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Concepções docentes sobre diferença no cotidiano de escolas do Rio de Janeiro

Concepciones docentes sobre diferencia en la rutina escolar de Rio de Janeiro

Conceptions of teachers about difference in everyday school life in Rio de Janeiro

Resumos

Um debate frequente e atual na sociedade brasileira é a relação entre diferenças culturais e cotidiano escolar. Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa qualitativa realizada entre 2006 e 2009, focalizando a análise sobre como professores/as identificam as diferenças presentes no espaço escolar e quais dispositivos pedagógicos mobilizam para lidar com elas. A pesquisa incluiu a realização de entrevistas semiestruturadas com professores/as do ensino fundamental, cujos resultados provocaram a organização de um grupo focal em que professores de escolas públicas e privadas aprofundaram a discussão. Este texto dedica-se a apresentar alguns resultados da análise do grupo focal. Entre os aspectos em destaque, verificou-se que os processos de identificação das diferenças aparecem, em geral, relacionados a situações de desigualdade e de preconceito; e a utilização de estratégias didáticas, ora pretendem igualar, ora desejam valorizar as diferenças.

diferença cultural; cotidiano escolar; dispositivos pedagógicos


Un debate frecuente y actual en la sociedad brasileña es la relación entre diferencias culturales y rutina escolar. Este trabajo presenta parte de los resultados de una investigación cualitativa realizada entre 2006 y 2009, que centró el análisis en averiguar cómo los profesores identifican las diferencias presentes en el ambiente escolar y cuáles herramientas pedagógicas utilizan para tratarlas. La investigación incluyó entrevistas semiestructuradas con profesores de enseñanza fundamental, cuyos resultados llevaron a la organización de un grupo de debate en el que los profesores de escuelas públicas y privadas profundizaron la discusión. Este texto presenta algunos resultados del análisis de ese grupo. Entre los temas destacados se verificó que los procesos de identificación de las diferencias aparecen, en general, relacionados a situaciones de desigualdad y de prejuicio, y que la utilización de estrategias didácticas a veces pretende igualar y a veces desea valorizar las diferencias.

diferencia cultural; rutina escolar; herramientas pedagógicas


A frequent and current debate in Brazilian society is the relationship between cultural differences and everyday school life. This article presents some results of a qualitative study carried out from 2006 to 2009, focusing on the analysis of how teachers identify differences within schools and what pedagogical devices they mobilize to deal with them. The research included semi-structured interviews with primary education teachers, the results of which led to organizing a focus group in which teachers from public and private schools deepened the discussion. This paper aims to present some results of the analysis of the focus group. Among the issues highlighted, it was found that: the processes of identifying differences are generally related to situations of inequality and prejudice; and the use of teaching strategies to face difference either intend to equalize or want to value differences.

cultural difference; everyday school life; pedagogical devices


ARTIGOS

Concepções docentes sobre diferença no cotidiano de escolas do Rio de Janeiro

Conceptions of teachers about difference in everyday school life in Rio de Janeiro

Concepciones docentes sobre diferencia en la rutina escolar de Rio de Janeiro

Kelly RussoI; Cinthia AraujoII

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

Um debate frequente e atual na sociedade brasileira é a relação entre diferenças culturais e cotidiano escolar. Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa qualitativa realizada entre 2006 e 2009, focalizando a análise sobre como professores/as identificam as diferenças presentes no espaço escolar e quais dispositivos pedagógicos mobilizam para lidar com elas. A pesquisa incluiu a realização de entrevistas semiestruturadas com professores/as do ensino fundamental, cujos resultados provocaram a organização de um grupo focal em que professores de escolas públicas e privadas aprofundaram a discussão. Este texto dedica-se a apresentar alguns resultados da análise do grupo focal. Entre os aspectos em destaque, verificou-se que os processos de identificação das diferenças aparecem, em geral, relacionados a situações de desigualdade e de preconceito; e a utilização de estratégias didáticas, ora pretendem igualar, ora desejam valorizar as diferenças.

Palavras-chave: diferença cultural; cotidiano escolar; dispositivos pedagógicos.

ABSTRACT

A frequent and current debate in Brazilian society is the relationship between cultural differences and everyday school life. This article presents some results of a qualitative study carried out from 2006 to 2009, focusing on the analysis of how teachers identify differences within schools and what pedagogical devices they mobilize to deal with them. The research included semi-structured interviews with primary education teachers, the results of which led to organizing a focus group in which teachers from public and private schools deepened the discussion. This paper aims to present some results of the analysis of the focus group. Among the issues highlighted, it was found that: the processes of identifying differences are generally related to situations of inequality and prejudice; and the use of teaching strategies to face difference either intend to equalize or want to value differences.

Keywords: cultural difference; everyday school life; pedagogical devices.

RESUMEN

Un debate frecuente y actual en la sociedad brasileña es la relación entre diferencias culturales y rutina escolar. Este trabajo presenta parte de los resultados de una investigación cualitativa realizada entre 2006 y 2009, que centró el análisis en averiguar cómo los profesores identifican las diferencias presentes en el ambiente escolar y cuáles herramientas pedagógicas utilizan para tratarlas. La investigación incluyó entrevistas semiestructuradas con profesores de enseñanza fundamental, cuyos resultados llevaron a la organización de un grupo de debate en el que los profesores de escuelas públicas y privadas profundizaron la discusión. Este texto presenta algunos resultados del análisis de ese grupo. Entre los temas destacados se verificó que los procesos de identificación de las diferencias aparecen, en general, relacionados a situaciones de desigualdad y de prejuicio, y que la utilización de estrategias didácticas a veces pretende igualar y a veces desea valorizar las diferencias.

Palabras clave: diferencia cultural; rutina escolar; herramientas pedagógicas.

