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EDITORIAL

O primeiro ano de uma nova década iniciou-se com grandes expectativas no campo da educação brasileira. Uma das razões que gerou essas expectativas se refere ao fato de que, pela primeira vez, uma mulher, cuja trajetória política se vincula à luta e à defesa das principais bandeiras de esquerda, assumiu a presidência da República, mediante eleições diretas ocorridas em 2010. À época da campanha e em discursos posteriores, a presidente vem reafirmando o compromisso com projetos de conquista e ampliação de direitos, entre os quais a educação.

Vivemos um momento ímpar para que esse compromisso se concretize, quando está em discussão a elaboração do novo Plano Nacional de Educação (PNE). Contribuir para que o PNE expresse uma política de Estado é uma oportunidade de o novo governo concretizar a plataforma eleitoral e elevar a educação ao patamar que há muito deveria ter alcançado. Poderíamos repetir, sem medo de errar, a célebre frase que inicia o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que, ao conclamar o "povo e o governo" para a tarefa histórica da "reconstrução da educação nacional", traz expresso: "Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos da reconstrução nacional" (Manifesto, p. 1).

Décadas passaram-se e a educação brasileira continua sendo um dos grandes desafios nacionais. Apesar da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei n. 9394/1996) e do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2001, várias metas, em todos os níveis e modalidades de ensino, ainda necessitam de um projeto nacional que priorize, de fato, a educação.

O ano de 2010 foi profícuo em avaliações da educação brasileira, com vistas à elaboração do projeto do novo PNE. Por meio de conferências municipais e estaduais, ocorreu grande mobilização de todos os setores e organismos envolvidos direta e indiretamente com a educação, que resultou na Conferência Nacional de Educação (CONAE, 2010), cujo principal objetivo era traçar as metas educacionais para os próximos dez anos.

No momento, o Projeto de Lei (PL n. 8.035), apresentado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional, em dezembro de 2010, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional. A sociedade mobiliza-se, por meio de associações e sociedades científicas, entidades e movimentos sociais, no sentido de que seja revisto este projeto do PNE, vindo o Plano a incorporar as propostas oriundas da CONAE, que se constituiu em amplo movimento envolvendo a sociedade política e diversas organizações da sociedade civil vinculadas à educação.

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), como uma das principais associações científicas do Brasil, por meio de sua Diretoria, de seus 23 Grupos de Trabalho e 101 Programas de Pós-Graduação (sócios institucionais) e aproximadamente 2500 sócios individuais, em conjunto com entidades de estudos e pesquisa em educação, vem marcando posição na defesa dos princípios que devem nortear o novo Plano. Em documento, publicado neste número da Revista Brasileira de Educação, a ANPEd assim se manifesta: "Iniciamos a segunda década do século XXI com um desafio da mais alta relevância para o futuro do Brasil, o que nos impõe uma necessidade imediata e objetiva: aprovar o Plano Nacional de Educação (PNE) como política de Estado para os próximos dez anos (2011-2020)".

No intuito de estimular o debate político e acadêmico das questões fulcrais que devem ser tratadas no novo PNE, a Revista Brasileira de Educação apresenta, nesta edição, além do Documento da ANPEd, intitulado "Por um Plano Nacional de Educação (2011-2020) como política de Estado", oito artigos que abordam temas relacionados com os grandes desafios que o Brasil ainda deve superar nesses próximos dez anos.

Três desses artigos constituem contribuições internacionais. O primeiro, intitulado "Mutações cruzadas: a cidadania e a escola", de autoria de François Dubet, analisa a cidadania como uma temática complexa, porque supõe a igualdade e a autonomia dos sujeitos. Tomando como referência a escola republicana francesa e as mudanças ocorridas na concepção de Estado-nação, o autor apresenta um "modelo de cidadania pós-nacional e pós-institucional", delineando apostas em torno das quais se constituiriam as novas figuras de uma "formação cidadã".

Jens Qvortrup, no segundo texto, "A volta do papel das crianças no contrato geracional", desenvolve a tese de que as crianças devem ser inseridas em seu "papel histórico como participantes e contribuintes da sociedade". Tomando como base o conceito de "contrato geracional", o autor analisa a relação entre as categorias "infância, adultez e velhice", destaca as consequências do aumento do número de idosos e a diminuição do número de crianças e explora "riscos causados por esse desequilíbrio".

A terceira contribuição internacional deste número da RBE é de autoria de Jorge Gorostiaga e César Tello, que analisam relações entre processos de globalização ocorridos nas duas últimas décadas e reformas educacionais implementadas nos países da América Latina. No artigo denominado "Globalización y reforma educativa en América Latina: un análisis inter-textual", os autores utilizam a metodologia da cartografia social e identificam sete "perspectivas principais" do processo de globalização e seus efeitos na América Latina, a saber: "economicista, inserção imperativa, integracionista, humanista, crítica normativa, crítica analítica e mundialização alternativa".

Os artigos dos pesquisadores brasileiros abordam também questões instigantes, a exemplo de os "Movimentos sociais na contemporaneidade", no qual Maria da Glória Gohn assume como premissa básica que esses movimentos são "fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes". Tendo como panorama os movimentos sociais da América Latina e suas principais manifestações no Brasil, a autora analisa as "articulações em redes de relações" e os "fatores que geram as aprendizagens e os valores da cultura política", construídos ao longo desse processo, destacando os movimentos vinculados à educação formal e à educação não formal.

