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Educação e ambiguidades da autonomização: para uma pedagogia crítica da promoção do indivíduo autónomo

EDUCATION AND AMBIGUITIES OF THE AUTONOMIZATION: FOR A CRITICAL PEDAGOGY OF THE PROMOTION OF THE AUTONOMOUS INDIVIDUALS

EDUCACIÓN Y AMBIGÜEDADES DE LA AU TONOMIZACIÓN: HACIA UNA PEDAGOGÍA CRÍTICA DE LA PROMOCIÓN DEL INDIVIDUO AUTÓNOMO

RESUMO

O presente artigo, confrontando a educação com o desiderato da autonomização, pretende analisar as ambiguidades a que esse confronto dá hoje origem e estabelecer, mediante a explicitação de uma conceção contra-hegemónica de autonomização, as bases e as coordenadas de uma pedagogia crítica da promoção do indivíduo autónomo, que seja simultaneamente humanista, emancipadora e transformadora tanto da realidade do sujeito quanto da realidade do contextoA estrutura narrativa, em consonância com esse amplo propósito, articula as seguintes dimensões: a educação e a normatividade da autonomização; as ambiguidades da autonomização: sentidos divergentes de fazer educação para a autonomia; e, por fim, o empowermentemancipatório e transformador: vetor da educação enquanto autonomização contra-hegemónica. A conclusão aponta as linhas diretoras da construção de uma pedagogia crítica do indivíduo autónomo, assumida nas vertentes de emancipação individual e transformação social.

PALAVRAS-CHAVE:
educação; autonomização; pedagogia crítica; indivíduo autónomo

ABSTRACT

This paper confronts education with the desideratum of autonomization and it intends to analyze the ambiguities that this confrontation leads and establishes, through the explanation of a counter-hegemonic conception of autonomization. The foundations and the coordinates of a critical pedagogy for the promotion of the autonomous individual that is humanistic, emancipator and transformative, both the reality of the subject and the reality of the context. The narrative structure, in line with that broad purpose, articulates the following dimensions: education and the normativeness of autonomization; the ambiguities of autonomization: divergent ways of making education for autonomy; the transformative and emancipatory empowerment; vector of education as counter-hegemonic autonomization. The conclusion points out the principal lines of the construction of a critical pedagogy of the autonomous individual taken in the areas of individual emancipation and social transformation.

KEYWORDS:
education; autonomization; critical pedagogy; autonomous individual

RESUMEN

Este artículo, enfrentando la educación con el desideratumde la autonomización, pretende analizar las ambigüedades que surgen de dicha confrontación y establecer, mediante la explicitación de una concepción contrahegemónica de la autonomización, las bases y las líneas de una pedagogía crítica y al mismo tiempo humanista, emancipadora y transformadora (tanto de la realidad del sujeto como de la realidad del contexto) de la promoción del individuo autónomoLa estructura narrativa, en línea con dicho propósito, articula las siguientes dimensiones: la educación y la normatividad de la autonomización; las ambigüedades de la autonomización: diferentes sentidos de hacer educación para la autonomía y, por fin, el empoderamiento emancipador y transformador, vector de la educación como autonomización contrahegemónica. La conclusión señala las líneas maestras de la construcción de una pedagogía crítica del individuo autónomo en las vertientes de emancipación individual y transformación social.

PALABRAS CLAVE:
educación; autonomización; pedagogía crítica; individuo autónomo

INTRODUÇÃO

A normatividade do indivíduo autónomo, qual senha de identidade da nossa época, dissemina-se nas diversas esferas de interação social, modela as agendas das políticas sociais e das políticas públicas, é celebrada pelas organizações flexíveis do novo capitalismo e define cada vez mais, impositivamente, as orientações da educação, seja especificamente formal ou escolar, seja mais vaga e amplamente informal e não formal. Essa normatividade, em termos pedagógicos, traduz-se na injunção da autonomização a qual, de acordo com o Zeitgeist, não deve ter nem restrições espaciais, nem fronteiras etárias. Agora, todos somos chamados a ser autónomos, na vida pública e na vida privada, nas situações de inclusão ou exclusão, no trabalho e no lazer, na reforma e na vida ativa, na saúde e na doença, na infância, na juventude, na vida adulta e na idade sénior.

Neste apelo à autonomia poder-se-á escutar a voz moderna da emancipação, dessa voz que desde o sapere aude kantiano tem vindo a incitar a uma vida intelectual própria, a uma vida com critério independente, segura de si e capaz de governar a si mesma, de dar a lei a si mesma e de afirmar-se, com originalidade, no universo incerto e mutável das conjunturas fluídas da atualidade. Sendo certo que podemos ouvir essa interessante voz e nela rever todo um passado de lutas sociais pela dignificação do ser humano, também poderemos ouvir, provavelmente sem surpresas e estremecimentos, a cantilena neoliberal e neoconservadora do "sê autónomo" e do "sê independente", e, portanto, de todo um discurso que se quer apoderar da linguagem ou do vocabulário da autonomia para não só arregimentar os indivíduos à lógica da exclusiva responsabilidade pessoal por tudo o que lhes acontece na vida, como também para melhor os adaptar, segundo uma nova ortopedia pedagógica chamada "autonomização", às exigências e às contingências da novíssima economia.

