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Formas e manifestações da transdisciplinaridade na produção científico-académica em Portugal* * Os autores agradecem ao Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e à Fundação para a Ciência e Tecnologia pelo apoio financeiro dado ao projeto de doutoramento da primeira autora deste artigo (SFRH/BD/68461/2010).

FORMS AND DEMONSTRATIONS OF TRANSDISCIPLINARITY IN THE ACADEMIC-SCIENTIFIC OUTPUT IN PORTUGAL

FORMAS Y MANIFESTACIONES DE LA TRANSDISCIPLINARI EDAD EN LA PRODUCCIÓN CIENTÍFICO-ACADÉMICA EN PORTUGAL

Resumos

Este artigo decorre de projeto de investigação que procura, em última instância, contribuir para clarificar o sentido atribuído à introdução de áreas de formação transdisciplinar no âmbito do currículo escolar do ensino básico. Assumindo os contornos de uma pesquisa de natureza exploratória, elege como foco de análise as formas e manifestações da transdisciplinaridade na produção científico-académica realizada em Portugal. Os resultados da análise empreendida apontam para cinco ideias-chave, que se conectam por uma intencionalidade que dá primazia à compreensão holística dos fenómenos sociais, configurando a transdisciplinaridade, como: (1) um lugar de evasão dos quotidianos rotinizados; (2) um caminho para a equidade social e os valores humanos; (3) um novo enquadramento intelectual; (4) um novo modelo de organização dos conhecimentos escolares; e (5) um modelo ideal de equipa.

transdisciplinaridade; produção científico-académica; Portugal


This paper is part of a research project that seeks to help clarify the meaning attributed to the introduction of transdiciplinary areas within a basic education curriculum. Assuming the characteristics of an exploratory research, the analysis focused on the forms and demonstrations of transdisciplinarity in the academic-scientific output in Portugal. The results of this analysis point out five key ideas, connected with an holistic understanding of social phenomena, that characterize the transdisciplinarity as: (1) a place of escape from daily routine; (2) a pathway to social equity and human values; (3) a new intellectual framework; (4) a new organizational model for the areas of school content; and (5) an ideal team model.

transdisciplinarity; academic-scientific output; Portugal


Este artículo se deriva de un proyecto de investigación que busca, en última instancia, ayudar a aclarar el significado asignado a la introducción de áreas de formación transdisciplinaria en el diseño curricular de la educación básica. Asumiendo contornos de una investigación de carácter exploratorio, el análisis se centró en las formas y manifestaciones de la transdisciplinariedad en el marco de la producción científico-académica realizada en Portugal. Los resultados obtenidos señalaron cinco ideas clave, vinculadas desde una intencionalidad que da primacía a la comprensión holística de los fenómenos sociales, y que caracterizan la transdisciplinariedad como: (1) un lugar para escapar de la rutina diaria; (2) un camino hacia la equidad social y los valores humanos; (3) un nuevo marco intelectual; (4) un nuevo modelo de organización del conocimiento escolar; y (5) un modelo ideal de equipo.

transdisciplinariedad; producción científico-académica; Portugal


INTRODUÇÃO

Perante o cenário das mutações profundas e complexas que atravessam todas as dimensões da vida humana, a ideia de enquadrar o desenvolvimento das políticas educativas no quadro de medidas que promovam a relação do indivíduo com os outros, consigo mesmo e com o meio ambiente é um discurso reiterado.

Nesse discurso, a transdisciplinaridade, inscrita em um movimento coletivo de desenvolvimento de novas abordagens que se propõem a atenuar a orientação redutora que prevalece na cultura ocidental, tem sido invocada como uma nova epistemologia para apreender e recolocar os problemas tanto no nível social e global da humanidade como no nível particular de cada ser humano. Ganha terreno, hoje, como um movimento que busca uma nova atitude perante o saber e o modo de ser, em um território sujeito a pretensões que apelam para a necessidade indispensável de estabelecer pontes entre as diferentes disciplinas e vínculos entre a pluralidade de conhecimentos, contrariando por essa via o fenómeno avassalador da especialização (Pombo, 2005______. Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Liinc em Revista, Rio de Janeiro: Laboratório Interdisciplinar em Informação e Conhecimento, v. 1, n. 1, p. 3-15, 2005. Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/view/186>. Acesso em: 24 jan. 2012.
http://revista.ibict.br/liinc/index.php/...
) e os processos redutores de racionalização seletiva (Gómez, 2005Gómez, M. N. A vinculação dos conhecimentos: entre a razão mediada e a razão leve. Liinc em Revista, Rio de Janeiro: Laboratório Interdisciplinar em Informação e Conhecimento, v. 1, n. 1, p. 16-37, 2005. Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/view/187>. Acesso em: 24 jan. 2012.
http://revista.ibict.br/liinc/index.php/...
).

É possivelmente a partir da década de 1990 que encontramos reflexões mais sistemáticas sobre a transdisciplinaridade. Reflexões que têm contribuído para que sua visibilidade fosse ganhando corpo de forma progressiva e, provavelmente, novos contornos em diferentes áreas do conhecimento, da educação e da formação, testemunhando assim o alcance e a relevância desse movimento no mundo contemporâneo.

No cenário educativo, a aspiração a uma ação articulada entre as disciplinas, em que a aprendizagem esteja mais próxima de situações reais, não é propriamente uma ideia nova. Remonta aos ideais pedagógicos do início do século XX, quando se falava na questão da globalização do ensino para romper com a rigidez dos programas escolares, da qual trataram pedagogos de reconhecido mérito. Entre eles, o médico, professor e psicólogo Jean-Ovide Decroly (1871-1932), o pedagogo Celestin Freinet (1896-1966), bem como os filósofos e pedagogos norte-americanos John Dewey (1859-1952) e William Kilpatrick (1871-1965), ou os soviéticos Pier Blonsky (1884-1941) e Nadja Krupskaia (1869-1939).1 1 Para uma visão global das metodologias propostas por esse conjunto de pedagogos, será útil consultar a página dedicada à “Inter-transdisciplinaridade e transversalidade” (http://www.inclusao.com.br/projeto_textos_48.htm), desenvolvida no âmbito do Programa de Formação Contínua do Instituto de Paulo Freire, que tem estado fortemente implicado na promoção de uma reorientação da visão de educação a partir do legado de Paulo Freire.

Embora vários autores associem o nascimento do termo “transdisciplinaridade” a Jean Piaget (1896-1980), na realidade parece ter sido o astrofísico Erich Jantsch (1929-1980) quem primeiro definiu formalmente esse conceito, em um artigo intitulado “Inter- and transdisciplinary university: a systems approach to education and innovation”, publicado em março de 1970 no primeiro número do primeiro volume do jornal Policy Sciences (Jantsch, 1970Jantsch, E. Inter- and transdisciplinary university: a systems approach to education and innovation. Policy Sciences, Amsterdam: American Elsevier Publishing Company, v. 1, n. 1, p. 403-428, mar. 1970.). E, ao fazê-lo, fê-lo, antes de mais, para chamar a atenção ao perigo de nos discursos sobre a educação se dar primazia a questões de natureza mais técnica, em detrimento de questões mais profundas, incluindo aqui a dimensão política, ou ideológica, mais associada, portanto, aos pressupostos e às finalidades que deveriam traduzir as opções estratégicas e as prioridades das políticas educativas que em um determinado momento se afirmam.

