabalho". Eu digo: "Não, faz, pensa, pensa, como se tu visses um filme, passeasse com a namorada, fosse pra praia; escreve no papel pra mim, não importa a tua letra". (PE1)

Os sentidos das mediações pedagógicas, nesse espaço investigativo, tem o exercício do diálogo como uma prática pedagógica que aproxima os sujeitos aos objetos de que precisam e desejam conhecer. "A educação dialógica parte da compreensão de que os alunos têm de suas experiências diárias" (Freire; Shor, 1987______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987., p. 131). É nesse movimento didático, que tem a mediação dialógica como fundamento, que esse saber vai sendo desvelado, sua qualificação vai se dando à medida que vão construindo esse desvelamento com o rigor necessário.

Para compreendermos como os sujeitos se educam, precisamos de contexto, das visões e ações de outras pessoas, que sejam apresentadas suas vozes, na sua inteireza. Acredito ser necessário partilhar os saberes de experiência feitos, também por concordar com Santos (2005Santos, B. S. O Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2005., p. 112), quando afirma que "não há democracia sem educação popular. Não há democracia das práticas sem democracia dos saberes".

Destarte, o que chama atenção é a diferença que há na posição dos(as) professores(as) e dos(as) alunos(as), ambos com muita vontade, muito desejo de aprendizado: o(a) professor(a) a ser docente de EJA, e o(a) aluno(a) a ser estudante de EJA. Cada um construindo sua identidade, na qual ensinar e aprender estão em relação. Os(As) alunos(as) com o desejo de aprender, mas, ao mesmo tempo, com um sentimento de inferioridade, da dificuldade que eles parecem ter de superar. Os(As) alunos(as) que passam pela EJA têm esse histórico, essa identidade.

Ainda que tragam um desejo muito forte de aprender, eles(as) também trazem desse movimento que produziu a exclusão social deles(as), o medo de ousar, o medo de se expressar. E, nesse sentido, os(as) professores(as) precisam buscar muito mais. Isto é, operam com mediações e nas mediações de forma muito mais intensificada, diretiva.

Nessa linha de raciocínio, Freitas (2010Freitas, A. L. S. Saber de experiência feito (verbete). In: Streck, D. R.; Redin, E.; Zitkoski, R. E. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 366., p. 366) sustenta o que Freire tem nos ensinado: "a aprendizagem da escuta" é "um caminho para transformar o autoritarismo do discurso de quem fala para os educandos na horizontalidade de quem fala com os educandos. Saber escutar é uma atitude de respeito aos saberes de experiência feito dos educandos".

Se a estrutura do meu pensamento é a única certa, irrepreensível, não posso de outra maneira escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra maneira que não a minha. Nem tampouco escuto quem fala ou escreve fora dos padrões da gramática dominante. E como estar aberto às formas de ser, de pensar, de valorar, consideradas por nós demasiado estranhas e exóticas de outra cultura? Vemos como o respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige de nós a humildade que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além dos quais a nossa autovalia necessária vira arrogância e desrespeito aos demais. É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo, como se cumprisse mera obrigação burocrática. A humildade exprime, pelo contrário, umas das raras certezas de que eu estou certo: a de quem ninguém pode ser superior a ninguém. A falta de humildade, expressa na arrogância e na falsa superioridade de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra, de um gênero sobre o outro, de uma classe ou de uma cultura sobre a outra, é a transgressão da vocação humana do ser mais. (Freire, 1996______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 121)

Freire (1981______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.) sempre destacou a importância da dialogicidade, isso porque o diálogo entre educador e educando é o aspecto fundamental para a problematização de situações reais vividas. É nesse movimento que começa a formação da nova percepção e do novo conhecimento, relacionado ao que Freire chama de "consciência máxima possível" (idem, p. 126). Freire (idem) discute os conceitos consciência real (efetiva) e consciência máxima possível tendo como referência as ideias de Goldman.8 8 Lucien Goldman, autor do livro The Human Sciences and Philosophy, publicado pela The Chancer Press em Londres, em 1969. Na consciência real, os homens se encontram limitados na possibilidade de perceber mais além das situações-limite, e na consciência máxima possível identifica-se com as soluções praticáveis despercebidas (idem, ibidem). Esses conceitos são equivalentes, respectivamente, aos conceitos de consciência ingênua e consciência crítica, adotados por Freire. "Quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto para intervir na realidade para mudá-la" (Freire, 1980______. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980., p. 19). E, nesse sentido, o diálogo é o que desvela a realidade.

