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Política educacional e poder local: análise das repercussões do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil na educação de municípios pernambucanos

Educational policy and local power: an analysis of the repercussions of the Programme for the Eradication of Child Labour on education in municipalities in the State of Pernambuco

Resumos

A partir de uma reflexão sobre as causas que têm conduzido à propagação do uso da força de trabalho de crianças e adolescentes, este texto apresenta resultados de uma pesquisa em que se analisou o processo de implementação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e as suas repercussões sobre a organização da educação pública em treze municípios pernambucanos, focalizando o período compreendido entre novembro de 1997 a janeiro de 2000. Inicialmente são apresentadas uma caracterização do trabalho infantil no Brasil e a gênese do surgimento do Programa. Em seguida, trata-se da mesma questão em relação a Pernambuco, para, a partir destas contextualizações, apresentar-se especificamente os resultados da pesquisa que revelaram a dificuldade do Programa em atingir os objetivos de erradicação do trabalho infantil, garantindo, no entanto, a sua suspensão temporária nos municípios analisados. Quanto aos resultados educacionais, a análise indicou que, apesar dos impactos positivos sobre os índices de evasão escolar, quando se trata dos aspectos pedagógicos muito ainda há por fazer para melhorar a qualidade do ensino e os níveis de aprendizagem dos alunos.

política educacional; trabalho infantil; educação municipal


In this paper, the impact of the implementation of the Programme for the Eradication of Child Labour (PECL) on thirteen cities in the State of Pernambuco, Brazil, is analysed focusing on the period between November 1997 and January 2000. Child labour in Brazil and specifically in the state of Pernambuco is characterised along with a description of how the Programme was created. The results of the research reveal the Programme's difficulties in achieving its goal of eradicating child labour, despite its temporary suspension in those cities under analysis. The educational results reveal that despite the positive impact of the Programme in decreasing the number of school dropouts, in pedagogical terms, efforts are still needed to improve the quality of education and the levels of student learning.

educational policy; child labour; municipal education


Política educacional e poder local: análise das repercussões do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil na educação de municípios pernambucanos

Educational policy and local power: an analysis of the repercussions of the Programme for the Eradication of Child Labour on education in municipalities in the State of Pernambuco

Rosilda Arruda Ferreira

Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-Graduação em Educação

RESUMO

A partir de uma reflexão sobre as causas que têm conduzido à propagação do uso da força de trabalho de crianças e adolescentes, este texto apresenta resultados de uma pesquisa em que se analisou o processo de implementação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e as suas repercussões sobre a organização da educação pública em treze municípios pernambucanos, focalizando o período compreendido entre novembro de 1997 a janeiro de 2000. Inicialmente são apresentadas uma caracterização do trabalho infantil no Brasil e a gênese do surgimento do Programa. Em seguida, trata-se da mesma questão em relação a Pernambuco, para, a partir destas contextualizações, apresentar-se especificamente os resultados da pesquisa que revelaram a dificuldade do Programa em atingir os objetivos de erradicação do trabalho infantil, garantindo, no entanto, a sua suspensão temporária nos municípios analisados. Quanto aos resultados educacionais, a análise indicou que, apesar dos impactos positivos sobre os índices de evasão escolar, quando se trata dos aspectos pedagógicos muito ainda há por fazer para melhorar a qualidade do ensino e os níveis de aprendizagem dos alunos.

Palavras-chave: política educacional, trabalho infantil, educação municipal.

ABSTRACT

In this paper, the impact of the implementation of the Programme for the Eradication of Child Labour (PECL) on thirteen cities in the State of Pernambuco, Brazil, is analysed focusing on the period between November 1997 and January 2000. Child labour in Brazil and specifically in the state of Pernambuco is characterised along with a description of how the Programme was created. The results of the research reveal the Programme's difficulties in achieving its goal of eradicating child labour, despite its temporary suspension in those cities under analysis. The educational results reveal that despite the positive impact of the Programme in decreasing the number of school dropouts, in pedagogical terms, efforts are still needed to improve the quality of education and the levels of student learning.

Key-words: educational policy, child labour, municipal education.

