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Apropriação de práticas de letramento escolares por estudantes da Educação de Jovens e Adultos* * A pesquisa que subsidia a reflexão proposta neste artigo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

LA APROPIACIÓN DE LAS PRÁCTICAS DE LITERACIA ESCOLARES POR LOS ESTUDIANTES DE LA EDUCACIÓN DE JÓVENES Y ADULTOS

RESUMO

Este artigo visa contribuir com o debate a respeito dos modos como jovens e adultos estudantes da educação básica se apropriam das práticas de letramento que se constituem na abordagem escolar da leitura e da escrita. Focalizando um episódio extraído do material empírico produzido no acompanhamento de uma turma de educação de jovens e adultos em curso no ensino fundamental de uma escola pública de um grande centro urbano, analisamos os posicionamentos assumidos discursivamente pelos alunos, nas atividades de leitura e de escrita das quais participavam na sala de aula. Essa análise indica que os estudantes, como sujeitos de cultura e de conhecimento, mobilizam seus saberes relacionados aos usos da língua escrita para significar as práticas letradas escolares. A compreensão desses saberes nos auxilia a perceber a dimensão sociocultural das situações de ensino da leitura e da escrita e a necessidade de elas serem construídas baseadas no diálogo com os processos de aprender dos educandos.

PALAVRAS-CHAVE
letramento; apropriação de práticas; educação de jovens e adultos

RESUMEN

Este artículo contribuye al debate sobre las formas como estudiantes jóvenes y adultos del nivel básico se apropian de prácticas de literacia que se constituyen nos processos de ensino e de aprendizaje escolares. Focalizando un episodio extraído del material empírico producido durante el acompañamiento de una clase de educación fundamental del programa de la educación de jóvenes y adultos de una escuela pública en un gran centro urbano, analizamos los posicionamientos asumidos por los alumnos en las actividades de lectura y escrita de las que habían participado en sala de aula. Este análisis indica que los estudiantes -como sujetos de cultura y conocimiento- utilizan sus saberes relacionados a los usos del idioma escrito para significar las prácticas letradas escolares. La comprensión de dichos saberes nos auxilia a percibir la dimensión sociocultural de las situaciones de enseñanza de la lectura y la escrita y la necesidad de que sean construidas a partir de un diálogo con los procesos de aprendizaje de los educandos.

PALABRAS CLAVE
literacia; apropiación de prácticas; educación de jóvenes y adultos

ABSTRACT

This paper discusses the various different ways that youth and adult students appropriate literacy practices, usually built on school approaches for reading and writing. We focus our study on a group of youth and adult education students of elementary school level in a public school in a large urban center. Empirical material was produced in the classroom environment. We selected an event to analyze the positions assumed discursively by the students in reading and writing activities. The results showed that students, as subjects of culture and knowledge, mobilize their understanding of the written language in order to give meanings to school literacy practices. Thus, the comprehension of their understandings help us notice the importance of the socio-cultural dimensions of the teaching of writing and reading. Additionally, it also helps to rebuild the teaching situations based on dialogue with the student learning process itself.

KEYWORDS
literacy; appropriation of practices; youth and adult education

Pesquisas no campo da Educação de Pessoas Jovens e Adultas (EJA) indicam que a análise das posições assumidas por seus sujeitos nas situações escolares de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita auxiliam na compreensão dos significados que são atribuídos às práticas letradas ensinadas na escola (Faria, 2007Faria, J. B. Relações entre práticas de numeramento mobilizadas e em constituição nas interações entre os sujeitos da educação de jovens e adultos. 2007. 335f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.;Fonseca, 2009______. Conceito(s) de numeramento e relações com o letramento. In: Lopes, C. E.; Nacarato, A. (Orgs.). Educação matemática, leitura e escrita: armadilhas, utopias e realidade. Campinas: Mercado das Letras, 2009.; Kalman, 2009______. O acesso à cultura escrita: a participação social e a apropriação de conhecimentos em eventos cotidianos de leitura e escrita. In: Oliveira, I.; Paiva, J. (Orgs.). Educação de jovens e adultos. Petrópolis: DP et Alli, 2009.; Kleiman, 1995Kleiman, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: ______. (Org.). Os significados do letramento: uma perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.; Lúcio, 2007Lúcio, I. Os significados da alfabetização e do letramento para adultos alfabetizados. 2007. 258f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.; Oliveira, 2001Oliveira, M. K. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. In: Ribeiro, V. M. (Org.). Educação de jovens e adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Ação Educativa, 2001. (Coleção Leituras no Brasil); Ribeiro,1999Ribeiro, V. M. Alfabetismo e atitudes: uma pesquisa com jovens e adultos. Campinas: Papirus; Ação Educativa, 1999.). Esses estudos sugerem que o aprendizado de práticas letradas não se restringe à aquisição de um conjunto de habilidades neutras e que esse processo é permeado por valores construídos socialmente. Nesse sentido, colocam em xeque a crença na existência de uma única maneira de significar as aprendizagens escolares - geralmente a prevista pela intenção didática das propostas pedagógicas - e ressaltam a necessidade de se compreender melhor a multiplicidade de formas de conhecer que emergem no cotidiano da sala de aula.