Este artigo tem como objetivo aprofundar a discussão sobre as diferenças culturais no cotidiano escolar, mostrando como um grupo de professores de escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro identifica e lida com essa questão em sala de aula. Os dados apresentados fazem parte de uma pesquisa realizada em duas etapas e que contemplou, no primeiro momento, entrevistas semiestruturadas com 22 professores da rede municipal do Rio de Janeiro e, no segundo, um grupo focal com 12 professores pertencentes a diferentes escolas, públicas e privadas, do estado do Rio de Janeiro.

As entrevistas individuais evidenciaram a dificuldade de os professores identificarem as diferenças culturais no cotidiano escolar, resultado confluente com outras pesquisas desenvolvidas nos últimos anos (Candau, 2002, 2008a, 2008b; Leite, 2008; Pedreira, 2006; entre outras).1 1 Pesquisas realizadas por integrantes do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Escola e Cultura(s), coordenado por Vera Maria Candau, no Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Considerando essa dificuldade, pareceu-nos oportuno identificar professores que se mostrassem mais sensíveis às relações entre cotidiano escolar e diferenças culturais e convidá-los para participar de um espaço de discussão, tendo por referência suas experiências pedagógicas. Daí a opção pela realização de um grupo focal que permitisse ampliar o debate sobre as diferenças culturais presentes na escola, seu reconhecimento e desafios na perspectiva de tê-las presentes e trabalhá-las na dinâmica escolar.

Construindo o grupo focal

Os grupos focais constituem uma modalidade de entrevista coletiva. Para Richard Krueger (1994), o grupo focal é uma técnica de entrevista direcionada a um grupo que é selecionado pelo pesquisador por determinadas características específicas, visando obter informações qualitativas. Nesse sentido, é possível afirmar que suas principais características são: uma intencionalidade clara, um foco definido e a constituição de um grupo selecionado por alguma(s) característica(s) comum(ns), não sendo, portanto, um grupo espontaneamente formado.

Para esse autor, os grupos focais integram uma série de discussões cuidadosamente planejadas para obter informações e identificar representações em uma área de interesse determinada, em um ambiente permissivo e não ameaçador. Os grupos são em geral formados por um número reduzido de participantes e são conduzidos por um entrevistador adequadamente preparado. Os membros do grupo interagem exercendo influência uns sobre os outros por intermédio comentários às ideias e questões que são colocadas. Também, para Bernardete Gatti (2005, p. 9), "a ênfase recai na interação dentro do grupo e não em perguntas e respostas entre moderador e membros do grupo".

Na pesquisa, a construção do grupo focal obedeceu às etapas definidas por Gatti, tendo presente os profissionais já entrevistados individualmente e aqueles propostos por orientadores e coordenadores pedagógicos de escolas do Rio de Janeiro. É importante destacar que o principal critério de seleção foi a sensibilidade e o compromisso para identificar e trabalhar as diferenças culturais no cotidiano escolar. No entanto, outros aspectos também foram considerados, como as diferentes áreas curriculares, os diversos segmentos do ensino fundamental e a experiência na rede pública de ensino.

Caracterização dos participantes

Integraram o grupo focal 12 professores, sendo 3 homens e 9 mulheres. O grupo foi constituído por profissionais recém-formados e outros com ampla experiência de magistério, de diferentes áreas curriculares, com atuação no primeiro e segundo segmentos do ensino fundamental, assim como no ensino médio, na educação de jovens e adultos e no ensino superior. Alguns possuíam experiência de coordenação pedagógica e direção escolar, ou de desenvolvimento de projetos específicos como o Núcleo de Adolescentes Multiplicadores da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, o Departamento de Ação Social de uma escola da rede privada e a inserção de alunos portadores de necessidades especiais em turmas regulares.

No que diz respeito aos anos de experiência, 4 possuíam até dez anos, 5 se situavam entre onze e vinte anos e 3 exerciam o magistério há mais de vinte anos. Sobre a formação acadêmica, 3 professores possuíam a licenciatura em história, 3 em educação física, 2 em ciências biológicas, 2 em geografia, 1 em pedagogia e outro em letras. Uma única professora explicitou possuir ensino normal. Vários possuíam cursos em nível de pós-graduação, tanto lato sensu (especialização em mídias e especialização em treinamento desportivo) quanto stricto sensu (2 mestrado em história e 1 mestrado em educação). Também foram mencionados cursos de aperfeiçoamento e extensão, como de alfabetização, arte-educação, entre outros.

Quase todos (11) possuíam experiência de escola pública, em redes de diferentes municípios do estado do Rio de Janeiro e na rede estadual. Um único professor, com poucos anos de experiência (quatro anos), tinha somente experiência na rede privada. No que diz respeito à pertença étnico-racial, três das professoras participantes se autodeclararam negras.

Além da heterogeneidade de formação e experiência no âmbito da educação formal, gostaríamos de salientar um aspecto que consideramos de especial relevância: a grande maioria dos participantes havia tido e/ou tinha inserção em diferentes organizações sociais, tais como: organizações não governamentais, grupos de cultura popular, grupo de estudo na universidade, pré-vestibular comunitário, associação de moradores, entre outras.

Depois de observado o perfil dos participantes, passamos a analisar os depoimentos explicitados no grupo focal com base nas categorias construídas, tendo como referência o roteiro utilizado e até mesmo os depoimentos dos professores. É importante ressaltar que as concepções de diferença presentes nas falas dos participantes também foram objeto de análise da pesquisa, porém, dado os limites deste texto, basta revelar que as concepções mais recorrentes no debate do grupo foram aquelas que identificam diferença com situações de desigualdade ou déficit e as que relacionam a diferença a situações de preconceito e discriminação.2 2 Sobre o tema das relações entre diferença e desigualdade, ver Santos (1997) e Candau (2005, 2008a). Sobre a identificação entre diferença e déficit, ver Bernstein (1998). Para as relações entre diferença, preconceito e discriminação, ver Camacho (2000) e Leite (2008).

Organizamos o texto em três partes: a primeira reflete a visão do grupo sobre a estrutura e os elementos que identificam seus cursos de formação inicial e a instituição escolar como geradores de processos de padronização/homogeneização; a segunda parte aborda as diferenças identificadas pelos professores participantes do grupo; e a terceira parte do texto procura destacar alguns dispositivos pedagógicos mobilizados pelo grupo para tratar o tema da diferença no cotidiano escolar.