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir os resultados de uma avaliação das repercussões do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) sobre a organização da educação pública em municípios do estado de Pernambuco. O PETI é um programa do governo federal, desenvolvido sob a responsabilidade da Secretaria de Estado de Assistência Social, do Ministério da Previdência e Assistência Social. Afirma como seu principal objetivo prevenir e eliminar o trabalho infantil no meio rural, através da garantia do acesso e permanência das crianças e adolescentes na escola, o que envolve diretamente a gestão da educação pública no âmbito municipal. Foi construído com base nos resultados de pesquisa desenvolvida com o apoio do UNICEF, no período de dezembro de 1997 a janeiro de 2000, momento em que foram realizadas atividades de acompanhamento do Programa em 13 municípios da Zona da Mata Sul de Pernambuco, a saber: Amaraji, Água Preta, Barreiros, Cabo de Santo Agostinho, Catende, Jaqueira, Joaquim Nabuco, Maraial, Primavera, Palmares, São Benedito do Sul, Tamandaré e Xexéu.

Partimos do pressuposto de que a avaliação das políticas educacionais deve ser feita a partir da discussão mais ampla sobre o significado das políticas públicas no Brasil, na atualidade, no contexto das novas configurações mundiais. Neste sentido, é preciso considerar, a princípio, que a educação municipal em Pernambuco vem sendo impulsionada pelos mesmos vetores que conduzem a educação no resto do país. O vetor principal que vem impulsionando este movimento se traduz nas novas formas de articulação do poder central com as municipalidades. Isto se efetiva através de medidas de políticas que vão consubstanciando o processo de delegação de responsabilidades para o poder local, fato que, para alguns, viola o princípio federativo, pois tende a esvaziar o papel dos estados federados.

Os municípios pernambucanos, na última década, contaram com a implantação de pelo menos 16 programas do governo federal, a maior parte através de contratos firmados diretamente entre o Ministério da Educação e as prefeituras. Dentre estes podem ser citados o TV Escola, o Dinheiro Direto na Escola, o de Transporte Escolar, o de Garantia de Renda Mínima, o Programa Nacional de Merenda Escolar, o Programa de Desenvolvimento da Educação Pré-Escolar e o Programa Saúde do Escolar.

Além desses, destacam-se o Programa do Livro Didático e o Programa de Informática na Educação, intermediados pelas secretarias estaduais de educação. Com esta mesma modalidade de intermediação, encontram-se programas que são desdobramentos do FUNDESCOLA (decorrente de novo empréstimo feito ao Banco Mundial). Neste caso enquadram-se o Plano de Desenvolvimento da Escola, a Escola Ativa, os Padrões Mínimos de Funcionamento da Escola, o Programa de Formação de Professores em Exercício e o de Construção de Escolas em Quilombos, Assentamentos e Áreas Indígenas. É nesse conjunto de medidas que se destaca também, em Pernambuco, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).

Em sua gestão no âmbito municipal, o PETI pressupõe a articulação entre as secretarias de assistência social e de educação, cabendo à última o papel de cuidar dos aspectos pedagógicos envolvidos no processo de implementação da "jornada ampliada", ou seja, com o aumento do tempo de permanência da criança na escola. Tais aspectos pedagógicos envolvem a formação dos professores, formulação de proposta pedagógica, avaliação e acompanhamento do rendimento do aluno etc., cuja responsabilidade cabe às secretarias de educação municipais. Esse envolvimento das secretarias de educação no PETI, através da ampliação da jornada escolar, tem trazido conseqüências importantes para a educação municipal, justificando a pertinência de um estudo desse tipo.

A seguir, buscando construir alguns elementos contextuais importantes para nossa análise, trataremos de questões relativas ao trabalho infantil no Brasil e em Pernambuco, para, na seqüência, tratar dos resultados mais importantes com relação ao trabalho de pesquisa realizado.

