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Experiências escolares e dispositivo de biografização: rumo à construção de competências biográficas

Experiencias escolares y dispositivo del hacer biográfico: hacia la construcción de competencias biográficas

School experiences and biographization device: towards building biographical competencies

Resumos

Esta pesquisa apresenta um dispositivo cuja fonte se encontra em questões ligadas à minha prática profissional docente. Ele faz uso dos aportes da pesquisa biográfica numa instituição educativa que atualmente faz questionamentos a fim de descobrir se, para jovens considerados em situação de dificuldade, o relato de vivência escolar constitui uma mediação capaz de permitir que construam uma autoimagem de aluno que forme um compromisso aceitável e, portanto, o menos violento possível entre suas diferentes identificações. O dispositivo observa se o processo de biografização, ao reconhecer as singularidades dos membros de um grupo e também suas trajetórias comuns, favorece a constituição de uma comunidade de trabalho. Observa também se ele pode contribuir, graças à construção do sentido dos seus percursos, para modificar a relação com o saber e a postura perante as aprendizagens de certos jovens em sofrimento numa situação escolar que faz deles objetos.

violência; percurso; experiência; biografização; acompanhamento; pesquisa


Este artículo presenta un dispositivo de investigación basado en cuestiones relacionadas con mi práctica profesional como docente. Conjuga los aportes de una investigación de tipo biográfico realizada en una institución educativa con el objetivo de descubrir si el relato sobre lo vivido en la escuela constituye una mediación que les permite a los jóvenes -considerados en situación de dificultad- configurar una imagen de alumno que forme un compromiso aceptable, es decir lo menos violento posible, entre sus diferentes identificaciones. El dispositivo observa si el proceso de construcción biográfica, por medio del reconocimiento de las singularidades de sus miembros y de sus trayectorias comunes, facilita la constitución de un grupo en comunidad de trabajo y si puede contribuir, gracias a la construcción de sentido de sus recorridos, a modificar la relación con el saber y la postura frente a los aprendizajes de jóvenes que sufren en una situación escolar que los transforma en objetos.

violencia; trayecto; hacer biográfico; experiencia; acompañamiento; investigación


This research presents a device whose source lies in issues related to my teaching practice. Such device uses biographical research contributions in an educational institution that currently questions itself to find out whether, for youths considered in distress, reporting school experience is a mediation capable of enabling them to build a student self-image that makes an acceptable commitment and therefore the least possible violent of their different identifications. The device observes whether the biographization process fosters the constitution of a working community by recognizing the singularities of group members and their trajectories. The device also observes whether it can contribute to modify the relation with knowledge and the attitude towards the learning of certain young people in distress in a school setting that makes them objects, thanks to the construction of the sense of their paths.

violence; path; experience; biographization; accompaniment; research


ARTIGOS

Experiências escolares e dispositivo de biografização: rumo à construção de competências biográficas

School experiences and biographization device: towards building biographical competencies

Experiencias escolares y dispositivo del hacer biográfico: hacia la construcción de competencias biográficas

Anne Dizerbo

Universidade de Paris 13

RESUMO

Esta pesquisa apresenta um dispositivo cuja fonte se encontra em questões ligadas à minha prática profissional docente. Ele faz uso dos aportes da pesquisa biográfica numa instituição educativa que atualmente faz questionamentos a fim de descobrir se, para jovens considerados em situação de dificuldade, o relato de vivência escolar constitui uma mediação capaz de permitir que construam uma autoimagem de aluno que forme um compromisso aceitável e, portanto, o menos violento possível entre suas diferentes identificações. O dispositivo observa se o processo de biografização, ao reconhecer as singularidades dos membros de um grupo e também suas trajetórias comuns, favorece a constituição de uma comunidade de trabalho. Observa também se ele pode contribuir, graças à construção do sentido dos seus percursos, para modificar a relação com o saber e a postura perante as aprendizagens de certos jovens em sofrimento numa situação escolar que faz deles objetos.

Palavras-chave: violência; percurso; experiência; biografização; acompanhamento; pesquisa.

ABSTRACT

This research presents a device whose source lies in issues related to my teaching practice. Such device uses biographical research contributions in an educational institution that currently questions itself to find out whether, for youths considered in distress, reporting school experience is a mediation capable of enabling them to build a student self-image that makes an acceptable commitment and therefore the least possible violent of their different identifications. The device observes whether the biographization process fosters the constitution of a working community by recognizing the singularities of group members and their trajectories. The device also observes whether it can contribute to modify the relation with knowledge and the attitude towards the learning of certain young people in distress in a school setting that makes them objects, thanks to the construction of the sense of their paths.

Keywords: violence; path; experience; biographization; accompaniment; research.

RESUMEN

Este artículo presenta un dispositivo de investigación basado en cuestiones relacionadas con mi práctica profesional como docente. Conjuga los aportes de una investigación de tipo biográfico realizada en una institución educativa con el objetivo de descubrir si el relato sobre lo vivido en la escuela constituye una mediación que les permite a los jóvenes –considerados en situación de dificultad– configurar una imagen de alumno que forme un compromiso aceptable, es decir lo menos violento posible, entre sus diferentes identificaciones. El dispositivo observa si el proceso de construcción biográfica, por medio del reconocimiento de las singularidades de sus miembros y de sus trayectorias comunes, facilita la constitución de un grupo en comunidad de trabajo y si puede contribuir, gracias a la construcción de sentido de sus recorridos, a modificar la relación con el saber y la postura frente a los aprendizajes de jóvenes que sufren en una situación escolar que los transforma en objetos.