Cursos de formação, escola e padronização cultural

Discutir as diferenças provocou reflexão dos professores sobre o caráter monocultural da instituição escolar e da ausência dessa temática em seus cursos de formação inicial. Foram muitos os depoimentos sobre os procedimentos escolares que caminham na direção da padronização. A estrutura de organização das turmas, dos conteúdos curriculares e do processo avaliativo foram alguns dos pontos citados.

[A escola] trabalha uma coisa que é: todas as crianças precisam ter um padrão, um modelo pra passar de ano. O aluno que não tem aquele padrão, que não atinge aquele modelo, ele é reprovado [...]. (Alice)3 3 Para resguardar a identidade dos participantes da pesquisa, optamos por utilizar nomes fictícios.

[...] a gente tem que colocá-los [os alunos] dentro de um ambiente formatado da escola, com aqueles padrões de que ele tem que sentar, tem que se comportar de tal forma. Você tem aquele modelo para cumprir para você passar de ano. (Glória)

Durante o debate, os participantes refletiram sobre a forma com que essa exigência de padronização se relaciona com o processo histórico de criação e expansão do acesso à educação. Mais ou menos implícita nas falas dos participantes, estava a posição de que essa padronização pode ser entendida como uma estratégia de inclusão social, tendo em vista certos padrões aceitos e valorizados na sociedade, tanto no que se refere aos conhecimentos escolares como também aos valores de comportamento. Muitas vezes foi referida certa relação entre essa exigência de padronização e os processos de julgamento escolar.

Sou professor há quatro anos, mas o que me deixou bastante chocado foi o conselho de classe, por ser um julgamento moral dos alunos e não um julgamento das aptidões deles, ou seja, as habilidades, a competência dele, foi sempre uma carga muito pesada em cima do aluno. (Tadeu)

Em contrapartida, alguns participantes perceberam que a escola também precisa se adaptar para lidar com a presença das diferenças, cuja convivência algumas vezes se torna conflituosa.

[...] a gente tem que abrigar a todos. [E a escola ainda] é num modelo antigo, que não estava preparado para estar todo mundo junto, e aí as diferenças começam a aflorar e todos se chocam. Porque a gente tem aquela ideia cristalizada, [...] com aquelas referências, com aquele público antigo e aquelas pessoas. Só que hoje em dia as pessoas que estão chegando na escola são totalmente diferentes. Têm demandas diferentes, com histórias de vida diferentes, e a gente tem que lidar com isso, com esse confronto. (Glória)

Diante de uma formação que ainda não prepara futuros professores para lidarem com as diferenças, a angústia dos profissionais é facilmente percebida. Na maior parte das falas, é latente a grande dificuldade de vencer essa tendência de padronização dominante. Uma das participantes demonstrou que em sua prática profissional essa angústia a levou a deslocar o lugar da diferença, em geral localizado no aluno:

O pessoal [estava] comentando sobre a diferença, e eu acho que muitas vezes, na verdade, o diferente é o professor. Ele é diferente daquela realidade. (Glória)

Em seu depoimento, a professora inverteu o curso do debate e apontou outra reflexão: os professores e professoras é que são os diferentes nesta escola pública que democratiza seu acesso. Esses professores/as "tiveram formação acadêmica relativamente boa, extensa e com certa qualidade", enquanto uma parte considerável de seus alunos e alunas chega à escola sem experiências prévias próximas àquela rotina cultural por ela valorizada. Nesse embate, a forte tentativa de padronização gerada pelo sistema escolar não consegue, na perspectiva dos professores participantes, esconder as diferenças, que terminam "bombando" na sala de aula.

[…] quando chega na prática, a gente se depara com isso, se depara com as escolas sem preparo, a gente sem preparo e as questões [da diferença] "bombando" na sala de aula. (Marta)

Na próxima parte do texto procuramos discorrer sobre como os professores participantes do grupo focal se referiram às diferenças identificadas no cotidiano escolar.

Diferenças identificadas no espaço escolar

É possível afirmar que, tomando-se por base os temas da hierarquização das diferenças e sua dimensão epistemológica, as diferenças identificadas pelos participantes podem ser categorizadas em dois grandes grupos: diferenças relacionadas à desigualdade social e diferenças relacionadas à construção de identidades.

O primeiro grupo se relaciona com a concepção que tende a identificar a ideia de diferença com a situação de desigualdade. Nesse grupo, alocamos as diferenças percebidas pelos participantes que parecem estar identificadas com uma espécie de déficit em relação ao padrão valorizado como normal e desejado pela escola. Tal percepção está fortemente relacionada ao acesso de estudantes de classes populares à rotina da escola pública, conforme citado anteriormente.

No segundo grupo, estão citadas as diferenças percebidas pelos participantes como alvo de discriminação e preconceito, diferenças que se referem, em geral, a questões de identidade étnico-raciais, de gênero, de opção religiosa e de orientação sexual. O reconhecimento de identidades tem sido um tema fortemente discutido na sociedade brasileira nos últimos anos, principalmente pela incidência de movimentos sociais, como o movimento negro, quilombola, de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT), indígenas, entre outros.

Diferença de desigualdade

Nem sempre os participantes concordaram com a concepção de diferença que parece ser reduzida a um déficit do aluno em relação ao padrão do ensino formal, mas todos perceberam este como um elemento central na definição de muitas diferenças presentes no cotidiano escolar. Entre elas, podemos citar aquelas atribuídas ao déficit gerado por uma impossibilidade física e mental, ou aquelas que localizam o déficit na origem cultural e socioeconômica dos alunos.

No que se refere às diferenças nas possibilidades físicas e mentais, foram muitos os exemplos trazidos pelos professores participantes. O grupo fez menção aos casos dos chamados "alunos especiais", mas também citou alunos que apresentavam diferenças no ritmo de aprendizagem. Para um dos professores, esse tipo de diferença é a que mais incomoda, porque "dá mais trabalho" quando se exigem novas posturas pedagógicas, tanto dos professores como da equipe pedagógica da escola.

