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EDITORIAL

A pesquisa em educação, desenvolvida mais especificamente em programas de pós-graduação em educação, no Brasil e no exterior, vem apresentando à sociedade em geral um conjunto de conhecimentos, argumentos, críticas e caminhos viáveis para balizar a discussão e a concretização de avanços e transformações das condições estruturais e cotidianas de práticas educativas nos mais diferentes níveis e modalidades de ensino. A Revista Brasileira de Educação (RBE), comprometida com uma agenda social e política que paute os desafios contemporâneos da educação, tem, por sua vez, ampliado a interlocução da comunidade científica com a comunidade responsável pelas políticas públicas em educação com vistas a adensar a escolha de prioridades, a articulação crítica de ações e a garantia de melhores condições de trabalho para os profissionais da educação, assim como maiores oportunidades de estudos e aprendizagens para crianças, adolescentes, jovens e adultos, em contextos de crescente internacionalização.

Nesse sentido, objetivando manter a sintonia e o compromisso de intervenção nesse cenário internacional, a RBE adota a publicação bilíngue (português e inglês), de parte de seus artigos, na versão on-line da revista. Essa decisão editorial, que envolveu a elevação de custos de produção e a reformulação de rotinas de gerenciamento do periódico, foi resultante de uma intensa discussão que vem sendo travada no campo da comunicação científica no Brasil e no exterior. A RBE vem participando desse debate em múltiplas instâncias: no interior da área educacional, destacamos a reflexão produzida na Comissão Editorial da RBE, nas reuniões da Diretoria da ANPEd e nos encontros do Fórum de Editores de Periódicos da Área de Educação (FEPAE); no âmbito mais amplo do campo científico brasileiro, destacamos os eventos promovidos pelo Scientific Electronic Library Online (SciELO) e pela Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC).

O objetivo da publicação bilíngue, evidentemente, é a internacionalização da produção da área que, antes de ser uma exigência dos órgãos de avaliação e financiamento, representa a possibilidade de ampliação da circulação dos resultados de pesquisa veiculados pela RBE para além das fronteiras nacionais. A presença predominante do inglês como língua franca de comunicação científica não é isenta de implicações políticas e econômicas; logo, publicar em inglês não nos afastará do intento de defender o português e outras línguas vernáculas como meios legítimosde expressão do conhecimento científico e acadêmico. Cabe ainda mencionar que não temos a ilusão de que os textos publicados em inglês irão garantir a circulação internacional da produção da área, pois internacionalização não se resume ao compartilhamento de um código linguístico. Questões geopolíticas relacionadas à distribuição do poder e do saber devem ser enfrentadas, sob pena de a internacionalização da comunicação científica – entendida como espaço de diálogo livre de constrangimentos e de manifestação das diferenças em condições de igualdade entre os países e culturas – seguir a mesma tendência em curso da internacionalização econômica, reafirmando desigualdades e produzindo exclusão social.

Os artigos produzidos em português/inglês neste número foram decorrentes da adesão espontânea dos autores que aceitaram o convite da Comissão Editorial para apresentar a tradução de seus textos para a publicação. Consideramos esse critério um ponto de partida para o processo, contudo temos como objetivo, em médio prazo, a publicação integral dos artigos nos dois idiomas. Não obstante, para isso, precisamos nos organizar no que se refere a gerenciamento e, sobretudo, a financiamento.

Neste número, os temas, metodologias, provocações, análises e interpretações propostas nos diferentes artigos focalizam duas temáticas privilegiadas para o diálogo entre o campo científico e a sociedade. A primeira temática concerne à formação de professores e é desenvolvida nos seis primeiros estudos; a segunda aborda, nos quatro últimos artigos e na resenha que finaliza este número, as relações que se estabelecem entre instituições – escola, família, Igreja – e suas intercessões na constituição de singularidades e diversidades, em contextos concretos.