O trabalho infantil no Brasil: o contexto do surgimento do PETI

O modelo socioeconômico que condiciona a organização da sociedade brasileira, sustentado sobre desigualdades estruturais e consolidado a partir da forte concentração de renda e dos baixos salários, leva os pais a lançarem mão da força de trabalho de seus filhos como mais uma estratégia de sobrevivência. O mercado de trabalho, por sua vez, incentiva e busca na incorporação desta mão-de-obra uma diminuição nos custos de produção.

O problema é decorrência da constituição histórica do país, marcada pela extrema pobreza de sua população, fruto da desigualdade social. Neste contexto, a questão não está relacionada apenas aos números da inserção precoce das crianças na força de trabalho, mas também à natureza desse trabalho cujas situações de risco são visíveis. São inúmeros os espaços geográficos em que se realiza o trabalho infantil de caráter degradante e de alto risco no Brasil; destacam-se, pelos números que envolvem, os fornos de carvão, a extração de pedras, o beneficiamento do sisal, a agroindústria canavieira e a extração do sal, entre outras atividades, atingindo todas as regiões do país.

Os resultados desse processo de inserção precoce de crianças e adolescentes no mercado de trabalho são extremamente prejudiciais para o seu desenvolvimento físico e mental, impedindo-as de participar de atividades de acordo com a sua faixa etária, comprometendo irremediavelmente o seu futuro. Esta situação implica graves prejuízos para a formação escolar de crianças e de adolescentes, configurando um quadro "vergonhoso" com altos índices de analfabetismo, evasão e repetência escolar.

Dados de 1990 do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU (Organização das Nações Unidas) indicam que a taxa de atividade da população entre 10 e 14 anos vivendo em famílias pobres no mundo (renda per capita de até ½ salário mínimo) era de 23%, caindo para 4,5% quando se observava a mesma faixa de população com renda acima de 2 salários mínimos, o que revela a estreita correlação entre trabalho infanto-juvenil e renda familiar.

No Brasil, a situação do trabalho infantil é vergonhosa e insustentável, além de ser ilegal, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, proíbe o trabalho infantil antes dos 14 anos. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 1995, estima-se que 7,5 milhões de crianças e adolescentes participem do mundo do trabalho. Destes, 3,5 milhões são de crianças entre 5 e 14 anos. A grande maioria recebendo salários bem abaixo do mínimo legal; além de se verificar práticas da semi-escravidão nas quais crianças cumprem jornada de trabalho de até 12 horas diárias, sem nada receber.

Diante deste quadro, tem crescido no Brasil o debate e as exigências para solucionar o problema. No final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, as exigências e pressões começam a obter respostas através das mais diversas ações. No âmbito governamental, as respostas às pressões surgiram a partir de dois níveis principais: do Legislativo, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 e a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) de 1993; e do Executivo, através de diversos programas, tais como o Programa Brasil Criança Cidadã, o projeto dos CAICs (Centro de Assistência Integrada a Criança), entre outros.

No bojo desse debate, cria-se, sob a responsabilidade da Secretaria de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Este apresenta como objetivo central prevenir e eliminar o trabalho desse contingente populacional que, em situação de exploração, compõe a força de trabalho no meio rural, distanciando-o do sistema escolar. Nessa direção, pretende o programa

servir como âncora do conjunto das ações setoriais do governo voltadas para a recriação das condições materiais para as famílias enviarem seus filhos que hoje estão trabalhando precocemente, de volta à escola. (MPAS/SAS, 1997, p. 1)

Propunha, inicialmente, o pagamento de uma bolsa no valor de R$50,00,1 1 Em Pernambuco, durante os três primeiros anos de desenvolvimento do Programa (1997-1999), o valor da bolsa paga era de R$50,00. A partir de 2000, o valor da bolsa baixou para R$25,00, propondo-se agora a sua ampliação para a área urbana. condicionando o seu recebimento pela família à participação e aos resultados da criança nas atividades desenvolvidas na jornada ampliada.2 2 Termo utilizado pelo Programa para designar a jornada complementar ao ensino regular. Afirma, ainda, a necessidade de mudança cultural, através de ações conjuntas, que vão desde a escola até a conscientização da sociedade dos benefícios da retirada das crianças do trabalho, sustentando-se no argumento de que o trabalho não contribui para o desenvolvimento da criança e muitas de suas formas causam problemas irreversíveis.