Para Jantsch (idem, p. 403)Jantsch, E. Inter- and transdisciplinary university: a systems approach to education and innovation. Policy Sciences, Amsterdam: American Elsevier Publishing Company, v. 1, n. 1, p. 403-428, mar. 1970., os sistemas de ensino e, em particular, as universidades deveriam ser considerados como um sistema de educação/inovação integral com o propósito de “aumentar a capacidade da sociedade para a autorrenovação contínua”. Nesse enquadramento, entende a transdisciplinaridade como um princípio organizacional dinâmico, ou seja, com potencial para gerir de forma inovadora as estruturas criadas nas universidades. Por oposição à disciplinaridade, um princípio que considera estático, por negligenciar o caráter sistémico dos problemas que ocorrem nos processos sociais, a transdisciplinaridade colocaria a descoberto a ação criativa humana, ou a vertente subjetiva, no processo de conceção, realização e controlo daquelas estruturas.

É também por essa altura (anos 1970) que a transdisciplinaridade ganha o espaço discursivo de grandes organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que passaram a apoiar e a promover debates, seminários e colóquios, chamando atenção, precisamente, para a necessidade de melhorar a vinculação entre conhecimentos, bem como as relações entre universidade e sociedade em um contexto de crise epistemológica que irromperia à luz de uma crise política e social (Gómez, 2005Gómez, M. N. A vinculação dos conhecimentos: entre a razão mediada e a razão leve. Liinc em Revista, Rio de Janeiro: Laboratório Interdisciplinar em Informação e Conhecimento, v. 1, n. 1, p. 16-37, 2005. Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/view/187>. Acesso em: 24 jan. 2012.
http://revista.ibict.br/liinc/index.php/...
).

Marcantes nesse sentido foram o colóquio “A Ciência Diante das Fronteiras do Conhecimento”, o congresso “Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o século XXI”, o “I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade” e o Congresso Internacional de Transdisciplinaridade “Que Universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade”, todos eles organizados ou apoiados pela UNESCO entre as décadas de 1980 a 1990 (Sommerman, 2003Sommerman, A. Formação e transdisciplinaridade: uma pesquisa sobre as emergências formativas do CETRANS. 2003. Dissertação (Mestrado) - Universidade Nova de Lisboa, Portugal; Université François Rabelais de Tours, França, 2003.). Esses eventos foram progressivamente clarificando e estabelecendo os três pilares da transdisciplinaridade − a complexidade, a existência de diferentes níveis de realidade e o terceiro incluído −, cujo desenvolvimento em muito se deve ao trabalho do físico teórico Basarab Nicolescu, presidente e fundador do Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires (fundado em 1987).

Deve destacar-se ainda, nesse âmbito, o conjunto de artigos constante nos três livros de leitura incontornável no domínio da educação e transdisciplinaridade (CETRANS, 2000CETRANS (Coord.). Educação e transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2000., 2002______. Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom, 2002., 2006______. Educação e transdisciplinaridade III. São Paulo: Triom, 2006.), que representam um dos produtos mais importantes do trabalho desenvolvido pelos investigadores do Centro de Educação Transdisciplinar (CETRANS), criado no Brasil em 1998.

Cabe também destacar a visibilidade e o interesse crescentes dessa abordagem no seio da comunidade científica. Pela diversidade de enfoques e posições assumidas em torno de questões que problematizam o futuro das culturas e sociedades, da ciência e tecnologia, da economia e política, do meio ambiente e do planeta, dos indivíduos e da humanidade, cumpre salientar o tributo do jornal internacional Futures. O volume 36, da edição n. 4, de 2004, é integralmente dedicado à transdisciplinaridade e inclui uma diversidade de artigos que, em seu conjunto, apelam para a necessidade urgente do desenvolvimento de novos conceitos, abordagens e métodos que permitam compreender a complexidade da realidade social e os problemas que se colocam ao seu desenvolvimento sustentável. Embora a transdisciplinaridade situe-se no coração das discussões desse número, seu entendimento, tal como analisado por Lawrence e Després (2004)Lawrence, R. J.; Després, C. Futures of transdisciplinarity. Futures, Lincoln, UK: Elsevier, v. 36, n. 4, p. 397-405, may, 2004., tende a variar de autor para autor.

Não sendo possível afirmar um consenso generalizado sobre seu significado, há no entanto um conjunto de elementos comuns que podem ser identificados e sistematizados do seguinte modo:

  1. A transdisciplinaridade aborda a complexidade da ciência e desafia a fragmentação do conhecimento, reconhecendo nomeadamente que o processo de produção de conhecimento é de natureza híbrida, não linear e reflexiva;

  2. A transdisciplinaridade reconhece e valoriza os múltiplos pontos de vista e os interesses diversificados que atravessam os contextos locais, pelo que valoriza a construção negociada do conhecimento em relação a um determinado contexto;

  3. A transdisciplinaridade não permanece inscrita na ótica disciplinar, pressupondo que o conhecimento é o resultado de um processo intencional que se desenvolve na experiência intersubjetiva, tendo em vista a integração de vários tipos de conhecimento (inclusive o conhecimento prático dos sujeitos).

Resgatando noções como integral, inclusão, complexo, sinergia, abertura, tolerância, intersubjetividade, humildade, diversidade, pluralidade etc, também são vários os investigadores que, no contexto brasileiro, questionam os fundamentos responsáveis pelas bases epistemológicas, ontológicas e metodológicas que fundamentam as atuais pesquisas e práticas pedagógicas no domínio da formação de professores. A recente publicação da obra dedicada ao tema Complexidade e transdisciplinaridade em educação: teoria e prática docente, organizada por Morais e Nava (2010)Morais, M. C.; Nava, J. M. (Orgs.). Complexidade e transdisciplinaridade em educação: teoria e prática docente. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2010., não só revela a importância crescente que a temática tem despertado nesse âmbito, como reúne um conjunto de textos importantes para o aprofundamento de questões mais pragmáticas e que passam nomeadamente por saber: Como trabalhar as múltiplas realidades presentes nos ambientes de aprendizagem? Como fazer com que o ambiente de aprendizagem seja um espaço de transformação individual e coletiva? Como lidar com os tradicionais dualismos: razão/sentimento, democracia/autoridade, resposta/pergunta, consumir/construir etc.?

Depois do debate que se foi processando, ao longo de um período extenso, em torno da relação entre transdisciplinaridade e educação, parece que as pessoas estão cada mais consciencializadas da necessidade de entender e atuar no mundo da educação por intermédio de caminhos e práticas que contemplem relações de interdependência perante os modos de conceber e fazer o conhecimento.