O artigo de Ana Laura Godinho Lima e Denice Barbara Catani recompõe um percurso de pesquisa em história da educação realizado com base no estudo de livros de psicologia educacional, utilizados para a formação de professores no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1960. O texto faz um recorte específico ao explorar tensões entre as noções de diferenças individuais e de personalidade, demonstrando sua persistência e ressignificação ao longo da história. De maneira instigante, as autoras finalizam a reflexão com a seguinte pergunta: “Até quando poderemos sustentar que as vias do conhecimento, da classificação e do controle, tal como vêm se abrindo para as questões educacionais, devam continuar sendo trilhadas?”.

Marcela Gaete Vergara também traz em seu texto algumas contradições relativas à garantia das singularidades dos sujeitos em processos educativos, respaldando seus argumentos em concepções sobre tempo histórico e culturas escolares. Trata-se de um estudo no qual se pretende interpretar as lógicas de pensamento que mobilizam, articulam e configuram estudantes de pedagogia de cursos de magistério do ensino médio no Chile durante o processo de prática profissional. No artigo, a interpretação de entrevistas e as análises conjunturais dos sistemas de educação põem em evidência duas condições de produção: de um lado, a forma de a escola constituir outros tipos de subjetividade, a partir de outros territórios simbólicos, exigindo a implementação de ações didáticas fora da lógica do processo linear e progressivo; de outro lado, e contraditoriamente, o trabalho dos professores que se engendra numa mesma epitesme moderna que não aposta na incerteza, no devir da aula e na temporalidade dos sujeitos.

Em seu artigo, Hildete Pereira dos Anjos amplia o estudo das singularidades na formação docente, ao analisar uma experiência de pesquisa-formação com histórias de vida de professoras da educação inclusiva. Com base nessas narrativas, analisa as experiências, a autoria e os novos sentidos do fazer pedagógico, que emergem no processo de pesquisar com professoras. Destacam-se as ações coletivas de construção, desconstrução e reconstrução no ato de narrar, coletiva e individualmente, a experiência vivida.

Pela via do desenvolvimento profissional e na interação com novas tecnologias, Patrícia Alexandra da Silva Ribeiro Sampaio e Clara Pereira Coutinho abordam a formação de professores de matemática em Portugal, defendendo experiências variadas, em contexto de sala de aula, que envolvam a investigação, o planejamento e a prática da reflexão. Articulam essa postura entrecruzando, teórica e empiricamente, a proposta de que os professores interpretam, alteram e procedem à revisão e à adaptação do currículo prescrito com o quadro conceitual sobre tecnologia respaldado no conhecimento pedagógico e tecnológico do conteúdo (TPACK), baseado na formulação de Shulman.

Dois outros artigos salientam a influência de modelos gerenciais em programas de formação continuada de professores no Brasil, propostos e financiados por órgãos dos governos estadual e federal. No primeiro artigo, Luís Armando Gandin e Iana Gomes de Lima apresentam resultados de um estudo sobre a implantação de programas de intervenção pedagógica, desenvolvidos entre 2007 e 2010, em escolas do Rio Grande do Sul. A análise, ancorada nas noções de performatividade, gerencialismo e processos de qualidade, dá visibilidade à inserção da ação “corretora” de instituições de direito privado no espaço público. Os autores chamam a atenção para os processos de desqualificação e requalificação do trabalho docente e alertam para o fato de que este último se confunde, nas escolas pesquisadas, com a aprendizagem de novas habilidades, a capacidade de cumprir rigorosamente atividades burocráticas e mostrar resultados.

No artigo seguinte, Elba Siqueira de Sá Barretto tematiza a formação de professores com base em resultados de dois grandes estudos patrocinados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2009 e 2011, sobre a condição docente no país. A autora discute as políticas públicas de formação docente, desde seu financiamento até a gestão educacional, incluindo as novas tecnologias, a relevância das licenciaturas, os perfis dos professores e os programas de formação continuada. Em suas conclusões, destaca que “as novas formações” inclinam-se a se concentrar na aquisição de expertise no manejo de recursos humanos e organizacionais da escola para alcançar as metas propostas.