Apesar de afirmar como intenção inicial implantar progressivamente o Programa em todas as áreas onde fossem detectadas concentrações de famílias com crianças exercendo tarefas produtivas penosas e degradantes, durante os três últimos anos de sua implantação não foi o que aconteceu. Dados do IBGE (1995), já apresentados anteriormente, indicam a presença de 3,5 milhões de crianças entre 5 a 14 anos inseridas no mercado de trabalho. Se considerarmos que no Brasil, na atualidade, são atendidas, no âmbito do Programa, apenas 125 mil crianças, isto corresponde a 3,2% do total de crianças trabalhadoras.

Observa-se, aqui, claramente o caráter focal do Programa. Além disso, ao afirmar a certeza de que a "educação é a política básica para um eficiente combate à pobreza e à miséria, na medida em que transforma as condições de inserção dos futuros trabalhadores no mercado de trabalho" (MPAS/SAS, 1997, p.3), ele traz de volta à cena uma velha discussão da educação como capital humano e redentora das mazelas sociais, já bastante criticada em função de sua ineficácia. Isto não significa negar a importância da educação no processo de formação dos cidadãos, mas trata-se de relativizar a sua força de inclusão social, uma vez que esta depende de amplos e contínuos investimentos para que, a longo prazo, apresente os impactos a que se referem essas políticas, o que não tem sido a marca principal da política educacional no Brasil.

Em contrapartida, destaca-se, no processo de implantação do Programa, o papel dos municípios, cabendo a estes gerir, executar e avaliar, junto aos demais níveis de governo, o seu desenvolvimento. Proposto e gerenciado inicialmente pelas secretarias de trabalho e ação social, ao ser implantado em alguns municípios, o Programa toma feições distintas quanto à relação com as secretarias de educação, aspecto fundamental para o seu andamento: em alguns municípios, essa relação é marcada por conflitos e por profunda desarticulação, caracterizando-se a jornada ampliada como uma atividade à parte das atividades desenvolvidas na escola; em outros, a relação vem se dando de forma mais articulada, no entanto as secretarias de educação assumem papel de coadjuvantes para cuidar dos aspectos pedagógicos e promover, em alguns momentos, algum tipo de articulação entre o ensino regular e a jornada ampliada; em outros, o Programa têm na Secretaria de Educação seu principal organizador, cabendo a esta cuidar de aspectos fundamentais do Programa, inclusive através de sua articulação com o conjunto da rede de ensino público municipal, buscando incorporá-la à sua política de educação.

Esse processo de gestão do Programa tem sido marcado por conflitos e pressões entre os poderes local e federal. De um lado, os municípios tentam ampliar o atendimento do Programa, buscando a sua universalização; e, de outro, o governo federal tenta manter os gastos e ampliar o atendimento, defendendo uma perspectiva de focalização do problema do trabalho infantil em situações de risco.

A responsabilidade dos municípios na gestão deste e de diversos outros programas sociais, como indicados anteriormente, tem crescido nos últimos anos e insere-se num amplo e complexo processo de descentralização.

Vale enfatizar que a descentralização constitui um dos oito princípios que orientam a atual reforma do Estado,3 3 Os princípios básicos que orientam a reforma são: desburocratização, descentralização, transparência, accountability, ética, profissionalismo, competitividade e enfoque no cidadão cliente, os dois últimos são próprios da linguagem neoliberal (Bresser Pereira, 1996). configurando-se como a ampliação dos processos decisórios entre os diversos níveis hierárquicos e entre as distintas esferas governamentais. Nesta direção, afirma-se que a meta é fortalecer o espaço local.

Com efeito, a descentralização tem como pressuposto básico uma sociedade civil com alto grau de organização, capaz de controlar os serviços através de sua participação na esfera pública.