A ambiguidade insinua-se nos apelos à autonomia, e isso pode ser um problema, não tanto por criar embaraços epistémicos ou dificuldades de compreensão, mas porque pode desvirtuar o sentido humano e humanizante da educação, o qual, nas condições de uma sociedade cada vez mais individualizada e exigente para os indivíduos, só pode consistir em uma autonomização emancipatória, dirigida pelo télos do empoderamento.

O presente artigo, confrontando a educação com o desiderato da autonomização, pretende analisar as ambiguidades a que esse confronto dá hoje origem e estabelecer, mediante a explicitação de uma conceção contra-hegemónica de autonomização, as bases e as coordenadas de uma pedagogia crítica da promoção do indivíduo autónomo que seja simultaneamente humanista, emancipadora e transformadora, tanto da realidade do sujeito quanto da realidade do contexto

A EDUCAÇÃO E A NORMATIVIDADE DA AUTONOMIZAÇÃO

As núpcias da educação com a autonomização são um fenómeno tipicamente moderno, sendo central a esse fenómeno a revalorização da figura do indivíduo. O indivíduo tornou-se, com a modernidade, o principal valor de referência da sociedade e de todas as instituições. Vivemos imersos em sociedades em que pontifica o indivíduo. A fórmula "sociedade de indivíduos", de Norbert Elias, nunca foi tão verdadeira como nos dias de hoje. O indivíduo, mais que a classe social, se dermos crédito ao "individualismo institucionalizado" de Ulrich Beck (2003, p. 340)______.; Beck-Gernsheim, E. (Eds.). La individualización. El individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós, 2003., é agora a "unidade de reprodução do social" e o foco de todas as atenções, da economia à política, do direito à educação. O indivíduo passou a ser a chave de inteligibilidade da sociedade e, por extensão, da própria educação. O caminho da educação tem uma meta bem definida: a potenciação do indivíduo, de suas faculdades e de seus poderes pessoais.

O que era uma verdade axiomática nos alvores da época moderna tornou-se, na "sociedade da modernidade líquida" (Bauman, 2003Bauman, Z. Modernidad líquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2003., p. 29), uma verdadeira obsessão: o indivíduo, e sua potenciação, nomeadamente em termos de autonomia, representa o único e verdadeiramente interessante focus da educação. Estamos perante um imperativo categórico que aspira o trabalho da educação e o transforma em dinâmica de autonomização.

A autonomização, em educação, tem vindo a ganhar o carácter de prescrição, de uma normatividade invasiva e absorvente à qual não parece realista escapar no tempo presente. Essa normatividade parece estar cada vez mais justificada pelo progressivo abandono da sociedade por parte do Estado. Esse abandono, como diz Bauman (2007, p. 175)______. Miedo líquido: la sociedad contemporánea y sus temores. Barcelona: Paidós, 2007., faz com que se deixe "nas mãos dos indivíduos a busca, deteção e prática de soluções individuais a problemas socialmente produzidos". À medida que o Estado descarta responsabilidades, os indivíduos devem assumi-las. Pelo menos é o que por estes dias se lhes diz e no que acabam ou acabarão por acreditar se derem crédito a essa "ideologia de privatização" (Bauman, 2009, p. 109) que vai grassando e multiplicando raízes nesse terreno colonizado tanto pela ordem social neoliberal como pela ordem neoconservadora.

Segundo a ideologia da privatização, é pura perda de tempo preocupar-se com a sociedade, com o bem comum, pois essa preocupação é irrelevante para a felicidade individual e para o êxito na vida. Essa ideologia - que se ajusta como uma luva à sociedade individualizada de nosso tempo - ridiculariza, ainda, o princípio da responsabilidade coletiva pelo bem-estar de cada indivíduo. O que os indivíduos devem fazer, na verdade, é tratar de si mesmos, pensar em si mesmos e enveredar pela dura e solitária procura de "soluções biográficas para problemas sistémicos" (Beck; Beck-Gernsheim, 2003______.; Beck-Gernsheim, E. (Eds.). La individualización. El individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós, 2003., p. 31). Os indivíduos, nessa ideologia, são os únicos responsáveis pela sua situação individual, seja uma situação de reconhecimento e bem-estar, seja uma situação de abandono, humilhação e de grandes carências.