Palabras clave: violencia; trayecto; hacer biográfico; experiencia; acompañamiento; investigación.

INTRODUÇÃO

Diante do aumento da violência escolar, o Ministério Francês da Educação implementou no ano passado uma série de medidas1 1 Disponível em: < http://www.education.gouv.fr/cid2765/la-prevention-et-la-lutte-contre-la-violence.html>. Acesso em: 10 mar. 2012. com o objetivo de oferecer as mesmas chances e uma integração bem-sucedida para todos. Na maioria das vezes repressivas, essas medidas apresentam a violência como tendo origem fora da instituição escolar. Esta teria então como objetivo garantir boas condições de aprendizagem e ser a alavanca educativa de uma resolução social da violência.

Sem colocar em questão os emaranhados e as interações do mundo da escola e da sociedade, proponho aqui observar o fenômeno da violência escolar considerando a instituição como um dos espaços de sua produção. A pesquisa aqui apresentada se apoia nessa constatação e entrevista alunos de 8º ano2 2 O ensino francês é dividido em pré-elementaire (o pré-escolar brasileiro), elementaire ou primário (que corresponde aos cinco primeiros anos do ensino fundamental brasileiro), collège (que corresponde aos quatro anos finais do ensino fundamental brasileiro), lycée (que corresponde ao ensino médio brasileiro) e superior (que pode ser realizado ou não em universidade, existindo diversas modalidades de formação técnico-profissionalizante). Optamos, na tradução, pelo uso da terminologia brasileira (N. da T.). sobre a forma como têm vivido seu percurso escolar, a fim de permitir que se posicionem como sujeitos desse trajeto, o que passa pela transformação de uma autoimagem negativa de aluno para uma autoimagem mais positiva, graças ao testemunho da violência sofrida, ela mesma geradora de violência.

É importante, num primeiro momento, apresentar o contexto de produção da violência institucional em que se situa minha pesquisa. Em seguida, exponho sua gênese e seus fundamentos teóricos, antes de apresentar mais detalhadamente o dispositivo implementado. E, depois, finalizo com as constatações e os resultados alcançados até agora.

A INSTITUIÇÃO ESCOLAR COMO PRODUTORA DE VIOLÊNCIA

Já em 1996, Develay (1996) se interessava pela "crise" da escola que ele definia como não meramente conjuntural. Salientava também o "divórcio" entre os valores republicanos do sistema escolar e os valores individualistas da sociedade. Essa crise intervém após um período durante o qual a massificação escolar e a diversificação das possibilidades de formação permitiram, segundo Bloch (2010), realizar progressos democráticos e elevar o nível de formação dos franceses. Numa obra recente, apoiando-se no resultado de vários estudos internacionais, ele estabelece um diagnóstico do sistema educativo francês: este conta com o menor número de alunos em situação de êxito e o maior número de alunos em dificuldade. Segundo ele, esse sistema fracassou na sua missão de difundir uma formação democrática, pois atomiza os alunos em virtude de seu pertencimento a categorias socioprofissionais precisas, não dá a todos o acesso aos estudos universitários e raramente oferece uma possibilidade de ascensão socioeconômica. Isso, mesmo com as medidas tomadas no decorrer das últimas décadas, que não permitiram melhorar os resultados dos alunos que se encontravam em dificuldade desde o primário e que acabam evadindo mais cedo do sistema escolar. A equipe ESCOL3 3 Educação, Socialização e Comunidades Locais (ESCOL). Equipe de pesquisa da Universidade Paris 8, fundada por Bernard Charlot (N. da T.). (Bautier, 2008) tem mostrado, aliás, que as práticas do pré-escolar e do primário tendem a reforçar involuntariamente as desigualdades escolares. Teríamos, então, chegado ao limite do que pode produzir de positivo a diversificação das alternativas de formação.

Esse fracasso constitui uma violência para os alunos nos quais se encarna. Numa sociedade que se tornou incapaz de antecipar as rápidas mudanças que vive, num contexto social em que "o sentido das ações e das identidades constitui, para os atores, menos uma evidência do que uma construção própria" (Dubet, 1998, p. 405), cada um carrega a responsabilidade de realizar-se a si próprio e de encontrar sozinho seu lugar, o que gera por vezes um sentimento de incompetência culpabilisante.

De fato, por ser menos determinado pela sociedade, o homem experimenta doravante um "individualismo societal" (Delory-Momberger, 2009) para realizar-se, inserindo-se em meios sociais plurais. A injunção institucional tende a ­responsabilizá-lo inclusive pelos obstáculos e fracassos enfrentados. A mesma injunção se aplica aos alunos. Nessa situação, perdem eficácia as práticas escolares da escola republicana cuja finalidade era, antes de tudo, a construção de uma identidade nacional com base em valores reconhecidos pela maioria como legítimos.