Com o objetivo de contribuir para a proposição de ações educativas sustentadas pelo diálogo com as (e pelo respeito às) práticas sociais dos sujeitos envolvidos, a investigação que subsidia este artigo buscou analisar os modos como os alunos e as alunas da EJA apropriam-se das práticas de leitura e de escrita escolares. Tais práticas foram flagradas nas interlocuções entre estudantes e professora de uma turma correspondente a uma etapa intermediária do ensino fundamental, em uma escola pública que oferece a modalidade EJA em seu período noturno.

Para operacionalizar a análise que aqui apresentamos, mobilizamos os conceitos de práticas de letramento e de apropriação. Tais construtos teóricos nos deram suporte no desenvolvimento da reflexão a respeito das posições assumidas pelos educandos em relação às práticas de leitura e escrita forjadas no contexto escolar, considerando a dimensão sociocultural de tais práticas. Essa busca de identificar valores, estratégias e conhecimentos envolvidos na apropriação de práticas de letramento é inspirada pela intenção de focalizar as alunas e os alunos da EJA como sujeitos de conhecimento e de cultura nos espaços da comunicação humana construídos na escola.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A fundamentação teórica que dá suporte a este trabalho foi construída a partir do confronto entre as possibilidades analíticas do material empírico produzido e os estudos no campo do letramento e da EJA. Nesse exercício, o conceito de práticas de letramento mostrou-se fundamental para a análise dos modos como os estudantes significam as atividades escolares de leitura e de escrita.

A adoção de tal conceito, na perspectiva pela qual optamos tomá-lo, tem como um de seus determinantes históricos a necessidade de se estudar o fenômeno da leitura e da escrita para além da análise das capacidades individuais das pessoas em relação a esse uso (Rojo, 2009______. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.). Em vez de aferir o grau de proficiência dos sujeitos em relação a certas habilidades letradas, esse construto teórico busca compreender os usos da leitura e da escrita em sua dimensão sociocultural, marcada pelas contingências contextuais e pelas relações de poder. Considerando que buscamos perceber como os estudantes participam de práticas sociais - nesse caso, as atividades escolares - que envolvem o uso da língua escrita, mobilizamos o conceito de práticas de letramento como sendo práticas de leitura e de escrita plurais, social e culturalmente determinadas, em que os significados específicos que assumem para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que se forjam (Kleiman, 1995Kleiman, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: ______. (Org.). Os significados do letramento: uma perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.). A esse conceito de práticas de letramento está subjacente uma compreensão da língua como fenômeno social, que se concretiza na interação verbal em uma dada situação comunicativa, compreensão esta inspirada nos estudos de Bakhtin (1996)Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 1996..

A perspectiva analítica que adotamos está entre aquelas que Street (1984)Street, B. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. identifica com um "modelo ideológico de letramento", em contraposição a abordagens que adotariam um "modelo autônomo de letramento". O modelo autônomo, segundo Street, postula um único tipo de uso da leitura e da escrita como sendo universal, desconsiderando seu contexto de produção. Entre os problemas apresentados por essa corrente teórica estão a relação de dicotomia estabelecida entre a oralidade e a escrita e a consideração de uma vinculação direta entre a aquisição da escrita e o desenvolvimento do pensamento abstrato e lógico. De acordo com esse modelo, enquanto a escrita em si mesma é caracterizada por ser planejada, formal e autônoma em relação à situação social e seu mundo de referência, a oralidade é definida por ser atrelada ao contexto comunicacional e por seu caráter informal e pouco planejado (Kleiman, 1995Kleiman, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: ______. (Org.). Os significados do letramento: uma perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.).

Por sua vez, investigações que se orientam pelo "modelo ideológico" consideram que as relações entre as duas modalidades de uso da língua (oral e escrita) dependerão do contexto social em que se forjam. Ademais, esses estudos postulam que as consequências do uso da escrita que o modelo autônomo supõe universais e, por via de regra, benéficas, seriam decorrentes, antes, de um tipo de letramento (o escolar), o qual privilegia o trabalho com o texto escrito, independentemente de contextos sociais particulares, e valoriza não só o saber, mas igualmente o saber dizer (Oliveira, 2001Oliveira, M. K. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. In: Ribeiro, V. M. (Org.). Educação de jovens e adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Ação Educativa, 2001. (Coleção Leituras no Brasil)).

Dada a natureza e os princípios deste estudo, o conceito de práticas de letramento restrito à mobilização de um conjunto de habilidades para atender às demandas apresentadas pelas diversas situações sociais não seria adequado ao exercício analítico a que nos propomos. Essa perspectiva do conceito de práticas de letramento tende a vincular diretamente a aquisição dessas habilidades a consequências positivas, como o "desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso profissional, cidadania" (Soares, 2006Soares, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 75). Além disso, o conceito de práticas de letramento discutido apenas como habilidades obscurece

os modos pelos quais a escrita é usada para medir a adequação da comunicação do indivíduo (se padrão ou desviante), os papéis particulares associados aos que reivindicam o direito de nomear o padrão e julgar os desviantes e os modos pelos quais os escreventes se apropriam das formas padrão para comunicar uma mensagem de forma persuasiva. (Marcuschi, 2001Marcuschi, L. A. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e eventos comunicativos. In: Signorini, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. 1. ed. Campinas: Mercado de Letras, 2001., p. 40)

Nesse sentido, compreendemos que as práticas letradas são geradas por processos sociais mais amplos que podem "reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais" (Soares, 2006Soares, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 75).