No que se refere ao setor educacional, quando se trata da gestão do ensino fundamental, a descentralização e a participação vêm sendo tomadas como referências para as medidas de política em implementação. Além disso, os apelos à participação das comunidades têm se explicitado na sugestão ou obrigatoriedade de formação de conselhos municipal, escolar, da merenda, do FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e tantos outros. Na mesma direção, situam-se as medidas que visam propiciar a autonomia escolar, a exemplo do Projeto Pedagógico, tal como prescreve a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), bem como a transferência de recursos do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) para serem geridos pelas escolas e a criação no seu interior das unidades executoras.

Acrescente-se a isto o novo papel que aos municípios está cabendo desempenhar na condição de principal instância de administração local, cuja base legal foi estabelecida pela Constituição de 1988 e referendada pela LDB. Estas bases, portanto, configuram o campo legal em que se sustentam as mudanças na gestão da educação a partir dos requerimentos postos pela reforma do Estado brasileiro.

No que se refere ao texto constitucional, vale lembrar que nele houve o reconhecimento dos municípios como entidades políticas integrantes da estrutura federativa brasileira e foram estabelecidas novas competências administrativas para a prestação de serviços públicos, colocando-os em maior grau de autonomia perante o poder central.

Este movimento de fortalecimento do poder local não se caracteriza como antagônico com o processo de globalização. Ao contrário, é perfeitamente compatível com o movimento de descentralização. Neste sentido, os espaços locais vêm ganhando crescente importância. Os municípios passam a ser concebidos como atores políticos relevantes capazes de assumir o direcionamento das ações de intervenção nas diversas esferas da vida social e de atuar como elo de articulação entre a sociedade civil, as diferentes instâncias do Estado e a iniciativa privada (Castells & Borja, 1996).

Os problemas centrais das cidades têm sido tratados, cada vez mais, no plano dos governos locais. Esses espaços de poder caracterizam-se, ainda, por vivenciarem, de forma direta, as manifestações e a articulação de conflitos tanto socioeconômicos quanto culturais.

Portanto, como em outras sociedades, também no Brasil, o poder local emerge como protagonista cada vez mais importante, desenvolvendo experiências de políticas locais diferenciadas e, em alguns casos, bem-sucedidas, em diversos setores da prestação de serviços aos cidadãos.

A temática do poder local surge, assim, no seio do debate sobre a descentralização e o processo de construção de uma sociedade mais justa e democrática. A literatura sobre o tema registra que esta é uma tendência que se fortalece em momentos conjunturais de transição e consolidação democráticas, em que se associa a descentralização ao processo de democratização política e social, uma vez que pode vir a favorecer a ampliação do espaço público.

Vale destacar, no entanto, que a defesa da descentralização tem se constituído na marca do discurso dos principais órgãos internacionais de fomento ao desenvolvimento. Nestes casos, descentralização é concebida como um dos mecanismos centrais para se promover a diminuição do déficit público e a estabilização econômica, componentes fundamentais do processo de ajuste estrutural das economias emergentes sob os ditames da globalização.

No bojo desse debate, configura-se a existência de duas grandes vertentes de compreensão do seu significado, que diferem entre si em função da ênfase da perspectiva que privilegiam: enquanto a primeira valoriza a dimensão propriamente política, a segunda privilegia a dimensão da racionalidade administrativa e econômica.

Tal fato remete à tensão permanente da coexistência de duas lógicas presentes no processo de descentralização brasileira: a econômica e a política. Essa tensão refere-se ao predomínio da lógica econômica, no nível federal, voltada para a diminuição do gasto público, e ao predomínio da lógica política no nível local, que precisa lidar tanto com a crescente demanda por serviços sociais básicos, quanto com o debate em torno da descentralização como uma estratégia de democratização das relações entre Estado e sociedade civil.

É preciso deixar claro que, no caso brasileiro, a descentralização das políticas historicamente tem constituído uma bandeira das forças que lutam pela democratização do Estado, na perspectiva da instauração de uma ordem social democrática (Dowbor, 1997; Andrade, 1998).

No entanto, a situação problemática coloca-se quando às medidas definidas pela atual regulação estatal de inspiração neoliberal não corresponde o alargamento do atendimento dos direitos sociais. As tendências descentralizadoras, neste contexto, tendem a representar uma estratégia de maximização de recursos escassos que, num momento de crise econômica, inviabiliza a implantação de grandes projetos centralizados, como ocorreu em outras conjunturas. A impossibilidade de promover mudanças globais leva a impulsionar as ações locais, que são, em certa medida, pontuais, desconsiderando-se as carências e as necessidades específicas que tendem a travar o exercício da autonomia concedida.

