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Clássicos da educação brasileira

RESENHA

XAVIER, Maria do Carmo (org.). Clássicos da educação brasileira, v. 1. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. 224 p. (Coleção Pensar a Educação, Pensar o Brasil)

Nas palavras de Italo Calvino,

O desafio de (re)descobrir, dialogar e divulgar a leitura de clássicos no campo educacional brasileiro, felizmente, foi proposta assumida por notável equipe de pesquisadores, vinculados ao "Projeto pensar a educação, pensar o Brasil - 1822/2002". Integrando docentes e discentes de universidades mineiras, o grupo busca promover a reflexão histórica sobre o lugar da educação no âmbito dos projetos de Brasil. Parte dos resultados dessa produção é dada a conhecer ao público acadêmico pelo projeto editorial da Mazza Edições que, associada aos esforços da equipe, publicou o primeiro volume da série "Clássicos da Educação Brasileira".

Coordenado por Maria do Carmo Xavier, o volume reúne resenhas de obras publicadas entre as décadas de 1930 e 1960, período em que "a nossa intelectualidade esteve especialmente envolvida em disputas políticas sobre a construção da sociedade democrática, com o concurso de uma escola pública de qualidade" (p. 10). As resenhas foram escritas por reconhecidos pesquisadores da área educacional. Todos eles, por dever de ofício, em algum momento de suas trajetórias acadêmicas, tiveram seus caminhos cruzados pelos autores e obras escolhidos. Assim, o volume resulta, simultaneamente, da experiência singular de cada pesquisador e do diálogo fértil entre as equipes interinstitucionais envolvidas no projeto.

Diana Vidal e André Paulilo analisam as condições de produção de Introdução ao Estudo da Escola Nova, de Lourenço Filho. Publicado pela Companhia Editora Melhoramentos, em 1930, a obra integrava a "Coleção Biblioteca de Educação", então coordenada pelo autor. Emerge de rica experiência no magistério, na gestão de sistema educacional estadual e em órgãos executivos do ensino, nos movimentos de reforma pedagógica, no associativismo docente e sociedades educacionais, em projetos editoriais etc. Para os analistas, o livro gravitava sobre os problemas colocados pelas transformações metodológicas e científicas no campo da pedagogia e nos processos educativos, de modo indissociável às mudanças sociais e políticas vivenciadas à época. Como produto das disputas e tensões em torno da questão educacional, a obra contribuiu para marcar posicionamentos individuais e coletivos, lugares e estratégias de luta no campo intelectual, "concorrendo para dar sustento a um grupo de educadores no jogo político educacional" (p. 38). O livro, componente da biblioteca básica de formação docente por várias gerações, é, sem dúvida, um clássico da pedagogia nacional.

As disputas no campo educacional foram igualmente tematizadas por Juliana Cesário Handan, que, apresentando a trajetória e a profícua produção intelectual de Firmino Costa, centrou-se, especialmente, em Pela Escola Activa. Datada de 1935, a obra é considerada uma contribuição ao debate a favor da Escola Nova, em Minas Gerais, tendo sido publicada três anos após o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932. No ensaio, a autora estuda as operações de deslocamento nas concepções de Firmino Costa a respeito das metodologias de ensino intuitivas e os chamados métodos ativos, relacionando os seus argumentos às novas definições produzidas sobre a função social da escola. O destaque é conferido às formas de ensinar, às representações sobre a criança e os professores primários nos processos educativos. Neste aspecto, argumenta que o educador mineiro defendia a centralidade do método e da "energia" docentes para a construção da nova escola, acionando múltiplas representações sobre o perfil ideal do magistério.

