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Pesquisa-formação e história de vida: entretecendo possibilidades em educação inclusiva

INVESTIGACIÓN-FORMACIÓN E HISTORIA DE VIDA: TEJIENDO POSIBILIDADES EN LA EDUCACIÓN INCLUSIVA

RESUMO

O trabalho apresenta uma proposta de percurso metodológico que visa possibilitar incorporar os saberes das professoras das salas de recursos na produção de conhecimento, de modo que faça avançar as políticas e as práticas de inclusão escolar no país, objetivo maior do Observatório Nacional de Educação Especial. Para tanto, apresenta uma experiência de pesquisa-formação que incorpora à proposta metodológica as histórias de vida das educadoras de um dos municípios que participaram da pesquisa do Observatório. Apresenta-se tal percurso metodológico argumentando sobre as possibilidades de interação, na prática, entre pesquisa-formação e história de vida. A participação efetiva das professoras das salas de recursos no levantamento dos saberes acerca de si, das políticas e da própria história da educação especial mostrou grande potencial heurístico no estudo de como esses saberes estão imbricados nas ações e no processo formativo dessas educadoras.

PALAVRAS-CHAVE
políticas públicas; inclusão; salas de recursos multifuncionais; história de vida; pesquisa-formação

RESUMEN

El presente artículo propone un enfoque metodológico que permite la incorporación de los conocimientos de los maestros de “salas de recursos multifuncionales” a la producción de conocimiento, a fin de llevar adelante las políticas y las prácticas de inclusión escolar en el país, principal objetivo del Observatório Nacional de Educação Especial. Se presenta una experiencia de investigación-formación que incorpora a la propuesta metodológica las historias de vida de las educadoras de un determinado polo de investigación. Se presenta el camino metodológico, discutiendo sobre las posibilidades de interacción, en la práctica, entre la investigación-formación y la historia de vida. La participación efectiva de los profesores de las salas de recursos de la encuesta sobre el conocimiento de sí mismos, de las políticas y de la historia de la educación especial mostró un gran potencial heurístico en el estudio de cómo este conocimiento se incorpora a las acciones y a la formación de estas maestras.

PALABRAS CLAVE
políticas públicas; inclusión; salas de recursos multifuncionales; investigación-formación

ABSTRACT

The paper proposes a methodological approach that allows incorporating the knowledge of the teachers of resource rooms in the production of knowledge, so taking forward the policies and practices of school inclusion in the country, a major objective of the National Observatory of Special Education. It presents an experience of research training that incorporates methodological proposals to the life stories of educators from one of the towns that participated in the Observatory’s research. Such a methodological approach, is presented by arguing about the possibilities of interaction, in practice, between research training and life story. Effective participation of the teachers of resource rooms in the survey of knowledge about themselves, and the policies of the history of special education showed great heuristic potential in the study of how such knowledge is embedded in the actions and in the training processes of these teachers.

public policy; inclusion; multifunctional resource rooms; life story; research training

APRESENTANDO A QUESTÃO E SEUS TRANSBORDAMENTOS

Este trabalho apresenta uma proposta de percurso metodológico elaborado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas do Núcleo de Educação Especial (GEPNEES) na busca de identificar os saberes que professoras atuantes no atendimento educacional especializado (AEE) assumem sobre si mesmas como educadoras, acerca das políticas e da própria história da educação especial por elas vivenciada. Também era importante perceber imbricações entre esses saberes, as ações no campo pedagógico e o processo formativo dessas educadoras.

A necessidade de produzir um percurso metodológico específico foi se desenhando dentro das tarefas que nos couberam como município participante do Observatório Nacional de Educação Especial (ONEESP), e isso exige algumas palavras iniciais acerca da pesquisa mais ampla, antes de enfocarmos o projeto específico. O ONEESP, criado no ano de 2010, envolve pesquisadores de todo o Brasil no esforço de produzir conhecimento para fazer avançar as políticas e as práticas de inclusão escolar (relativas à pessoa com deficiência) no país, assim como melhorar a articulação entre o conhecimento que vem sendo produzido e as decisões nas políticas educacionais relacionadas a essa questão. Considerando que a política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva (Brasil, 2008Brasil. Decreto n. 6.571, de 17 de setembro de 2008. Dispõe sobre o atendimento educacional especializado, regulamenta o parágrafo único do artigo 60 da lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e acrescenta dispositivo ao decreto n. 6.253, de 13 de novembro de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 set. 2008. Disponível em: <www.presidencia.gov.br>. Acesso em: 10 fev. 2011.
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, 2010______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Marcos político-legais da educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília: SEESP, 2010.) concentrou suas ações na criação de salas de recursos multifuncionais (SRM)1 1 "A Secretaria de Educação Especial oferece equipamentos, mobiliários e materiais di­dático-pedagógicos e de acessibilidade para a organização das salas de recursos multi­funcionais, de acordo com as demandas apresentadas pelas secretarias de educação em cada plano de ações articuladas (PAR). De 2005 a 2009, foram oferecidas 15.551 salas de recursos multifuncionais, distribuídas em todos os estados e o Distrito Federal, aten­didos 4.564 municípios brasileiros – 82% do total" (extraído do site do Ministério da Educação, 2011). Segundo o decreto n. 6.571/2008 (artigo 3°, §1°), "as salas de recursos multifuncionais são ambientes dotados de equipamentos, mobiliários e materiais didá­ticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado". nas escolas públicas, a pesquisa inicial do Observatório tem buscado realizar uma leitura da eficácia dessas salas na efetivação das políticas de inclusão escolar. No estado do Pará, assumimos a tarefa de realizar a pesquisa nas salas de recursos multifuncionais do município em que atuamos. Essa decisão foi tomada com a equipe do Departamento de Educação Especial do município e as próprias professoras durante evento na área.