Eu tive um aluno que não tinha os braços, e ele escrevia tudo com os pés. No ano seguinte, eu tive um com síndrome de Asperger.4 4 A chamada síndrome de Asperger é um espectro autista, diferenciando-se do autismo clássico por não comportar nenhum atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou na linguagem do indivíduo. É interessante perceber que os professores do primeiro segmento têm todo um cuidado em mapear as diferenças [...], mas quando chega no 6º ano a turma sai dos 16, 17 [alunos] e vira [uma turma de] 35. E aí você se perde! [...] Você acaba focando naquelas diferenças mais visíveis e não presta atenção em outras que prejudicam a aprendizagem. (Isabel)

Nesse trecho, as dificuldades sentidas pela professora foram inúmeras, desde o número de alunos na sala de aula até a falta de estrutura, de recursos e de acompanhamento qualificado para lidar com tais questões. Em outros depoimentos, a origem cultural e socioeconômica dos alunos foi identificada como elemento gerador de desigualdade e déficit no cotidiano escolar padronizado.

[...] a gente observa muito a questão social, a questão financeira. A criança mora em uma comunidade de risco, é filho de pais adolescentes... E aquela pessoa que a família é mais organizada, tem uma situação financeira um pouco melhor, e aí consegue se adequar um pouco melhor a esse sistema que tem um padrão. (Elisa)

Esse tipo de diferença deu a impressão de gerar muita angústia para os professores participantes, pois, em geral, a situação de desigualdade tende a ser superada na escola por meio de mecanismos de padronização entendidos como estratégias de inclusão social. Muitos alunos, segundo o depoimento de uma professora, apresentam sérias defasagens em relação ao aprendizado que se espera para cada nível de ensino. Se, por um lado, a escola tenta reverter o processo social que transforma diferença em desigualdade, promovendo equidade no acesso ao conhecimento – "fornecer a chave para abrir a caixinha do conhecimento", como citou uma das participantes –, por outro, reforça a perspectiva monocultural não reconhecendo a presença de outro saberes.

Um dos professores fez alusão à "cilada da diferença"5 5 Referimo-nos aqui aos argumentos de Antônio Flávio Pierucci (1999), no livro Ciladas da diferença. ao destacar a dimensão epistemológica da diferença/desigualdade no nível socioeconômico.

Tenho alunos que vieram de escola particular, que têm uma família estruturada. Quando eles chegam à escola, conseguem entender o que o professor está falando, porque eles já tinham isso anteriormente. Conseguem abrir "a caixa" e isso tem a ver com o currículo. [...] Se esse currículo não é preparado, se você não está trabalhando para dar "a chave" para que o diferente abra "a caixa", vai continuar existindo a 604, a 710 [referência à organização de turmas pelo desempenho acadêmico], porque eles são excluídos dentro da escola. (Clara)

Apesar de perceber que o currículo não considera essas diferenças culturais, a professora insinuou que devia haver certa adequação para que o aluno alcançasse o padrão cultural exigido pela escola. Em certos momentos do encontro, ficou implícita a opinião de alguns professores sobre o papel da escola no processo de inserção social. A escola precisa tratar das diferenças sem comprometer o padrão necessário para a inclusão social dos alunos. Essas diferenças não se dão apenas no âmbito de recursos financeiros, mas na valorização de códigos culturais diversos daquele compartilhado na rotina escolar. Diferenças relacionadas tanto aos hábitos como também à linguagem e aos significados.

Outra relação que se estabeleceu foi a de nível socioeconômico, raça e aprendizagem. Uma professora citou a situação de alunos e professores negros em escolas públicas consideradas de excelência, mas que mantêm um processo seletivo para o acesso.

Eu trabalho em duas escolas consideradas escolas de excelência. Isso não sou eu que estou dizendo não... [risos] E quando eu olho para minha turma, nós temos três alunas negras. [...] São escolas onde a gente não tem quase nem alunos nem professores negros. (Márcia)

Outra professora apontou como a organização das turmas pode reforçar a relação entre nível socioeconômico, raça e aprendizagem.

Até na hora de fazer a classificação das turmas você tem a turma 1 – algumas escolas são assim – aquela que termina com o número 1 são aquelas que têm as crianças com idade adequada e aí, se você for olhar... Eu, por exemplo, dou aula para a turma 1801 e 1804. A 1801 são as crianças mais novinhas, que têm a família estruturada, que têm uma classe... Algumas são de classe média baixa, as que são mais pobres e têm a família mais organizada. A questão racial você vê claramente. As pessoas da turma 1 são mais claras. E não se separou por questão da cor, mas aí são os produtos da sociedade que são aquelas pessoas que, por terem condições melhores, tiveram condições também de ter uma resposta para o que é exigido para esse ensino formal. Então elas acabam respondendo com notas melhores e acabam ficando ali. A turma 4 é aquela que gera mais problemas. Racialmente você vê que as pessoas mais negras e pardas estão naquela turma. (Elisa)

A fala dos participantes do grupo focal foi consonante com resultados de pesquisas acadêmicas sobre o tema, reveladores que, na medida em que aumenta o nível socioeconômico dos alunos, aumenta também o nível de proficiência, porém, com a inclusão da variável cor na análise, verifica-se que os brancos conseguem melhor aproveitamento que negros e pardos.6 6 Para essa questão, ver José Francisco Soares e Maria Teresa Gonzaga Alves (2003).

Diferença de identidade

O processo de reconhecimento vivido atualmente na sociedade brasileira – que invade a escola e coloca em pauta a construção de identidades pelas características étnico-raciais, de gênero, de crença religiosa ou de orientação sexual – também foi um tema discutido pelos participantes do grupo focal. Porém, diferentemente das anteriores, essa temática surge apenas com a interferência mais direta da mediadora. Tal característica talvez possa ser explicada pelo fato de que, no segundo conjunto de diferenças percebidas pelos professores, foram recorrentes os exemplos que indicavam ser essa a questão mais conflituosa e tensa vivenciada no espaço escolar. Segundo os professores participantes, muitos são os alvos de situações de preconceito e discriminação.