José Sérgio Carvalho retoma a antiga mas ainda necessária discussão da relação entre a teoria e a prática na formação de professores, em artigo que incorpora no título uma pergunta: "A teoria na prática é outra? Considerações sobre as relações entre teoria e prática em discursos educacionais". Tema amplo e complexo é examinado com base em "duas modalidades de discurso pedagógico", quais sejam, "as teorias da educação vinculadas aos grandes sistemas filosóficos e os discursos pedagógicos construtivistas de Jean Piaget", que tiveram grande influência na formação de professores ao longo do século XX.

A formação de professores é igualmente tema de investigação de Catia Piccolo V. Devechi e Amarildo Luiz Trevisan, no texto "Abordagens na formação de professores: uma reconstrução aproximativa do campo conceitual". Com a colaboração de estudos da filosofia da educação, mais precisamente a interpretação hermenêutico-reconstrutiva, os autores mostram o quanto a pesquisa sobre formação de professores no Brasil se expandiu e registram a preocupação com a base teórica dessa formação. Afirmam que muitos problemas são detectados nessas pesquisas, mas que estes têm sido tratados, por vezes, de "forma corriqueira", indicando que o seu enfrentamento exigiria uma "reformulação no campo conceitual".

No texto "Pensar a educação do corpo na e para a escola: indícios no debate educacional brasileiro (1882-1927)", Marcus Aurelio Taborda de Oliveira e Meily Assbú Linhales analisam a "educação do corpo na escola primária", no fim do século XIX e início do século XX, por meio de articulação entre uma dimensão local, a província do Paraná, e uma nacional, a I Conferência Nacional de Educação, ocorrida em 1927. Os autores definem seu estudo no âmbito das pesquisas sobre a "história do currículo" e investigam, por meio de diferentes registros, a "educação do corpo dos escolares como uma das principais vias de modernização e civilização da sociedade".

No artigo "A vida do bebê: a constituição de infâncias saudáveis e normais nos manuais de puericultura brasileiros", Cláudia Amaral dos Santos dedica-se à análise do livro A vida do bebê, nas edições de 1963 e de 2002, realçando a função pedagógica desempenhada por essa publicação, "ensinando mães e pais a como agir com suas/seus filhas/filhos, produzindo, assim, subjetividades, identidades e saberes".

Fundamentada no pluralismo de ideias e na circulação de diferentes pontos de vista sobre temáticas educacionais, a Revista garante o espaço da crítica na Sessão "Espaço Aberto". Nesta edição, Paulo Sergio Tumolo prossegue o debate "teórico-político" relacionado à questão do "trabalho como princípio educativo", fazendo uma interlocução com o texto de Gaudêncio Frigotto, publicado em 2009 no número 40 da RBE intitulado "A polissemia da categoria trabalho e a batalha das ideias nas sociedades de classe".

Na Sessão Resenhas são apresentadas duas contribuições. Na primeira, Celso João Ferretti tece comentários sobre o livro Toward a Global PhD?Forces & Forms in Doctoral Education Worldwide (University of Washington Press, 2008), de Maresi Nerad e Mimi Heggelund, constituído por 13 capítulos em que se analisa, pela perspectiva de diferentes países, a possibilidade de criação de "doutorados globalizados". Na segunda, Maria de Lourdes da Silva apresenta e analisa a obra de Paula Vicentini e Rosário Lugli, História da profissão docente no Brasil: representações em disputa (Cortez, 2009), que discorre sobre a formação do professor primário e secundário do ensino público no Brasil, abrangendo o período do final do século XVIII até os anos 1970.

Finalmente, na Nota de Leitura, Ana Lúcia Valente reúne duas obras baseadas no "mesmo campo teórico" e com duas temáticas que se articulam: "trabalho didático e literatura". Os livros, publicados pela Autores Associados em 2010, intitulados A organização do trabalho didático na história da educação, organizado por Silvia Brito, Carla Centeno, José C. Lombardi e Dermeval Saviani, e Literatura infantil na escola: a leitura em sala de aula, de Ana Arguelho de Souza, apresentam contribuições para a compreensão e aprofundamento dos estudos sobre esses duas áreas de investigação: o trabalho didático e a literatura na educação infantil.

Ao tornar público mais um número da Revista Brasileira de Educação, a ANPEd espera contribuir com o projeto coletivo dos educadores brasileiros de tornar a educação uma política de Estado, materializando o sonho não somente dos "pioneiros de 1932", mas de gerações de brasileiros que, após praticamente oitenta anos, ainda não viram materializar o principal desafio educacional do país, qual seja, o da erradicação do analfabetismo. Esse desafio consiste na principal tarefa política do governo que inicia uma nova década e que tem como um de seus grandes desafios incorporar as demandas da sociedade civil no novo PNE (2011-2020), colocando a educação como primeiro plano na hierarquia dos problemas nacionais.

A Comissão Editorial

Rio de Janeiro, agosto de 2011

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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