A escola, como o mundo do trabalho (marcado pela precarização e pelo desemprego de massa), tornou-se um espaço de concorrência e de seleção contínua. Esta já existia antes da escolarização maciça pelo viés da condição social, mas ela se efetua agora ao longo da escolaridade, em razão dos resultados obtidos. A escola não pode mais, então, conjugar todas as suas missões: contribuir para o desenvolvimento de cada indivíduo, ensinar um saber comum, capaz de permitir a cada jovem se inserir numa nação concebida como um coletivo e, finalmente, certificar a aquisição dos conhecimentos. Os adolescentes que devem efetuar na escola transações entre as dimensões identitárias plurais que os constituem fazem também nela a experiência de um conflito entre sua afirmação e sua identificação com as representações institucionais. Isso nos leva a perguntar o que é pedido hoje aos alunos pela instituição, e o que estes podem fazer dessa demanda confusa e contraditória. Até os verbos utilizados pelo ministério, quando redefine a missão dos docentes (Ministère de L' éducation Nationale, 2009) – "formar", "instruir", "educar", "ensinar" –, frequentemente usados como sinônimos, tornam, na realidade, confusos os papéis e as tarefas se prestarmos atenção à sua etimologia contraditória. Como afirma Fabre (1994): "Da mesma forma, a ideia de formação embaralha as distinções conceptuais e obscurece também o discurso pedagógico ao insinuar-se em algum lugar entre 'instrução', 'educação', 'ensino', 'aprendizagem', sem que se possa atribuir-lhe um espaço, fixá-la num território".

Essas contradições, ao serem transmitidas ao aluno pelos atores do sistema educativo, "embaralham" a sua compreensão das expectativas em conformidade com as quais se espera que ele construa sua identidade de aluno.

O papel oficial do aluno é aprender, adquirir autonomia ao longo de sua escolaridade, formar-se para a vida cidadã e para um ofício futuro, graças à sua ­capacidade de expressar opiniões e julgamento próprio. Mas a esta posição ­objetiva, que frequentemente não lhe proporciona uma continuidade com sua história e seu entorno, corresponde outra, subjetiva, que determina o modo como ele vive, na sua singularidade, este papel e seu pertencimento ao mundo da escola, em virtude de sua história e das suas relações, do sentido que pode atribuir à sua escolaridade.

Develay (1996) nos convida a colocar a questão do sentido das aprendizagens para podermos resolver a crise que se situa numa mutação conjunta da escola e da sociedade. Essa questão torna-se aqui essencial. O sentido não pode ser imposto de fora, e o saber sempre se constituir por meio de uma experiência emocional. Ele procede da construção biográfica global das crianças, que devem, ao ingressar na escola, configurar um novo mundo integrador das identificações anteriores. A partir de conhecimentos que já têm, elas podem produzir novas compreensões para se pensar numa relação com o mundo e com os outros, desde que encontrem sentido nisso e a valorizem. Ora, esse sentido e essa valorização são tributários do seu mundo de vida:

[...] este mundo no qual vivem e do qual incorporaram os habitus, os valores simbólicos, a estrutura de experiência e de conhecimento, tudo o que lhes permite interpretar os acontecimentos e as situações com as quais são confrontados, assim como apreender o que lhes é desconhecido. (Delory-Momberger, 2003)

Como relembra Hatchuel (2005), as mudanças não são forçosamente aceitáveis para todos na mesma medida. A relação que a criança mantém com o saber depende das estratégias de expectativa que sua família desenvolve ou não, da maneira como esta vive a relação com a cultura, do seu posicionamento enquanto consumidora, produtora ou inventora de saberes. A relação com o saber na família frequentemente corresponde com a relação com o saber do grupo social com o qual ela se identifica.

Se a criança não é determinada ou sobredeterminada pelo que vive em sua família, não deixa de se identificar com essa vivência, e o ingresso na escola pode constituir para ela uma violência ao obrigá-la a se descentrar e mesmo, por vezes, de ancorar. Dewey (2011) mostra que a descontinuidade sofrida entre o experimentado fora do mundo da escola e dentro dele obriga por vezes a criança a adotar uma postura defensiva perante o saber, como forma de manifestar sua recusa da condição de aluno ou de persistir dentro do sistema escolar.

Lapassade (1998) explica que o recurso à dissociação para resistir ao esfacelamento do eu entre seus diferentes pertencimentos não é tolerado na escola, a não ser em suas manifestações menores. À profissionalização crescente do aluno transformado em "aprendente", tal como o descreve Perrenoud (2005, p. 26-30), se contrapõe uma profissionalização do desvio produzida pela instituição escolar capaz de assumir diferentes formas: absenteísmo, recusa de estudar, violências físicas e/ou verbais. Todas elas marginalizam um número crescente de alunos que não interiorizam os códigos escolares. Elas são também testemunhos do desamparo e da resistência dos alunos: "ao encenar este ritual, os jovens afrontam as expectativas de integração da sociedade", escreve Wulf (1999, p. 127). Sua pesquisa nos lembra que a construção de uma autoimagem de aluno passa por aprendizagens da ritualização escolar que são da ordem da mimese social e entram em conflito com outras ritualizações: as dos grupos aos quais a criança pertence. A definição da "profissão" de aluno elabora-se coletivamente entre desvio e normalização.