Hoje eu percebo uma situação que explode de forma bem preconceituosa: são os alunos de "tarjinha" [alunos que tomam remédios controlados], os alunos do abrigo e os alunos de origem oriental, que são os fedorentos, e os alunos negros, que são os pobres, os fedorentos e também os famintos... (Marta)

Como abordado anteriormente, esse tipo de situação tem como um dos principais efeitos um quadro de baixa expectativa em relação a esses alunos, tanto por parte dos professores quanto por parte dos próprios alunos, vítimas da diferença que é convertida em desigualdade.

[...] porque eles já têm uma autoestima muito baixa; então, essa falta de perspectiva, isso acaba refletindo, quer dizer, esse preconceito, que está nele, está na sociedade. E eles sabem disso, ouviram falar que de certa forma eles são inferiores, não vão muito longe, então eles já desistem e às vezes nós mesmos, sem perceber, acabamos investindo menos também. (Elisa)

Na tentativa de buscar o entendimento para a origem desses preconceitos, alguns participantes estabeleceram relações entre determinados fatores e manifestações de discriminação referentes às questões indentitárias específicas. No que concerne ao preconceito étnico-racial, uma professora localizou a raiz do problema na formação histórica da sociedade brasileira.

Tem uma questão que vem me assaltando há muitos anos, e eu falo isso em família, eu falo isso nos trabalhos... Nós temos uma origem escravocrata, essa sociedade, ela é toda pensada em cima de preconceitos sim [...]. Tem fundamento político, social dentro dessas questões. (Clara)

Diante da questão das identidades religiosas, outra professora afirmou que o respeito que se espera e deseja tem por base o conhecimento, e nessa reflexão pareceu estar implícito o papel da escola de contribuir com o fim desse tipo de preconceito.

Dentro da escola, quando alguém colocava uma saia estampada para fazer uma dança de ciranda, todo mundo dizia: "já vai dançar macumba!". A palavra macumba é uma palavra totalmente preconceituosa, porque na verdade não é macumba, é religião! Inclusive [era a fala de] muitos professores dentro da escola e na formação. (Teresa)

A fala de outro professor pareceu indicar que, no que tange ao tema da identidade étnico-racial, a escola vem sendo incentivada a fazer um trabalho mais inclusivo, principalmente com a legislação recente que obriga o ensino de história e cultura da África e dos afrodescendentes, bem como dos povos indígenas (lei n. 11.645/2008). Porém, no que se refere ao tema da religiosidade, o preconceito ainda é visível.

Trabalhar com África, que é algo que está sendo muito incentivado, principalmente em história... Trabalhar com África é muito bem visto, você trabalhar com diversidade étnica é muito bem visto, mas trabalhar com religiões afro-brasileiras, aí falam: "ah, não, essa diferença não". (Cláudio)

O depoimento dos professores também revelou que, se por um lado o tema da diferença religiosa é visto ainda como um tabu a ser evitado, a questão da orientação sexual tem sido tratada como um problema que deve ser resolvido pedagogicamente. O diálogo a seguir indica que a situação narrada por um dos professores não é um evento isolado:

Cláudio: Das diferenças que a gente pode perceber nas escolas, uma para a qual eu me sinto sensibilizado, e eu já tive oportunidade de enfrentar problemas sérios, tanto na rede particular quanto na rede pública, é a diversidade sexual. Na rede particular, eu já vivi num conselho de classe tendo que decidir que destino nós daríamos ao aluno "viadinho" – vou usar o termo que foi dado no conselho de classe. "O que é que a gente pode fazer para corrigir esse menino?" Era o meu primeiro conselho de classe, era o meu primeiro emprego como professor!

Tadeu: Ou então falam de "problemas com a sexualidade"... Ainda bem que foi dito, porque tem espaços que nem é dito!

Ricardo: Isso foi dito, não é? Tem espaços que isso nem é dito e é feito...

Cláudio: [continuando] E era dito com a melhor das intenções! Ninguém estava querendo discriminar o menino, queriam "resolver"...

Por sua vez, a questão da identidade de gênero somente foi tratada pelo grupo após a intervenção direta da mediadora nessa direção. Diante da apresentação da questão, uma das professoras, que havia desenvolvido projetos educativos em uma organização não governamental feminista, contou sua experiência de trabalho com a questão de gênero numa oficina pedagógica. Provocada por seu incômodo, ao perceber determinadas posturas de alunos da faculdade de pedagogia, muitos deles já professores em exercício, a professora, ainda aluna de graduação em história, desenvolveu uma atividade para tratar o tema do gênero no cotidiano escolar. A estratégia principal foi evidenciar o processo de construção dos lugares sociais do feminino e do masculino na sociedade, com o objetivo de pôr em questão a desigualdade de gênero.

Identificar as diferenças não é algo suficiente para o grupo, pois, apesar de se declarar despreparado e de reconhecer os limites de sua tarefa docente, procura mobilizar alguns dispositivos pedagógicos para trabalhar a questão da diferença na sala de aula. Destacaremos na terceira parte do texto algumas delas.

Estratégias para trabalhar com as diferenças

Depois de situarem os elementos da estrutura escolar que tendem a padronizar (em lugar de reconhecer a diversidade existente) e de localizarem as diferenças que mais percebiam em seu cotidiano, os professores e professoras foram convidados a discutir as estratégias que utilizavam para lidar com essa questão. Apresentamos aqui algumas dessas estratégias, organizadas em dois grandes grupos: estratégias de igualdade (aquelas que têm por base uma concepção negativa de diferença e, por isso, a preocupação em igualar para oferecer mais oportunidades) e estratégias de diferença (que têm por base uma concepção positiva da diferença, daí o interesse em seu reconhecimento, valorização e visibilidade).