Desde então, nos juntamos ao processo de formação propiciado pelo Departamento de Educação Especial (órgão da Secretaria Municipal de Educação de Marabá) e entramos nos encontros mensais desse grupo, ao qual chamamos de atividade de pesquisa-formação, menos como formadores e mais como participantes de um processo coletivo de aprendizagem. Foram seis encontros durante o ano de 2011, com duração de quatro horas cada um, além do contato permanente por meio de e-mail. Participaram desse grupo, além da equipe de pesquisadores, do Departamento de Educação Especial e das professoras das salas de recursos multifuncionais, nove discentes do curso de pedagogia envolvidas em elaboração de trabalhos de conclusão de curso no campo dos estudos da inclusão e da deficiência.2 2 É delas a maior parte do trabalho técnico de gravação e transcrição das entrevistas, al¬gumas refeitas várias vezes, no afã de trazer o máximo da história de cada professora para o processo de análise.

Sendo a pesquisa do Observatório de âmbito nacional, seus aspectos metodológicos gerais não poderiam ser singularizados, sob pena de não se conseguir produzir dados coerentes. Desse modo, parte da pesquisa vem sendo realizada no formato de entrevistas estruturadas, levantamentos quantitativos e outros formatos mais facilmente sistematizáveis. No entanto, sentimos que essa atividade conjunta poderia ser mais bem aproveitada se conseguíssemos nos sentir e nos analisar como parte de um momento histórico importante. Mais que estudar as políticas relativas à educação especial e inclusão, estudar-nos nelas, estudá-las nas histórias dos educadores. Ali começamos a nos configurar em um grande grupo de convivência, estudo e pesquisa, entendendo pesquisa também como um processo de busca interna da compreensão da presença dos sujeitos na história. Dos/as 35 professores/as que atuam em salas de recursos multifuncionais no município, 22 professoras dispuseram-se a participar do processo.

Preparando o terreno para construir respostas às questões que motivaram a produção do percurso metodológico descrito no início deste texto, com a participação efetiva das professoras das salas de recursos multifuncionais, esta fase da pesquisa pergunta qual percurso metodológico e que instrumentos proporcionariam a possibilidade de incorporar as próprias educadoras no levantamento e reflexão sobre os saberes docentes e educação especial/inclusão. Tal metodologia deveria ser capaz de fazer emergir e retomar saberes acerca de si, das políticas e da própria história da educação especial das professoras que atuam no atendimento educacional especializado (hoje corporificado nas salas de recursos multifuncionais), assim como deveria possibilitar o entendimento de e como esses saberes estão imbricados nas ações e no processo formativo dessas educadoras. Para construir respostas a essa pergunta, foram necessárias a experimentação e a análise, durante o ano de 2011, de possibilidades metodológicas, e é a construção desse percurso que apresentamos neste artigo. Sem entrar ainda na análise dos saberes docentes, procuramos argumentar acerca da pertinência de incorporar a uma pesquisa-formação as histórias de vida das próprias pesquisadas, educandas e educadoras em um mesmo movimento.

BUSCANDO CUMPLICIDADES NA LITERATURA SOBRE PESQUISA-FORMAÇÃO E HISTÓRIA DE VIDA

Já há certo tempo lidando com entrevistas de professores que atuam em educação especial, nos incomodava sobremaneira o exercício de recorte de suas falas nas categorias propostas pelos (ou subentendidas nos) objetivos de pesquisa. Cada vez mais nos perguntávamos acerca do experienciar a educação das pessoas em estado de marginalização (como é o caso da deficiência) pelos educadores. Perguntávamo-nos se o texto por nós organizado de fato expressava mais sua experiência ou nossa experiência de pesquisadores. Aquilo que interpretávamos aproximava-se daquilo que acontecia com eles? O que é que marcava essas educadoras, que as constituía como educadoras "da educação especial"? Jorge Larrosa Bondía (2002, p. 20 e 28) destaca a importância da experiência como aquilo que, acontecendo conosco, nos marca:

Começarei com a palavra experiência. Poderíamos dizer, de início, que a experiência é, em espanhol, "o que nos passa". Em português se diria que a experiência é "o que nos acontece"; em francês a experiência seria "ce que nous arrive"; em italiano, "quello che nos succede" ou "quello che nos accade"; em inglês, "that what is happening to us"; em alemão, "was mir passiert". A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida.

