Acessibilidade / Reportar erro

Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida

RESENHAS

STECANELA, Nilda. Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida. Caxias do Sul: EDUCS, 2010, 368 p.

A escola da Modernidade se impõe como modelo educacional: seleciona saberes, disciplina comportamentos, condiciona corpos. Espaço praticado por homens – a quem importam as letras –, tardiamente acolhe o corpo feminino proporcionando às alunas o que lhes é apropriado saber. A escola, que era privilégio de poucos, passados os anos, torna-se obrigação de todos; hoje se vê às voltas, imersa – mais uma vez – em uma declarada crise: já não consegue cumprir as promessas que fez! Ainda assim, constitui-se espaço referencial de ação educativa e sobrevive entre as representações do que foi e a incerteza do que poderá se tornar.

Se os jovens, em geral, têm seus percursos marcados pelos trânsitos na escola, também experimentam no seu cotidiano inúmeras outras vivências. Mas o que e como os jovens aprendem fora da escola? Esse é o questionamento que acompanha Nilda Stecanela durante a construção de sua tese de doutorado e que resulta em Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida, livro publicado em 2010 pela EDUCS. No livro, a autora expressa parte de suas inquietações/construções produzidas a partir de sua inserção na educação básica, ao longo de 30 anos, como docente da rede municipal de ensino de Caxias do Sul e, no ensino superior, nos últimos 10 anos, como diretora do Centro de Filosofia e Educação, docente do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e coordenadora do Observatório de Educação da Universidade de Caxias do Sul.

Jovens e cotidiano está dividido em cinco capítulos que abarcam "A problemática do estudo", "Os dilemas conceituais", "Percursos metodológicos", "Os percursos juvenis" e "Desafios interpretativos: o que comunicam as palavras sobre o cotidiano?"; seu prefácio é redigido por Carmem Maria Craidy.

A professora pesquisadora Nilda Stecanela apresenta como resultado de sua investigação sobre os processos educativos não escolares de jovens da periferia urbana da cidade de Caxias do Sul (RS) um texto primoroso, permeado pela voz de jovens que narram seu vivido. Pela escuta das palavras, ditas ou silenciadas, faz reflexões e análises em um "diálogo em três dimensões" (p. 37): com seus interlocutores empíricos, seus interlocutores teóricos e seus conhecimentos tácitos. É ao detalhe, não sem inquietudes, que atenta em seu estudo. Para ela,

a exaltação dos detalhes, dos pormenores, pode, eventualmente, ser reveladora das estruturas sociais, permitindo recompor o todo através das partes, pois, através do pequeno, do ínfimo, da dobra, da sobra ou da sombra, é possível ter uma ideia de como as práticas sociais cotidianas são produtoras da estrutura social e como esta última acaba por influenciar as primeiras. (p. 34)

A autora se vale dos princípios da sociologia da vida cotidiana – metodologia escolhida para a análise de seu objeto de pesquisa – para alcançar os processos educativos não escolares que fazem parte das trajetórias dos jovens, foco de sua atenção, não desconsiderando, todavia, suas passagens pela escola tradicional marcadas, em geral, por fracassos e desistências. É "através dos inventários dos usos de seus tempos cotidianos" (p. 30) que logra conhecer as maneiras como esses jovens fabricam suas próprias vidas.

As experiências pessoais cotidianas, as escolhas nem sempre fáceis – limitadas pelo que lhes é possível a cada tempo – e os espaços sociais praticados são apreendidos por meio das narrativas juvenis colhidas pela pesquisadora em sua imersão no campo de investigação. "Nos trajetos da escrita, os jovens vão tecendo laços entre a linguagem e a vida, num entrecruzamento, num vai e vem entre os tempos da narração, os tempos da vida e os tempos da experiência" (p. 122), observa ela. As escolhas necessariamente tomadas, a fundamentação teórica contida no estudo, os conceitos a que recorre Stecanela, os entrelaçamentos com o tema, estão, assim, minuciosamente explanados em "Os dilemas conceituais", o capítulo dois.

Em seu estudo, a autora opta por apresentar a categoria juventude pela perspectiva das transições. Discorrendo sobre as múltiplas transições, destaca seu caráter polissêmico e a "importância de observar as juventudes segundo diferentes contextos" (p. 89). As práticas cotidianas dos jovens pesquisados são contempladas considerando as suas experiências em torno do tempo – e seus dilemas entre a escolha, o controle e a culpa –, entremeados pelos espaços que transitam e praticam, elementos estes constitutivos de seus processos identitários.