Estratégias de igualdade

Diante de tantas diferenças e das dificuldades em lidar com elas, alguns professores e professoras relataram o uso de estratégias de igualdade, ou seja, estratégias em que a padronização parece necessária para alcançar um "nível" socialmente aceito, capaz de garantir a inserção social dos alunos.

Então você chega na 5ª série com crianças que não têm nenhum hábito, nenhum. Não têm atenção, eles não têm conhecimento. Falta tanta coisa para você poder colocar... "Ah, mas você está tentando formatar!" Não é formatar, mas é para você dar pelo menos uma condição dele se inserir. Ele vai precisar disso no futuro dele e a gente sente. Não sei se eu estou sendo discriminatória. Não é questão de discriminação, até porque eu sou contra isso. (Flora)

A fala da professora pareceu indicar que a sociedade é "por natureza" excludente, daí o papel da escola no processo de inclusão. Porém, deixou clara a sua insegurança com a afirmação, ao temer estar assumindo uma postura de discriminação ou preconceito. Essa tensão revelou o conflito que assume o tema das relações entre diferença e igualdade no cotidiano escolar.

Mas não são só professores que buscam estratégias de igualdade, também os familiares de alunos de escolas públicas e privadas lidam com dificuldade com as diferenças. Uma das professoras relatou o caso de uma aluna surda que não era reconhecida nem pela família, nem pela escola como tal.

Para as famílias é muito difícil, a gente tinha que tentar compreender como essa família vê o sujeito surdo, e com a Caroline não foi diferente e a mãe não queria que ela fosse surda. A mãe passou anos tentando fazer um implante coclear na menina, mas não conseguiu, enfim... botou a menina numa escola de ouvinte porque ela disse que a Caroline ia ouvir um dia e falar como todo mundo. (Alice)

Na escola, nos primeiros anos do ensino fundamental, essa aluna exigiu atenção especial e a escola, mais uma vez, precisou encarar suas limitações. No entanto, durante alguns anos, tanto a família quanto a escola tentaram negar essa diferença tratando a aluna surda como ouvinte. Frustrada em sua estratégia de igualdade, uma das professoras da aluna chegou a reconhecer "não ter sido capaz de dar conta" daquela realidade: uma diferença que ameaçava o discurso de igualdade de tratamento e condições oferecidas na escola. Uma das professoras do grupo que ouvia o relato se posicionou contrária à visão dicotômica que opõe diferença à igualdade, para incluir no debate uma discussão sobre equidade:

E outro conceito que a gente vai tentando lidar com a gente mesmo e com os outros é a questão da igualdade e da equidade. Porque quando você vai diferenciar, você vai fazer diferente, é isso que precisa estar digerido por todo mundo ou de alguma forma por professores, pelos alunos... que aquilo não é um favorecimento, você não está fazendo um favor quando você dá mais tempo para aquele aluno, contraturno... (Marta)

Nesse sentido, defendendo o tratamento diferenciado para os diferentes e tendo como eixo o discurso do reconhecimento das diferenças, alguns professores traçaram estratégias para lidar com elas, como veremos a seguir.

Estratégias de diferença

O caso da aluna surda relatado pela professora também foi exemplar para ilustrar a valorização da diferença e da identidade.

A Carol não tinha referencial de surdez. Ela não sabia que era surda [...], o referencial que ela tinha era o referencial de ouvinte. [...] Como começar a trabalhar com ela e com as crianças como ouvintes de modo que ela começasse a se compreender como surda e os ouvintes começassem a trabalhar com ela e a conversar com ela na linguagem de surdo? (Alice)

Foi essa experiência frustrada de alfabetizar uma aluna surda com os mesmos métodos utilizados em uma turma de ouvinte que levou a professora a buscar outros recursos, entrando em contato com toda a discussão teórica e política que parte da perspectiva do bilinguismo e da identidade e cultura surda.7 7 Sobre esse tema, consultar Silvia Pedreira (2006).

Outra professora também citou sua experiência sobre como sentiu a necessidade de abordar a temática de identidade entre os alunos e alunas, fazendo uma reflexão sobre sua importância como estratégia de reconhecimento das diferenças étnico-raciais. Para isso, apontou para um processo de desconstrução de visões estereotipadas de certas identidades, como o negro e o nordestino, por meio do estudo das origens históricas de algumas características dos grupos culturais. No relato, a professora afirmou, sobretudo, a importância de o educador se dedicar a entender como o aluno percebe e representa a si próprio.

Durante a discussão, alguns professores e professoras relacionaram o tema da valorização identitária com a questão da autoestima e da aprendizagem. A possibilidade de reconhecer referenciais positivos favoreceu o fortalecimento da autoestima de muitos, bem como apontou para uma melhora no rendimento escolar em alguns casos. Especialmente no caso da identidade negra, foi possível discutir a questão da discriminação e do preconceito sofrido e praticado entre os alunos.

Entre os dispositivos didáticos citados pelos participantes, o desenvolvimento de projetos pareceu ser a forma mais comum de se trabalhar com a questão das diferenças na escola. Em relação ao procedimento utilizado para desenvolver os projetos, foi possível perceber a ausência de uma estratégia única. Algumas vezes, foram defendidos projetos que abordavam temas amplos, capazes de aglutinar em si diversas questões relacionadas ao tema da diferença. Outras vezes, a defesa foi na direção de projetos com focos mais específicos, ainda que esses fossem mais propícios a gerar resistências. Para alguns dos participantes, essa opção não pode descartar os conflitos, mas incluí-los como forma de aprendizagem.