Apesar dos significativos desenvolvimentos já realizados, faltam-nos aparentemente estudos que de forma mais sistemática, global e problematizadora tomem como principal preocupação a construção da ideia de formações transdisciplinares. Uma ideia que em Portugal constituiu-se em 2001 no âmbito da reorganização curricular do ensino básico e que, depois de uma década marcada por movimentos de rutura, divergência e até contraditórios, volta a encontrar eco no âmbito da Estratégia Global de Desenvolvimento do Currículo Nacional. Particularmente no contexto do Projeto Metas de Aprendizagem, em que se (re)assume a posição das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) enquanto área de formação transdisciplinar e define-se pela primeira vez, no nosso país, um conjunto de saberes de natureza integradora e transversal que se pretende que os alunos adquiram e desenvolvam ao longo do ensino básico.

Como seria de esperar, pela relativa juventude da abordagem transdisciplinar no nosso país, os estudos que fazem um ponto de situação dessa relação – transdisciplinaridade/educação − são muito escassos. Sem falar diretamente sobre transdisciplinaridade, o conhecimento produzido no âmbito do Projeto Mathesis, 2 2 O Projeto Mathesis tinha um carácter duplo: “Por um lado, visava a elucidação teórica do conceito de interdisciplinaridade e a compreensão das questões que hoje se colocam aos diversos saberes em termos da sua articulação e da reorganização das suas fronteiras. Em segundo lugar, tinha como objectivo constituir-se como elemento interveniente no processo de reorganização curricular que a escola terá que operar de forma cada vez mais profunda e como dispositivo de apoio à experimentação de práticas interdisciplinares e de integração dos saberes”. Disponível em <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/mathesis/>. Acesso em: 25 out. 2014. que funcionou de 1990 a 1992 com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, além de nos oferecer importantes contributos para a superação do equívoco que envolve esse conceito no campo da educação, oferece-nos também perspetivas mais alargadas sobre os desafios que hoje se colocam aos processos de reorganização curricular que a escola terá que operar de forma cada vez mais profunda, 3 3 Ver, por exemplo, os escritos que abordam a “A interdisciplinaridade. Conceito, problemas e perspectivas” (Pombo, 1993, 1994), também disponibilizados on-line em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/mathesis/>. Acesso em: 25 out. 2014. que, como pudemos observar numa primeira aproximação às bases teóricas da transdisciplinaridade (Cruz, 2011______. Contributos para (re)pensar a integração curricular das TIC como área de formação transdisciplinar no ensino básico. In: Dias, P.; Osório, A. (Eds.). Actas da VII Conferência Internacional de Tecnologias de Informação e Comunicação na Educação, Challenges 2011. Braga: Centro de Competência da Universidade do Minho, 2011. p. 121-134.), nos remetem para a necessidade de enfrentar uma transformação da conceção de conhecimento e dos processos de aquisição do mesmo em contexto escolar.

Apesar desses contributos, não temos ainda uma cartografia que traduza as formas e manifestações da transdisciplinaridade nas pesquisas que se têm vindo a desenvolver em Portugal. Situando esse interesse em um projeto de investigação mais amplo, 4 4 Projeto de investigação subordinado ao tema “As TIC como formação transdisciplinar. Potencialidades e dificuldades de implementação no contexto do ensino básico em Portugal”, em curso no âmbito do Programa de Doutoramento em Educação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia através de suporte financeiro (SFRH/BD/68461/2010). cujo propósito é o de interrogar os limites da implementação das TIC como área de formação transdisciplinar no contexto do ensino básico em Portugal e seu potencial em termos de mudança e inovação curricular, pareceu-nos importante perceber o alcance que a transdisciplinaridade tem vindo a suscitar nos trabalhos de investigação desenvolvidos no âmbito de cursos de pós-graduação ministrados por instituições de ensino superior portuguesas. É tempo, então, de passarmos à explicitação das opções e dos procedimentos metodológicos seguidos para este trabalho de análise exploratória.

OPÇÕES E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Além da definição do tipo de produção (dissertação de mestrado e tese de doutoramento) para a delimitação do corpus documental, pensámos que seria pertinente tentar identificar trabalhos produzidos nas universidades que integram o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), 5 5 O CRUP “é uma entidade de coordenação do ensino universitário em Portugal e integra como membros efetivos o conjunto das Universidades públicas e a Universidade Católica Portuguesa” (http://www.crup.pt/). procurando com essa opção constituir uma amostra significativa do sistema nacional do ensino superior português.

A pesquisa e a seleção do corpus de análise decorreram durantes as duas primeiras semanas do mês de janeiro de 2012, processos que implicaram também a tomada de decisões que terão muito provavelmente reflexos importantes nos resultados obtidos. Em primeiro lugar, optou-se por fazer a pesquisa das dissertações e teses via internet nos repositórios institucionais de cada universidade, cuja listagem de membros e as ligações para os repositórios respetivos apresentam-se no Quadro 1.

Quadro 1
Membros do CRUP e respetivos repositórios institucionais

O processo de pesquisa e levantamento das produções académicas foi realizado com as funcionalidades de busca avançada disponíveis nos repositórios, recorrendo às opções de pesquisar em todo o repositório por meio da conjunção das seguintes palavras-chave: transdisciplinaridade, transdisciplinar, tese. Com base na leitura dos resumos das produções que iam sendo identificadas, pudemos observar que o tema central de nossa análise – a transdisciplinaridade – raramente se manifestava de maneira explícita, pelo que foi necessário realizar leituras transversais de outras partes dos documentos identificados. Essa exigência acabaria por justificar a decisão de se considerar para análise apenas as produções disponibilizadas na íntegra, ainda que a questão da transdisciplinaridade não estivesse presente de forma explícita no título, no resumo ou nas palavras-chave identificadas pelo autor do texto.

Além desse critério, para a constituição do corpus documental, optámos por definir normas de seleção baseadas na frequência de ocorrência do termo “transdisciplinaridade”, mas também na frequência de outros conceitos que parecem estar presentes, e acompanhar regularmente os estudos e trabalhos que tratam a problemática da transdisciplinaridade na educação, como pudemos observar em revisões anteriores (idem, ibidem). Nessa fase, decidimos, assim, incluir as produções cujo somatório dos vocábulos transdisciplinar, interdisciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar e transversal (incluindo as palavras deles derivadas por sufixação, como, transdisciplinaridade, interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transversalidade), nas suas formas singular e plural, fosse igual ou superior a cinquenta ocorrências.

Embora, inicialmente, procurássemos incidir nossa análise nos estudos desenvolvidos no campo da educação, decidimos não restringir o levantamento a esse campo, admitindo que os trabalhos realizados em outros campos não só nos permitiriam descobrir outras áreas em que esse conceito tem sido apropriado, mas também poderiam enriquecer as interpretações resultantes do trabalho de análise. Essa decisão encontra também razões de peso no facto de nos termos deparado com um número muito reduzido de trabalhos no campo da educação que pudessem ser incluídos no estudo empírico segundo os critérios de seleção já referidos.