Ora, fazíamos parte de algo que sucedia com os professores das salas de recursos multifuncionais – suas atividades de formação –, mas sofríamos da aflição de todo educador: daquilo que sucede, como experiência intencionalmente educativa, aos educandos, o que é que lhes toca? Do que é que eles se apropriam e o que incorporam a sua existência singular? Duas possibilidades nos ocorriam como forma de elaborar algum conhecimento sobre isso: fazer o próprio processo de formação transformar-se em pesquisa (por isso a configuração em uma "pesquisa-formação") e criar possibilidades de que os sujeitos não apenas nos relatassem suas experiências, mas lidassem com suas falas sobre elas; fizessem um exercício de apropriação daquilo que lhes sucedia e que ganhava substância em um relato.

No campo da educação especial, vários pesquisadores já vinham se debruçando sobre a possibilidade de incorporar a pesquisa aos processos de formação, aplicando princípios da pesquisa-ação a esses processos. Jesus (2010)Jesus, D. M. O que nos impulsiona a pensar a pesquisa ação colaborativo-crítica como possibilidade de instituição de práticas educacionais mais inclusivas? In: Baptista, C. R.; Caiado, K. R. M.; Jesus, D. M. (Orgs.). Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Mediação, 2010. p. 139-160., Martins (2010)Martins, L. A. R. Pesquisa ação numa perspectiva inclusiva. In: Baptista, C. R.; Caiado, K. R. M.; Jesus, D. M. (Orgs.). Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Mediação, 2010. p. 161-170., Almeida (2010)Almeida, M. A. Algumas reflexões sobre a pesquisa-ação e suas contribuições para a área da educação especial. In: Baptista, C. R.; Caiado, K. R. M.; Jesus, D. M. Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Mediação, 2010. p. 171-176. e Naujorks (2010)Naujorks, M. I. Pesquisa-ação nas pesquisas em educação especial. In: Baptista, C. R.; Caiado, K. R. M.; Jesus, D. M. (Orgs.). Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Mediação, 2010. p. 177-181., debatendo a questão no II Seminário Nacional de Pesquisa em Educação Especial, apresentaram experiências de formação que têm, no geral, tais princípios como foco. Jesus (2010)Jesus, D. M. O que nos impulsiona a pensar a pesquisa ação colaborativo-crítica como possibilidade de instituição de práticas educacionais mais inclusivas? In: Baptista, C. R.; Caiado, K. R. M.; Jesus, D. M. (Orgs.). Educação especial: diálogo e pluralidade. Porto Alegre: Mediação, 2010. p. 139-160. destaca, entre eles, a implicação do pesquisador, a dimensão coletiva da pesquisa (abordagem grupal), um processo permanente de avaliação, os modos coletivos de emersão/produção do problema e, por fim, a dimensão coletiva da autoria.

Como na experiência descrita por Jesus (idem), nossa proposta oscilava entre uma pesquisa-ação de cunho institucional (já que o processo de formação no qual nos envolvemos estava dentro das ações da Secretaria Municipal de Educação) e de cunho emancipatório (considerando a expectativa de as professoras intervirem no próprio processo de formação, incorporando a ele, numa perspectiva crítica, suas histórias como educadoras).

Como pesquisadores, estávamos implicados no processo já há muitos anos, envolvidos na análise da experiência da inclusão dos alunos com deficiência na sala comum. Nesse processo, o avanço das lutas por inclusão escolar levou também à inserção de alunos cegos nos cursos superiores, deslocando-nos do lugar de pesquisadores para o de professores em formação, necessitando dialogar e aprender com os saberes já consolidados na educação básica, sem deixar de olhá-los criticamente.

A dimensão coletiva da pesquisa – entendida por Jesus (idem) como uma abordagem grupal – estava dada pelo fato de que o grupo de professores atuante nas salas de recursos multifuncionais já vinha intervindo na própria formação desde muito antes, dentro das próprias ações da secretaria. Nossa avaliação, com base nas pesquisas anteriores, é que essa intervenção focava-se muito mais na decisão quanto aos conteúdos a serem estudados coletivamente, em uma compreensão de que não estavam preparados suficientemente, do que em uma avaliação do próprio processo de formação. Proporcionar um estudo desse processo, pelos relatos de suas histórias de educadores, poderia ajudar a compreender essa eterna avaliação negativa. Nesse caso, partimos do sujeito e sua história, mas o foco foi colocado no modo como suas histórias estavam imbricadas na história de todos.

O aspecto que garante que a pesquisa-formação seja uma experiência em aberto, que se vai construindo no processo, é a realização de um movimento permanente de avaliação. De nosso ponto de vista, isso deveria emergir nas leituras e releituras das próprias educadoras dos textos produzidos por elas, avaliando até mesmo os modos como lidávamos com tais textos, em um processo de textualização e retextualização, como recomendam Gattaz (1996)Gattaz, A. C. Lapidando a fala bruta. In: Meiry. J. C. S. B. (Re)Introduzindo a história oral no Brasil. São Paulo: Xamã, 1996. e Caiado (2006)Caiado, K. R. M. Aluno deficiente visual na escola: lembranças e depoimentos. Campinas: Autores Associados, 2006.. Também o envolvimento das educadoras no esforço de categorização (entendendo isso como a localização, no texto, de marcas que evidenciavam experiências importantes para a autora) levava a discussões que envolviam a releitura das experiências das outras e de nossa relação com o coletivo.