No campo da EJA, o conceito de práticas de letramento tem permitido refletir sobre os conhecimentos, os valores e as habilidades envolvidas na configuração das práticas de leitura e de escrita vivenciadas por jovens e adultos pouco escolarizados. Investigações como as de Marinho (1992)Marinho, M. Os usos da escrita no cotidiano. Leitura: Teoria & Prática, Campinas: ALB, v. 20, p. 17-33, 1992., Ribeiro (1999)Ribeiro, V. M. Alfabetismo e atitudes: uma pesquisa com jovens e adultos. Campinas: Papirus; Ação Educativa, 1999., Galvão (2002)Galvão, A. M. O. Oralidade, memorização e a mediação do outro: práticas de letramento entre sujeitos com baixos níveis de escolarização: o caso do cordel (1930-1950). Educação e Sociedade, Campinas: CEDES, v. 23, n. 81, p. 115-142, dez. 2002. e Kalman (2004)Kalman, J. El estudio de la comunidad como un espacio para leer y escribir. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: ANPEd; Campinas: Autores Associados, n. 26, p. 5-28, maio/ago. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782004000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 7 jul. 2012.
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reiteram que esses sujeitos, quando decidem iniciar ou retomar sua trajetória escolar, já construíram, mesmo que não alfabetizados, modos de se relacionar com as demandas sociais de leitura e de escrita, aprendidos nas diversas instâncias da vida cultural nas quais se envolvem.

Kalman (idem), por exemplo, ao investigar o uso da língua escrita em contextos não escolares por mulheres de baixa ou nenhuma escolaridade na cidade do México, identifica e analisa diversas práticas locais de letramento, marcadas, principalmente, pela relação estreita entre oralidade e escrita. Segundo seu estudo, a escrita de "via pública" (outdoors, cartazes, placas etc.), por exemplo, transita pela oralidade dos habitantes e é comentada e praticada pelos membros da comunidade. Na igreja, apesar de os fiéis receberem folhetos que guiam a cerimônia, a oralidade é a principal forma de apropriação da doutrina religiosa. Em relação à leitura de cartas, para muitos da comunidade, o acesso ao seu conteúdo se faz por meio da mediação de outro leitor (idem). Para a autora, a pesquisa de situações comunicativas não escolares que envolvem o uso da leitura e da escrita permite "conhecer as condições materiais e sociais que favorecem o acesso a cultura escrita da população" (idem, p. 12, tradução nossa) e também conhecer os usos da leitura e da escrita de um grupo social.

Marinho (1992)Marinho, M. Os usos da escrita no cotidiano. Leitura: Teoria & Prática, Campinas: ALB, v. 20, p. 17-33, 1992., quando reflete sobre a função social da escrita para sujeitos das camadas populares, identifica diversas práticas de leitura, relacionadas tanto a funções comunicativas e informativas como à aprendizagem e à pedagogização do cotidiano. Segundo a autora, a compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos à escrita e à leitura demanda a análise dos espaços sociais diversos - o universo do trabalho, da religião ou da casa, por exemplo -, em que se forjam as práticas letradas, pois eles determinam tanto os conteúdos como as funções nas formas de ler e de escrever. Seu estudo questiona, sobretudo, a existência de um significado estático e predeterminado de um texto e indica a necessidade de estudar as condições sociais de uso da escrita, que é dada pelos "tipos de textos, formas de leitura, suportes de impressão, que se articulam com instituições e grupos sociais" (idem, p. 21).

Por sua vez, a pesquisa de Ribeiro (1999)Ribeiro, V. M. Alfabetismo e atitudes: uma pesquisa com jovens e adultos. Campinas: Papirus; Ação Educativa, 1999.sobre as práticas de leitura e de escrita de moradores de São Paulo analisa a intensidade e o tipo de uso que pessoas com diferentes habilidades letradas declaram fazer da leitura e da escrita. Segundo a autora, sujeitos que apresentaram grau baixo e médio-baixo de alfabetismo1 1 Segundo a autora, grau baixo de alfabetismo corresponde a pessoas cujas práticas de leitura e escrita se restringem quase exclusivamente ao campo profissional, limitando a forma de registro simples. O instrumento principal de comunicação e aprendizagem é a oralidade. Os modos de aprender baseiam-se na observação e experimentação. No grau médio-baixo, há maior exigência quanto à capacidade comunicativa, particularmente por meio da linguagem oral. participam de práticas letradas conformadas por leituras - da Bíblia e de poesias, por exemplo - em que o texto escrito representa um ponto de partida para a evocação de outras experiências. As pessoas desse grupo recorrem à oralidade quando necessitam buscar informações e/ou aprender algo novo. A autora destaca que tais práticas sociais possibilitam a construção de conhecimentos, de valores e de habilidades que podem divergir daqueles prestigiados e trabalhados nas práticas de leitura e de escrita construídas na escola. Geralmente, as tarefas escolares privilegiam a análise do texto em si mesmo, concebido como fonte primeira de aprendizados e de informações, a identificação de informações contidas no corpus do texto, e a reflexão a partir do conteúdo veiculado, sem necessariamente estabelecer relações com as vivências pessoais dos sujeitos.