Os "Percursos metodológicos" da pesquisa são apresentados no terceiro capítulo. O cenário da pesquisa, os inúmeros deslocamentos ao campo de investigação, os critérios de escolha dos jovens que fariam parte do estudo, as estratégias de abordagem utilizadas pela pesquisadora, "que tentava conhecer e compreender os modos de ser jovem da juventude daquele pedaço da cidade" (p. 131), suas impressões e reflexões, os vínculos estabelecidos, os caminhos e atalhos percorridos fazem parte da narrativa desse capítulo.

Buscando as experiências educativas, para além do escolar, vivenciadas pelos jovens da comunidade, o cenário da investigação, Stecanela opta pela construção de inventários dos tempos cotidianos desses jovens, com um enfoque qualitativo. Valendo-se desses inventários, traça mapas de trânsitos para compor suas biografias. Suas trajetórias são, então, classificadas na categoria trânsitos, sendo eles: trânsitos pela escola, trânsitos pela família, trânsitos pelos afetos, trânsitos pelo trabalho, trânsitos pela polícia, trânsitos pela religião e trânsitos pelas culturas juvenis. Com o material empírico à mão, a pesquisadora realiza a análise textual dos dados que dispõe compondo sua escrita com o uso de metáforas. Assim, suas considerações emergem da escavação do cotidiano, da escovação das palavras, da construção de mosaicos e de um constante diálogo entre a teoria, a empiria e os conhecimentos que traz implícitos.

As trajetórias de quatro jovens – entre um total de 18 que participaram da pesquisa – são reconstruídas com base nos fragmentos de suas narrativas faladas ou escritas e apresentadas no capítulo quatro, que traz o título "Os percursos juvenis". Entrelaçando as suas análises com escritos de estudiosos, a autora vai desvendando nas práticas cotidianas dos jovens intenções, invenções, representações, apropriações, ressignificações, evidenciadas nos relatos orais que fazem de si, nas escritas em cadernos de segredos, em diários e cartas.

Compondo um mosaico, a pesquisadora se lança ao desafio de buscar os sentidos e interpretar, pelas palavras que lhe chegam, o cotidiano experienciado, percebido, reinventado pelos jovens da periferia urbana. "Desafios interpretativos: o que comunicam as palavras sobre o cotidiano?" é o título do capítulo cinco desse livro.

Para comunicar os resultados do estudo realizado, Stecanela construiu seus argumentos em torno de unidades textuais, procurando comunicar categorias que emergiram do campo da investigação, sendo elas: trânsitos com a pressão do cotidiano, com a escola da vida – expressões estas presentes nas falas dos jovens – e com as biografias de escolha. Analisando o cotidiano dos jovens, a autora percebe que estes vivem em intensa pressão e, diante do que lhes é possível, reinventam seus próprios modos de viver a juventude: a esquina da rua torna-se espaço social praticado pelo grupo de amigos, sem a presença feminina; a escola, em geral, é um projeto – adiado, esquecido por um tempo, retomado – ou um sonho para o futuro; o trabalho é uma necessidade para a sobrevivência e para os consumos juvenis; a religião é uma alternativa para aliviar a pressão vivida, praticada em tempos descontínuos; a música – ou viver da arte – um ideal; a família, uma referência, centrada sobretudo na figura da mãe, mas não livre de tensões. Suas trajetórias se constituem por meio das escolhas que lhes são possíveis, mas também por aquelas impostas pelo contexto social em que vivem.

Com sua investigação tornada pública, Stecanela espera "possibilitar alguma reflexão para a reinvenção da escola" (p. 341). Para ela, entre as principais contribuições de seu estudo está

a compreensão de que, a partir dos trânsitos com a pressão do cotidiano, com o paradoxo da escolha e com a escola da vida, os jovens da periferia são desafiados a construir suas biografias reinventando-se cotidianamente, em percursos caracterizados pela inclusão precária, num intenso processo de aprendizagem a partir da experiência, constituindo-se num olhar sociológico para os processos educativos não escolares. (p. 347)

O estudo empreendido, publicado sob a forma de livro impresso, se caracteriza pela interdisciplinaridade, buscando aproximações com a sociologia, a antropologia, a história cultural e a geografia, entre outras áreas, conforme está registrado no primeiro capítulo da obra. Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida é, portanto, um convite para muitos diálogos e se apresenta como uma leitura importante para os profissionais da educação.

Recebido em outubro de 2011

Aprovado em maio de 2012

Alessandra Chaves Zen é mestranda em educação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: aczen@ucs.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@anped.org.br