Assim, o problema de pesquisa não apenas não era nosso, nem estava pronto, a priori; foi emergindo e reconfigurando-se no próprio esforço coletivo de estudá-lo. O projeto de pesquisa nacional, do Observatório, como foi dito inicialmente, nos propunha duas perguntas centrais: a) Como produzir conhecimento para avançar as políticas e as práticas de inclusão escolar no país?; b) Como melhorar a articulação entre o conhecimento que vem sendo produzido e as decisões nas políticas educacionais relacionadas à perspectiva de inclusão escolar? Nossa pergunta, dentro dessas, passou a ser: quais são os saberes acerca de si como educadoras, das políticas e da própria história da educação especial, que assumem as professoras que atuam no atendimento educacional especializado, hoje corporificado nas salas de recursos multifuncionais? Como esses saberes estão imbricados nas ações e no processo formativo dessas educadoras? Tais perguntas coadunam-se com as preocupações de outros pesquisadores, como Jesus (2011, p. 14)______. Atendimento educacional especializado e seus sentidos, pela narrativa de professoras de AEE. In: Seminário Nacional de Pesquisa em Educação Especial, 4., 2011, Nova Almeida, ES. Práticas pedagógicas e inclusão: multiplicidade do atendimento educacional especializado. Vitória: UFES; Porto Alegre: UFRGS; São Carlos: UFSCAR, 2011., que afirma:

Compreender seus sentidos [do atendimento educacional especializado] para profissionais que atuam nos cotidianos de AEE nos parece questão de base. Precisamos compreender por que trilhas estão caminhando, que possibilidades e tensões vislumbram. Acreditamos ser esta a responsabilidade ético-acadêmica daqueles que atuam nos espaços-tempos de formação.

Preocupados em fazer avançar as políticas e as práticas da educação inclusiva, e inseridos em um movimento nacional de pesquisadores que enfocam essa questão, não poderíamos deixar de entender a escola como locus no qual se consubstancializam essas políticas e as professoras como suas principais agentes, independentemente de seus posicionamentos estarem ou não em consonância com os objetivos ou com as diretrizes da política geral. A esse respeito, nos alerta Monceau (2005, p. 479)Monceau, G. Transformar as práticas para conhecê-las: pesquisa-ação e profissionalização docente. Educação e Pesquisa, São Paulo: USP, v. 31, n. 3, p. 467-482, set./dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022005000300010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 28 out. 2013.
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, com razão:

O fato de os financiadores da pesquisa em educação serem os que tomam decisões políticas, ou grandes organismos nacionais ou internacionais, não é alheio ao fato de ela ser cada vez mais determinada por uma preocupação de eficácia do ensino. Paradoxalmente, a cooperação direta com o campo, suas preocupações e suas urgências, talvez torne o pesquisador menos dependente de uma determinada maneira de pensar os problemas educativos segundo a qual os imperativos políticos poderiam acabar por confundir-se com os imperativos heurísticos.

O esforço realizado pelo coletivo de pesquisa foi, portanto, o de trazer a pergunta maior acerca das políticas e sua eficácia para o chão da atuação das professoras, considerando que são elas quem alimentarão o Observatório com dados sobre o funcionamento das salas de recursos multifuncionais. Considerando a formação uma atividade, uma situação de aprendizagem, são levantadas questões em cada ação proposta, os aspectos importantes são contextualizados, são sugeridos sentidos para o que é dito pelos sujeitos e esses sentidos são historicizados, articulados com os saberes gerais ou provenientes de dadas fontes autorizadas (no sentido foucaultiano da expressão).

Segundo essa epistemologia da ação, a situação não é preexistente à observação: ela resulta da interação dos atores (alunos, professores, formadores, pesquisadores) e o meio material, social, cultural no qual eles agem. Os outros atores, os objetos, o meio material e simbólico, se forem significativos para os atores, também fazem parte. A situação resulta pois de um conjunto de interações sociais e contextualizadas. A atividade é considerada ao mesmo tempo que a situação na qual ela emerge, recebendo uma interpretação fundamentalmente dessimétrica e circular: é a ação que define a situação, que define a ação etc. Resultante de uma adaptação singular a essa situação que ela cria, a ação lhe é específica. (Durand; Saury; Veyrunes, 2005Durand, M.; Saury, J.; Veyrunes, P. Relações fecundas entre pesquisa e formação docente: elementos para um programa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, v. 35, n. 125, p. 37-62, maio/ago. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742005000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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, p. 58)

