Acessibilidade / Reportar erro

NOTA DE LEITURA

Silvia A. de Brito, Carla V. Centeno, José C. Lombardi e Dermeval Saviani (Org.). A organização do trabalho didático na história da educação. Campinas: Editora Autores Associados, 2010, 205 p.

Ana A. Arguelho de Souza. Literatura infantil na escola: a leitura em sala de aula. Campinas: Editora Autores Associados, 2010.

NO MESMO CAMPO TEÓRICO: TRABALHO DIDÁTICO E LITERATURA

Comemorando seus trinta anos de existência, a Editora Autores Associados vem destacando-se no mercado editorial pela excelência de suas publicações dedicadas à educação. Os dois livros mencionados, ambos lançados em 2010, merecem, não por acaso, minha atenção nesta nota de leitura.

Por um lado, em razão do reconhecimento objetivo da qualidade dos resultados de estudos ali socializados; por outro, pela dimensão pessoal a partir da qual também construo a avaliação sobre esses trabalhos. Isso porque pude, com a maioria dos autores, estabelecer interlocuções inestimáveis em algum momento de minha trajetória acadêmica, quer na condição de colegas professores, quer na condição de orientandos ou alunos de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), programa no qual atuei de 1989 a 2002.

Por isso, é impossível negligenciar que tenho grande orgulho de com eles ter compartilhado algumas das reflexões expostas, mesmo que episodicamente, ajudando a construir as bases teóricas que as sustentam. Tais bases advogam que "para além dos nossos quintais", como costumávamos comentar em nossas animadas discussões, há inúmeras contribuições capazes de iluminar a compreensão do movimento universal da sociedade capitalista. Do estado sul-mato-grossense e por meio de muitos que por ali passaram, muitas pesquisas têm contribuído para enriquecer a produção no campo da educação - campo de disputas teóricas.

Nesta coletânea, foram reunidos sete trabalhos produzidos por pesquisadores vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR) e apresentados por ocasião de evento do grupo realizado em setembro de 2007, em Campo Grande. A VII Jornada do HISTEDBR tomou como objeto de investigação a história da educação, tendo por foco singular o interior da escola. A intenção foi contribuir para alargar as

[...] possibilidades de investigação no que concerne ao trabalho didático pela ótica historiográfica, com o intuito de revelar o seu caráter histórico [...] em oposição a qualquer análise que contribua para a sua naturalização, como se ele sempre tivesse estado ali, naquele espaço eterno, desempenhando a mesma imemorial função, como coisa que estaria pairando dentro das escolas, independentemente do tempo e incólume à ação humana na história. (Apresentação, p. 1-2)

O primeiro texto foi escrito por Dermeval Saviani, da UNICAMP, intitulado "Trabalho didático e história da educação: enfoque histórico-pedagógico". Baseia-se, segundo o autor, no livro História das ideias pedagógicas no Brasil, que, desde o lançamento em 2007, deve ter atendido às expectativas dos pesquisadores da área da história da educação, tanto pelo rigor, quanto pelas indicações de fontes para o desenvolvimento de outras pesquisas.

No segundo texto, "História da educação: a produção teórica sobre o trabalho diático", Gilberto Luiz Alves, da Universidade Anhanguera (UNIDERP), dá continuidade a suas instigantes reflexões acerca do trabalho didático, tema que continua a reclamar por tratamento teórico. O autor procura apontar a diferença entre a concepção de didática em Comênio e aquela de alguns especialistas da área na atualidade. Para isso, seleciona manuais da área da didática "que influenciaram a formação de diversas gerações de educadores a partir da segunda metade do século XX" (p. 43).

Em seguida, José Claudinei Lombardi, também da UNICAMP, oferece contribuição à discussão sobre o trabalho didático, articulando aspectos teóricos e históricos, ao resgatar a lógica das relações ali implicadas e suas transformações, coerentes com as mudanças do modo capitalista de produção. A elaboração marxiana é a referência, o que conduz o autor a considerar o trabalho didático como manifestação particular da "categoria trabalho" sob o capitalismo.

Em "Investigação e ensino de história da educação: retomando um debate nunca encerrado", Wenceslau Gonçalves Neto, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), chama a atenção para a necessidade de promover a continuidade do debate teórico-metodológico no âmbito da história da educação e de investir em pesquisas de caráter interdisciplinar. Considera o trabalho didático como "o processo de transposição do conhecimento gerado pela pesquisa histórica para a sala de aula" (p. 105), visando oferecer uma formação crítica sobre a realidade social.