Daí a importância da problematização. No sentido freireano, problematizar consiste em abordar questões que emergem de situações que fazem parte da vivência dos educandos. É desencadear uma análise crítica sobre a "realidade-problema" (Freire, 1981______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 97), para que o educando perceba essa questão e reconheça a necessidade de mudança.

Para Freire, a produção do conhecimento implica o exercício da curiosidade para que os(as) docentes e discentes se assumam epistemologicamente curiosos. É por isso que no momento da problematização é de fundamental importância estimular a curiosidade do sujeito que "[...] me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, reconhecer" (Freire, 1996______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 87). É no momento da problematização que o(a) professor(a) deve buscar, pela dimensão mediadora do diálogo, trazer o "saber de experiência dos educandos" (idem, p. 18). Não como algo a ser desprezado ou ignorado, mas como ponto de partida para a compreensão do mundo em que vivem. O que não significa ficar neles, mas buscar novos, superá-los, como ressalta Freire (1992, p. 70-71)______. Pedagogia da esperança. Rio Janeiro: Paz e Terra, 1992.:

[...] partir do saber que os estudantes tenham não significa ficar girando em torno deste saber. Partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a outro e não ficar, permanecer. Jamais disse, como às vezes sugerem ou dizem que eu disse, que deveríamos girar embevecidos, em torno do saber dos educandos, como mariposa em volta da luz. Partir do "saber de experiência feito" para superá-lo não é ficar nele.

Freire (1996)______. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996. chama atenção para a presença do professor como uma presença em si política, e, sendo política, não pode passar despercebida dos(as) alunos(as) na classe e na escola. E alerta que o(a) professor(a) não pode ser professor(a) sem se achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de sua disciplina. Assim como também, em contraposição, não pode reduzir sua prática docente ao puro ensino desses conteúdos. E explica que tão importante quanto o ensino da disciplina é seu testemunho ético ao ensiná-los, a decência com que o faz. O autor nos fala da importância da preparação científica revelada sem arrogância, com humildade.

Esse é um dos aspectos em que a mediação está muito presente, embora Freire (idem), não trate dessa categoria em sua metodologia de ensino e aprendizagem. Aqui ele fala da preparação do(a) professor(a), seu refinamento para a curiosidade do(a) aluno(a), que deve trabalhar com sua ajuda, com vistas a que produza sua "inteligência do objeto ou do conteúdo" (idem, p. 45) de que fala o(a) professor(a). O papel do professor(a), ao ensinar o conteúdo a ou b, não é apenas o de se esforçar para, com clareza máxima, descrever a substantividade do conteúdo para que o aluno o fixe, mas, fundamentalmente, ao falar com clareza sobre o objeto, é iniciar o(a) aluno(a) a fim de que ele, com os materiais oferecidos, produza a compreensão do objeto em lugar de recebê-la na íntegra.

Indubitavelmente, do ponto de vista freireano, os elementos implicados na aprendizagem - conteúdo e professor(a) - não são revogados, pelo contrário, o que ele propõe é um ensino e conteúdo que promovam a compreensão mais crítica da situação de opressão e exclusão. Mas também alerta que aquela, por si só, não muda nada. Ao desvelá-la, só será possível sua superação no momento em que houver um engajamento na luta política pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão e a exploração. A tomada de consciência da realidade, então, deve estar articulada com a práxis, isto é, com o processo de ação-reflexão-ação. E é o diálogo que está na centralidade da ação pedagógica, e ele tem na linguagem papel material mediador, pela qual se ampliam ao infinito as possibilidades de relações interlocutivas.

Assim, os sentidos de mediação com os quais se trabalha - o nosso olhar sobre o contexto pesquisado - são ancorados no diálogo como força que impulsiona o pensar crítico-problematizador em relação à condição humana no mundo. Portanto, numa prática pedagógica na perspectiva da "ação dialógica" (Freire, 1981______. Pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 96) e no "trabalho de tradução" (Santos, 2006______. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006., p. 802-814).

O trabalho de tradução, termo cunhando por Santos (idem, ibidem), "[...] compreende interpretação entre duas ou mais culturas, [...] procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo [...]. O objetivo da tradução entre saberes é criar justiça cognitiva a partir da imaginação epistemológica".