Esses estudos nos auxiliam a, analisando as posições assumidas pelos alunos e pelas alunas da EJA quando protagonizam práticas de leitura e de escrita, (re)conhecê-los como sujeitos de culturas e de conhecimentos. Isso é importante tanto para qualificar o desenvolvimento de análises sobre os impactos da escolarização em relação às práticas de letramento desses sujeitos quanto para subsidiar investigações que buscam compreender as estratégias utilizadas por esses estudantes para se apropriar das práticas de leitura e de escrita escolares que vivenciam (Fonseca, 2001Fonseca, M. C. F. Discurso, memória e inclusão:reminiscências da matemática escolar de alunos adultos do ensino fundamental. 2001. 446f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.; Pereira, 2002Pereira, M. Um estudo sobre um processo de construção de letramento na educação de jovens e adultos. 2002. 181f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.; Ribeiro, 1999Ribeiro, V. M. Alfabetismo e atitudes: uma pesquisa com jovens e adultos. Campinas: Papirus; Ação Educativa, 1999.).

Em nossa intenção de analisar como os estudantes da EJA apropriam-sedas práticas de leitura e de escrita escolares, mobilizamos, também, o conceito de apropriação segundo a perspectiva teórica de autores como Bakhtin (1996)Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 1996., Smolka (2000)Smolka, A. L. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes, Campinas: CEDES, ano XX, n. 50, p. 26-40, abr. 2000. e Kalman (2009)______. O acesso à cultura escrita: a participação social e a apropriação de conhecimentos em eventos cotidianos de leitura e escrita. In: Oliveira, I.; Paiva, J. (Orgs.). Educação de jovens e adultos. Petrópolis: DP et Alli, 2009.. Esses estudiosos partem da premissa comum de que, se por um lado as relações nas quais os indivíduos estão envolvidos constituem fatores importantes na explicação dos seus modos de ser, de relacionar e de conhecer, por outro, esses sujeitos desempenham um papel ativo em seus processos de compreensão do mundo. Nesse sentido, as práticas de leitura e de escrita são vistas como atividades sociais, e a investigação das formas pelas quais os sujeitos apropriam-se delas considera as particularidades de seu contexto de uso, os propósitos de quem usa, os efeitos esperados, a posição do leitor ante a outros leitores, as ideias e os significados que norteiam a participação de cada um e as concepções que as pessoas possuem sobre si mesmas (idem).

Consideramos, assim como Smolka (2000)Smolka, A. L. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes, Campinas: CEDES, ano XX, n. 50, p. 26-40, abr. 2000., que a apropriação é uma resposta ativa do sujeito à interação social, e não uma reprodução mecânica. Esse conceito de apropriação é decisivo para o modo como consideramos a aprendizagem e a compreensão. Compartilhamos da ideia defendida por Bakhtin (1996)Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 1996., de que a aprendizagem implica apropriação de discursos, processo em que os sujeitos convertem as palavras alheias em próprias, opondo à palavra do locutor uma contra palavra:

compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela,encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. (idem, p. 127)

Em seu artigo "O (im)próprio e (im)pertinente na apropriação das práticas sociais", Smolka (2000)Smolka, A. L. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes, Campinas: CEDES, ano XX, n. 50, p. 26-40, abr. 2000. chama a atenção para o fato de que a ideia de apropriação com que trabalha não se restringe à avaliação do desempenho dos sujeitos, tendo em vista o que é considerado adequado ou pertinente a determinada situação social. Ao contrário, o termo apropriação relaciona-se aos "diferentes modos de participação das pessoas nas práticas sociais, diferentes possibilidades de produção de sentidos"(idem, p. 13). Assim também, ao analisarmos as formas pelas quais os alunos e as alunas da EJA apropriam-se das práticas de letramento escolares, consideramos que "tornar próprio, tornar seu, não significa exatamente e nem sempre coincide com tornar adequado às expectativas sociais" (idem, ibidem). Por isso, não trataremos aqui de julgar em que medida a apropriação que alunos e alunas da EJA fazem das práticas de letramento escolares os leva a exibir comportamentos esperados e socialmente valorizados. Vamos focalizar, neste trabalho, modos de apropriação dessas práticas assumidos por esses sujeitos analisando o que tais modos de apropriação revelam da relação dessas pessoas com a cultura escrita, de suas expectativas em relação à escolarização, de suas demandas, suas críticas, seus desejos e suas propostas para a ação pedagógica.

PRODUÇÃO DO MATERIAL EMPÍRICO

A interação que trazemos para análise neste artigo foi extraída do material empírico produzido em uma pesquisa realizada em uma escola pública, por nós selecionada como campo de investigação porque seu projeto pedagógico explicitava a intenção de oportunizar aos estudantes jovens e adultos experiências significativas de leitura e escrita. Apostávamos, assim, que uma instituição com esse perfil criaria, no processo de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita, maiores possibilidades para que os alunos demarcassem seus posicionamentos e, por conseguinte, as relações que constroem com as práticas de letramento escolares vivenciadas.

Escolhemos uma turma que cursava o nível intermediário do ensino fundamental, porque nos interessava contemplar as práticas de letramento escolares vivenciadas por estudantes que, tendo já certo domínio da tecnologia da leitura e da escrita, seriam convidados a desenvolver atividades que visassem à abordagem de algumas habilidades mais complexas para participação em práticas de letramento socialmente valorizadas.

A natureza da questão de pesquisa também nos levou a optar por uma investigação de cunho qualitativo. Segundo André (2000, p. 19)André, M. Etnografia da prática escolar. 5. ed. Campinas: Papirus, 2000., essa abordagem permite "compreender o significado que as pessoas ou grupos estudados conferem a determinadas ações e eventos". Em decorrência dessa opção teórico-metodológica, utilizamos como principal técnica de pesquisa a observação participante.