Marta Carvalho realiza análise instigante sobre aquela que foi, por longo tempo, considerada obra síntese da história da educação brasileira: A cultura brasileira, de Fernando de Azevedo, publicada em 1943. A autora interroga a finalidade, o impacto e a ressonância desse livro no conjunto da produção historiográfica nacional, propondo novas hipóteses explicativas para os diferentes contextos e modos de apropriação/recepção do texto. Demonstra como foi possível a constituição de determinado padrão de leitura, que fez da obra azevediana referência fundamental para as gerações intelectuais dos anos de 1960 a 1980. Funcionando, simultaneamente, como lugar de produção e sedimentação da memória monumental de um grupo, o livro teve ampla circulação, adquirindo estatuto de fonte básica para vários estudos de história da educação. Espécie de gênero épico, conferiu lugar definitivo para grupos e indivíduos que protagonizaram os movimentos de renovação educacional; teve também enorme eficácia ao marcar o lugar do Estado no processo de reinvenção da nação moderna. Mais do que isso, contribuiu para a hegemonia de uma matriz sociológica de compreensão dos processos históricos, relegando ao segundo plano o diálogo com o campo da história. Diálogo que, aliás, segundo Carvalho, cada vez mais presente na historiografia educacional, impõe caminhos de desconstrução e novos regimes de apropriação das teses consagradas em A cultura brasileira.

O ensaio de Thaís Fonseca apresenta o trabalho de Leonel Franca, O método pedagógico dos jesuítas "Ratio Studiorum": introdução e tradução, publicado em 1952. Analisa a trajetória do eclesiástico e sua atuação militante no contexto de disputas políticas, especialmente acirradas nas décadas de 1930 e 1940, momento no qual estava em jogo a delimitação das funções sociais da Igreja e do Estado no campo educacional. Ao dedicar-se à exegese do texto introdutório escrito por Leonel Franca ao documento pedagógico, a autora observa as representações históricas construídas sobre a ação da Companhia de Jesus e da Igreja católica como agências educativas no Brasil, buscando interpretar os sentidos possíveis destas representações naquela conjuntura específica. Demonstra que um dos argumentos centrais da obra se pautava na defesa da harmonia entre modernidade e tradição, valores da pedagogia jesuítica, os quais, na operação discursiva elaborada por Franca, justificavam a exaltação das qualidades, e da atualidade, da educação confessional para a formação humana.

Outra obra clássica, porém, por muito tempo esquecida, é apresentada por Bruno Bontempi Júnior. Trata-se da tese de cátedra escrita por Laerte Ramos de Carvalho como requisito para participar de concurso na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo: As reformas pombalinas da instrução pública. Publicada pela primeira vez em 1952, em edição restrita, o livro foi editado comercialmente em 1978. De acordo com o analista, a obra ficou durante décadas no ostracismo em razão das posições assumidas pelo autor no período da ditadura civil-militar. No entanto, a recepção atual do texto pela historiografia indica questões relevantes nela contidas para a compreensão da educação portuguesa e brasileira, sobre o sentido e o alcance das reformas pombalinas no mundo luso-brasileiro do século XVIII. O trabalho de método, seleção e interpretação de fontes primárias, até então inéditas, também é apontado como inovador, tendo contribuído para o deslocamento da chave de leitura pró-inaciana construída por Fernando de Azevedo.

A pesquisa educacional, com forte matriz sociológica, fez parte da produção acadêmica dos anos de 1950 e 1960. Naquele momento, os estudiosos partilhavam uma agenda de trabalho que vinha priorizando a compreensão da escola primária e suas funções de socialização do homem moderno. Neste aspecto, destaca-se o estudo de João Roberto Moreira, Introdução ao estudo do currículo da escola primária, publicado por iniciativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas/Campanha de Inquéritos e Levantamentos do Ensino Médio e Elementar (INEP/CILEME), em 1955. A obra é considerada, por Leziany Daniel, inaugural e introdutória sobre currículo, tendo sido precursora dos mais conhecidos estudos desenvolvidos pelo autor. Integrando os debates da época, o trabalho dedicava-se a compreender o impacto causado pela política autoritária do Estado Novo (1937-1945), operação que acabou por conferir destaque à memória dos intelectuais vinculados ao movimento escolanovista.