Em síntese, o conjunto das produções cientifico-académicas selecionadas para análise, cujas referências damos conta no Quadro 2, obedeceu cumulativamente aos seguintes critérios de seleção: 1) produções de natureza académica realizadas no âmbito de cursos de pós-graduação ministrados em universidades com assento no CRUP; 2) produções disponibilizados on-line na íntegra a partir dos respetivos repositórios institucionais; 3) produções em que a questão da transdisciplinaridade é abordada, ainda que não de forma explícita no título, no resumo ou nas palavras-chave; e 4) produções cujo somatório de palavras-chave previamente definidas (trans-, inter-, multi-, pluri- e transversal) é igual ou superior a cinquenta ocorrências.

Quadro 2
Corpus documental selecionado para análise

Selecionado o corpus documental, procedemos à recolha de dados de cada uma das produções, tendo sido elaborada, para esse efeito, uma base de dados no MS Excel de acordo com as seguintes entradas:

  1. Instituição: registo do nome da universidade onde o trabalho foi produzido;

  2. Grau: registo abreviado de tipo de trabalho produzido – dissertação de mestrado (M) ou tese de doutoramento (D);

  3. Área: registo da área de estudo que figura no documento;

  4. Ano: registo do ano que figura no documento (nem sempre coincidente com o ano de defesa);

  5. Autor: registo do nome do autor do trabalho;

  6. Título: registo do título completo do trabalho;

  7. Descritores: registo das palavras-chave de acordo com a fonte original consultada;

  8. Foco: registo do foco do estudo, expresso frequentemente na clarificação do propósito ou do objetivo geral do estudo;

  9. Frequência de palavras-chave: registo do número de ocorrências de cada uma das palavras-chave previamente definidas (trans-, inter-, multi-, pluri- e transversal).

Além dessa forma de organizar os dados, procedemos ao levantamento de todas as manifestações presentes nas produções selecionadas a propósito da categoria de análise central deste estudo (transdisciplinaridade), tendo-se procedido à transcrição integral, em um ficheiro independente, das passagens consideradas relevantes para o estudo. Com base nesse material, segue-se a apresentação dos resultados, caracterizando-se o corpus documental e a representação do espaço cartográfico que a transdisciplinaridade parece revelar no conjunto dos trabalhos analisados.

CARACTERIZAÇÃO GERAL DO CORPUS DOCUMENTAL

A filtragem efetuada por meio da aplicação dos critérios de seleção anteriormente explicitados permitiu-nos identificar, recolher e analisar 12 produções científico-académicas, concluídas entre 1999 e 2009 e apresentadas em apenas 5 das 16 universidades consideradas: 4 na Universidade de Lisboa; 1 na Universidade do Porto; 1 na Universidade Técnica de Lisboa; 5 na Universidade do Minho; e 1 na Universidade da Madeira.

Dessas 12 produções, apenas 3 foram apresentadas para a obtenção do grau de doutor, no âmbito das ciências sociais (Madeira, 2007Madeira, C. O hibridismo nas artes performativas em Portugal. 2007. Tese (Doutoramento) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2007.), do planeamento urbanístico (Castelbranco, 2009Castelbranco, A. Contributo para a teorização da sustentabilidade da arquitectura e do planeamento territorial. Proposta para o estudo do território da bacia de drenagem a norte de Abrantes. 2009. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa, 2009.) e da educação (Silva, 2006Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.). Das restantes produções (n = 9), apresentadas para a obtenção do grau de mestre, 5 situam-se no campo da educação ou das ciências da educação, designadamente nas especialidades em formação de professores (Abrunhosa, 2008Abrunhosa, S. Concepções dos professores do 1° ciclo do ensino básico sobre a educação para a cidadania: as competências do professor no âmbito da abordagem transversal da educação para a cidadania. 2008. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, 2008.), tecnologias educativas (Cruz, 2009Cruz, E. Análise da integração das TIC no currículo nacional do ensino básico. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, 2009.), desenvolvimento curricular (Castro, 2006Castro, C. A influência das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no desenvolvimento do currículo por competências. 2006. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.) e supervisão pedagógica (Faria, 2007Faria, E. O estudo do meio como fonte de aprendizagem para o ensino da história: concepções de professores do 1° CEB. 2007. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2007.; Gouveia, 2005Gouveia, M. F. Projecto curricular de escola, um desafio à organização curricular da escola: um estudo em escolas do 1° ciclo do ensino básico da RAM. 2005. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Ciências da Educação, Universidade da Madeira, 2005.). Fora desse âmbito, foram identificadas 4 dissertações inseridas nas áreas do conhecimento da filosofia (Aguiar, 2009Aguiar, G. Elementos transpessoais na consciência da natureza humana: uma investigação da ecologia transdisciplinar nas teorias de Pierre Weil e Leonardo Boff. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2009.), da psicologia do desenvolvimento (Ferreira, 1999Ferreira, M. de F. O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação. 1999. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, 1999.), dos sistemas de informação (Duarte, 2006Duarte, J. Estudo sobre a disciplina de introdução à informática nas engenharias. 2006. Dissertação (Mestrado) - Escola de Engenharia, Universidade do Minho, 2006.) e dos estudos da criança (Oliveira, 2009Oliveira, A. O lugar e o não lugar da expressão plástica/artes plásticas nos projectos curriculares e nas acções dos educadores de infância. 2009. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, 2009.).

Formas e manifestações da transdisciplinaridade

Os resultados da análise empreendida revelam, em primeiro lugar, que a transdisciplinaridade tem ocupado um espaço muito limitado e muito superficial nas discussões que se movem no espaço científico-académico considerado no escopo deste trabalho. Ainda que a transdisciplinaridade não seja verdadeiramente uma categoria de análise central no espaço em que nos movemos, as incursões teóricas realizadas pelos autores das produções analisadas raramente deixam vislumbrar os contornos específicos desse conceito, mesmo nos poucos casos em que a leitura do propósito nos levaria a criar, a priori, expectativas em relação a essa matéria, como aconteceu quando nos deparámos com a seguinte intenção: “O propósito da investigação é estudar de que forma a implementação da formação transdisciplinar TIC influencia o processo de desenvolvimento do currículo por competências” (Castro, 2006Castro, C. A influência das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no desenvolvimento do currículo por competências. 2006. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006., p. 82).

Apesar da referência explícita ao termo transdisciplinar, que ocorre, aliás, em 43 instâncias desse documento, a análise conceptual fica circunscrita ao âmbito das orientações constantes do decreto-lei n. 6/2001, de 18 de janeiro, que, como é do conhecimento geral, não oferece uma base sólida e sustentável, tanto para que se possa clarificar o conceito como para inferir os movimentos, às dinâmicas e responsabilidades a assumir no sentido do desenvolvimento e da realização das designadas formações transdisciplinares.