A ritualização escolar, que não pode ser negociada pelos alunos e é, por isso mesmo, difícil de ser integrada, não é mais consensual. Ela entra em conflito com a do grupo de pares ao qual a criança pertence. Pela sua rigidez, é a própria escola que provoca a construção de uma imagem de aluno negativa, uma representação em que a criança aparece como "congelada" no estatuto de "aluno com dificuldade". A essa criança é atribuída, por generalização, uma deficiência sociocultural e ela passa a ser definida como objeto lacunar (Charlot, 2005). Ora, se é verdade que o aluno ocupa uma posição social, sua experiência escolar é própria de um sujeito. Sem levar isso em conta, fica difícil lutar contra a ideologia subjacente do dom e contra a tendência subordinada de os diferentes atores escolares endossarem uma forma de fatalidade alienante.

É preciso admitir que parte da violência escolar é gerada pela própria instituição e que ela abarca todos os alunos. Reuter (2007) demonstrou que alguns deles respondem ao conflito entre seus espaços de socialização por uma adesão total às normas escolares que se traduz pela adoção dos rituais prescritos. Sua atitude é valorizada, o que alimenta sua autoestima e os seus resultados os confortam nessa estratégia. Outros funcionam numa dualidade entre as normas escolares e as normas do grupo de referência ao qual pertencem, sem que isso ameace globalmente sua escolaridade. Outros, finalmente, manifestam claramente sua rejeição da cultura escolar para preservar sua cultura de origem ou porque sua relação imediata com o mundo, pautada no agir, não lhes permite ter acesso à abstração que constitui o fundo e a forma escolar. Eles demonstram então, no caso, sua rejeição mediante uma atitude de desvalorização sistemática das normas escolares: uso da força, ameaças, insultos, ridicularização do comportamento dos docentes e dos alunos conformistas...

Todos os alunos desenvolvem estratégias para resistir à violência da escolarização, mas a minha atenção se dirige aqui, em particular, para os mais estigmatizados por tratamentos baseados na defectologia ou na reparação. Por isso mesmo, eles são frequentemente excluídos do coletivo de trabalhos e não se podem beneficiar do reconhecimento dos pares, necessário à sua integração no grupo e à sua progressão individual. Na maioria das vezes, são eles que interpelam a instituição com suas manifestações de violência, que serão dirigidos para formações socialmente e interiormente desvalorizadas e que definitivamente deixarão cedo o sistema escolar, habitados por um sentimento de injustiça que alimenta em parte a violência urbana, ela mesma considerada, no ponto de partida, responsável pela violência escolar.

GÊNESE E APOIOS TEÓRICOS

Foi nesse contexto que me vi questionando minha prática de professora de francês e professora responsável de turma num colégio de ZEP.4 4 Zona de Educação Prioritária (regiões ou bairros habitados por populações pobres e/ou imigrantes, cujos filhos apresentam fortes dificuldades escolares e que, por essas razões, beneficiam-se de políticas educacionais especiais) (N. da T.). A questão da orientação dos meus alunos ao final do 8º ano ou do 9º ano me preocupava. A sua falta de implicação diante de um encaminhamento crucial que os engajaria, doravante, a modalidades dessa orientação, o fato de os seus resultados frequentemente não corresponderem a uma escolha pessoal; tudo isso me interpelava. Necessitava de um arcabouço teórico para trazer respostas aos meus questionamentos pedagógicos, didáticos e éticos, e me posicionar claramente.

Passei então a fazer parte da corrente dos professores pesquisadores com um duplo objetivo: enriquecer as análises da situação escolar e acompanhar os participantes na subjetivação do seu percurso escolar. Apoiada na teoria da inconclusão do homem (Lapassade, 1997), nas teorias da experiência da Bildung e de Dewey (2011), reencontrando Meirieu (1997) ou Fabre (1994) no plano ético, situei globalmente minha relação com os alunos numa parceria, tanto nas minhas aulas quanto na minha pesquisa. Adotei assim o princípio de contenção de Michel Serres, quando ele propõe que se disponha de um poder sem dele fazer uso, a fim de conjugar educabilidade e não reciprocidade: "o crédito sem a dívida".

Parecia-me interessante pensar as dificuldades identitárias dos alunos com a contribuição dos aportes da pesquisa biográfica (Delory-Momberger; Clementino de Souza, 2009), com o objetivo de prevenir e remediar a violência de um percurso escolar frequentemente vivido como uma intimação a obter uma qualificação. A pesquisa biográfica preocupa-se em abordar as questões ligadas à narratividade, à reflexividade da escrita e ao sujeito, assim como aquelas ligadas às temporalidades para fazer emergir: "o presente agindo, o passado como experiência e o futuro como horizonte de responsabilidade" (Bachelard; Pineau, 2009). Ela se interessa pelo conjunto das atividades nas quais o ser humano é capaz de representar a inscrição de sua existência no tempo e se apoia, entre outros, nas produções de discursos narrativos, interessando-se pela função performativa destes. O indivíduo dissociado, cuja vida é baseada em crises, ultrapassa estas ao dispor de materiais narrativos suscetíveis de permitir que ele se relate em diferentes grupos. Lançando mão, no seu trabalho de biografização permanente, de modelos narrativos que relembram o romance de formação, ele dá sentido e coerência às suas experiências, numa lógica de experiência e de aprendizagem. Assim, a biografização, enquanto espaço de conciliação entre diferentes identificações, parecia-me apta a ajudar o adolescente a construir uma autoimagem de aluno compatível com seu mundo de vida.