Por fim, o princípio da autoria como um processo coletivo, sem deixar de evidenciar as contribuições individuais, foi ganhando uma dimensão maior que a prevista inicialmente. Embora fossem ainda textos curtos, de duas a seis páginas, os relatos tinham forte carga emocional e foram colocando-se no centro da pesquisa de modo quase autônomo. Isso leva a pensar, hoje, na possibilidade de tratá-los como obras de autoria, no interior de nossa pesquisa, em um processo semelhante ao que viveu Sales (2008, p. 155)Sales, M. A. Histórias e personagens que (ainda) não estão em livros: o memorial-formação na licenciatura em pedagogia em Irecê/BA. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador: UNEB, v. 17, n. 29, p. 147-158, jan./jun. 2008.:

Por isto, o trabalho de investigação com os Memoriais produzidos me fez assumir esta escrita como coautoria do meu processo de pesquisa. Adotei a leitura e análise desses Memoriais e dei ao grupo de professores em formação o status de autoria na escrita da minha tese de doutorado. Desta forma, não cabe, aqui, omitir os nomes envolvidos nesta minha escrita, como procedimento usual em outras pesquisas. Cada Memorial compõe a literatura para minha investigação, junto aos demais autores com que busquei dialogar. Pareio, assim, o poder da assinatura do meu texto com as histórias de personagens que (ainda) não estão em livros, e dou nome a este texto. Os/as autor/as e os Memoriais fazem parte da lista de referências, no final do texto.

A respeito da segunda possibilidade, que dizia respeito aos sujeitos não apenas expressarem suas relações históricas com a questão da deficiência, mas também lidarem com essas falas, dizem Barros et al. (2007, p. 31)Barros, V. A. et al. Conte-me sua história: reflexões sobre o método da história de vida. Mosaico: estudos em psicologia, Belo Horizonte: UFMG, v. I, n. 1, p. 25-35, 2007. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/mosaico/index.php/mosaico/issue/view/1>. Acesso em: 7 nov. 2012.
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:

[...] a experiência de relatar sua história de vida, oferece àquele que a conta uma oportunidade de (re)experimentá-la, ressignificando sua vida – o que implica numa dimensão ética do estudo, trazendo uma contribuição que consideramos essencial – como acabamos de ressaltar mais acima. De acordo com Nogueira (2004), a história de vida propõe uma escuta comprometida, engajada e participativa. Na relação de cumplicidade entre pesquisadores e sujeitos pesquisados encontra-se a possibilidade daquele que narra sua história experimentar uma ressignificação de seu percurso e dar continuação à construção de um sentido frente a este relato endereçado.

Então, se não há que pensar formação a não ser como experiência, e, se a experiência precisa ganhar um formato de relato para ser analisada, ela não poderia ser um relato do presente, e sim um olhar, a partir do presente, para as vivências passadas que pareciam fazer sentido naquele momento: as histórias de vida das professoras ajudariam a compreender os modos como elas inseriam-se na história da educação especial, particularmente nesse momento histórico, em que seu lugar ganha destaque como responsável pelas salas de recursos multifuncionais.

Procuramos, então, descobrir se já havia trabalhos em educação especial que utilizassem esse enfoque e encontramos uma revisão realizada por Glat, na qual a autora, apontando várias experiências de pesquisa nesse sentido, destaca a importância de tal estudo para o campo:

Como já mencionado esse método é particularmente fértil para a pesquisa na área de Educação Especial, por ter como objeto de estudo os sujeitos destoantes do padrão social considerado "normal" [...] Assim, por privilegiar, tanto na coleta quanto na análise dos dados, a visão dos sujeitos participantes, esse método traz em si uma vantagem ao estudar o discurso de grupos marginalizados, pois permite ao pesquisador se desvencilhar de seus próprios pré-conceitos e representações estereotipadas e dar voz àqueles a quem pretende compreender. (Glat et al., 2004Glat, R. et al. O método da histórias de vida na pesquisa em educação especial. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília: Editora UNESP, v. 10, n. 2, p. 235-250, maio/ago. 2004.)

Glat et al. referiam-se não apenas aos alunos com deficiência, mas também a todos aqueles a quem o estigma atinge indiretamente: pais, cuidadores, professores, turmas tidas como especiais. As professoras das salas de recursos multifuncionais são tidas como professoras de "outro tipo", e nossas pesquisas anteriores com professores de sala comum já tinham apontado este fato: o preconceito as atinge e atinge as expectativas com relação a sua atuação e formação.

O trabalho de Caiado (2007)______. Educação especial, pesquisa e historias de vida. Revista Ponto de Vista, Florianópolis: UFSC, n. 9, p. 145-148, 2007. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/pontodevista/issue/view/1679/showToc>. Acesso em: 15 nov. 2012.
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nos trouxe outro elemento importante para o uso das histórias de vida como parte de uma atividade de formação: a importância do esforço do coletivo que pesquisa em perceber, na análise das histórias, a multideterminação de seu processo de formação.