A normatividade da autonomização, em educação, lê-se nesse pano de fundo socioideológico do presente, e é tanto mais categórica quanto se deixa apropriar pela ordem social neoliberal e neoconservadora. Sob as injunções pedagógicas dessa ordem, as pessoas são compelidas a ser autónomas. São pressionadas a cuidar de si mesmas, a aceitar a responsabilidade por tudo o que lhes acontece na vida, inclusive a venenosa e sempre temida exclusão. Quando algo não corre bem, ou quando algum problema não é resolvido pelo indivíduo, isso se deve "a falhas de personalidade ou a fracasso pessoal" (Giroux, 2011Giroux, H. Contra o terror do neoliberalismo. A política para além da era da ganância. Mangualde: Pedago, 2011., p. 31). Se o indivíduo adoece, é porque não foi bom gestor de seu "programa" de saúde. Se não encontra trabalho, ou é porque não fez a formação adequada, ou é porque não é suficientemente bom a dominar a subtileza das entrevistas laborais. Se é temeroso em relação ao futuro, nomeadamente em relação à carreira profissional e à reforma, é porque não está a renovar seu portefólio de competências e a esquecer a necessidade de fazer poupanças para a altura em que estiver a gerir a aposentadoria.

A modelação neoliberal e neoconservadora das políticas sociais (Castel, 2011Castel, R. Les ambiguités de la promotion de l'individu. In: Rosanvallon, P. et al. (Eds.). Refaire société. Paris: Seuil, 2011. p. 13-25., p. 13), particularmente sob instigação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) desde a década de 1980, encarrega-se de dizer isso mesmo às pessoas: não há propriamente salvação pela sociedade. O que há, ou o que deve haver, é uma implicação e uma autorresponsabilização dessas pessoas pelos problemas que enfrentam, sejam estes problemas sociais ou meramente individuais. A suprema virtude do indivíduo, segundo os termos implícitos nessa mensagem, é a independência e a autossuficiência. É o não depender de ninguém na realização de seus planos, é o caminhar sozinho sem apoios nem ajudas.

Esse discurso da independência e da autossuficiência tem, em sua difusão societária, um grande aliado hoje em dia: as organizações de vanguarda da nova economia. À sua maneira, e porventura sem os estados de ânimo das políticas sociais, essas novas organizações afirmam claramente que o que procuram e valorizam em seus colaboradores é a independência e a autossuficiência, únicas capazes de levar esses colaboradores a ultrapassar sozinhos as dificuldades do processo produtivo e a autorresponsabilizar-se pelo andamento e o sucesso das atividades empresariais. Essa "nova cultura do capitalismo", como lhe chama apropriadamente Richard Sennett (2007)Sennett, R. A cultura do novo capitalismo. Lisboa: Relógio d'Água, 2007., é essencialmente uma cultura do indivíduo independente, autodisciplinado, empreendedor e autossuficiente. Trata-se da afirmação de um "homem novo", de uma nova antropologia, em que o que mais prevalece é o orgulho da não dependência.

O eu idealizado pelo novo capitalismo, próprio das organizações flexíveis dos serviços informáticos e dos serviços financeiros, mas também dos serviços bolsistas e da produção e distribuição em escala mundial, é um indivíduo sobre o qual existe o imperativo da proatividade e que se supõe que será capaz de ser o "homem do leme", o "senhor do processo". A autonomia desse eu ficcionado mede-se em termos de autorresponsabilidade, automotivação, autodisciplina e, qual cereja no topo do bolo, de empreendedorismo. Se o eu empreende, então está preparado para controlar e para lidar com as emergências e as contingências das atividades profissionais em um mundo empresarial cada vez mais dominado pela voragem da mudança e da transitoriedade.

Nos modelos pós-fordistas de organização do trabalho, precisamente aqueles que são pensados e aplicados na novíssima economia das organizações flexíveis, exige-se antes de tudo que os indivíduos responsabilizem-se por aquilo que fazem, que tomem as decisões apropriadas à manutenção da produção. A responsabilidade pelo rendimento - e a obrigação de suportar suas consequências - passa, até certo ponto, dos "chefes" para os empregados. O sonho do empregador é que o empregado torne-se diretor de si mesmo, empresário de si mesmo, e isso no próprio posto de trabalho. O reino das organizações empreendedoras, típico da nova economia, interpela os colaboradores como empreendedores: espera que os colaboradores automotivem-se para o trabalho, que tomem iniciativas e que evitem as dependências em relação a seus pares.

Aparentemente, a conceção e a expectativa em relação aos colaboradores é mais humana, pois já não se trata de os reduzir, como retratado em Tempos modernos, de Charles Chaplin, às peças de uma engrenagem em uma cadeia de montagem. Independência, autonomia, responsabilidade, proatividade, empreendedorismo, são palavras que soam bem e parecem dignificar quem dá seu melhor nas organizações pioneiras do novo capitalismo. A realidade, contudo, é bem menos doce e atrativa. Primeiro, porque nem todos os colaboradores estão permanentemente à altura das novíssimas exigências em termos de autonomia, independência e autossuficiência, como certamente estaria um homo faber heroico no seio dessas organizações. Em segundo lugar, porque a tão celebrada autonomia do colaborador é muitas vezes usada para melhor controlá-lo e discipliná-lo no posto de trabalho, sem os inconvenientes do panótico benthiano. Não há forma mais astuta e mais requintada de controlar alguém do que obrigar esse alguém a controlar-se a si mesmo sem vigilantes e sem posto de vigia. Acerta plenamente Richard Sennett (idem, p. 48) quando diz que a "celebração da 'autogestão' não é inocente", pois pode ser colocada ao serviço de fins de comando e controlo nada respeitadores dos trabalhadores, agora rebatizados colaboradores.