Tratava-se então de observar se, para o aluno, um trabalho sobre o relato do seu percurso escolar, frequentemente considerado negativo, constituía um meio de ter sobre ele um novo olhar distanciado, de atribuir-lhe um sentido valorizante e de reconciliar-se com ele objetivando poder, mediante isso, tornar-se capaz de formular projetos pessoais. Na mediação da identidade narrativa solicitada para produzir um relato destinado a outros, o aluno podia ter acesso a um sentimento de continuidade no tempo e com seu entorno suficientemente tranquilizador para ousar ir em direção de novas aprendizagens e de novas identificações.

Projetava-se realizar com os alunos um trabalho que levasse em conta sua singularidade, nas suas múltiplas dimensões e tensões com o contexto e com os grupos nos quais evoluíam. O objetivo era de ver se esse trabalho era suscetível de transformar o espaço de concorrência da turma em comunidade de trabalho ou de fazer com que os alunos se engajassem com confiança numa espiral de êxito favorável a uma mudança de postura perante as aprendizagens, graças ao reconhecimento obtido com os pares e com a instituição. Sem focalizar nenhum dos polos do sistema educativo – docente, aprendente ou saber –, e sim as relações que os unem entre si e com o entorno, observava o processo identitário agindo na construção de uma autoimagem de aluno (que não se pode constituir independentemente de uma pessoa implicada na finalidade emancipadora do ato educativo).

O DISPOSITIVO

Para ter acesso a uma compreensão hermenêutica do processo de construção identitária em funcionamento na narração e levar em consideração os alunos nas suas interações, fiz a escolha de um encaminhamento empírico e qualitativo que se inscreve, ao mesmo tempo, no campo da pesquisa pedagógica e no da pesquisa biográfica. Minha pesquisa tem por base a coleta de entrevistas, mais ou menos diretivas, segundo as etapas do trabalho. O objetivo era o de enriquecer as análises da situação escolar e de acompanhar os participantes na subjetivação do seu percurso pelo acesso a uma compreensão do seu discurso narrativo, ao seu modo de se autobiografar e ao sentido que eles atribuem à escola. Na medida em que eu tinha a preocupação de lançar mão de uma abordagem compreensiva das condutas dos alunos, que não buscava me colocar na escuta de um objeto de estudo, e sim dos sujeitos dos quais colhia dados biográficos e que acompanhava num trabalho educativo, adotei uma postura clínica (Niewiadomski, 2012, p. 33-41).

Apoiarei aqui minha reflexão em dados colhidos no meu estabelecimento escolar ao longo de dois anos. Estava então, ao mesmo tempo, no papel de professora de francês, de professora responsável de turma, de acompanhante no processo de biografização e de analista dos relatos colhidos.

5 Programa Personalizado de Sucesso Escolar.

Os voluntários provinham de turmas de 8º ano, ou seja, do segundo ano do ciclo central,6 6 O collège é dividido em três ciclos: ciclo de adaptação (6º ano), ciclo central (7º e 8º ano) e ciclo de orientação (9º ano) (N. da T.). conhecido por ser delicado e mais difícil que os outros, com alunos em plena fase de crescimento, que vivenciam importantes interrogações identitárias e são instados a se questionarem, já naquele momento, sobre sua orientação profissional. Nesse nível, podem ser levados a abandonar os estudos gerais e a matricular-se num liceu profissionalizante para ingressar numa turma de Descoberta Profissional 6 horas (DP6) ou ingressar no Centro de Formação para Aprendizes (CFA). A peculiaridade das classes com as quais eu fiz esta pesquisa se referia à dificuldade de os alunos integrarem o mundo escolar, naquilo que ele comporta de expectativas de trabalho e de resultados, à sua tendência em se refugiar numa conduta desviante, no absenteísmo, na agressividade.

Após ter obtido o consentimento e estabelecido um contrato quanto à confidencialidade, ao respeito e à propriedade das entrevistas, interroguei os alunos sobre seu percurso escolar, desde o seu início até o momento das entrevistas, e sobre a maneira como eles encaravam seu prolongamento. Essa primeira ação, que tinha como finalidade constituir comunidades de trabalho propícias à expressão das singularidades, tomou a forma de um dispositivo coletivo. Ela foi seguida por um tempo de escrita individual do percurso explorado oralmente. Tive então, com certos voluntários, entrevistas semidiretivas a fim de acompanhá-los num trabalho de conscientização, na construção de uma historicidade visando permitir que se engajassem, enquanto sujeitos, no seu projeto de orientação, que construíssem uma identidade de aprendente, que modificassem sua relação com a escola. Várias reescritas e releituras acompanhadas do seu percurso escolar eram necessárias para que, progressivamente, reavaliassem as experiências percebidas negativamente e configurassem a história escolar numa perspectiva emancipadora.

Realizei a seguir uma análise narratológica (Reuter, 2009) e enunciativa das entrevistas, assim como dos relatos escritos produzidos pelos alunos e sobre os quais se puderam expressar. Ela tinha por base a classificação dos tipos de verbos (ação, estado, julgamento, sentimento etc.), os indícios da enunciação, as modalizações, os modos (ativos, passivos), os campos lexicais utilizados, a observação dos actantes e do seu posicionamento.