Aqui, se compreende a história de vida enquanto realidade empírica, como um fragmento, ou uma síntese, que conserva múltiplas e complexas determinações da vida humana. Portanto, enquanto realidade empírica a história de vida de um indivíduo pode ser conhecida na sua aparência a partir de diferentes fontes, como: depoimentos orais, indicadores sociais, fotografias, documentos clínicos, escolares, trabalhistas. De posse de todos os dados orais e documentais deve-se passar para uma análise categorial que relacione essa vida particular às relações sociais que a engendraram e, assim, possa-se apreender os processos de constituição de um indivíduo concreto, síntese de múltiplas e complexas determinações. Mesmo com a utilização de diferentes e variadas fontes, não se nega aqui a primazia da escuta do depoimento oral como fonte relevante na construção dos dados. (idem, p. 147)

A busca de cumplicidades na literatura, no esforço de entender a escola como locus no qual as políticas ganham concretude na ação docente, teve resultados compensadores. Percebemos a possibilidade de estudar essas ações dentro de uma situação criada coletivamente (a pesquisa-formação), assumindo que "a situação não é preexistente à observação [...]", mas, sendo resultado de "uma adaptação singular a essa situação que ela cria, a ação lhe é específica" (Durand; Saury; Veyrunes, 2005Durand, M.; Saury, J.; Veyrunes, P. Relações fecundas entre pesquisa e formação docente: elementos para um programa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, v. 35, n. 125, p. 37-62, maio/ago. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742005000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 30 nov. 2013.
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, p. 58). São as ações de formação, então, das quais as professoras são coautoras, o objeto sobre o qual nos debruçamos coletivamente. O esforço de olhar para trás, escrevendo as próprias histórias e estudando-as em grupo, evidencia a autoria como um processo coletivo. Consideramos, então, a voz daqueles a quem desejamos compreender (e que desejam compreender-se como agentes históricos) em uma escuta "comprometida, engajada e participativa" (Barros et al., 2007Barros, V. A. et al. Conte-me sua história: reflexões sobre o método da história de vida. Mosaico: estudos em psicologia, Belo Horizonte: UFMG, v. I, n. 1, p. 25-35, 2007. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/mosaico/index.php/mosaico/issue/view/1>. Acesso em: 7 nov. 2012.
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, p. 31), tentando perceber juntos a multideterminação das viagens de formação e seu caráter de processo dinâmico, em aberto, grávido de possibilidades.

A CONSTRUÇÃO COLETIVA DE UM PERCURSO DE PESQUISA

Considerando, portanto, as perspectivas téorico-metodológicas anteriores, passo a descrever brevemente os encontros de pesquisa-formação realizados. Conforme dito inicialmente, o primeiro contato das professoras do atendimento educacional especializado com a proposta geral do Observatório aconteceu em 2010, durante a IV Jornada de Educação Especial e Inclusão. O grupo mostrou-se entusiasmado em fazer parte da pesquisa, especialmente pela perspectiva de ter um quadro claro do que se vinha fazendo em inclusão em nível nacional. No entanto os aspectos quantitativos não atraíam muito, até porque já vínhamos de vários anos de pesquisa com o mesmo grupo, levantando dados sobre a inclusão escolar no município.

É importante esclarecer que esse percurso não estava claro de início. Ele foi se construindo na própria convivência com o grupo de professoras e a partir das leituras realizadas. Retomemos: cada dia de trabalho proposto foi entendido como uma ação específica, dentro da atividade geral de pesquisa-formação. Assim, as propostas de trabalho eram publicizadas por meio eletrônico com antecedência e eram incorporadas às propostas de modificação. Cada técnica de coleta de dados era explicada em sua relação com a pesquisa geral e em suas especificidades, assim como exercitada com as professoras. As compreensões dos conceitos eram sempre debatidas e negociadas no grupo.

No encontro de maio, foram analisados os objetivos do Observatório e apresentada a proposta de trabalhar com histórias de vida, discutida a técnica de gravação e transcrição e feito um exercício preliminar de contar e gravar as próprias histórias, em grupos, com as colegas e graduandas funcionando como entrevistadoras. O resultado ainda foi bastante frágil, com textos curtos e que oscilavam entre apresentar aspectos conceituais daquilo que imaginavam que devia ser a inclusão e descrições das próprias dificuldades. Observamos que seria necessário fazer a leitura de histórias de outras professoras para poder ampliar a compreensão do que seria uma história de vida. Outro aspecto que incomodou profundamente as professoras foi a transcrição literal das falas, com todos os elementos da fala oral: repetições, marcadores orais como "né" e "tá" apareciam muito, e elas insistiam que não falavam assim. Praticamente todas as professoras reivindicaram gravar e transcrever de novo, argumentando que havia muitos erros. O mal-estar criado nos fez temer muito pelo futuro da pesquisa.