Se é verdade que a vida não está fácil no seio das empresas flexíveis da nova economia, em parte porque se sobe demasiado a fasquia da autonomia em relação aos trabalhadores, em relação às funções que têm de desempenhar em um mundo cada vez mais incerto e fugidio às tentativas de controlo administrativo, como aliás vem sendo revelado pelas observações clínicas em psicopatologia do trabalho (Dejours, 2010Dejours, C. Observations cliniques en psychopathologie du travail. Paris: Presses Universitaires de France, 2010.), outro tanto se poderá dizer da vida de todos aqueles que, por terem ficado sem trabalho ou caído em situações de pobreza e exclusão, se veem obrigados a ser autónomos, ativos e proativos para ter acesso a prestações sociais de sobrevivência. Também nesse caso, as exigências em autonomia são elevadas, tanto mais elevadas quanto se trata de populações fragilizadas e vulneráveis, em crise de autoestima. O que se lhes pede, ou exige, é que se ativem para a eventual redefinição do percurso profissional e para a procura responsável de uma ocupação. Também elas, sobretudo elas, precisam ser empreendedoras, devem pagar com sua pessoa a ajuda da sociedade, devem-se implicar, mobilizar, ativar, em uma palavra, ser autónomas. O problema, como diz Robert Castel (2011, p. 23)Castel, R. Les ambiguités de la promotion de l'individu. In: Rosanvallon, P. et al. (Eds.). Refaire société. Paris: Seuil, 2011. p. 13-25., "é que se pede demasiado a indivíduos colocados nas situações mais difíceis e que têm ao seu dispor o menor número de meios".

A autonomia, para ser efetiva, precisa de condições. "Não existe autonomia sem condições de autonomia" (Santos, 2013Santos, B. S. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013., p. 10). Será que a autonomização, "imposta" por meio da educação, pode criar essas condições? Além de não parecer correto e ajustado esperar tudo da educação, como nos lembra Licínio Lima (2012, p. 36)Lima, L. Aprender para ganhar, conhecer para competir. Sobre a subordinação da educação na "sociedade da aprendizagem". São Paulo: Cortez, 2012. em sua recente crítica ao "pedagogismo", importaria saber, para bem da ação, que tipo de autonomização poderia criar certas condições de efetiva autonomia, quer entre os trabalhadores que procuram uma vida decente e digna por meio do trabalho nas organizações da nova economia, quer entre os injustamente chamados "casos sociais", vítimas de persistentes injustiças estruturais, que também aspiram, no meio de tantas dificuldades diárias, a uma vida mais humana, isto é, a uma vida mais valiosa tanto do ponto de vista individual quanto social. A autonomização, mediante o trabalho da educação, não conduz necessariamente a esse desfecho. Há que ter em conta a possibilidade de a autonomização orientar-se por metas nem sempre concordantes com certos propósitos. Isso provoca necessariamente ambigüidades que devem ser objeto de análise.

AS AMBIGUIDADES DA AUTONOMIZAÇÃO: SENTIDOS DIVERGENTES DE FAZER EDUCAÇÃO PARA AUTONOMIA

A autonomia, sem recursos pessoais e proteções sociais, é uma fantasia. Ninguém se torna autónomo nem caminha para elevados padrões de autonomia sem ajudas sociais, nomeadamente em termos de direitos que permitam uma certa independência na vida do dia a dia, e sem um conjunto de recursos ou poderes pessoais que possibilitem a tomada de decisões, o autocontrolo, a autodireção, a automotivação e a automobilização para a ação.

Se é verdade que a autonomia muito depende do apoio do meio social em que estamos inseridos, quanto mais não seja porque carecemos da solidariedade desse meio para existirmos como sujeitos sociais de corpo inteiro, ou seja, como atores de um jogo a quem são dadas condições para nele participar com um mínimo de independência das esgotantes lutas pela sobrevivência, também depende, e não em menor grau, do reforço de nossas capacidades ou poderes de agir com determinação e independência de juízo. A autonomização, por meio da ação educativa ao longo e ao largo da vida, focaliza-se, antes de tudo, na potenciação desses poderes ou capacidades. Seu trabalho, ainda que não se deva circunscrever a essa potenciação, como veremos na próxima secção, passa inevitavelmente por aí. Em seu sentido mais imediato, a autonomização é um processo de reforço das capacidades ou poderes pessoais, quer de ação, quer de decisão ou deliberação. É aquilo a que hoje se chama, com alguma imprecisão, um processo de empowerment, uma ação de capacitação.

O facto de ser um processo de fortalecimento dos poderes pessoais do sujeito, de sua agency, não quer dizer que a autonomização tem uma direção predefinida, uma finalidade imprescritível de ordem natural. A autonomização, enquanto empoderamento ou capacitação, é tudo, menos natural. A meta procurada é socialmente negociada e inscreve-se em diferentes registos políticos. Há uma politicidade da autonomização que tanto a vincula à promoção da humanização, da democracia e da transformação social, como a vincula, sem estados de alma, a um exercício de ajustamento dos indivíduos à ordem social vigente, hoje essencialmente marcada pela injunção de subordinação aos imperativos da economia (idem, p. 49) e pela exigência de responsabilização de cada um pela sua sorte, pelo seu destino (Young, 2011Young, I. M. Responsabilidad por la justicia. Madrid: Morata, 2011., p. 27).