Há, no entanto, dois trabalhos que se destacam no exercício crítico sobre a transdisciplinaridade, buscando uma diversidade de referentes e contributos teóricos pertinentes face ao campo de investigação em que tal conceito parece ter aplicação. Um deles, O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação (Ferreira, 1999Ferreira, M. de F. O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação. 1999. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, 1999.), parte de aportes provenientes da pesquisa sobre os modelos de equipas que operam no contexto da intervenção precoce (e.g. Bailey, 1984Bailey, D. A triaxial model of the interdisciplinary team and group process. Exceptional Children, Fairfax Virginia: George Mason University, v. 51, n. 1, p. 17-25, sept. 1984.; Bergen, 1994Bergen, D. Defining development risk and transdisciplinary assessment. In: ______. (Ed.). Assessment methods for infants and toddlers:transdisciplinary team approaches. New York and London: Teachers College, Columbia University, 1994. p. 1-10.; Foley, 1990Foley, G. Portrait of the arena evaluation: assessment in the transdisciplinary approach. In: Gibbs, E.; Teti, D. (Eds.). Interdisciplinary assessment of infants: a guide for early intervention professionals. Baltimore: Paul H. Brooks Publishing Co., 1990, p. 271-286.; Linder, 1990Linder, T. Transdisciplinary play-based assessment a functional approach to working with children. Baltimore: Paul H. Brooks Publishing Co., 1990.). O outro, o estudo com o tema Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia – Brasil (Silva, 2006Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.), procura referentes teóricos mais circunscritos ao estudo dos modelos de organização curricular, entre os quais se destaca a mobilização de contributos de autores como Japiassu (1976)Japiassu, H. Interdisciplinaridade epatologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976., Morin (1999)______. Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EDUFRN, 1999., Zabalza (1998)Zabalza, M. Planificação e desenvolvimento curricular na escola. Portugal: ASA Editores, 1998. e Pombo (2004)______. Interdisciplinaridade: ambições e limites. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2004..

Uma análise mais detalhada dos dados também nos permite observar uma diversidade de perspetivas e enfoques vinculados a distintos interesses e fundamentos, entre os quais se movem significativos argumentos que colocam em causa nossa incapacidade para lidar com uma variedade de problemas sociais complexos, tais como os que resultam das preocupações relacionadas com o consumo e a decomposição de recursos naturais (Castelbranco, 2009Castelbranco, A. Contributo para a teorização da sustentabilidade da arquitectura e do planeamento territorial. Proposta para o estudo do território da bacia de drenagem a norte de Abrantes. 2009. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa, 2009.), com a exigência de qualidade da prestação dos serviços sociais (Ferreira, 1999Ferreira, M. de F. O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação. 1999. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, 1999.) e, bem assim, com o reconhecimento das necessidades diferenciadas e emergentes nos contextos escolares (Gouveia, 2005Gouveia, M. F. Projecto curricular de escola, um desafio à organização curricular da escola: um estudo em escolas do 1° ciclo do ensino básico da RAM. 2005. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Ciências da Educação, Universidade da Madeira, 2005.). Usualmente, os discursos que circulam a transdisciplinaridade são suportados por oposição às ideias de compartimentação e fragmentação do conhecimento (científico e profissional) e à divisão sectorial de responsabilidades que predomina nas sociedades atuais, “onde a velocidade com que se desvalorizam as competências curriculares é elevada” (Madeira, 2007Madeira, C. O hibridismo nas artes performativas em Portugal. 2007. Tese (Doutoramento) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2007., p. 24).

Em particular, no campo da educação, de modo geral, a transdisciplinaridade é associada à perspetiva de aprendizagem ao longo da vida, ao desenvolvimento integral do indivíduo, à articulação e integração de diversos saberes, ao desenvolvimento dos valores humanos, à promoção de competências de carácter transversal e à emancipação intelectual. Quase sempre está vinculada à ideia de mudança e inovação educacional e, por isso, surge também muitas vezes associada à necessidade premente de mudança das práticas de gestão curricular, à valorização das experiências vividas e preocupações sentidas pelos alunos em contexto escolar e fora deste, assim como à valorização do trabalho sobre temas e problemas relevantes da comunidade e da sociedade. Apesar disso, e, portanto, do reconhecimento do potencial da transdisciplinaridade para libertar o pensamento das chamadas convenções tradicionais em direção à mudança, à inovação e à construção de um conhecimento mais amplo, os trabalhos não oferecem ao leitor as formas de materialização dessas ideias, antes nos situam em um plano intimamente teórico.

Em termos mais globais, a representação do espaço cartográfico da transdisciplinaridade no conjunto dos trabalhos analisados pode ser definida por meio de cinco ideias-chave que, no entanto, não podem ser reduzidas a um plano linear. Elas são de facto ideias emergentes e induzidas pelo processo de análise empreendido, que nos parecem adequadas precisamente para descrever as formas e as manifestações da transdisciplinaridade nos contextos específicos das produções analisadas, mas que não devem ser vistas de forma isolada. Trata-se, como veremos pela leitura dos parágrafos que se seguem, de ideias que se entrecruzam e se exprimem baseadas em um mesmo núcleo central, no qual somos confrontados com uma lógica comum, ou uma racionalidade análoga, baseada na ideia de busca holística da compreensão de fenómenos em diversos domínios da atividade humana, incluindo naturalmente os fenómenos de natureza curricular.

Ideia-chave 1 A transdisciplinaridade como um lugar de evasão dos cotidianos rotinizados

Fortemente associado ao conceito de híbrido na esfera artística, o uso do conceito transdisciplinaridade ganha as mesmas características, levando a que um e outro se apresentem hoje como um novo paradigma para se reconstituir um conhecimento mais amplo, em que teoria e prática vão complementando-se mutuamente por meio do diálogo e da partilha de conhecimentos entre cientistas e especialistas de diferentes áreas. A metáfora que enlaça esses dois conceitos poderá traduzir-se na ideia de transdisciplinaridade como um lugar de evasão dos cotidianos rotinizados ou uma arte da enxertia, por meio da qual as incorporações desenvolvidas “resultariam numa dessacralização dos cânones, que se descontextualizam das suas convenções tradicionais e locais para adquirirem novas formas e novos territórios” (idem, p. 16).

Nesses ambientes excecionais, lugares quase utópicos, as abordagens transdisciplinares, de natureza holística, procuram a mistura, a intermutabilidade e a cumplicidade de papéis, sem uma ordem previamente fixada. Porém, como faz notar Alexandro Melo, “não se trata, aqui, de conceber a transdisciplinaridade como uma espécie de cocktail experimentalista em que se mistura o maior número possível de ingredientes com vista a obter o mais extravagante efeito possível”. O ponto de partida para a experiência viva da transdisciplinaridade, diz-nos ainda o mesmo autor, “é a identificação dos pontos de coincidência ou complementaridade que existem entre os universos dos dois artistas, ambos com uma marca pessoal bem vincada” (Melo, 2004, p. 19 apud Madeira, 2007Madeira, C. O hibridismo nas artes performativas em Portugal. 2007. Tese (Doutoramento) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2007., p. 356).