Em contrapartida, não se excluem as possibilidades de que o apelo à participação popular no controle da execução das políticas favoreça a superação da desarticulação social, já que é possibilitado o surgimento de canais institucionais para a construção de um padrão de gestão democrático que auxilie na melhoria da qualidade do ensino. Neste caso, afirma-se a visão da importância da participação da sociedade civil no controle das ações do Estado, especialmente no que se refere ao âmbito dos espaços de poder local, como estratégia de sobrevivência da população organizada, ante os novos padrões de sociabilidade que o movimento de globalização vem impondo. Defende-se, assim, a descentralização como estratégia política para a instauração de uma ordem social substantivamente democrática.

No caso específico das cidades nordestinas, deparamo-nos também com uma situação em que a delegação de responsabilidades dos serviços educacionais às instâncias locais de poder, independentemente das intenções e dos projetos políticos definidos pelos grupos de poder local, têm de lidar com parâmetros conservadores que historicamente vêm marcando as ações neste nível na região, destacando-se as práticas clientelistas, a política do favor, entre outras.

Considerando o contexto exposto até aqui acerca das possibilidades e dos limites da ação dos governos municipais diante do processo de descentralização que ora se aprofunda no Brasil, discutiremos, a seguir, alguns aspectos importantes sobre os impactos do PETI para a educação de municípios pernambucanos, desvelando como a gestão municipal da educação tem enfrentado as questões postas pela implantação de um Programa deste porte.

O PETI em Pernambuco

O contexto de sua implantação

No estado de Pernambuco, as ações adotadas pelo governo federal voltadas ao combate do trabalho infantil concentraram-se, inicialmente, no setor canavieiro, na mesoregião da Zona da Mata Sul, e foram iniciadas em março de 1997. A meta inicial era atender 13.320 crianças e adolescentes na faixa etária dos 7 aos 14 anos.4 4 A população de crianças e adolescentes desses municípios é de 70.069 – Fonte IBGE/1991. Em função da pressão dos municípios por ampliação das metas de atendimento, o Programa chega ao ano 2002, segundo dados da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Social do Estado de Pernambuco, com o atendimento a 126 mil crianças, em 150 municípios do estado, que possui 185 municípios. A sua expansão atinge, na atualidade, todas as regiões de desenvolvimento do estado, bem como atividades socioeconômicas diversas que utilizam mão-de-obra infantil, como as casas de farinhas, atividades agropecuárias, pólo gesseiro, entre outras.

Em pesquisa realizada pelo Centro Josué de Castro em 1993/1994, intitulada Trabalhadores invisíveis, a Zona da Mata pernambucana é apontada como a região onde o trabalho infantil atinge graus e níveis intoleráveis, constituindo cerca de 25% da força de trabalho total da categoria de trabalhadores canavieiros.

A Zona da Mata de Pernambuco (dividida em Zona da Mata Norte, ou seca, e Zona da Mata Sul, ou úmida) abrange 52 municípios, ocupando aproximadamente 1.540.000 hectares, com uma população de 1.523.431 habitantes. Nela há alta concentração fundiária e a cana-de-açúcar chega a ocupar 92,28% da área total cultivada na região. É, portanto, nessa região que convivem, lado a lado, um dos setores econômicos mais ricos do estado e um elevado grau de pobreza, marcado, entre outros fatores, pela presença significativa de crianças e adolescentes na produção da cana.

O levantamento do Centro Josué de Castro de Estudos e Pesquisas identificou a presença de 54.000 crianças e adolescentes (entre 7 e 13 anos) trabalhando nos canaviais. Elas trabalham pelo menos 44 horas semanais, e 57% delas já foram vítimas de lesões graves em decorrência do uso de foices e facão.