Nesse sentido, durante um semestre letivo, estivemos todas as noites na sala de aula, participando da dinâmica de suas atividades, registrando detalhadamente, em um caderno de campo, as observações relativas a essa dinâmica, aos diálogos estabelecidos entre os estudantes e a professora, e mesmo às situações em que os alunos e as alunas solicitavam o auxílio da pesquisadora para a realização das atividades. Além disso, gravamos em áudio as aulas presenciadas. Em todo o trabalho, esforçamo-nos por "integrar a cultura dos sujeitos observados e 'ver' o 'mundo' por intermédio de sua perspectiva" (Vianna, 2003Vianna, H. M. Pesquisa em educação: a observação. Brasília: Plano Editora, 2003., p. 26). A partir da escuta das gravações e da leitura do caderno de campo, foram construídas narrativas de situações de ensino e de aprendizagem envolvendo práticas de leitura e de escrita, perante as quais os estudantes posicionavam-se discursivamente. Neste artigo, apresentamos uma análise elaborada com base nas reflexões suscitadas pelas interações que ocorreram em uma das aulas que assistimos.

O CASO DA APRESENTAÇÃO EM PÚBLICO: ORALIDADE E ESCRITA NA EDUCAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

A equipe docente havia planejado, em reunião pedagógica, inaugurar o trabalho com o kit de livros literários2 2 A Secretaria Municipal de Educação enviara, naquele ano, para cada aluno da EJA, um kit de literatura contendo dez obras literárias. realizando um evento em que, além de receber simbolicamente as obras, os alunos de cada turma fariam a apresentação de duas delas aos outros estudantes da escola. Os professores avaliaram que encontros como esse possibilitariam aos estudantes trocar experiências relacionadas à leitura literária.

Para isso, na noite de 27 de abril, a aula foi dividida em dois momentos. No primeiro tempo, em sala de aula, os alunos participaram da discussão, desencadeadapela professora, sobre o significado do kit literário e as possibilidades oferecidas por essa prática de letramento. Além disso, a professora apresentou os livros e explicou algumas características das duas obras que teriam que apresentar no evento, agendado para o horário após o intervalo. À medida que o debate transcorria, as ideias discutidas foram sistematizadas pela docente em um quadro:

Quadro 1
Kit literário

Em seguida, a professora pontuou que o levantamento de dados subsidiaria a produção do texto oral, cujo objetivo seria a apresentação das obras Contos de Artur Azevedo e Vinte mil léguas submarinas às outras turmas da escola.

Professora: Então... gente, isso tudo é só pra ajudar a pessoa não se perder. Mas ela não tem que ficar lá lendo isso... Lendo, nem pensar, né... Fica muito cansativo, não é? Lendo isso, não. É falando tudo isso. É disso aqui... montar o seu próprio textozinho pessoal. Isso aqui é só [inaudível], está certo? Só pra inspirar. Então... e aí, gente? Quem vai falar lá em cima?

Santiago:3 3 A divulgação do nome real dos sujeitos que participaram da pesquisa foi por eles autorizada. Coloca o Emerson pra falar, professora. Ele fala bem.

Professora: Ô, Emerson!

Emerson: Por que tinha que ser eu?

Santiago: Você fala muito bem.

Emerson: Não... Não vou falar, não.

Aluna: Nem eu.

Professora: Vamos lá, gente. Você, Clarice.

Clarice: Nem, eu não, Márcia. Manda aí as menininhas novinhas. Se fosse uma coisa ensaiada, planejada, eu ia.

Emílio: No outro ano, eu falei, mas a gente ensaiou. Mas agora falar as coisas, sem preparo... É difícil... Para os outros ficarem rindo da gente.

Professora: Sílvia, e você?

Sílvia: Se fosse uma semana treinando, tudo bem, a gente vai lá e fala. Mas assim de cara, não.

Nessa interação, a professora adverte que o esquema construído pela turma deveria servir apenas para orientar a apresentação a ser feita oralmente e publicamente: "Então, gente, isso tudo é só pra ajudar a pessoa não se perder, mas ela não tem que ficar lá lendo isso... lendo, nem pensar né...". Nesse sentido, por meio desse esquema ("só para inspirar"), caberia a cada aluno "montar o seu próprio textozinho pessoal", não para ser lido ("não é lendo isso, não"), mas para ser falado ("É falando tudo"). Com efeito, os estudantes são convocados a mobilizar a competência de elaboração, que, segundo Ribeiro e Fonseca (2009, p. 39)______.; Fonseca, M. C. F. Matriz de referência para a avaliação do alfabetismo: uma proposta de abordagem integrada da leitura, escrita e habilidades matemáticas. Lectura y Vida, Argentina: Asociación Internacional de Lectura, v. XXX, n. 3, p. 30-43, set. 2009., corresponde à capacidade de criar, a partir de elementos textuais, o próprio texto. Apesar de essa tarefa comportar respostas pessoais, elas devem sempre "estar baseadas nos elementos do texto ou contexto dado" (idem).