A ideia de transdisciplinaridade como um lugar de evasão dos cotidianos rotinizados, embora seja mais expressiva no estudo subordinado ao tema O hibridismo nas artes performativas em Portugal (Madeira, 2007Madeira, C. O hibridismo nas artes performativas em Portugal. 2007. Tese (Doutoramento) - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2007.), surge igualmente destacada nos diversos trabalhos em análise, nomeadamente quando se reconhece que a transdisciplinaridade, em uma perspetiva de desenvolvimento integral do indivíduo, não implica, de modo algum, a desvalorização da função cognitiva da educação. Antes nos interpela a ir mais longe, para “combater” a lógica de uniformização e de afunilamento intelectual, vertendo os padrões existentes para um âmbito mais alargado e colocando em prática modelos de intervenção que viabilizem a contextualização e articulação dos saberes (Abrunhosa, 2008Abrunhosa, S. Concepções dos professores do 1° ciclo do ensino básico sobre a educação para a cidadania: as competências do professor no âmbito da abordagem transversal da educação para a cidadania. 2008. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, 2008.), a procura de novas soluções para a resolução de problemas que atravessam transversalmente todos os ramos do conhecimento (Duarte, 2006Duarte, J. Estudo sobre a disciplina de introdução à informática nas engenharias. 2006. Dissertação (Mestrado) - Escola de Engenharia, Universidade do Minho, 2006.), o desenvolvimento dos valores humanos (Aguiar, 2009Aguiar, G. Elementos transpessoais na consciência da natureza humana: uma investigação da ecologia transdisciplinar nas teorias de Pierre Weil e Leonardo Boff. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2009.), o desenvolvimento do respeito mútuo e o estímulo à compreensão das perspetiva alheias (Ferreira, 1999Ferreira, M. de F. O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação. 1999. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, 1999.).

Ideia-chave 2 A transdisciplinaridade como um caminho para a equidade social e os valores humanos

A ideia de transdisciplinaridade como um caminho para a equidade social e os valores humanos é especialmente substantiva nos estudos ancorados em uma visão holística da educação, conclamando a necessidade de uma reflexão profunda e permanente da condição de cidadania dos alunos e da sociedade em que vivem. Sob argumentos diversos, ainda que se sobreponha a ideia de que a simples acumulação de informação é manifestamente insuficiente, nos dias de hoje, para o desenvolvimento integral do indivíduo como cidadão democrático, Abrunhosa (2008)Abrunhosa, S. Concepções dos professores do 1° ciclo do ensino básico sobre a educação para a cidadania: as competências do professor no âmbito da abordagem transversal da educação para a cidadania. 2008. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, 2008. discorre sobre a evolução dos conceitos de cidadania e de formação cívica e, sublinhando a importância da temática da transdisciplinaridade na educação, sobretudo ao nível do 1º ciclo do ensino básico, identifica a necessidade de alterações profundas em “várias dimensões da instituição escolar, desde o currículo, à avaliação, à formação dos professores” (idem, p. 41).

Em um registo distinto, embora complementar, Aguiar (2009)Aguiar, G. Elementos transpessoais na consciência da natureza humana: uma investigação da ecologia transdisciplinar nas teorias de Pierre Weil e Leonardo Boff. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2009., ao enfatizar o estudo da categoria transpessoal como um estágio de evolução da consciência humana, aprofunda a ideia de transdisciplinaridade como um caminho para a equidade social e os valores humanos, conduzindo-nos aos três pilares essenciais para a criação de uma cultura de paz e para o desenvolvimento dos valores humanos, preconizados por Pierre Weil (1924-2008): paz individual (ou paz consigo mesmo); paz social (ou paz com os outros); e paz ambiental (ou paz com a natureza). A visão holística da educação ganha aqui espaço não apenas porque a transdisciplinaridade surge como uma abordagem que se propõe superar os problemas inerentes à fragmentação disciplinar, mas também, e sobretudo, porque subjacente à argumentação expendida estende-se uma crítica à educação, situando o leitor no palco das práticas rotineiras de ensino e de aprendizagem, inalteradas ao longo do tempo, nas quais se tende a sobrevalorizar os aspetos intelectuais em detrimento dos sensoriais e afetivos. Nessa manifestação de transdisciplinaridade, outros conceitos que circulam na produção escrita em análise conectam-se, remetendo para o desejo do desenvolvimento do Ser valores que apelam para a liberdade, a autonomia, a criatividade (Castro, 2006Castro, C. A influência das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no desenvolvimento do currículo por competências. 2006. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.), o intercâmbio, a troca e o diálogo (Silva, 2006Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.).

Ideia-chave 3 A transdisciplinaridade como um novo enquadramento intelectual

A ideia de transdisciplinaridade como um novo enquadramento intelectual, de base holística, para a compreensão e inteligibilidade do todo, surge com particular destaque no estudo intitulado Contributo para a teorização da sustentabilidade da arquitectura e do planeamento territorial. Proposta para o estudo do território da bacia de drenagem a norte de Abrantes (Castelbranco, 2009Castelbranco, A. Contributo para a teorização da sustentabilidade da arquitectura e do planeamento territorial. Proposta para o estudo do território da bacia de drenagem a norte de Abrantes. 2009. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa, 2009.). Na base dessa posição ideológica acerca da finalidade da transdisciplinaridade – a compreensão das relações sistémicas entre as diferentes dimensões que enquadram um determinado fenómeno − encontram-se razões de natureza ontológica, epistemológica e metodológica que são suportadas teoricamente a partir dos pressupostos subjacentes ao Projeto Biosfera 2.

Trata-se de um projeto que, segundo Castelbranco (idem, p. 168), “serviu para enquadrar os princípios e os conceitos delineados na Carta da Transdisciplinaridade”. Se o preâmbulo dessa carta é suficientemente elucidativo para justificar a necessidade de construção de um novo olhar para fazer frente à “complexidade do nosso mundo” e, simultaneamente, combater a “lógica assustadora da eficácia pela eficácia”, já os artigos terceiro e quarto reúnem alguns elementos relevantes que antecipam sem dificuldade os princípios e pressupostos que sustentam a ousadia de pensar a transdisciplinaridade como um novo enquadramento intelectual. Nesse quadro, pressupondo que o formalismo excessivo, a rigidez das definições e o absolutismo da objetividade levam ao empobrecimento do conhecimento da realidade, defendendo-se uma lógica que faça emergir, da confrontação das disciplinas, dados novos que as articulem entre si, cumpre destacar os princípios de complementaridade e de abertura da transdisciplinaridade em relação à abordagem disciplinar tradicional.