[...] A gente já vinha com um projeto, uma discussão de um grupo dentro da escola que queria muito discutir a questão do negro. E eu não botei "As raças...", nada disso, eu botei "Negro é lindo". O nome do projeto é "Negro é lindo". E o começo da discussão foi muito difícil com os professores, a gente teve muita resistência. [...] Os professores não queriam que falasse das raças, [queriam que] falasse de uma maneira geral, porque assim, também, talvez não entrasse o específico na hora da discussão dentro de sala de aula. Então foi tudo muito bem arquitetado e planejado para que todas as ações levassem realmente à discussão que a gente queria, que é a questão do negro. [...] As pessoas não gostam de trabalhar o específico, de colocar logo para discutir as coisas. Porque você, quando coloca muito geral, não fecha, não foca a questão pra discutir com o professor... [...] mesmo que saia "porradaria" – que saiu o ano todo por conta disso, mas que nós crescemos com isso. (Clara)

Entre as diferentes formas de desenvolver os projetos, é possível apontar para alguns elementos importantes destacados pelo grupo. Uma das professoras afirmou que é fundamental nessa estratégia "tocar" as pessoas para o tema, envolver a comunidade escolar, ainda que não fosse possível unanimidade na aceitação da proposta.

A gente hoje faz uma avaliação do projeto, que ele mexeu com a emoção das pessoas e ele teve envolvimento grande da comunidade, porque você via na língua portuguesa as pessoas conversarem: "como é que eu vou trabalhar isso?". Na matemática a gente ficava discutindo como a gente pode trabalhar essa questão da estatística. A educação física trabalhando... [...] É claro que não foi 100% de adesão, eu não posso falar isso, teve um monte de dificuldades. (Clara)

Outro elemento basilar que decorre desse, e foi citado pela mesma professora, é a capacidade de os projetos modificarem os conteúdos curriculares.

Que não seja um projeto para botar no mural da escola, que seja um projeto realmente trabalhado dentro da sala de aula e que não pare o conteúdo para ser projeto, porque para mim ele existe quando modifica [o conteúdo][...]. (Clara)

Também apareceu como destaque, na opinião de alguns dos professores, a necessidade de pôr as diferenças em contato. Um projeto deve promover o encontro entre diferenças, de forma que favoreça o reconhecimento da alteridade como um valor a ser respeitado e preservado.

O projeto que nós temos a partir do 6º ano – de 11 a 16 anos – a gente faz um trabalho voluntário no INCA [Instituto Nacional do Câncer], no Hospital de Oncologia Ortopédica, onde os meninos vão lidar com uma variedade enorme [de realidades]. Tem presos que ficam lá fazendo tratamento de coluna; é [um hospital de] referência na América Latina, então tem bolivianos...; tem pessoas do Rio Grande do Norte, do Acre que vão fazer o seu tratamento lá; e tem rico, tem pobre, tem uma diversidade enorme. (Tadeu)

Nesse caso específico, os alunos fazem parte de uma escola de classe média alta, e o projeto da escola favoreceu uma possibilidade de contato com diferentes realidades fora do universo escolar. Porém, é interessante destacar que nem todos os professores defenderam a realização de projetos temáticos como a melhor forma para tratar a questão das diferenças na escola:

A gente falou em projetos, e muitos projetos são ótimos para trabalhar o tema da diferença, mas às vezes eu acho que eles colocam um foco em cima da diferença e deixam o aluno preparado, porque eles sabem o que é esperado, o que é politicamente correto, e vai dizer que não tem preconceito, que não destrata o colega. (Cláudio)

Revelando outra dimensão do projeto temático, até agora não explorada pelos participantes, esse professor questionou sua eficácia, sublinhando a importância de assumir uma postura de valorização da diferença e erradicação do preconceito sem necessariamente abordar de forma direta a questão.

Eu prefiro não falar sobre preconceito, mas vou criar uma forma de instigar os alunos a perceberem isso. Eu tive um aluno que era muito racista. Em uma escola de maioria negra, ele era branco, loiro, de classe média. [...] E no primeiro dia ele já estava chamando os alunos negros de fedorentos. [...] Eu resolvi conhecer o Fabiano: de onde ele vem, o que ele gosta e tal, e a gente começou a conversar muito sobre rock porque isso era mais um dos elementos que o diferenciava, além de ser branco, loiro, ele gostava de rock enquanto a maioria gostava de funk. [...] Até que um dia eu tive um insight... rock... a origem do rock é negra. Ele não sabe disso. [...] Então, eu aproveitei que a gente estava trabalhando a influência da cultura norte-americana no ocidente e dei uma aula sobre rock e enfatizei a origem negra. Fabiano murchou, ele não falou nada e a partir daquele dia ele nunca mais fez qualquer comentário racista. (Cláudio)

Considerando as diferentes estratégias apontadas entre os professores do grupo, foi possível identificar algumas etapas nesse processo de reconhecimento das diferenças e o desenvolvimento de seus planos de trabalho, que apesar de não serem recorrentes nas falas dos diferentes participantes, pareceram consenso no grupo. A primeira etapa seria a de diagnóstico:

A primeira coisa é ver a necessidade do grupo. Fazer uma avaliação no início do ano, com vários tipos de atividades, para entender o grupo. (Marta)

Durante a etapa de reconhecimento da turma, uma questão importante levantada por uma das professoras participantes foi a de se considerar e valorizar os diferentes saberes presentes no espaço educativo. Por meio do maior conhecimento sobre a realidade da turma, a segunda etapa poderia ser a de repensar o currículo escolar, os objetivos do curso e traçar um novo planejamento com base na realidade encontrada:

Um desafio que a gente tem é repensar que escola é essa que está num modelo de um século que não é o nosso, de uma sociedade que não é a nossa e aí é [...] pensar o currículo, quais são os nossos objetivos [...]. Isso é um desafio! (Isabel)

Ao lado do desafio do currículo acerca de seus objetivos, também foi colocada a questão dos recursos e materiais didáticos diferenciados, com especial valorização das linguagens artísticas e midiáticas.