Após a instrução, a professora pergunta aos estudantes quem deseja apresentar os livros no evento: "Então, e aí gente? Quem vai falar lá em cima?". Diante do convite, Santiago percebe que, nessa situação, não seria possível o exercício de uma linguagem cotidiana e sugere que Emerson seja convocado a realizar tal tarefa, pois, de acordo com seu julgamento, teria maior habilidade em estruturar bem o seu discurso: "Coloca o Emerson para falar, professora. Ele fala bem". Emerson, porém, declina imediatamente: "Não... não vou falar, não". Clarice também recusa o desafio e ressalta que o uso da língua nessa interação demanda o planejamento da fala: "Se fosse uma coisa ensaiada, planejada, eu ia". Emílio referenda a posição da colega e acrescenta que a tarefa proposta caracteriza-se também por ter uma dimensão avaliativa, na qual a não exibição do desempenho esperado - por não ter tido a oportunidade de preparar-se adequadamente - pode resultar em humilhação: "Mas agora falar as coisas, sem preparo... É difícil... Para os outros ficarem rindo da gente". Por sua vez, Sílvia demarca o papel decisivo e indispensável do preparo na forma de "treinamento" para inserir-se com sucesso na prática oral proposta: "Se fosse uma semana treinando, tudo bem, a gente vai lá e fala. Mas assim de cara, não".

Ao propor que montem uma apresentação oral com base na sistematização escrita, a professora indica que a atividade de linguagem em questão demanda a produção de um texto que, embora sua materialidade seja oral, não compartilha das mesmas características de outros gêneros orais das práticas cotidianas que se permitem produzir com espontaneidade e informalidade: "Então... gente, isso tudo é só pra ajudar a pessoa não se perder [...] É disso aqui... montar o seu próprio textozinho pessoal". Nesse sentido, o gênero textual solicitado - "apresentação oral" - mantém relações estreitas com a escrita e recorre a ela para ser constituído. Além disso, a elaboração de textos no contexto escolar está associada a práticas avaliativas, em que esse produto - "textozinho" - é analisado no que diz respeito à estrutura, ao conteúdo temático e à adequação lexical.

A instrução da professora em relação à elaboração da apresentação parece fazer com que os alunos intuam que a atividade de linguagem proposta exige o domínio de um conteúdo, de uma estrutura e de um estilo (Bakhtin, 1996Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 1996.), que configurariam um gênero com o qual ainda não têm intimidade. De fato, apresentar obras literárias ao público escolar implica o exercício de um gênero textual expositivo que demanda, além do domínio do conteúdo da fala - já que os alunos deveriam saber o que dizer -, a intimidade com uma determinada estrutura textual e recursos linguísticos adequados a uma exposição em público.

De acordo com Costa (2008, p. 97)Costa, S. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., a exposição oral caracteriza-se como "um discurso em que se desenvolve um assunto (conteúdo referencial), ou transmitindo-se informações, ou descrevendo-se ou, ainda, explicando algum conteúdo a um auditório de maneira bem estruturada". Com efeito, os próprios estudantes, ao apresentarem argumentos para a não realização da apresentação ("Se fosse umacoisa ensaiada, planejada, eu ia", "Coloca o Emerson para falar, professora. Ele fala bem"), referem-se a características centrais do gênero textual oral público. Santiago e Sílvia, por exemplo, parecem perceber que falar diante de um público constitui uma atividade de cunho mais complexo que a conversação cotidiana - prática oral que geralmente necessita de pouco ou nenhum planejamento da fala e da qual os sujeitos participam de forma mais automática. O gênero textual oral público envolve,além da escolha dos recursos linguísticos adequados ("Você fala muito bem"), uma elaboração prévia do conteúdo e da estrutura geral do texto: "Se fosse uma coisa ensaiada, planejada, eu ia". Esse reconhecimento de que uma prática de linguagem oral também pode demandar planejamento fragiliza uma interpretação dicotômicada oralidade e da escrita, que considera a primeira como sendo intrinsecamente pouco planejada e informal e a segunda como sempre estruturada e portadora de conteúdos formais.

Rojo (2001)Rojo, R. H. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros do discurso? In: Signorini, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. 1. ed., Campinas: Mercado de Letras 2001., em seu artigo "Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros do discurso?", também questiona a concepção teórica que caracteriza a palavra falada pela relação de implicação do locutor com a situação de produção, em contraposição à enunciação escrita, definida pela relação de autonomia que o locutor estabelece com o contexto dado e seu mundo de referência. Ao criticar esse modelo, a autora apoia-se nas considerações de Schneuwly (1997)Schneuwly, B. Parole et fictionnalisation. Une voie pour l'enseignement de l'oral. Éléments pour une conférence donnée à la PUC/LAEL. São Paulo, 29 nov. 1997. Mimeografado. para defender a necessidade de focalizarmos essa discussão por uma perspectiva enunciativa, em que o contexto comunicativo define as relações entre fala e escrita:

O oral não existe; existem orais: atividades de linguagem realizadas oralmente; gêneros que se praticam essencialmente por meio da oralidade. Ou então, atividades de linguagem que combinam o oral e o escrito. De fato, não há nada em comum entre a performance de um orador e a conversação cotidiana. (Schneuwly, 1997Schneuwly, B. Parole et fictionnalisation. Une voie pour l'enseignement de l'oral. Éléments pour une conférence donnée à la PUC/LAEL. São Paulo, 29 nov. 1997. Mimeografado.apudRojo, 2001Rojo, R. H. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros do discurso? In: Signorini, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. 1. ed., Campinas: Mercado de Letras 2001., p. 56)