CONSTATAÇÕES, EFEITOS, RESULTADOS

Minhas observações se apoiam nas transcrições e na sua análise, no comportamento dos participantes, nas entrevistas informais que tive com eles e com a equipe pedagógica, assim como nos boletins escolares.

É na intimidade da escrita que se expressa com maior clareza e força o sofrimento de certos alunos:

Não tenho mais vontade de estudar, nem sei por que venho. Enfim... só pode ser por obrigação. Os professores fingem que gostam da gente, mas eles só estão ali para dar nota, punir etc. Os professores não gostam da gente, muitas vezes eles são um estresse, uma angústia para a gente.

Dependendo do professor, fico com cólicas antes de entrar na sala de aula.

A escola é dura para mim, meu percurso é nulo, eu sou nulo.

Uma das primeiras características observadas nas entrevistas coletivas é que aquilo que é vivenciado como um fracasso no âmbito escolar é frequentemente fonte de angústia, de humilhação, de vergonha, e gera um sofrimento que afeta globalmente o jovem, embora este não costume falar disso abertamente:

Adrien: Pois a mim, isso me permitiu falar sobre meu percurso escolar, porque são coisas que nunca tinha dito antes, então é... isso me permitiu soltar... eu sei, pois... eu o disse.

Manon: Isso faz bem!

Alexandre: Pois é.

Entrevistador: Então, em que sentido falar te fez bem?

Adrien: Bom, eu vou dizer, então eu guardava tudo isso para mim e é... mas eu não falava para ninguém, então, com o tempo... tudo se acumula e então pronto! Eu falei, eu falei, estou melhor pelo menos...

Célia: Pois é, concordo com você...

Entrevistador: Você concorda com ele?

Célia: Sim.

Manon: De fato, você tinha uma pequena carga pesada no coração... é... é isso.

[...]

Zoé: Pois eu não falei disso para ninguém antes, falei para minha mãe, mas...

Entrevistador: Então é a primeira vez que você fala disso?

Zoé: Sim. Alivia...

Entrevistador: Alivia?

Grupo: É.

Alexandre: Pois é... a gente tinha isso trancado na cabeça.

Nesse extrato, o que domina é a ideia de peso ("soltar", "carga pesada", "se acumula") associada ao isolamento ("não falava disso para ninguém", "trancado") e ao alívio. A heterobiografização coletiva permitiu, pela partilha das experiências, que se tivesse acesso a um reconhecimento por parte dos pares e da instituição. Autorizou cada um a se expressar, a afirmar sua singularidade, revelando ao mesmo tempo seus laços com o grupo, como testemunha este trecho do final de uma entrevista individual realizada depois:

Entrevistador: Este trabalho sobre o percurso escolar que fizemos desde o início. Eu gostaria de ter sua opinião. Como você se sentiu neste trabalho? Nas diferentes etapas?

Sébastien: Pois... é... eu não sei muito bem. Eu me sentia bem. Pois eu... eu disse tudo o que tenho, meu percurso, o que fiz, tudo. E senão, pois... já aceitei falar do meu percurso. Que todos soubessem o que eu fazia e tudo isso.

Entrevistador: Era dirigido aos outros alunos da classe?

Sébastien: É. E vi também que não era o único a ser como eu. Havia outros alunos também. Como... pois, é mais ou menos como, pois tem uns, mais ou menos como eu, mais ou menos, e apesar de que é o mesmo percurso. Vejo que tem uns que fizeram mais ou menos o mesmo percurso que eu. E daí pronto!

Silêncio.

Entrevistador: Foi interessante para você descobrir isso?

Sébastien: Eu não me dava conta de que para os outros era a mesma coisa, não sabia que tinham o mesmo... pois o que faziam e tudo isso. Sabia que eles tinham dificuldades nas aulas, mas fora isso, as outras coisas, eu não sabia a razão. Não se fala muito disso. Só tinha falado para meus pais e pronto.

Esse tipo de tomada de consciência favoreceu a emergência de um clima de ajuda mútua em vez de concorrência. O trabalho de biografização veio apoiar os esforços da equipe, permitindo uma diminuição considerável do absenteísmo e uma melhoria das relações com os colegas e com os adultos da classe.

A biografização coletiva impôs também um verdadeiro trabalho de configuração ao limitar as possibilidades de o narrador "se ajeitar" facilmente demais com sua própria história, pois o relato precisava ter verossimilhança e credibilidade. Os auditores "pedem contas" quando encontram incoerências. Uma ocasião de multiplicar as possíveis interpretações que permitiu, por vezes, ao aluno começar a se desprender da sua própria versão e escolher outra. Por exemplo, no relato de Marion, uma das alunas entrevistadas, aparecem astúcias destinadas a fazer com que não se sinta por demais ferida pelo fracasso das suas tentativas de aprendizagem e assuma mais facilmente uma postura desviante. Mas ao longo do trabalho realizado, sua atitude na classe e todo seu discurso mostram que ela aceita progressivamente o risco do erro. Observa-se no seu relato a construção de uma projeção do seu percurso de formação que leva em consideração de maneira mais eficaz suas aspirações e as expectativas familiares, levando-a, ao mesmo tempo, a encontrar uma continuidade entre a antiga autoimagem de aluna e aquela que está sendo elaborada.