Eu trouxe muitos materiais de lá [África], CDs, esculturas, e roupas e tecidos, e esses são os materiais que com frequência voltam às minhas aulas. (Marta)

Uma coisa que eu privilegio é o desenho, os alunos têm que desenhar porque eles são muito pequenos e eles ficam meio perdidos nisso por causa do virtual... (Claudia)

Eles fizeram o documentário, onde eles editaram os filmes no celular, usaram o Orkut, o YouTube e aí era eu que estava aprendendo com eles e o que eu mostrava para eles era o saber histórico, a relação entre esses diferentes saberes. (Isabel)

Outro aspecto importante apontado pelos professores e professoras foi a possibilidade de uma gestão democrática na instituição escolar. Com uma maior participação da equipe docente, maiores são as chances de lidar com a questão da diferença.

Nós temos uma gestão que é uma gestão que abre espaço para você ousar, mesmo que seja fora da grade, mesmo que não seja o que a prefeitura determinou, a gente ousa e dá apoio, dá espaço para trabalhar e para discutir. (Clara)

Considerações finais

O primeiro aspecto que gostaríamos de destacar é que a realização do grupo focal mostrou-se de fato produtiva quanto ao objetivo da pesquisa. A riqueza da dinâmica de interação entre os participantes, ao mesmo tempo em que evidenciou a adequação do critério de seleção dos professores, pois todos demonstraram significativo conteúdo e sensibilidade em relação às questões propostas, permitiu também um nível de aprofundamento das discussões desenvolvidas superior àquele que fora possível nas entrevistas individuais. Em diversas passagens, observamos que o encaminhamento sugerido pela moderadora era secundarizado em virtude das trocas que surgiam entre os entrevistados.

No que se refere à percepção do grupo focal sobre a presença de diferenças no cotidiano escolar, é imperioso destacar que houve um importante consenso na identificação da escola como uma instituição monocultural que preza, valoriza e estimula a padronização. Na maior parte das vezes, essa tendência é vista de forma crítica pelo grupo, mas é válido destacar que em alguns momentos o movimento homogeneizante é considerado como parte da função social da escola pública no processo de fomentar a inclusão e a mobilidade social. Nesse sentido, é possível perceber que o grupo identifica uma tensão entre igualdade e diferença naquilo que se refere aos valores, comportamentos e conhecimentos defendidos pela escola e pela sociedade.

Podemos argumentar como Vera Maria Candau (2005, p. 18):

O que estamos querendo trabalhar é, ao mesmo tempo, a negação da padronização e também a luta contra todas as formas de desigualdade e discriminação presentes na nossa sociedade. Nem padronização, nem desigualdade. A igualdade que queremos construir assume o reconhecimento dos direitos básicos de todos(as). No entanto, esses(as) todos(as) não são padronizados(as), não são "os(as) mesmos(as)", têm que ter as suas diferenças reconhecidas como elementos presentes na construção da igualdade.

Outro elemento a ser mencionado é que entre as diferenças mais facilmente identificadas no espaço escolar, mais uma vez se evidenciam aquelas referidas às questões de aprendizagem. No entanto, diante da provocação da mediadora, o tema das diferenças culturais aparece com força, revelando que, além de presentes, elas estão interpelando fortemente os professores no cotidiano escolar.

Por fim, é relevante destacar que, para além da identificação de uma pluralidade de estratégias utilizadas para o tratamento das diferenças no cotidiano escolar, é possível perceber que a maior parte das iniciativas relatadas é de cunho pessoal, ancorada no interesse e empenho dos professores. Ao menos na experiência desse grupo de professores e professoras, nem os cursos de formação de professores, nem a escola como instituição assumiram o tema da diferença como uma questão a ser considerada pedagogicamente e do ponto de vista do reconhecimento. A padronização, todavia, se mantém como estratégia oficial dominante.

SOBRE AS AUTORAS

Kelly Russo é doutora em educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da mesma instituição. E-mail: kellyrussobr@gmail.com

Cinthia Araujo é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: aracinthia@gmail.com

Recebido em fevereiro de 2012

Aprovado em dezembro de 2012

  • Bernstein, Basil. Novas contribuições de Basil
  • Brasil. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena". Diário Oficial da União, Brasília, 11 mar. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: fev. 2012.
  • Camacho, Luiza. Violência e
  • Candau, Vera Maria. Sociedade,
  • _____. Sociedade multicultural e educação: tensões e desafios. In:  (Org.). Cultura(s) e educação. Entre o crítico e o pós-crítico. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 15-41.
  • _____. A diferença está no chão da escola. In: Colóquio Luso-Brasileiro sobre Questões Curriculares, 4. Colóquio sobre Questões Curriculares, 8. 2008, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2008a, p. 35-55.
  • _____. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: Candau, Vera Maria; Moreira, Antonio Flavio (Org.). Multiculturalismo. Diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008b. p. 17-37.
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  • Krueger, Richard. Focus groups: a practical guide for applied research. London: Sage Publications, 1994.
  • Leite, Miriam Soares. Entre a
  • Pedreira, Silvia. "Porque a palavra não
  • Pierucci, Antonio Flávio. Ciladas
  • Santos, Boaventura de Sousa. Uma concepção
  • Soares, José Francisco; Alves, Maria Teresa Gonzaga.
  • 1
    Pesquisas realizadas por integrantes do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Escola e Cultura(s), coordenado por Vera Maria Candau, no Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
  • 2
    Sobre o tema das relações entre diferença e desigualdade, ver Santos (1997) e Candau (2005, 2008a). Sobre a identificação entre diferença e déficit, ver Bernstein (1998). Para as relações entre diferença, preconceito e discriminação, ver Camacho (2000) e Leite (2008).
  • 3
    Para resguardar a identidade dos participantes da pesquisa, optamos por utilizar nomes fictícios.
  • 4
    A chamada síndrome de Asperger é um espectro autista, diferenciando-se do autismo clássico por não comportar nenhum atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou na linguagem do indivíduo.
  • 5
    Referimo-nos aqui aos argumentos de Antônio Flávio Pierucci (1999), no livro
    Ciladas da diferença.
  • 6
    Para essa questão, ver José Francisco Soares e Maria Teresa Gonzaga Alves (2003).
  • 7
    Sobre esse tema, consultar Silvia Pedreira (2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2012
    • Aceito
      Dez 2012
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