Às considerações de Schneuwly (1997)Schneuwly, B. Parole et fictionnalisation. Une voie pour l'enseignement de l'oral. Éléments pour une conférence donnée à la PUC/LAEL. São Paulo, 29 nov. 1997. Mimeografado. sobre a diversidade de gêneros orais, Rojo (2001Rojo, R. H. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros do discurso? In: Signorini, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. 1. ed., Campinas: Mercado de Letras 2001., p. 56) acrescenta comentário equivalente em relação aos gêneros escritos:

É claro que o mesmo poderia ser dito para os escritos: também nada há em comum entre uma carta pessoal e um requerimento; entre um diálogo num sketch e num romance [...]. A cada vez, os temas, as formas composicionais, os estilos e as relações ao oral serão diferenciadas.

O questionamento desses alunos da EJA em relação às suas condições de lograr sucesso nessa prática escolar poderia ser interpretado como uma atitude de recusa, resistência ou mesmo deficiência. Entretanto, podemos interpretar essa tomada de posição como um modo de apropriação dessa prática. Isso porque consideramos que existem diversos modos de tornar próprio, os quais nem sempre "são adequados ou pertinentes para o outro" (Smolka, 2000Smolka, A. L. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes, Campinas: CEDES, ano XX, n. 50, p. 26-40, abr. 2000., p. 32). Dessa forma, nesse primeiro momento da aula, os alunos apropriaram-se da atividade, calcando nas características que reconhecem como próprias daquela prática suas razões para não realizá-la.

O primeiro tempo da aula termina sem que a turma tenha decidido quem iria apresentar as obras. Após o intervalo, o evento da entrega dos kits inicia-se, e os estudantes das outras turmas realizam suas apresentações, que, em sua maioria, referem-se a relatos de suas experiências pessoais de leitura ao longo da vida, e não à importância das obras do kit que deveriam recomendar. Enquanto observa a atuação dos colegas, a aluna Clarice reescreve o esquema feito em sala e, após um tempo, comunica à professora que se disponibilizaria a apresentar os livros. Ela inicia sua exposição lendo uma única célula do quadro: "Para mim, o kit serve 'para desenvolver o gosto pela leitura'". O restante de sua fala foi baseado em suas experiências pessoais em relação ao ato de ler. A estudante destacou que, antes de entrar na escola, não "gostava" de ler, e agora está aprendendo que a leitura pode proporcionar benefícios, como imaginar outros mundos e aprender coisas novas. A aluna parece perceber certa flexibilidade da situação comunicativa estabelecida em relação à proposta inicial, permitindo a mobilização de outro gênero textual: o relato de experiências e apreciação pessoal. Dessa forma, sua participação na atividade ocorre por meio da elaboração de um gênero textual que certamente lhe é mais íntimo que a exposição de características das obras do quadro elaborado pela turma.

Após o evento, a pesquisadora indaga Clarice sobre a experiência da apresentação, e ela compara os sentidos que atribui à fala pública na igreja e à fala no espaço escolar:

Pesquisadora: E aí, o que você achou de apresentar lá na frente?

Clarice: Na igreja eu falo sempre, pego o microfone e tudo. Mas aqui, ir lá na frente, o povo fica te ridicularizando, ninguém presta atenção.

Nesse enunciado, Clarice demarca as diferenças entre as atividades de comunicação pública estabelecidas na igreja, espaço em que não tem receio em "pegar o microfone", e aquela configurada na escola, contexto em que "ir lá na frente" e falar diante de alunos e de professores constitui um desafio maior. Na esfera escolar, além de lhe ser demandado o exercício de produção oral de textos mais complexos - como a exposição -, Clarice desempenha o papel de aluna e, por isso, ocupa o lugar de quem é avaliada pelas professoras e pelos colegas e de quem corre o risco de "ser ridicularizada" caso não desempenhe adequadamente uma determinada prática letrada. Na igreja, por sua vez, as pessoas leigas participantes dos atos religiosos utilizam-se de gêneros textuais que podem lhe ser mais familiares, como a prática - "curta pregação ou comentário expositivo-argumentativo do evangelho [...] feita em estilo mais familiar ou coloquial do que o sermão ou a homilia" (Costa, 2008Costa, S. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., p. 150) - ou o relato - "narração oral sobre um acontecimento ou fato acontecido" (idem, p. 159). Ademais, as relações estabelecidas são mais simétricas, e os participantes desse contexto estão dispostos a ouvir e a valorizar a experiência do outro. Nesse sentido, a imagem que Clarice constrói de si mesma, dos outros e da situação comunicativa nesses dois espaços de comunicação humana - a escola e a igreja - influencia a forma como ela define as exigências e as características do "falarem público" em cada um deles.

O processo de ensino e de aprendizagem do sistema de escrita que essas interações engendram precisa ser compreendido, para além de seus aspectos técnicos, em sua dimensão sociocultural. De modo especial, quando nos debruçamos sobre eventos de letramento que se forjam no contexto da EJA, é preciso explorar as possibilidades analíticas decorrentes da consideração de que as atividades com os gêneros textuais na sala de aula são práticas culturais.