Pude também notar uma interação entre os relatos. Com toda evidência, modelos ou esquemas biográficos usados por certos alunos eram transmitidos a outros. Pude observar que os alunos construíam e faziam evoluir coletivamente critérios de normalidade próprios de sua turma, e que estes correspondiam a uma imagem de aluno da qual se apropriavam singularmente, para além das normas institucionais assim como eram entendidas.

O que aparece igualmente, com mais força nas entrevistas individuais, é que uma grande parte dos alunos ouvidos parece aceitar a ideia de que o sucesso escolar não lhes é destinado. Eles se veem confrontados com uma representação que os antecede e os ultrapassa, segundo a qual nem todo mundo pode ter sucesso da mesma maneira e que eles estariam do lado daqueles que não podem consegui-lo. Pudemos começar a questionar juntos essas representações fatalistas. Esta interpretação pode corresponder a uma representação familiar, dificilmente suscetível de ser discutida:

Entrevistador: O que levava sua mãe a pensar que você não conseguiria se dar bem no 7º ano?

Jean: Sei lá. Ela me dizia: "Cê nunca vai conseguir no 7º, tua irmã era igual a você".

Pode igualmente refletir a ideia que o próprio jovem tem do seu percurso e que ele generaliza:

Maxime: Bom, se a gente não pode ir para o ensino geral e fica no profissionalizante é... não é a mesma coisa, embora depois, no final, a gente vai fazer o Bac,7 7 Bac: abreviação usual de Baccalauréat, equivalente do ENEM brasileiro, que garante o acesso ao ensino superior (N. da T.). é a mesma coisa. Então, bom.

[...] bom, se a gente não tem, bom... como dizer, é... para seguir as aulas no ensino geral, bom, eu então não poderia... enquanto no profissionalizante, o que eu quero seguir, bom, vai ser mais fácil que se fosse para o ensino geral depois de seguir no ensino geral. Porque aí é muito mais fácil do que um 8º ano comum e depois um 9º ano comum...

Entrevistador: Então, você pensa que não poderia acompanhar em outra turma...

Maxime: É. Já no 6º comum, 7º comum eu não acompa... não acompanhava muito."

Quanto às entrevistas individuais, elas permitiram aos alunos entrarem mais profundamente num trabalho de historicidade sobre seu percurso a fim de considerar a possibilidade de integração entre um projeto de formação, desta vez escolhido, e um projeto de vida mais global. Isso os levou a modificar sua relação com as aprendizagens e o saber. O testemunho flagrante disso é frequentemente o uso dos pronomes e dos tipos de verbos. Nas entrevistas coletivas, certos alunos usam expressões como "nós", "a gente", um "você" generalizador da experiência: "quando a gente chega no 6º ano", "quando você se muda". Mas eles mudam, no decorrer do trabalho, para um "eu" que expressa a singularidade do seu percurso. Após declarações marcadas pela voz passiva, em que predomina a expressão dos sentimentos vividos, as entrevistas individuais permitem a elaboração de um discurso mais animador em que o aluno ocupa, na maioria das vezes, a posição de sujeito (verbos de ação, voz ativa) e fica mais distanciado (uso da modalização, verbos expressando o julgamento). Isso se manifestou na classe experimental por um maior engajamento dos alunos numa reflexão sobre sua orientação e seu futuro, assim como numa participação ativa nos eventos de "Colégio sem muros". Todos os dezesseis encontraram estágios em empresas de forma autônoma, o que é um fato raro para esse tipo de aluno.

A análise mostra também que é pelo trabalho realizado nas entrevistas individuais que se finaliza a tomada de consciência de que o próprio percurso se inscreve numa trajetória social comum a muitos jovens. Esse foi o caso de Adriana, angolana que estava na França há menos de dois anos no momento das entrevistas. Ela prosseguiu sua escolaridade com uma melhor autoestima, não era mais a única a suportar o peso dos seus fracassos, e reencontrou a confiança necessária para aceitar seus resultados provisórios sem colocar-se em questão pessoalmente. Estava numa situação de grande dificuldade no início do 8º ano, mas depois obteve, com louvor, o Diploma Nacional do Brevê (DNB)8 8 Exame de conclusão do collège, ao final do 9º ano (N. da T.). e ingressou no liceu profissionalizante para uma formação escolhida de forma refletida.

Esta investigação, realizada ao longo de dois anos, faz surgir questões. Algumas delas dizem respeito aos limites encontrados neste trabalho. De fato, para certos alunos, embora voluntários, não observei nenhuma mudança de atitude que indicasse um deslocamento identitário rumo à construção de uma autoimagem mais positiva de aluno. Posso, nesse caso, perguntar-me se sua decisão de participar era pessoal ou se apenas acompanhava o movimento do grupo. Além disso, quando o relato de um aluno evolui no sentido de uma subjetivação do seu percurso, tornando este menos doloroso, a atitude deste aluno muda também durante minhas aulas, o que não é necessariamente o caso nas aulas de meus colegas. Isso é um convite a que nos questionemos quanto à influência do olhar do professor ou da turma sobre a situação do aluno. Podemos ainda pensar que não lhe é possível evoluir sem pôr em perigo a coerência que ele pode dar à sua existência. Aliás, alguns fazem mesmo a escolha de não participar.