A ordem social vigente, fazendo hegemonia na "nova escola capitalista" (Laval et al., 2011Laval, C.; Vergne, F.; Clément, P.; Dreux, G. La nouvelle école capitaliste. Paris: La Découverte, 2011.) e na educação informal "de uma grande variedade de instituições sociais e de formatos, incluindo desporto e meios de entretenimento e redes de televisão por cabo, igrejas e canais de cultura elitista e popular, como a publicidade" (Giroux, 2011Giroux, H. Contra o terror do neoliberalismo. A política para além da era da ganância. Mangualde: Pedago, 2011., p. 49-50), mais do que as generosas aspirações de humanização, democratização e mudança social, é quem marca a pauta da autonomização hoje em dia.

A autonomização supraditada por essa ordem, de cariz neoliberal e neoconservador, visa certamente reforçar os poderes pessoais dos indivíduos, não ignora que é aí que tem de incidir, mas o objetivo desse fortalecimento, desse acrescento de poder, é tão só para melhorar as capacidades de adaptação a essa ordem hegemónica, nomeadamente em termos de competitividade no mercado e de responsabilização pelos riscos da vida. Os ganhos de competitividade e de responsabilidade definem os contornos dessa autonomização. Por um lado, o que se procura é reforçar aptidões que nos tornem competitivos e performantes no âmbito do mercado, hoje cada vez mais dominado pela concorrência desenfreada, seja nas atividades produtivas empresariais, seja nas atividades consumistas individuais. A intenção, ainda que não declarada, é empoderar para ganhar, para tirar dividendos e ser bem-sucedido, seja no mercado de trabalho, seja nas dinâmicas de compra e venda que invadem, de forma totalitária, todos os campos da existência humana.

Por outro lado, e no que concerne os ganhos de responsabilidade, o que se destaca na autonomização hegemónica é toda uma ação de empoderamento visando garantir que o indivíduo se vai assumir como principal responsável, se não o único, das contingências da vida: inserção profissional, permanência no posto de trabalho, queda na exclusão e na marginalidade, sucesso e insucesso nos estudos, posicionamento no sistema da desigualdade, riqueza e pobreza, saúde e doença, reconhecimento e discriminação. O que importa, verdadeiramente, é que acredite no discurso da responsabilidade individual e que aja em conformidade, tornando-se gestor de si mesmo e de sua carreira, alguém que sente orgulho em trocar a "responsabilidade por outros" pela "responsabilidade por si mesmo" ou "responsabilidade diante de si mesmo" (Bauman, 2009______. El arte de la vida. Barcelona: Paidós, 2009., p. 131).

A fixação, por parte da autonomização, nos ganhos de responsabilidade e de competitividade resulta, antes de mais, da "necessidade" de afeiçoar os indivíduos à crescente individualização ou privatização dos riscos, por meio da qual a responsabilidade de gerir o risco da vida contemporânea passa progressivamente do Estado e da economia para o indivíduo. Essa deslocação, segundo Giroux (2011, p. 115)Giroux, H. Contra o terror do neoliberalismo. A política para além da era da ganância. Mangualde: Pedago, 2011., equivale a uma redistribuição, sendo sinónimo da "emergência do avançado modo de governo liberal, o qual depende da construção de indivíduos que se governam a si próprios e que aceitam que a responsabilidade para melhorar as condições da sua existência está nas suas próprias mãos".

Ademais, essa obsessiva focalização nas mais-valias da responsabilidade e da competitividade mostra que a autonomização prevalecente, sintonizando com a "cultura do novo capitalismo" (Sennett, 2007Sennett, R. A cultura do novo capitalismo. Lisboa: Relógio d'Água, 2007.) e com as demandas das empresas pós-fordistas, não deixa por mãos alheias o ajustamento funcional dos indivíduos aos imperativos da economia e que leva a sério sua otimização em termos de proatividade na tomada de decisões, de autodisciplina sem dependências, de automotivação para o trabalho e de mentalidade empresarial em ordem a facilitar, à luz do referencial do homo oeconomicus, as perspetivas de acumulação de valores materiais, tanto por parte dos colaboradores individualmente considerados, como por parte de seus empregadores.

A autonomização que por estes dias se vai impondo, ou que ganha mais notoriedade, configura-se, pois, como um processo simultaneamente individualista, utilitarista e funcionalista. Individualista, porque o empoderamento procurado focaliza-se em formas de individualismo competitivo e autocentrado em ordem à prossecução de objetivos e interesses meramente privados. Utilitarista, porque o horizonte da autonomização é a vantagem competitiva que ajuda a subir na vida e nos rankings do poder e do dinheiro. Funcionalista, por fim, porque se coloca ao serviço do melhoramento das cotas de adaptação ao sistema capitalista emergente, chamado nova economia.