Nesse sentido, o tratamento que conferimos ao episódio aqui analisado procura compreender as maneiras de os estudantes participarem e apropriarem-se das práticas de letramento escolares de que fazem parte. As posições assumidas por esses sujeitos no jogo interlocutivo que se estabelece em sala de aula nos indicam seus esforços para conformar o próprio discurso ao gênero demandado pelas atividades escolares. Todavia, as estratégias mobilizadas pelos alunos e pelas alunas, para garantir sua inclusão nessa esfera de comunicação humana, não são as mesmas e nem sempre as previstas pelas propostas de atividades escolares. Esses sujeitos, por terem vivenciado experiências diversas e serem constituídos de forma singular, trazem para a sala de aula diferentes modelos e concepções culturais que também os orientam em sua tomada de decisão quando se propõem a apropriar-se das práticas de letramento escolares.

Assim, se por um lado os enunciados dos estudantes permitem a reflexão sobre seu pertencimento social, caracterizado pela condição de "não crianças" e de excluídos da escola (Oliveira, 2001Oliveira, M. K. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. In: Ribeiro, V. M. (Org.). Educação de jovens e adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Ação Educativa, 2001. (Coleção Leituras no Brasil)), por outro, mostram-se configurados de forma particular por cada sujeito. Com efeito, as posições assumidas pelos alunos reforçam a declaração de Oliveira (idem) de que é preciso considerar que tanto as especificidades decorrentes do pertencimento a grupos culturais particulares quanto as diferenças individuais em relação às formas de os sujeitos significarem as situações com que se deparam serão decisivas para os processos de significação das práticas escolares. Dessa forma, ao se engajarem em situações de aprendizagem de práticas de leitura e de escrita e demarcarem suas posições em relação a elas, os alunos e as alunas da EJA assumem-se como sujeitos de cultura e de aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise a respeito dos modos como os estudantes constroem formas próprias de participar das práticas sociais de letramento que se forjam no contexto escolar apontam que as interações em sala de aula da EJA são complexas e colocam questões a que nós, educadores, devemos estar atentos.

Com efeito, vimos que o aprendizado das práticas de leitura e de escrita em sala de aula não se restringe à sua dimensão técnica. A reflexão suscitada pelo episódio citado e por outros que selecionamos do material empírico que produzimos indica que os modos de os estudantes significarem as (e participarem das) práticas escolares são condicionados pelas maneiras como esses sujeitos apropriam-se das formas de usar a linguagem que são características dessas práticas, as quais envolvem conhecimentos, valores e estratégias específicas.

Essa apropriação envolve o que Geraldi (1995, p. 19)Geraldi, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1995. denomina de um "processo de compreensão ativa e responsiva, em que a presença da fala do outro deflagra uma espécie de 'inevitabilidade de busca de sentidos'". Nas interações aqui analisadas, consideramos que a "fala do outro" em relação à qual os estudantes se posicionam materializa-se na dimensão interlocutiva do processo de comunicação: está nos textos das atividades escolares e nos enunciados produzidos pelos sujeitos. Ela está, também, nos outros discursos que permeiam tais enunciados e que veiculam "modelos de alunos e de professores, de escola e de livros didáticos" (Fonseca, 2001Fonseca, M. C. F. Discurso, memória e inclusão:reminiscências da matemática escolar de alunos adultos do ensino fundamental. 2001. 446f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001., p. 342), de práticas de leitura e de escrita, construídas, observadas, valorizadas ou desdenhadas em suas trajetórias de vida na escola e fora dela. Em nosso estudo, verificamos que é nesse jogo discursivo, marcado pela sua diversidade, que os alunos e as alunas da EJA, orientados pela "inevitável busca de sentidos", procuram apropriar-se das práticas de letramento escolares.

Esperamos que as discussões apresentadas neste trabalho nos auxiliem a considerar, no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação contínua de nossa prática pedagógica, o caráter sociocultural dessa prática, impregnada dos valores de uma cultura que privilegia os modos escritos de relação com o conhecimento. Acreditamos que o refinamento dessa compreensão nos permite acolher melhor os processos de aprendizagem vivenciados pelos estudantes que, como sujeitos socioculturais, constroem modos de lidar com a língua que ora se aproximam, ora se distanciam das maneiras como a escola a utiliza. Portanto, temos o desafio não só de identificar os valores, os conhecimentos e as estratégias que conformam as posições assumidas pelos estudantes, mas também de colocá-los em debate. Entendemos que essa postura pedagógica não é apenas uma estratégia para auxiliar os processos de aprendizagem; configura-se também como reconhecimento das contribuições desse debate para a avaliação das práticas de leitura e de escrita escolares e não escolares e para a produção de novas práticas na EJA.

  • *
    A pesquisa que subsidia a reflexão proposta neste artigo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 1
    Segundo a autora, grau baixo de alfabetismo corresponde a pessoas cujas práticas de leitura e escrita se restringem quase exclusivamente ao campo profissional, limitando a forma de registro simples. O instrumento principal de comunicação e aprendizagem é a oralidade. Os modos de aprender baseiam-se na observação e experimentação. No grau médio-baixo, há maior exigência quanto à capacidade comunicativa, particularmente por meio da linguagem oral.
  • 2
    A Secretaria Municipal de Educação enviara, naquele ano, para cada aluno da EJA, um kit de literatura contendo dez obras literárias.
  • 3
    A divulgação do nome real dos sujeitos que participaram da pesquisa foi por eles autorizada.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    Out 2012
  • Aceito
    Dez 2013
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