Os quatro últimos artigos derivam de pesquisas cujo foco centra-se nas relações entre educação, culturas populares, família e religião. Há, em grande parte desse conjunto de textos, possibilidade de se tensionar as (dis)junções entre escola e tradições culturais, agenciadas ou não por instituições tradicionais, tais como a família e a Igreja. O artigo de Álamo Pimentel, com base em relatórios de estudantes do curso de graduação em pedagogia de uma instituição pública de Salvador, Bahia, discute as significações das brincadeiras de rua, do ponto de vista das crianças, de seus pais e mães. O mote principal da pesquisa é a discussão de práticas culturais heterogêneas e dinamizadoras de fenômenos sociais, articulado com o conceitode ecologia dos saberes. Politicamente, destacam o desafio epistemológico da construção de novas correlações sustentáveis na interação de diferentes saberes comas práticas sociais que lhes conferem movimento.

Deise Azevedo Longaray e Paula Regina Costa Ribeiro analisam criticamente um conjunto de enunciados que tem na heteronormatividade uma de suas mais poderosas formas de regulação e governamento dos processos de subjetivação de pessoas gays, travestis e transexuais. Utilizando ferramentas foucaultianas de análise de discurso, de metodologia da história oral temática e de observação participante, as autoras chamam a atenção para o papel relevante da família como primeiro espaço de socialização. Seu efeito, em tais processos, prima pela coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. As autoras analisam também o papel das instituições religiosas, bem como o das associações LGBT, interpretando seus discursos à luz da tensão entre educação e busca por conduzir atitudes e posturas dos sujeitos – ou seja, instaurando padrões de normalidade – e a construção de visibilização das identidades LGBT com base no processo de transgressão das normas impostas.

No campo da sociologia da educação, as relações entre família e escola são também de grande interesse por suas contribuições para se compreender as condições conferidas por marcas socioculturais específicas. Nessa direção, Cláudio Marques Martins Nogueira, Tânia de Freitas Resende e Maria José Braga Viana enfatizam em seu artigo os processos sociais de desempenho escolar de alunos da rede pública de Belo Horizonte, relacionando-os às condições objetivas de suas famílias, aparentemente semelhantes do ponto de vista macrossociológico.Tomandocomo fontes as entrevistas com as famílias, o perfil do estabelecimento de ensino frequentado e os resultados na Prova Brasil, destacam a mobilização existente no interior de uma relação concreta, envolvendo uma família, um filho e uma escola específica mais ou menos apta a estimular e a fazer frutificar os esforços educativos que se estabelecem nessa rede de relações entre família, aluno e escola.

O último artigo adensa as contribuições da observação e imersão na realidade, estudadas com base em entrevistas, analisadas com sensibilidade ético-estética na recomposição escrita dos acontecimentos pesquisados. Stela Guedes Caputo traz à tona um tema que é ferida e, portanto, muitas vezes silenciado: a intolerância religiosa. O artigo evidencia, num trabalho que prima pela perspectiva dos estudos do cotidiano, o caso de terreiros de candomblé e das aprendizagens que eles ensejam, buscando responder a perguntas tais como: “O que aconteceria se esses conhecimentos pudessem ser destacados, valorizados, estimulados por professores e professoras de história e culturas africanas? Será que, quanto maior é o silenciamento, maiores são o racismo, o conservadorismo e a intolerância religiosa?”.

Em consonância com vários textos desta edição da RBE, publica-se a resenha de Lea Pinheiro Paixão, na qual salienta contribuições relevantes e originais do livro Família & escola: novas perspectivas de análise, organizado por Geraldo Romanelli, Maria Alice Nogueira e Nadir Zago.

A RBE, com vista a sua internacionalização on-line, espera com mais esta publicação dar continuidade e ampliar as fronteiras na direção da necessária e sempreurgente articulação entre a pesquisa acadêmico-científica e a sociedade em geral,pondo em circulação seus avanços e questionamentos no intuito de mobilizar outrasproposições na área da educação, bem como fortalecer elementos motivadores para gestão e avaliação de políticas educativas.

Rio de Janeiro, julho de 2015 569Revista Brasileira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015
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