Os dados da pesquisa demonstram que apenas 11% das crianças têm jornada de trabalho de até 20 horas semanais, enquanto 41,7% cumprem jornada acima de 40 horas semanais; e que 91,2% iniciaram a vida produtiva entre os 7 e os 13 anos. Esta força de trabalho, em geral, ou é clandestina, ou está embutida no aluguel da força de trabalho do pai ou responsável.

Essa carga de trabalho resulta, necessariamente, em resultados negativos na sala de aula. A pesquisa mostrou que 52% dos filhos de trabalhadores da cana não conseguem nem mesmo aprender a ler depois de três anos na escola, e que 74% das crianças que trabalham já repetiram o ano escolar. É elevado o índice de analfabetismo em todas as faixas etárias (62,6% para a faixa etária de 11 a 14 anos na zona rural, enquanto a do estado se situa em torno de 49,5%) e em todas as suas microrregiões.

Ainda no que se refere aos aspectos educacionais, 85,2% das crianças trabalhadoras nas lavouras de cana-de-açúcar ingressam na escola; 44,8% iniciam aos 7 anos; 37,8% iniciam entre 8 e 10 anos; 17,4% iniciam entre 11 e 17 anos; o índice de reprovação gira em torno de 30%; o índice de abandono da escola cresce progressiva e aceleradamente a partir de 4 anos de estudo; 18,8% dos matriculados inicialmente permanecem na escola por até 7 anos de estudo. Cerca de 60% desses jovens são analfabetos; entre os pais e mães desses jovens, o índice de analfabetismo chega a uma média de 76,2%. Os motivos que influenciam o fracasso escolar são: baixo aproveitamento, trabalho, mudança de domicílio, doença, falta de professor e de merenda, distância da escola, entre outros. Somam-se a esse quadro os limites em que se inscreve a maior parte dos municípios quanto à existência de uma estrutura técnico-administrativa e financeira, o que se materializa nas péssimas condições da oferta do ensino fundamental, com destaque para as escolas rurais, espaço concreto em que foi implantada a jornada ampliada.

Essa situação é decorrência do alto grau de dependência das transferências correntes para as receitas totais dos municípios, materializando-se na restrita capacidade de investimentos e gastos em equipamentos sociais e, por conseguinte, nas dificuldades de assunção de responsabilidades advindas de um processo de descentralização das políticas de educação para o ensino fundamental, agravada com a implantação de uma jornada ampliada. No caso do PETI, apesar de ser garantido pelo governo federal o repasse de R$25,00 per capita para a manutenção da jornada ampliada, os custos, em grande medida, devem ser cobertos pelos municípios, principalmente com a ampliação verificada após o primeiro ano do Programa.

Como vem registrando a literatura sobre o tema, a situação acima apresentada, dentre outros fatores, é uma decorrência das estratégias do poder local para garantir as suas condições de mando, num contexto de crise econômica. A criação de municípios por desmembramento de distritos, sem critérios que considerem as implicações de ordem econômico-social, vem sendo uma prática corriqueira no Brasil. Essa prática, no limite, ao pulverizar os fundos públicos, contribui para agravar as desigualdades sociais, realidade que não pode deixar de ser considerada, num contexto em que as reformas do Estado e da educação estão alçando as municipalidades e o poder local, um papel de destaque.

O PETI e a educação municipal em Pernambuco

Avaliar políticas públicas não se constitui tarefa fácil. Muito se tem discutido sobre esta questão e várias propostas são formuladas. Alguns autores defendem a importância de uma avaliação objetiva que considere os impactos de uma política e que resgate os indicadores que expressem as mudanças ocorridas. Outros priorizam os aspectos relacionados ao processo de implantação das políticas. Entendemos que uma avaliação de políticas públicas deve considerar tanto os impactos quanto os processos políticos envolvidos em sua implantação.

Segundo Belloni (2000), para avaliar-se uma política pública, deve-se considerar parâmetros referenciais, como: considerá-la um instrumento de ação do Estado, analisar os conceitos e perspectivas político-filosóficas relativas à questão objeto da política e, por último, analisar a formulação e implementação dessa política.