Distribuímos entre todos os membros do grupo o texto "As memórias e a arte de lembrar: sou professora porque [...]", de Dias (2008)Dias, C. M. S. As memórias e a arte de lembrar: sou professora porque... Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador: UNEB, v. 1, n. 1, p. 87-96, jan./jun. 2008., e no encontro de junho foi realizada a leitura compartilhada. Na discussão do texto, foram demarcados os objetivos da pesquisa realizada por Dias, o conteúdo das falas e as reflexões apresentadas. Para a reflexão acerca dos depoimentos já coletados, o grupo debateu as seguintes questões a respeito das próprias histórias: a) O que foi mais difícil: lembrar ou contar as histórias? O que faltou ser contado? O que é importante ser contato? O que nós pretendemos com as histórias que estamos produzindo? A reflexão acerca de uma experiência já realizada, com sujeitos semelhantes a elas, permitiu que as professoras relaxassem com relação à qualidade da própria produção. Concluindo que ainda havia muito a ser contado, foi realizado um planejamento para retomar as histórias de forma mais cuidadosa, e as tarefas de gravação e transcrição seriam feitas entre os encontros, em momentos agendados entre as bolsistas e as professoras. Foram produzidos 22 relatos, que foram lidos e complementados pelas professoras. A essa altura, já tínhamos nos convencido da necessidade de superar a transcrição literal e criar possibilidades coletivas de textualização.

Concluído o processo de coleta do material, consideramos necessário passar por um momento de representação imagética, antes da textualização final e análise. A representação da própria história por meio de imagens possibilita encontrar outras formas de significação para além do texto escrito; e tal representação foi realizada pelas professoras, que produziram, cada uma, a capa da coletânea de histórias que lhe coube. Também coube a cada uma propor um título para o trabalho, incorporando aquilo que considerava mais significativo na totalidade das histórias. Era um processo de, por um lado, representar a própria história em uma imagem e, por outro, representar a história coletiva em uma frase, fazendo um movimento do individual para o coletivo.

A textualização vinha responder ao mal-estar causado pelas transcrições; mal-estar este que nos obrigou a encontrar saídas metodológicas. Descobrimos a possibilidade de transformação do texto oral em texto escrito, recorrendo aos recursos da linguagem escrita para melhor expressar aquilo que foi elaborado na oralidade, com o cuidado de preservar o conteúdo daquilo que foi dito. Caiado (2006, p. 50-51)Caiado, K. R. M. Aluno deficiente visual na escola: lembranças e depoimentos. Campinas: Autores Associados, 2006. argumenta, acerca da importância da textualização, que se deve conferir maior transparência e clareza ao texto. Também Gattaz (1996, p. 135)Gattaz, A. C. Lapidando a fala bruta. In: Meiry. J. C. S. B. (Re)Introduzindo a história oral no Brasil. São Paulo: Xamã, 1996. aponta a necessidade de verter o texto de base oral para um texto efetivamente escrito:

Para que o narrador se reconheça no texto da entrevista, é preciso que a transcrição vá além da passagem rigorosa das palavras da fita para o papel. A transcrição literal, apesar de extremamente necessária, será apenas uma etapa na feitura do texto final, que chamo de textualização, por ser ao fim e ao cabo um modo de se reproduzir honesta e corretamente a entrevista em um texto escrito.

Sendo a textualização um processo em que o narrador passa a se reconhecer no texto, o primeiro movimento de textualização foi feito pelas próprias autoras, a partir de exemplos demonstrados pelo grupo, em que foram excluídas repetições, incorporados trechos esclarecedores, distribuídos em parágrafos os assuntos, entre outros cuidados da linguagem escrita. A revisão final ainda está sendo realizada pela equipe do grupo de pesquisa. A essa altura, o clima de envolvimento com as próprias histórias era evidente, provavelmente reforçado pela nossa satisfação como pesquisadoras: os textos eram fortes e envolventes e nos davam uma dimensão daquele grupo de educadoras que nunca tínhamos percebido (e nem elas, apesar de conviverem havia certo tempo). Foram mais de noventa páginas cheias de vida, em que o fazer educativo emergia encharcado de sentimentos, de emoções, de crenças e de expectativas.

Para a análise, elencamos inicialmente algumas categorias, que podemos descrever como elementos que nos pareciam mais evidentes nos textos, em virtude das discussões feitas durante o processo de estudo e de gravação. Considerando que nos interessava a história das educadoras, destacamos as seguintes questões:

  1. primeiros contatos com a questão da deficiência;

  2. motivação para a atuação na educação especial;

  3. processo formativo (tanto cursos quanto experiências marcantes);

  4. construção da identidade/autodefinição: como a pessoa se avalia no processo (modos e palavras com que se descreve, limites que aponta em si mesma, qualidades, potenciais etc.);

  5. relação com a deficiência nos aspectos conceituais; e

  6. relação com as políticas e normas mais gerais (locais, nacionais, internacionais): como a narradora situa-se diante dessas políticas.

Esse momento da pesquisa também foi concebido com uma ação coletiva: esperávamos que as narradoras, ao buscar as categorias que propúnhamos nos textos, comentassem e criticassem essas nossas escolhas, propondo outras possibilidades. O processo coletivo de análise iniciou-se em outubro e adotou os seguintes passos: foram colocadas diante de todas, no chão da sala, fichas em que estavam escritas as categorias já citadas. As categorias foram explicadas e aceitas inicialmente pelo grupo. Nesse momento, esperávamos também colocar cada professora em contato com a história de outra, então propusemos um sorteio. Cada vez que uma professora era sorteada com a própria história, fazia-se novo sorteio, de modo que ao final cada uma marcou, na história da outra, trechos que considerava representativos das categorias e outros não previstos como categorias, mas que também pareciam ter ênfase no texto.

