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Gramsci, o estado e a escola

RESENHAS

SOARES, Rosemary Dore. Gramsci, o estado e a escola. Ijuí: Unijuí, 2000, 488p.

Na década de 1980 e parte da de 1990, o pensamento de Gramsci constituiu referência imprescindível à análise da escola no Brasil. Dezenas de trabalhos de pós-graduação inspiraram-se em suas idéias. Vínhamos de excessiva dose de estruturalismo, importada da França e dos Estados Unidos. O termo "reprodução" era a principal chave de leitura do sistema escolar capitalista, para cujo desmonte a cultura não representava força significativa; representava, aliás, apenas sua permanente manutenção. Descobrir, com Gramsci, que a cultura é uma instância contraditória, organizadora de interesses dominantes, mas também de interesses dos trabalhadores e de suas possibilidades de acesso ao saber, foi uma "revolução copernicana" nas teorias que guiavam as reflexões sobre a escola. Certamente, poderia abrir também aos movimentos populares e democráticos novo horizonte para a formulação de políticas públicas em educação, como parte do processo de luta pela transformação social.

Hoje, não podemos negar, houve um refluxo do pensamento gramsciano no Brasil. Seu referencial teórico não desfruta mais dos amplos espaços antes ocupados em debates e trabalhos acadêmicos. Teria sido a leitura de Gramsci mais uma "onda", como tantas outras que vão e vêm, sempre superficiais e temporárias? Ou tal refluxo veio junto à queda do muro no Leste europeu, diminuindo o interesse pelo pensamento marxista?

Questões difíceis de responder. Mas é impossível ignorar que o entendimento da complexa produção teórica de Gramsci requer um trabalho paciente de aprofundamento e um razoável conhecimento do movimento operário internacional. Caso contrário, é praticamente impossível acompanhar a elaboração de suas idéias. O nível de cultura política que caracteriza a formação educacional no Brasil, entretanto, deixa muito a desejar, especialmente na área de educação. Além disso, o debate sobre um projeto escolar, no âmbito da esquerda brasileira, é muito recente. Provavelmente, tal questão só emergiu nos anos de 1980, com os movimentos da sociedade civil em torno da Constituinte e, na seqüência, por uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Somando-se essas limitações a leituras apressadas da obra de Gramsci e a interpretações variadas, até conflituosas entre si, temos uma situação paradoxal: no momento em que as teorias gramscianas despertaram mais interesse do público ligado à área educacional, a compreensão de suas idéias foi limitada, o que influenciou as propostas pedagógicas nelas inspiradas.

É para questões como essas que aponta o instigante livro Gramsci, o estado e a escola, de Rosemary Dore Soares, professora de Filosofia da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Escrita com rigor metodológico, a reflexão de Soares tem como "mote" os problemas teóricos e políticos de algumas propostas que pretendiam indicar alternativas democráticas ou mesmo "revolucionárias" para a escola brasileira, dizendo-se inspiradas em teorias de Gramsci. Se esse é o "mote" da autora, seus estudos, contudo, concentram-se no eixo teórico, histórico e político que permite ao pensador italiano entender a escola como espaço de disputa pela hegemonia e formular a proposta da "escola unitária".

A idéia da escola unitária, explica a autora, resulta do debate de Gramsci com diversas concepções pedagógicas: as escolas humanista, nova, única, do trabalho... Analisando-as, ele distingue seus elementos contraditórios e identifica uma estratégia para organizar e democratizar a cultura, cujo ponto de partida é a própria escola desenvolvida no capitalismo. Considera-a uma das maiores organizações da sociedade civil e a toma como uma das instâncias fundamentais na luta pela transformação da sociedade. Trata-se de uma análise das contradições da escola capitalista que tem sido negligenciada pela tendência dominante no pensamento educacional brasileiro mais progressista.

Soares defende uma perspectiva original no contexto do pensamento pedagógico de esquerda no Brasil. Considera necessário "aggiornar" a "escola unitária", delineada por Gramsci, que não pode ser confundida com a escola "politécnica", tese que tem prevalecido na literatura educacional brasileira.

Selecionando cuidadosamente situações históricas sugeridas pela própria reflexão gramsciana, a autora mostra o processo de ruptura e continuidade entre a concepção de estado de Marx e a de Gramsci, expresso na identificação de novas determinações da economia, da política, da sociedade civil. Gramsci parte da noção de estado de Marx, da sua polêmica com Hegel e dos aportes teóricos trazidos pela Revolução Russa e pelas reflexões de Lenin, ampliando tal noção e desenvolvendo o conceito de hegemonia. Sua elaboração articula-se não apenas a um novo entendimento da sociedade civil, do seu papel como instância de organização dos "mesquinhos" interesses particularistas de indivíduos e grupos que, organizados, ganham uma dimensão política: a sociedade civil se politiza. Articula-se também ao valor conferido, nesse processo, ao movimento de ideologias, à cultura como esfera da luta hegemônica. A própria estratégia de transformação da sociedade é redefinida nos termos da "hegemonia civil", ligando-se inequivocamente ao processo de "reforma intelectual e moral", examinado em profundidade pela autora.