A forma de fazer educação para a autonomia, entendida como autonomização, não tem que seguir, necessariamente, esse guião. Se é verdade que apresenta aspetos positivos, como a capacitação para ser responsável por si mesmo e minimamente competitivo no mercado de trabalho, o que não deixa de ser importante para ganhar a vida e elevar a autoestima, também é certo que, ao sobrevalorizar a obsessiva potenciação dessas vertentes da educação-formação, acaba por esquecer que a autonomização é muito mais do que isso. É essencialmente uma reafirmação dos valores do autogoverno, da expansão da subjetividade reflexiva (Castoriadis, 2005Castoriadis, C. Une société à la dérive. Entetiens et débats 1974-1997. Paris: Seuil, 2005., p. 19) e bem assim dos poderes pessoais que estão na base do "Ser Mais" (Freire, 1975Freire, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1975., p. 58).

Caso se queira rever nesse sentido mais amplo, e certamente contra-hegemónico, a educação enquanto autonomização precisa pautar-se por um outro tipo de empowerment. Um empowerment emancipatório e transformador, não apenas do sujeito-educando ao longo e ao largo da vida, mas eventualmente, e também, dos contextos que comprometem o desabrochamento e a efetividade das capacidades de autogoverno dos indivíduos. Ou seja, um empowerment que conjugue o reforço de

poderes individuais com o engajamento na mudança de estruturas sociais que subvertem esses poderes. Assim, ao individualismo e ao economicismo do empowerment dominante contrapõe-se uma perspetiva que, articulando vertente pessoal e vertente social, poderá guiar de maneira mais profícua a educação enquanto autonomização.

O EMPOWERMENT EMANCIPATÓRIO E TRANSFORMADOR: VETOR DA EDUCAÇÃO ENQUANTO AUTONOMIZAÇÃO CONTRA-HEGEMÓNICA

Um amplo sentido de autonomização, na medida em que prioriza o reforço de poderes necessários ao governo de si mesmo e à participação ou intervenção na alteração das circunstâncias que comprometem esse autogoverno, não se coaduna, de maneira nenhuma, com visões restritivas de empowerment. Apenas um empowerment integral, plenamente assumido na diversidade de suas dimensões individuais, sociais e políticas, poderá guiar a autonomização, enquanto tarefa da educação, pelo caminho contra-hegemónico da capacitação que gera emancipação individual e transformação social, ambas necessárias a um projeto de efetiva autonomia ao longo e ao largo da vida.

O que se afigura premente, diante de lógicas aviltantes do ser humano, é vincular a autonomização a um empowerment emancipatório e transformador, recuperando o sentido que essa noção adquiriu nos anos 1970 no âmbito de organizações feministas e de movimentos populares, tanto na Europa como no continente americano e na Ásia do Sul, altura em que o empowerment foi definido como um processo por meio do qual os atores sociais "desenvolvem uma 'consciência social' ou uma 'consciência crítica' permitindo-lhes desenvolver um 'poder interior' e adquirir capacidades de ação, um poder agir simultaneamente pessoal e coletivo, inscrevendo-se numa perspetiva de mudança social" (Bacqué; Biewener, 2013Bacqué, M.-H.; Biewener, C. L'empowerment, une pratique émancipatrice. Paris: La Découverte, 2013., p. 8).

A utilização da noção de empowerment, quando se pretende definir um sentido contra-hegemónico da autonomização, deve ser cautelosa, pois essa noção presta-se a várias interpretações. É verdade que o empowerment designa um processo de aquisição de poder e de reforço da capacidade de agir, tanto dos indivíduos quanto das coletividades, e que esse processo é fundamental para que esses indivíduos ou grupos governem melhor suas vidas. No entanto, desde sua emergência, nos anos 1970, a noção de empowerment se vê encoberta por um espesso manto de significações desencontradas, remetendo umas para quadros semânticos neoliberais e neoconservadores, e outras para quadros radicais e social-liberais.

À luz da sistematização de Bacqué e Biewener (idem, p. 15-17), e utilizando seu ilustrativo vocabulário, seria conveniente perspetivar o empowerment em três tipos ou modelos: o radical, por corresponder à prática de organizações e movimentos que assumem o empowerment como aquisição de poder visando à emancipação e à transformação social; o social-liberal, característico do pensamento reformista do Estado social; e o neoliberal, hoje dominante nos discursos e nas práticas da governamentalidade neoliberal.

O empowerment, no modelo radical, é simultaneamente um processo individual e coletivo cujo objetivo é ajudar os sujeitos a conduzir a vida e também a emancipar-se, sendo importante, na linha das teorias de transformação social de Paulo Freire, ou dos ramos mais radicais do movimento feminista, a realização de um processo ou dinâmica de "conscientização" enquanto parte de um processo de ação: "reflete-se para agir, e esta real capacidade de ação é fundamental para uma intervenção de empowerment" (Pinto, 2013Pinto, C. Uma prática de empowerment com adultos idosos. In: Carvalho, M. (Coord.). Serviço social no envelhecimento. Lisboa: Pactor, 2013. p. 49-65., p. 53). Assente em uma consciência da opressão social, das desigualdades na distribuição do poder e dos recursos, essa conceção de empowerment visa permitir aos indivíduos e aos grupos aumentar seu poder de agir e desenvolver competências para ganhar influência coletiva e política e para pesar na repartição de recursos sociais. Aqui, conjuga-se a tomada de consciência crítica com o engajamento crítico e político dos indivíduos e dos grupos.