A seguir, passou-se à apresentação e discussão das categorias marcadas em cada história: a professora analista apontava em voz alta os trechos marcados e justificava as razões pelas quais achava que correspondia a determinada categoria, enquanto o grupo acompanhava pelo texto. Se houvesse divergência, abria-se discussão até fechar a categorização, incorporando as categorias existentes ou criando novas categorias. Foram propostas, nesse dia, as seguintes novas categorias:

  1. vida profissional (docência);

  2. momento de questionamento, de recusa da educação especial como trabalho docente;

  3. outras experiências.

As novas categorias surgidas apontavam que cada professora via nas histórias mais elementos que aqueles que as definiam como educadoras do atendimento educacional especializado. Isso ampliava o foco e nos alertava para o reducionismo das expectativas. Por fim, as marcas nos trechos entendidos pelas professoras como representativos de cada categoria foram transpostas para o texto coletivo, e agora estão prontas para sistematização e retomada do processo interpretativo.

Em 2012, produzimos coletivamente uma linha do tempo, na qual as experiências apontadas nas histórias foram dispostas linearmente e associadas com os momentos marcantes da história de educação especial e da inclusão escolar no Brasil e no município. Também fizemos uma reflexão acerca das relações entre as vivências dos professores das salas de recursos multifuncionais e os saberes docentes por eles construídos, a partir dos relatos de suas histórias de vida, os quais devem gerar novos artigos, complementares a este. No segundo semestre de 2012, as principais questões apontadas nesse momento inicial da pesquisa foram tratadas em grupos focais, de modo a aprofundar cada uma.

NO INTUITO DE DAR UM LAÇO FROUXO

Diz Larrosa (2010)Larrosa, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010., para retomar um autor a que nos referimos de início,3 que a formação é uma viagem, mas uma viagem em aberto. Como saber antecipadamente o que nos tocará fundo, o que representará uma transformação individual e do grupo? Da proposta de formação, que desafios parecerão fascinantes e quais nem se configurarão como desafios? Quais encararemos e de quais nos desviaremos, por impossíveis, dificultosos ou assustadores? A viagem de formação, afirma ele, é um exercício de tornar-se o que se é. Esse trecho de viagem que partilhamos com as professoras das salas de recursos multifuncionais mostrou que estamos nos tornando pesquisadores e que a presença desse outro professor como sujeito participante da pesquisa nos abre para sensibilidades outras. Por outro lado, nosso fazer abre-se para eles, na medida em que fazemos pesquisa sobre e com eles: acabam-se os mistérios do como pesquisar, assim como suas certezas.

À pergunta central do Observatório, sobre como produzir conhecimento para avançar as políticas e práticas de inclusão escolar no país, podemos já adiantar algumas questões: não é possível fazê-lo deixando de fora os professores, que são, de fato, os executores dessas políticas por meio de suas práticas; incluindo esses professores, é necessário, mais que pedir descrições de suas práticas e colocá-las em avaliação, perceber que saberes mobilizam essas práticas e são mobilizados por elas e como esses saberes dialogam com os saberes formais que se apresentam nos projetos de formação oficiais.

Pretendemos, daqui para frente, assumir parte dessa tarefa na análise e interpretação, com o grupo de professoras, daquilo que lhes/nos sucedeu como experiência intencionalmente educativa durante a primeira fase do projeto de pesquisa-formação. Importa-nos destacar que aspectos da experiência histórica como educadoras da educação especial marcaram a construção identitária do grupo, entendida como um processo em aberto, e emergem agora no seu fazer pedagógico. Importa-nos, em nossa viagem de formação, lidar com a experiência do outro e simpatizar com ela, produzir sentidos coletivamente, no intuito de nos percebermos parte de um movimento histórico.

  • 1
    "A Secretaria de Educação Especial oferece equipamentos, mobiliários e materiais di­dático-pedagógicos e de acessibilidade para a organização das salas de recursos multi­funcionais, de acordo com as demandas apresentadas pelas secretarias de educação em cada plano de ações articuladas (PAR). De 2005 a 2009, foram oferecidas 15.551 salas de recursos multifuncionais, distribuídas em todos os estados e o Distrito Federal, aten­didos 4.564 municípios brasileiros – 82% do total" (extraído do site do Ministério da Educação, 2011). Segundo o decreto n. 6.571/2008 (artigo 3°, §1°), "as salas de recursos multifuncionais são ambientes dotados de equipamentos, mobiliários e materiais didá­ticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado".
  • 2
    É delas a maior parte do trabalho técnico de gravação e transcrição das entrevistas, al¬gumas refeitas várias vezes, no afã de trazer o máximo da história de cada professora para o processo de análise.
  • 3
    Na referência anterior, o autor aparece com o sobrenome Bondía, como está registrado na publicação de origem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    Dez 2012
  • Aceito
    Out 2014
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