As mediações caracterizam, portanto, o campo potencial do diálogo em amplo aspecto, em diversos conceitos, conhecimentos e linguagens. Desde os processos de negociação visando ao entendimento para determinada situação que objetive solucionar conflitos conceituais, aprimorar processos de intervenção humana de diversas naturezas, constituir formas de representações conceituais e potencializar a identificação de conhecimentos que propiciem novos campos de interpretações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dessa trajetória, feita no adentramento da práxis, permitiu que fosse possível construir os aspectos básicos desta pesquisa, que, no limite deste artigo, revela parcialmente umas das dimensões de análise: a dimensão mediadora do "diálogo" como fundamento. Acompanhando os atores, professores(as) e alunos(as) em seus cenários - salas de aula de EJA do terceiro segmento do ensino fundamental, focando as questões da mediação pedagógica que criam condições de desenvolver a capacidade reflexiva dos estudantes de EJA e da práxis nessa modalidade de ensino -, aprofundo a qualificação teórica dessa categoria como uma necessidade de referenciá-la e de compreendê-la em seus desdobramentos para dessa forma interpretá-la nesta pesquisa.

Foi na práxis desta pesquisa que qualifiquei as dimensões mediadoras com os referenciais teórico-práticos, com as observações, com outros referenciais apreendidos pela experiência vivida com os(as) professores(as) e alunos(as) e também como coordenadora pedagógica da EJA e professora formadora de professores(as). Percebo que os sentidos das mediações pedagógicas, nesse espaço investigativo, forjam uma pedagogia do diálogo onde ninguém sabe tudo, ninguém é inteiramente ignorante, onde a exigência existencial e política do diálogo se faz essencial para pensar e gerar um mundo solidário, com base na reciprocidade.

Na instituição de ensino pesquisada, o diálogo assume valor fundamental porque possibilita a pronúncia crítica do mundo, daí atentar na formação do(a) professor(a) de jovens e adultos, o caráter desmistificador da realidade. "A educação de adultos, se nossa opção é democrática, não pode conviver com o discurso de sua neutralidade, que é discurso de sua negação" (Freire, 2000______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000., p. 100).

A EJA é uma modalidade complexa e, por isso, a pesquisa evidencia uma das dimensões básicas resultantes dessa trajetória, que serve de escopo para reflexão neste artigo, qual seja: o exercício do diálogo como fundamento. Essa afirmação esteve presente para analisar os sentidos de mediações com que os(as) professores(as) e alunos(as) operam para construir e apropriar-se dos conhecimentos em sala de aula, respondendo à complexidade da EJA em que docente e discente estão em processo de aprendizagem, no qual o diálogo os "fenomeniza e historiciza", pois é ele o próprio movimento constitutivo das mediações.

Neste contexto, as práticas pedagógicas mediadoras constituem-se pelo exercício do diálogo como fundamento no qual os(as) docentes buscam estratégias de formação inovadora visando à superação de práticas "bancárias" e visões etnocêntricas; a convivência pacífica com o diferente em que é possível vislumbrar a construção de um currículo que responda à complexidade da EJA.