Para ser porventura mais claro, Silva (2006)Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.socorre-se do pensamento de um leque alargado de teóricos no estudo das relações disciplinares (e.g. Japiassu, 1976Japiassu, H. Interdisciplinaridade epatologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.; Leite, 2003Leite, C. Para uma escola curricularmente inteligente. Porto: Edições ASA, 2003.; Morin, 1994Morin, E. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 1994.; Pombo, 1994______. A interdisciplinaridade. Conceito, problemas e perspectivas. In: Pombo, O.; Levy, T.; Guimarães, H. (Orgs.). A interdisciplinaridade:reflexão e experiência. 2. ed. rev. aum. Lisboa: Editora Texto, 1994. p. 8-14.; Santomé, 1998Santome, J. T. Globalização e interdisciplinaridade. O currículo integrado. Porto Alegre: Artmed, 1998.) e convida o leitor a imaginar uma escada na qual as modalidades de integração disciplinar (multi-, pluri-, inter- e transdisciplinaridade) corresponderão a cada degrau. À medida que se vai subindo a escada, o grau de integração disciplinar aumenta, condizendo a transdisciplinaridade ao “degrau que mais avança na superação da tão discutida fragmentação disciplinar” (Silva, 2006Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006., p. 146). Mas o importante nesse particular está em reconhecermos que os problemas sociais com os quais nos defrontamos hoje têm “uma abrangência que ultrapassa qualquer área de estudo específica” (Castelbranco, 2009Castelbranco, A. Contributo para a teorização da sustentabilidade da arquitectura e do planeamento territorial. Proposta para o estudo do território da bacia de drenagem a norte de Abrantes. 2009. Tese (Doutoramento) - Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa, 2009., p. 179), pelo que quase sempre somos confrontados com a possibilidade, ou o desejo, de conhecer a realidade a partir de ligações que se estabelecem “no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entre as disciplinas”, como sugere Weil (1993 apud Aguiar, 2009Aguiar, G. Elementos transpessoais na consciência da natureza humana: uma investigação da ecologia transdisciplinar nas teorias de Pierre Weil e Leonardo Boff. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2009., p. 80).

Ideia-chave 4 A transdisciplinaridade como um novo modelo de organização dos conhecimentos escolares

A filosofia subjacente à ideia de transdisciplinaridade como um novo modelo de organização dos conhecimentos escolares sustenta-se, em grande medida, nas práticas discursivas partilhadas no contexto da reorganização curricular do ensino básico consagrada no decreto-lei n. 2/2001, de 18 de janeiro, que, pela primeira vez na história da educação escolar em Portugal, coloca em causa o núcleo duro das invariantes organizacionais da escola, apontando um novo paradigma de inovação/mudança do sistema escolar alicerçado em uma visão articulada e sistémica de suas funções educativas: cultural, personalizadora e socializadora (Alonso, 1996 apud Alonso; Peralta; Alaiz, 2001Alonso, L.; Peralta, H.; Alaiz, V. Parecer sobre o projecto de "Gestão Flexível do Currículo". Lisboa: Ministério da Educação, 2001. Disponível em: < www.aph.pt/aph/download/avaliacao_GFC.rtf >. Acesso em: 24 jan. 2012.
www.aph.pt/aph/download/avaliacao_GFC.rt...
, p. 4).

Essa filosofia, sob diversos objetos e ângulos de análise, transparece claramente na maioria dos estudos analisados, tais como os que se inscrevem no âmbito das chamadas formações transdisciplinares, com destaque para as TIC (Castro, 2006Castro, C. A influência das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no desenvolvimento do currículo por competências. 2006. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.; Cruz, 2009Cruz, E. Análise da integração das TIC no currículo nacional do ensino básico. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, 2009.) e para a educação para a cidadania (Abrunhosa, 2008Abrunhosa, S. Concepções dos professores do 1° ciclo do ensino básico sobre a educação para a cidadania: as competências do professor no âmbito da abordagem transversal da educação para a cidadania. 2008. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade de Lisboa, 2008.). Manifesta-se igualmente nos estudos que partilham uma visão alargada e relacional das funções da educação escolar, embora partindo do reconhecimento do papel de uma determinada disciplina ou área disciplinar para o desenvolvimento global e harmonioso dos jovens de hoje e cidadãos de amanhã, como acontece no estudo de caso subordinado ao tema O lugar e o não lugar da expressão plástica/artes plásticas nos projectos curriculares e nas acções dos educadores de infância (Oliveira, 2009Oliveira, A. O lugar e o não lugar da expressão plástica/artes plásticas nos projectos curriculares e nas acções dos educadores de infância. 2009. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, 2009.) e no trabalho com o título O estudo do meio como fonte de aprendizagem para o ensino da história: concepções de professores do 1º CEB (Faria, 2007Faria, E. O estudo do meio como fonte de aprendizagem para o ensino da história: concepções de professores do 1° CEB. 2007. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2007.), desenvolvidos, respetivamente, nos contextos da educação pré-escolar e do ensino básico.

Ainda no âmbito da reorganização curricular do ensino básico, mas, desta feita, reconhecendo à partida os desafios que se colocam à construção de um currículo em uma escola para todos e a necessidade premente de mudança das práticas de gestão curricular, a ideia de transdisciplinaridade como um novo modelo de organização dos conhecimentos escolares também se revela no estudo empreendido por Gouveia (2005)Gouveia, M. F. Projecto curricular de escola, um desafio à organização curricular da escola: um estudo em escolas do 1° ciclo do ensino básico da RAM. 2005. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Ciências da Educação, Universidade da Madeira, 2005., em que o projeto curricular de escola, enquanto instrumento na gestão flexível do currículo, entrelaça-se com ideias que parecem tão caras à abordagem transdisciplinar como aquelas que dizem respeito à diferença, à heterogeneidade, à diversidade e à flexibilidade, as quais formam corpo quando se reconhece que as ditas áreas transdisciplinares “propõem a abordagem das ofertas educativas duma forma integrada e contextualizada, no âmbito de um quadro flexível para o desenvolvimento de actividades curriculares” (idem, p. 24).

Com base em um enquadramento mais amplo, em particular, sobre a noção de competências e sua relação com o desenho de propostas e orientações pedagógico-didáticas, cabe-nos assinalar a presença da ideia de transdisciplinaridade como um novo modelo de organização das matérias curriculares no estudo Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia – Brasil (Silva, 2006Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006.), mas também no Estudo sobre a disciplina de introdução à informática nas engenharias (Duarte, 2006Duarte, J. Estudo sobre a disciplina de introdução à informática nas engenharias. 2006. Dissertação (Mestrado) - Escola de Engenharia, Universidade do Minho, 2006.).