Pode-se também verificar se as capacidades narrativas ou as competências biográficas não são deficitárias. Pude, de fato, notar uma interação importante entre os diferentes relatos. De toda evidência, modelos ou esquemas biográficos usados por certos alunos eram transmitidos a outros que não sabiam inicialmente como falar de si. Essa constatação coloca em questão a relação entre narração e biografização. É um convite a pensar na possibilidade de uma educação que inclua a aquisição de capacidades narrativas aptas a melhorar as competências biográficas necessárias a uma subjetivação do percurso.

Seria também interessante ver se as análises não poderiam ser construídas com a participação dos alunos, por ocasião de uma entrevista suplementar e se isso lhes permitiria ter acesso a um nível ainda mais profundo de reflexividade, a fim de não engessá-los na sua nova configuração indentitária, de inscrever suas representações numa dinâmica evolutiva. Isso me daria também a possibilidade de orientar o dispositivo para uma desconstrução mais eficaz da representação que eles têm do bom aluno, a qual repousa, em muitos casos, na ideologia do dom e da fatalidade.

Em contrapartida, pude observar que os alunos construíam coletivamente os critérios de normalidade próprios de sua turma, que eles os fazem evoluir e que se apropriam singularmente deles, à margem das normas institucionais. Convém, então, não colocar de escanteio a dimensão coletiva, essencial num trabalho de remediação, pois este tende, em muitos casos, a ignorá-la e a estigmatizar o aluno em dificuldade.

Resta assinalar outro efeito desta pesquisa-ação. Minha postura de professora pesquisadora implicou que saísse de minha missão contratual de docente para entrar numa relação de acompanhamento e de ajuda mútua com os participantes. Essa mutua­lidade cooperativa possibilitava situar-me, com meus alunos, numa paridade de relação, mesmo na ausência de uma paridade de posição. A heterobiografia colocou fortemente em questão minha identidade profissional e meu posicionamento ético. Ela me transformou tanto quanto transformou meus alunos ao me permitir efetuar, eu mesma, aquilo a que os convidava: um trabalho sobre a historicidade do meu percurso que acarretou uma modificação da minha própria relação com o saber. Ela me levou a redefinir minha função de docente e também a representação que tinha da identidade dos alunos. Perguntei-me longamente se devia ou não adotar uma postura clínica ao acompanhar meus alunos a partir de entrevistas biográficas num trabalho formativo sobre sua história. Foi mais uma vez necessário identificar o fantasma de onipotência que os docentes enfrentam ocasionalmente, qualquer que seja sua prática. Tive de renunciar a ele e admitir que, nesse caso, como em outros, podia equivocar-me. Finalmente, o risco não era desmedido se comparado com o conformismo que era minha única outra alternativa.

CONCLUSÃO

Este início de pesquisa abre as portas a uma reflexão mais aprofundada para os próximos anos, mas ela já traz elementos de conclusão que podem ser levados em consideração. Globalmente, é preciso observar uma nítida melhoria nas relações entre os alunos e com a equipe educativa, assim como o acesso a uma relação mais serena, menos dolorosa com o saber e com a aprendizagem. Ela inscreve o aluno numa interação com o mundo que lhe permite agir e também produzir mais livremente. Apesar dos seus limites, a heterobiografia pode ter virtudes emancipatórias e pacificadoras, conferindo sentido à utilização dos aportes da pesquisa biográfica no quadro da educação formal, notadamente em certos espaços de prevenção e de remediação das dificuldades dos alunos. Se o dispositivo não é facilmente transferível como tal e visa produzir conhecimentos, seus efeitos imediatos com os alunos colocam a questão do espaço-tempo deixado para a configuração de uma autoimagem positiva de aluno no quadro escolar.

Recebido em março de 2012

Aprovado em maio de 2012

SOBRE A AUTORA

Anne Dizerbo é doutora em ciências da educação pela Universidade de Paris 13. Professora da mesma instituição. E-mail: anne.dizerbo@sfr.fr

Tradução de Anne-Marie Milon Oliveira

Revisão técnica de Fernando Scheibe

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    O ensino francês é dividido em
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    elementaire ou primário (que corresponde aos cinco primeiros anos do ensino fundamental brasileiro),
    collège (que corresponde aos quatro anos finais do ensino fundamental brasileiro),
    lycée (que corresponde ao ensino médio brasileiro) e superior (que pode ser realizado ou não em universidade, existindo diversas modalidades de formação técnico-profissionalizante). Optamos, na tradução, pelo uso da terminologia brasileira (N. da T.).
  • 3
    Educação, Socialização e Comunidades Locais (ESCOL). Equipe de pesquisa da Universidade Paris 8, fundada por Bernard Charlot (N. da T.).
  • 4
    Zona de Educação Prioritária (regiões ou bairros habitados por populações pobres e/ou imigrantes, cujos filhos apresentam fortes dificuldades escolares e que, por essas razões, beneficiam-se de políticas educacionais especiais) (N. da T.).
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    Programa Personalizado de Sucesso Escolar.
  • 6
    O
    collège é dividido em três ciclos: ciclo de adaptação (6º ano), ciclo central (7º e 8º ano) e ciclo de orientação (9º ano) (N. da T.).
  • 7
    Bac: abreviação usual de
    Baccalauréat, equivalente do ENEM brasileiro, que garante o acesso ao ensino superior (N. da T.).
  • 8
    Exame de conclusão do
    collège, ao final do 9º ano (N. da T.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      Mar 2012
    • Aceito
      Maio 2012
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