Eliane Marta Teixeira Lopes apresenta um clássico do final dos anos de 1950, o livro Primórdios da educação no Brasil: o período heroico (1549-1570), escrito por Luiz Alves de Mattos e publicado em 1958. No seu ensaio, sobressai rica narrativa sobre a recepção da obra na própria experiência da autora como estudante. De uso corrente entre os anos de 1950 e 1970, nas Faculdades de Filosofia, o trabalho contribuiu para a fundamentação dos estudos históricos nos cursos de formação de professores, tendo se tornado referência para várias pesquisas posteriores. Lopes discorre sobre as interfaces e as relações do livro em análise com a produção majoritária e mais conhecida do autor, resultante das reflexões construídas na sua prática profissional como professor e estudioso dos campos da didática e da administração escolar.

A pesquisa sociológica sobre a escola primária também colocou em primeiro plano as professoras, os problemas de sua formação e profissionalização. Sobre essa temática, Léa Paixão realiza análise detalhada sobre a pesquisa desenvolvida pela socióloga Aparecida Joly Gouveia, publicada pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (INEP/CBPE) em 1965, intitulada Professoras de amanhã. Articulando compromissos políticos internacionais assumidos pelo Brasil em relação à erradicação do analfabetismo, à expansão da escolarização e à formação do magistério, Gouveia apresentava resultados rigorosos de pesquisa empírica sobre os processos de escolha profissional, perfil, formação, profissionalização e destinação social de jovens estudantes. A autora interrogava os impactos sociais do processo histórico de feminização do magistério, atentando para os seus aspectos simbólicos e materiais. Referência para a sociologia educacional, o livro constitui documento fundamental para os estudos de história da profissão docente.

A obra de Luiz Pereira, A escola numa área metropolitana, publicada em 1967, é, talvez, uma das mais conhecidas pesquisas sociológicas realizadas naqueles tempos. Marcos Cézar de Freitas analisa as condições de produção do livro, situando-o no diálogo vivo com um conjunto de ideias e teorias em circulação, especialmente no âmbito das ciências sociais. Esta literatura, a despeito de suas diferenças interpretativas e das filiações teórico-metodológicas de seus autores, mantinha a crença na escola como instituição de formação humana, mas também como lugar de mudança social. A obra inscreve-se no rol de pesquisas sociais que visavam compreender a escola primária, urbana e rural, na sua experiência cotidiana, na realidade de suas práticas, mas cujo olhar ainda mantinha o caráter de projeção sobre o devir, para a escola ideal então sonhada pelos educadores.

Finalmente, Maria do Carmo Xavier brinda-nos com excelente ensaio sobre o clássico de Florestan Fernandes, Educação e sociedade no Brasil, publicado em 1966. A pesquisadora lança luz sobre a trajetória intelectual do autor, interrogando-se sobre a produção de seu pensamento educacional no bojo das lutas pela democratização da sociedade. O livro é analisado como documento para a história intelectual, compreendido como produto da experiência de um educador engajado, que, a partir de lugares de sociabilidade diversos, teve voz ativa nos debates e dilemas sociais, culturais, políticos e educacionais. A autora, ao utilizar os referenciais teóricos da historiografia francesa, contribui para o alargamento de nossa perspectiva sobre o papel dos intelectuais como produtores e mediadores, personagens fundamentais na construção da escola pública no Brasil.

Clássicos da educação brasileira é, de fato, um livro que tem muito a nos dizer. E, certamente, sua leitura não terminará de nos dizer tudo. Nesse sentido, é também um clássico, de leitura indispensável, instrumento fundamental de pesquisa para professores e estudantes de graduação e pós-graduação, pesquisadores e militantes da educação brasileira.

Alessandra Frota Martinez de Schueler

Doutora em educação pela Universidade Federal Fluminense e professora adjunta de história da educação na mesma universidade. E-mail: alefrotaschueler@gmail.com

  • 1 Italo Calvino. Por que ler os clássicos?, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • 1
    "clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer". Os seus rumores, ruídos, influências, persistem, mesmo "onde predomina a atualidade mais incompatível". Ler um clássico é, portanto, infinita (re) descoberta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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