O sétimo texto da coletânea, "A história do trabalho didático: a palavra e a coisa", de Sandino Hoff, da Universidade Tuiuti, no Paraná, toma por objeto de reflexão a organização do trabalho didático, particularmente de acordo com o pedagogo Ratke, tal como se organizou na Modernidade. Hoff finaliza afirmando, de maneira provocativa, que, no atual âmbito escolar, "as travessuras da palavra e da coisa" são desveladas, embora o ensino lide com a palavra procurando grudar-se à realidade, negligencia-se o fato de que tal realidade é sujeita à transformação e à contradição da sociedade de classes.

O quinto texto, "Manuais didáticos: formas históricas e alternativas de superação", de Ana Aparecida Arguelho de Souza, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), analisa o conteúdo de materiais didáticos da língua portuguesa e literatura utilizados na rede pública de ensino médio em Campo Grande, apontando sua ineficácia para promover a formação do alunado, em razão da progressiva vulgarização dos conteúdos e o abandono dos textos clássicos.

O sexto texto da coletânea, de Analete Regina Schelbauer, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), reflete sobre o trabalho didático na obra comeniana, enfatizando as ideias pedagógicas da escola primária, preconizadas no fim do século XIX. O título "Orbis Sencualim Pictus: das lições ilustradas de Comenius no século XVII às lições de coisas da escola primária do século XIX" indica o foco analítico da autora sobre a obra publicada em 1658, pretendendo com isso destacar sua importância, o pouco conhecimento que se tem da obra e a necessidade de estabelecer interlocução com outros pesquisadores.

Também de autoria de Ana Aparecida Arguelho de Souza (UEMS) é o livro Literatura infantil na escola: a leitura em sala de aula. O trabalho é dividido em duas partes: proposições teóricas e a literatura na escola. Nessa discussão, a autora buscou resgatar textos da literatura ocidental que contribuem para a compreensão da infância e da literatura a ela dedicada em múltiplas dimensões. A preocupação norteadora é oferecer aos professores subsídios teóricos e reflexivos e aos alunos, por conseguinte, "um pouco de magia da vida, da história do mundo e da cultura de diferentes civilizações" (p. 4), para que o ensino de literatura possa adquirir dimensão relevante de dinâmica para a formação de valores e compreensão mais ampla do mundo.

Aos professores, alerta que poderão garantir à literatura uma dimensão pedagógica na medida em que adentrem "o caudaloso acervo literário legado pelos antigos e modernos" (p. 71), para que possam transmitir os conhecimentos obtidos às crianças e alargar seus horizontes. Por isso, para a autora, impõe-se o combate ao livro didático empobrecedor. Sua superação implica nova organização do trabalho didático escolar que tome a leitura de obras clássicas como recurso que permita compreender "a natureza histórica de todas as questões humanas" (p. 100).

Segundo a autora, a dimensão histórica da obra literária revela valores da época em que a ficção foi produzida, mesmo que tenha por referência outros tempos. Isso porque o autor acaba por sugerir em sua narrativa elementos estéticos que extrapolam o que a temática propriamente dita poderia revelar. É assim, por exemplo, que em "Cinderela", escrito em 1697 por Perrault, instaura-se de maneira simbólica, sutil e encantatória a luta entre burguesia e forças feudais. Entretanto, o conto nasceu na China, migrou para o Ocidente e foi adaptado a diferentes circunstâncias históricas e tem se prestado à difusão de diversos valores. Com base nessa perspectiva, o conto de fato ganha outra dimensão.

Basendo-se na teoria, no trabalho de pesquisadores e nos depoimentos de alunos e professores que confirmaram a ausência da literatura infantil na escola, Arguelho propõe uma didática que siga a direção apontada pela pedagogia histórico-crítica de Saviani, em livro com segunda edição de 1991, também pela Autores Associados, Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Mesmo que o método não seja seguido à risca, uma vez que a literatura tem natureza estética que deve garantir liberdade para ser trabalhada, afirma que não é "mais possível passar ao largo dos ensinamentos do professor Saviani, se queremos uma pedagogia de superação das condições culturais e sociais presentes no capitalismo" (p. 6).

De volta aos cumprimentos à editora e ao primeiro autor mencionado na nota - como a sair de uma porta e entrar pela outra, "quem quiser que conte outra" -, as duas obras merecem uma leitura mais atenta que uma simples nota, talvez empobrecida por falta de espaço para demonstração da riqueza das análises, certamente não poderia suprir.

Ana Lúcia Valente é doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela Université Catholique de Louvain (Bélgica). Professora associada III da Universidade de Brasília, atua na área de Extensão Rural e é vinculada aos Programas de Pós-Graduação em Agronegócios (FAV); e em Sociedade, Desenvolvimento e Cooperação Internacional (CEAM).

E-mail: alefv@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@anped.org.br