Se os contextos históricos e políticos mudam, se os conceitos de estado e sociedade civil mudam, poder-se-ia pensar que a escola politécnica, esparsamente abordada por Marx e posteriormente retomada por Lenin e Krupskaya, seria a mesma coisa da "escola unitária"? O interessante na abordagem de Soares é justamente mostrar que as mudanças das relações de forças sociais e políticas também se expressam na conceituação da escola e do seu papel no movimento de transformação da sociedade.

Marx não tinha desenvolvido – e não o poderia, dadas as condições específicas de sua época, em que a sociedade civil era "gelatinosa", amorfa, não-organizada – o conceito de sociedade civil e de luta hegemônica. Por ocasião da revolução soviética, quando Lenin retomou teses de Marx sobre o estado, a relação de forças sociais, em nível internacional, apresentava novas configurações ainda não compreendidas em sua complexidade pelo movimento operário.

Seguindo a reflexão de Gramsci sobre as novas relações entre o estado e a sociedade civil na virada do século XIX, que lhe permitiram criticar a dominância do economicismo no âmbito do movimento operário, a autora mostra que tal tendência também se estende à concepção da escola. Ela contribuiu para que o princípio do trabalho na escola fosse reduzido ao trabalho industrial. Não obstante Lenin e Krupskaya defenderem uma noção mais vasta da categoria trabalho para a escola, foram constrangidos, pelas limitações do processo revolucionário soviético, a ceder espaço a correntes que defendiam estreitas conexões entre trabalho e economia, tal como a precoce profissionalização do ensino ou a idéia de que a fábrica é o próprio ambiente educacional. O economicismo presente na concepção de escola do trabalho do movimento operário dava-lhe, assim, uma marca classista e corporativa, restringindo suas possibilidades de se converter num referencial teórico e político da luta hegemônica.

Em contrapartida, a "escola nova", proposta pedagógica das classes dominantes, que era então apresentada como "escola do trabalho", combatia veementemente os limites do conceito economicista de trabalho, tal como aquele que se desenhava no contexto da revolução soviética e era propagado entre setores do movimento operário alemão. Mas a proposta da "escola nova", ou "escola ativa", inspirando-se na filosofia idealista e interpretando o trabalho como "atividade", pretendia esvaziar a concepção pedagógica, fundada no trabalho, de conteúdo revolucionário e transformador. Representou um "transformismo" do conceito de "escola do trabalho". Os escolanovistas, como mostra a autora, definem as grandes linhas de suas propostas – que se tornam hegemônicas – nutrindo-as com o "elixir" das reflexões socialistas sobre a educação e a escola, justamente para neutralizá-las.

Diferentemente do esboço de "escola politécnica" de Marx, que não conheceu o "transformismo" operado pela "escola nova", a proposta pedagógica de Gramsci o leva em conta e a ele se apresenta antagônica. Por isso, o seu ponto de partida, diz a autora, é "a escola empírica, a única que conhecemos", que "resultou das mais amplas lutas dos movimentos sociais". Se tal escola "não é a que queremos", esclarece, "ela pode ser transformada, no contexto maior das lutas sociais pela democracia, aprofundando-se os seus elementos 'racionais', engendrando condições efetivas para elevar culturalmente as classes subalternas, para que estas possam assumir conscientemente a direção da sociedade." A indistinção entre as propostas de escola politécnica e unitária tem significado andar muitos passos atrás.

O livro de Rosemary Soares é denso, original e de grande relevância, porque apresenta fundamentação para o entendimento da "escola unitária" diferente daquelas que foram largamente difundidas no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990. Se as propostas escolares então difundidas confundiram-se no encaminhamento de políticas educacionais inspiradas em reflexões de Gramsci, a obra de Soares recupera a complexidade da "escola unitária" e abre novos horizontes para se pensar alternativas democráticas para a nossa escola. É, por isso, essencial aos educadores, pesquisadores e alunos interessados no estudo e no debate sobre a organização escolar sob uma perspectiva histórica e política.

Raíssa Pimenta Pires

Mestranda em educação

Faculdade de Educação

Universidade Federal de Minas Gerais

E-mail: raissapimenta@hotmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2002
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