Além de situarem a transdisciplinaridade como um movimento contrário à dinâmica da objetividade do conhecimento, da racionalidade técnica, da fragmentação e compartimentação do saber, esses dois trabalhos fornecem elementos importantes que se conjugam com o reconhecimento da necessidade de operar mudanças importantes nos sistemas educativos, no âmbito das quais a educação deverá assumir a responsabilidade de

fazer com que os alunos desempenhem uma ação de aprender a aprender, suscitando um refazer dos conhecimentos e valores adquiridos, entendendo que a cada dia o conhecimento é compartilhado por diferentes meios, fazendo da capacidade crítica uma aliada a uma emancipação intelectual. (Silva, 2006Silva, A. Abordagem curricular por competências no ensino superior: um estudo exploratório nos cursos de administração, ciências contábeis e economia no estado da Bahia - Brasil. 2006. Tese (Doutoramento) - Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2006., p. 139)

Ideia-chave 5 A transdisciplinaridade como um modelo ideal de equipa

A partir da leitura e análise do trabalho subordinado ao tema O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação (Ferreira, 1999Ferreira, M. de F. O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação. 1999. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, 1999.), emerge como ideia forte a transdisciplinaridade como um modelo ideal de equipa, em particular no contexto dos serviços sociais de intervenção precoce, em que todos os membros da equipa − incluindo a família −, ultrapassando as fronteiras da sua disciplina específica, partilham as responsabilidades e contribuem com seu saber e suas competências específicas, de forma a implementar um plano de serviços único que responda às necessidades da criança. Diante dos modelos multidisciplinares e interdisciplinares, além de implicar necessariamente maior grau de colaboração entre todos os membros da equipa, o modelo de equipa transdisciplinar apresenta duas importantes especificidades: “a primeira é que o desenvolvimento da criança é visto numa perspectiva integrada e interactiva; a segunda característica é que o atendimento das crianças é realizado no contexto das suas famílias” (McGonge et al., 1994 apud Ferreira, 1999Ferreira, M. de F. O trabalho de equipa multidisciplinar precoce: expectativas e ideias de pais e profissionais na avaliação. 1999. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, 1999., p. 34).

Pela ancoragem em uma abordagem conjunta de equipa assente em um modelo transdisciplinar, em Portugal merece particular destaque o Projeto Integrado de Intervenção Precoce de Coimbra (PIIP), que resulta do esforço na articulação de todos os recursos existentes no distrito de Coimbra relacionados com a intervenção precoce (serviços locais de saúde, educação, segurança social e privados). Apesar dos benefícios aparentes na determinação e realização de estratégias de intervenção precoce eficazes, importa reconhecer um conjunto de variáveis que medeiam a eficácia das equipas assentes em um modelo transdisciplinar. Destacam-se, neste particular, as seguintes condicionantes: a formação dos profissionais centrada exclusivamente em uma determinada área de especialização; a falta de preparação dos profissionais para trabalhar em colaboração com outros profissionais; a ausência de suporte organizacional para o trabalho em equipa; a falta de tempo para as reuniões de equipa e para as consultas de colaboração; e a falta de fundos necessários para a contratação de novos membros indispensáveis à equipa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os resultados a que se chegou por meio da análise ao conjunto das produções científico-académicas, concluídas entre 1999 e 2009, no âmbito de cursos de pós-graduação ministrados nas instituições de ensino superior com assento no CRUP, poderá, em síntese, concluir-se que, apesar das limitações experimentadas, colheram-se elementos que parecem indicar que, em Portugal:

  1. A transdisciplinaridade não parece ser um tema de amplo reconhecimento e tratamento no âmbito produção científico-académica, muito embora seja alvo de interesse de um número considerável de campos de pesquisa, incluindo a educação sob uma diversidade de olhares (formação de professores, tecnologias educativas, desenvolvimento curricular, supervisão pedagógica), mas abrangendo também outros campos, como o planeamento urbanístico, a filosofia, a psicologia do desenvolvimento, os sistemas de informação e os estudos da criança;

  2. As diferentes vertentes em que esta categoria temática tem vindo a ser abordada, ao contestarem o contexto idealizado de ciência, mobilizam argumentos que colocam em causa tanto nossa capacidade pessoal para lidar com uma variedade de problemas sociais complexos como a própria capacidade da escola para responder aos desafios e exigências que decorrem das rápidas e constantes transformações sociais, culturais, económicas, tecnológicas e políticas; e

  3. A preponderância que se registou na ideia de transdisciplinaridade como um novo modelo de organização dos conhecimentos escolares parece sugerir uma relação bastante clara com a pesquisa que tem vindo a ter lugar no campo da educação, em particular depois das mudanças curriculares e organizacionais preconizadas no âmbito da reorganização curricular do ensino básico consagrada no decreto-lei n. 2/2001, de 18 de janeiro.

Além desses elementos, os resultados obtidos e a reflexão decorrente destes tornam possível propor um conjunto de iniciativas que permitirão, do nosso ponto de vista, ir um pouco mais fundo e mais longe do que aqui se conseguiu fazer. Assim, como aberturas que possam dar lugar à continuação sustentada deste movimento de análise, cumpre destacar a necessidade de completar a recolha feita e alargar o objeto de estudo, considerando não apenas a ampliação das fontes de recolha de dados, incluindo trabalhos científicos divulgados em publicações periódicas e atas de encontros de natureza científica, mas considerando também a necessidade de abordar a produção no domínio específico da teoria e desenvolvimento curricular, procurando nesse âmbito identificar as perspetivas teóricas que têm vindo a informar as abordagens de natureza transdisciplinar, bem como as estratégias e metodologias de ensino e de aprendizagem congruentes com as abordagens e perspetivas teóricas defendidas.

  • *
    Os autores agradecem ao Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e à Fundação para a Ciência e Tecnologia pelo apoio financeiro dado ao projeto de doutoramento da primeira autora deste artigo (SFRH/BD/68461/2010).
  • 1
    Para uma visão global das metodologias propostas por esse conjunto de pedagogos, será útil consultar a página dedicada à “Inter-transdisciplinaridade e transversalidade” (http://www.inclusao.com.br/projeto_textos_48.htm), desenvolvida no âmbito do Programa de Formação Contínua do Instituto de Paulo Freire, que tem estado fortemente implicado na promoção de uma reorientação da visão de educação a partir do legado de Paulo Freire.
  • 2
    O Projeto Mathesis tinha um carácter duplo: “Por um lado, visava a elucidação teórica do conceito de interdisciplinaridade e a compreensão das questões que hoje se colocam aos diversos saberes em termos da sua articulação e da reorganização das suas fronteiras. Em segundo lugar, tinha como objectivo constituir-se como elemento interveniente no processo de reorganização curricular que a escola terá que operar de forma cada vez mais profunda e como dispositivo de apoio à experimentação de práticas interdisciplinares e de integração dos saberes”. Disponível em <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/mathesis/>. Acesso em: 25 out. 2014.
  • 3
    Ver, por exemplo, os escritos que abordam a “A interdisciplinaridade. Conceito, problemas e perspectivas” (Pombo, 1993, 1994), também disponibilizados on-line em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/mathesis/>. Acesso em: 25 out. 2014.
  • 4
    Projeto de investigação subordinado ao tema “As TIC como formação transdisciplinar. Potencialidades e dificuldades de implementação no contexto do ensino básico em Portugal”, em curso no âmbito do Programa de Doutoramento em Educação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia através de suporte financeiro (SFRH/BD/68461/2010).
  • 5
    O CRUP “é uma entidade de coordenação do ensino universitário em Portugal e integra como membros efetivos o conjunto das Universidades públicas e a Universidade Católica Portuguesa” (http://www.crup.pt/).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    Maio 2012
  • Aceito
    Dez 2013
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