  • *
    Resultado parcial de pesquisa de doutorado financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Programa de Excelência Acadêmica (CAPES/ PROEX).
  • 1
    Ao longo do texto, utilizo o termo "professor" seguido da abreviação "(a)" para caracterizar o feminino desse ofício. Outras vezes, utilizo apenas professor e professora. Da mesma forma, o termo aluno(a) e/ou aluno e aluna. O ofício da docência e o papel dos(as) estudantes têm centralidade nas discussões referentes à problemática deste trabalho, o que implica o uso dos termos, em muitas passagens, com frequência, e eles precisam ficar explícitos. Não se trata de simples redundância, mas de evitar uma manifestação do uso masculino como presumível genérico de referência à professora e professor, aluno e aluna. Nesse sentido e consciente de que o emprego correto contribui para a equidade de gênero, não estou fazendo uso sexista, excludente e discriminatório da língua na expressão escrita que transmite e reforça as relações assimétricas, hierárquicas e não equitativas entre os sexos. Ressalto ainda que, quando abordo a análise de campo, os referidos termos também são usados dessa forma, porém para também preservar a identidade dos sujeitos entrevistados.
  • 2
    Os significados são construídos socialmente por meio da linguagem e, portanto, tomam o diálogo como elemento central de uma prática reflexiva (Vygotsky, 1987______. (1987). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.). A palavra, para Bakhtin (1992)Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992., é organizadora da própria atividade mental, a qual se situa em território social, ou seja, está sempre no exterior, orientada pelas relações sociais. Funciona como um signo que permitea mediação, levando-nos a compreender como ocorre o processo de internalização.
  • 3
    Na descrição das entrevistas, letras em forma de siglas serão utilizadas para codificar os entrevistados sem identificá-los literalmente. Para professores(as), a sigla será PE - professor(a) entrevistado(a) -, seguida do número identificador. Para alunos(as), a sigla será AE - aluno(a) entrevistado(a) -, seguida do número identificador.
  • 4
    Cacofonia ou cacófato é o nome que se dá a sons desagradáveis aos ouvidos, formados muitas vezes pela combinação de palavras que, ao serem pronunciadas, podem dar um sentido pejorativo, obsceno ou mesmo engraçado produzido pela união dos sons.
  • 5
    Referindo-se ao projeto de trabalho do núcleo, desenvolvido por professores e turmas do núcleo da EJA pesquisada, intitulado "Noite Cultural".
  • 6
    Expressão utilizada por Paulo Freire no livro Pedagogia da esperança (1992), no intuito de substituir o termo norteador, nortear, de conotação ideológica - norte: acima, superior; sul: abaixo, inferior. Sulear pensamentos e práticas é uma perspectiva que se anuncia, no pensamento freireano, para fortalecer a construção de práticas educativas emancipatórias. Freire convoca nosso olhar para os elementos suleadores, contra-hegemônicos, para denunciar a suposta neutralidade epistemológica de uma ciência atrelada aos interesses capitalistas, quase sempre produzidos nos países do norte. O termo sulear, portanto, chama atenção para o caráter ideológico do termo nortear, pois sulear expressa a intenção de dar visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica eurocêntrica dominante a partir da qual o norte é apresentado como referência universal. A fundamentação para o uso dessa expressão, ausente dos dicionários de língua portuguesa, encontra-se emFreire (1992, p. 218)______. Pedagogia da esperança. Rio Janeiro: Paz e Terra, 1992.. Boaventura de Sousa Santos apresenta esse debate no livro O Fórum Social Mundial: manual de uso, de 2005.
  • 7
    Ser Mais é uma categoria que se encontra situada na obra de Freire como um conceito-chave para sua concepção de ser humano. Zitkoski (2010, p. 369, grifos meus)Zitkoski, J. J. Ser Mais (verbete). In: Streck, D. R.; Redin, E.; Zitkoski, J. J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 369.explica que: "A vocação para a humanização, segundo a proposta freiriana, é uma característica que se expressa na própria busca do ser mais através da qual o ser humano está em permanente procura, aventurando-se curiosamente no conhecimento de si mesmo e do mundo, além de lutar pela afirmação/conquista de sua liberdade".
  • 8
    Lucien Goldman, autor do livro The Human Sciences and Philosophy, publicado pela The Chancer Press em Londres, em 1969.

REFERÊNCIAS

  • Assmann, H. Metáforas novas para reencantar a educação Epistemologia e didática. Piracicaba: UNIMEP, 1998.
  • Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
  • Freire, P. Educação como prática da liberdade Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
  • ______. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980.
  • ______. Pedagogia do oprimido 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
  • ______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
  • ______. Pedagogia da esperança Rio Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  • ______. Pedagogia da autonomia São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • ______. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.
  • Freire, P..; Shor, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
  • Freitas, A. L. S. Saber de experiência feito (verbete). In: Streck, D. R.; Redin, E.; Zitkoski, R. E. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 366.
  • Gadotti, M. Convite à leitura de Paulo Freire São Paulo: Scipione, 1989.
  • Lukács, G. Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
  • Melucci, A. Por uma sociologia reflexiva: pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005.
  • Santos, B. S. O Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2005.
  • ______. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
  • Smolka, A. L. B. (1991). Múltiplas vozes em sala de aula: aspecto da construção coletiva do conhecimento na escola. Revista de Trabalhos de Linguística Aplicada, Campinas: UNICAMP, n. 18, p. 15-28, jul./dez.
  • Vygotsky, L. S. A formação social da mente 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
  • ______. (1987). Pensamento e linguagem São Paulo: Martins Fontes, 1987.
  • Wells, G. Da adivinhação à previsão: discurso progressivo no ensino e na aprendizagem em ciências. In: Coll, C.; Edwards, D. Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula: aproximações ao estudo do discurso educacional. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 107-142.
  • Zitkoski, J. J. Ser Mais (verbete). In: Streck, D. R.; Redin, E.; Zitkoski, J. J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 369.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    Jul 2013
  • Aceito
    Mar 2015
ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@anped.org.br