O empowerment radical, visto em sua integralidade, articula três dimensões: a dimensão individual ou interior, designando o processo que permite a cada indivíduo desenvolver uma consciência crítica e sua capacidade de agir, implicando, por esse facto, a construção de uma imagem positiva de si, a aquisição de conhecimentos e competências que favoreçam a compreensão crítica do meio, o desenvolvimento de recursos individuais e a elaboração de estratégias para se atingirem objetivos pessoais e coletivos; a dimensão interpessoal, organizacional ou coletiva, designando o desenvolvimento da capacidade de agir em colaboração e em concertação sobre pessoas e recursos do meio envolvente; enfim, a dimensão política ou social, a qual coloca a questão da transformação da sociedade em seu conjunto por meio da ação coletiva.

O empowerment social-liberal, correspondendo a visões reformistas quer da democracia, quer da regulação e da gestão de bens públicos, não vai tão longe na afirmação do caráter político desse processo, pelo menos não tão longe quanto é desejado pelo empowerment defendido por organizações feministas e movimentos populares. O empowerment social-liberal valoriza certamente o reforço dos poderes do sujeito, em particular o poder de fazer escolhas ou de fazer opções de vida, mas não chega a questionar as dimensões estruturais das desigualdades que tolhem muitas oportunidades. A dimensão social e política do empowerment é considerada apenas na "única perspetiva de tornar as instituições mais representativas e de estimular a reforma das políticas públicas, ajudando à construção de coligações em torno deste compromisso" (Bacqué; Biewener, 2013Bacqué, M.-H.; Biewener, C. L'empowerment, une pratique émancipatrice. Paris: La Découverte, 2013., p. 94). Assim, mesmo que incida na capacitação do sujeito para formas mais democráticas de regulação dos bens públicos, valorizando o capital social, a responsabilidade, a inclusão, a cidadania e a participação, o empowerment social-liberal é timorato do ponto de vista político e atenua significativamente o sentido radical do empowerment integral ou multidimensional, nomeadamente o questionamento dos diferenciais de poder que estão na base do desempowering de diversos grupos vulneráveis.

A despolitização do empowerment, e a consequente neutralização de seu alcance radical, é particularmente visível no empowerment neoliberal. Como projeto de reforço de poderes ou capacidades, esse empowerment é estritamente individual. Consiste, antes de tudo, em ações de responsabilização dos indivíduos, orientadas, em última instância, para o self-help (idem, p. 45), ou seja, para o cuidado e o socorro de si mesmo. O empowerment, nesse modelo, remete para indivíduos que devem tratar de si mesmos: espera-se que os indivíduos, reforçados em sua capacidade de agir, insiram-se no mundo do trabalho e do consumo. Estar empowered significa ter as capacidades de conduzir sua vida, de ser empresário de si mesmo, fazendo as escolhas apropriadas para surfar a onda das oportunidades. A promessa emancipadora do empowerment é aqui colocada ao serviço de um projeto estritamente pessoal focalizado no aumento do bem-estar material em uma economia de mercado competitiva. O poder, que constitui a raíz do empowerment, remete para a liberdade individual, a livre escolha, as oportunidades individuais, que são, antes de tudo, as do mercado. A questão da emancipação individual e da transformação social, características incontornáveis do empowerment radical ou integral, não é aí colocada. Importa empoderar para ganhar as batalhas da concorrência, não para redistribuir recursos e transformar as estruturas que geram injustiças e criam obstáculos ao autogoverno tanto dos indivíduos quanto das suas comunidades.

Assim, não é possível caminhar nem colocar as bases de uma autonomização contra-hegemónica, pois esta, para cumprir seu desiderato, precisa ser emancipadora e transformadora. Emancipadora, porque centrada no reforço da liberdade do sujeito, na capacidade de "ser mais", e não de "ter mais". Transformadora, porque não há emancipação sem investimento na transformação do mundo social, das estruturas que impedem um verdadeiro projeto de autonomia individual e social, pois as duas, como nos diz Castoriadis (2005, p. 17)Castoriadis, C. Une société à la dérive. Entetiens et débats 1974-1997. Paris: Seuil, 2005., são indissociáveis: não há indivíduo autônomo sem sociedade autónoma, e vice-versa.

A essa luz, que podemos esperar de um projeto bem conduzido de educação do indivíduo autónomo, isto é, de uma autonomização contra-hegemónica? A autonomização contra-hegemónica, guiada pela perspetiva do empowerment emancipatório e transformador, promove o desenvolvimento de capacidades individuais, como a leitura crítica da realidade envolvente ou as destrezas participativas, e articula esse desenvolvimento com o envolvimento em mudanças sociais que eliminem os constrangimentos estruturais à autonomia dos indivíduos, como a pobreza, as desigualdades, as discriminações e as exclusões. Isso significa atribuir dimensão social e política ao empowerment por forma a modificar agendas e a provocar transformações das políticas. Essa autonomização, inspirada em um empowerment radical ou integral, seria indissociável da tomada de consciência crítica do que limita a autonomia, do reforço da autoestima ou da melhoria da imagem de si mesmo, do desenvolvimento das agencies do sujeito individual e do envolvimento, com outros sujeitos (dimensão coletiva da autonomização), na modificação dos elementos do contexto que comprometem ou subvertem a possibilidade de ser autónomo, ou seja, e segundo Bauman (2003, p. 57)Bauman, Z. Modernidad líquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2003., que impedem "transformar a autonomia individual 'de jure' em autonomia 'de facto'".

A autonomização que se rege por esses cânones tem muito em que se inspirar em termos de práticas pedagógicas. O caminho não está definitivamente traçado, nem é suscetível de se traduzir em receitas, porém, há trabalhos que podem ajudar a realizar essa autonomização contra-hegemónica, como Femmes, éducation et autonomisation: voies menant à l'autonomie, publicado pelo Instituto da UNESCO para a Educação, em 1995, ou ainda as múltiplas referências práticas que nos são oferecidas pela obra, já citada, de Bacqué e Biewener (2013)Bacqué, M.-H.; Biewener, C. L'empowerment, une pratique émancipatrice. Paris: La Découverte, 2013., em particular as citações de trabalhos de educadoras feministas.

O que gostaríamos de sublinhar, mais além dessas referências, é que a autonomização contra-hegemónica é absolutamente fundamental para estabelecer as bases de uma pedagogia crítica do indivíduo autónomo, uma vez que o desígnio da autonomia, no momento presente, corre o risco de ser capturado, apropriado e instrumentalizado por agendas educativas que têm muito pouco de educativo em sentido humanista.

CONCLUINDO: PARA UMA PEDAGOGIA CRÍTICA DA PROMOÇÃO DO INDIVÍDUO AUTÓNOMO

A educação do indivíduo autónomo, sem a retaguarda de uma pedagogia crítica, atenta ao estreitamento humano desse processo, pode servir a muitos interesses, mas não certamente aos da "promoção da humanização dos seres humanos, da compreensão empática e crítica da nossa condição, da transformação social e da revitalização da democracia" (Lima, 2012Lima, L. Aprender para ganhar, conhecer para competir. Sobre a subordinação da educação na "sociedade da aprendizagem". São Paulo: Cortez, 2012., p. 26).

Uma pedagogia com dimensão crítica é hoje em dia necessária para desmontar as inconsistências da "ideologia da autonomia" (Santos, 2013Santos, B. S. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013., p. 10) que se vai apoderando da educação com intenções de autonomização, uma vez que semelhante visão ideológica da educação assenta na insustentável leveza de um eu autossuficiente, livre, desvinculado e, às vezes, heroico, acima das circunstâncias e das contingências da vida, planando sobre as condições sociais, económicas e políticas que viabilizam, quando são sinérgicas e positivas, o exercício quotidiano da autonomia.

A pedagogia crítica da promoção do indivíduo autónomo, em suas bases ou em seus princípios, precisa construir-se à luz da autonomização contra-hegemónica. Só a autonomização contra-hegemónica dá alento à pedagogia do indivíduo autônomo - e também orientação - para se aplicar a munir os cidadãos de capacidades críticas, diferentes modelos de alfabetização, conhecimentos e competências que lhes permitirão ler o mundo de forma crítica e ainda participar, colegialmente, em sua formação e em seu governo.

Em contrapartida, é ainda sob o influxo e a exemplaridade da autonomização contra-hegemónica que a pedagogia crítica da promoção do indivíduo autônomo reconhecerá a importância de incidir, não apenas nos indivíduos isoladamente, mas nas comunidades onde se inscrevem, pois, como nos diz Paulo Freire (1975, p. 37)Freire, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1975., "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão".

É a partir desse sentido comunitário e solidário da educação emancipadora que a pedagogia crítica da autonomização poderá assumir o derradeiro desafio: mobilizar e incitar à modificação das estruturas que impedem a potenciação e a efetivação do autogoverno dos indivíduos e das comunidades. Esse último passo é decisivo, ou então a promoção da autonomia por meio da educação não passará de flatus vocis, isto é, de retórica vazia e inconsequente.

Referências

  • Bacqué, M.-H.; Biewener, C. L'empowerment, une pratique émancipatrice Paris: La Découverte, 2013.
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  • ______. Miedo líquido: la sociedad contemporánea y sus temores. Barcelona: Paidós, 2007.
  • ______. El arte de la vida. Barcelona: Paidós, 2009.
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  • Young, I. M. Responsabilidad por la justicia Madrid: Morata, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    Jan 2014
  • Aceito
    Jun 2014
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