Em relação à avaliação de políticas na área educacional, a literatura sobre o assunto tem demonstrado que as pesquisas acadêmicas estão distantes da escola, normalmente se restringem às avaliações feitas em relação à etapa de diagnóstico e das propostas educacionais, raramente versando sobre o processo de implementação, o que provoca grande distância entre o diagnóstico da situação e a tomada de decisão.

Numa perspectiva mais ampla, precisamos considerar três dimensões para a análise da implementação de políticas educacionais: 1) as relações entre a formulação da política e os formatos que os programas adquiram ao final do processo; 2) a dimensão temporal que trata do processo e seus efeitos no tempo em relação à organização em que se processam (resistências e adesões por parte dos atores que implementam) e as modificações das condições iniciais; 3) refere-se às condições que propiciam ou entravam o processo de implementação.

Esse tipo de abordagem parte do princípio de que a avaliação de políticas públicas deve considerar tanto os aspectos objetivos quanto os subjetivos envolvidos no processo de sua implantação e implementação, principalmente quando estamos tentando avaliar políticas educacionais ou diretamente relacionadas à educação, como é o caso do PETI, na medida em que estamos lidando com a possibilidade de mudança cultural, o que pressupõe muito mais do que meramente a construção de indicadores objetivos.

Nesta direção, buscando contemplar questões fundamentais relativas às repercussões do PETI na organização da escola pública em municípios pernambucanos, realizamos uma primeira aproximação do programa considerando os seguintes aspectos: a)os efeitos na organização e os resultados da educação municipal a partir da implantação do Programa, buscando identificar indicadores objetivos (dados de evasão e repetência), bem como subjetivos (resistência e adesão por parte dos atores envolvidos); b) as principais dificuldades que entravavam o processo de implementação do Programa, a partir de informações coletadas junto aos sujeitos diretamente envolvidos em sua realização.

Em um primeiro momento, identificamos alguns indicadores objetivos dos possíveis impactos do PETI na educação municipal, já no seu primeiro ano, e realizamos um levantamento sobre a situação dos alunos no que se refere aos índices de evasão e repetência no final do ano de 1997, com base nas informações dos professores que trabalhavam nas escolas com jornada ampliada. No caso da evasão, os dados foram mais precisos. No que concerne à repetência, os dados foram construídos a partir de uma avaliação feita pelos professores com relação aos seus alunos ainda durante o ano letivo, o que, apesar de não corresponder a um resultado final, constituiu-se em uma previsão importante que resgatava uma avaliação durante o processo de ensino-aprendizagem.

Segundo os dados coletados entre os professores em dezembro/1997, o índice médio de evasão escolar era de 9%, o de repetência, 20%, e a evasão escolar e a repetência na área rural de Pernambuco, no ano de 1996, estavam situadas em torno de 18% e 25% das matrículas no ensino fundamental, respectivamente.5 5 http://www.inep.gov.br/censo/escolar/sinopse/1997/tabela-4.1.htm.

No caso da evasão, os dados indicam impacto imediato e significativo do Programa sobre a educação dos municípios, o que certamente está relacionado à exigência do Programa da freqüência dos alunos à escola como critério para que fosse feito o pagamento da bolsa à família.

Além dos dados mais objetivos quanto à evasão e à repetência, procuramos avaliar outros aspectos do desempenho dos alunos, com base em depoimentos dos professores e entrevistas com gestores, buscando qualificar a análise. No que se refere aos aspectos pedagógicos propriamente ditos, é preciso destacar a questão da avaliação da aprendizagem. Constatou-se que há distinção bastante interessante no que se refere ao processo de avaliação da aprendizagem no ensino regular e na jornada ampliada, pois enquanto na primeira não se verificava nenhuma inovação, continuando a avaliação a ser realizada através de provas (bimestrais, trimestrais etc.), observações do comportamento etc., na jornada ampliada, em função do tipo de atividade realizada, essa avaliação dava-se de forma mais aberta, tomando-se como critério principal o envolvimento do aluno e o seu crescimento como participante dos grupos de atividades – "a criança está mais falante", "mais desinibida". Esses aspectos eram considerados na jornada regular como indisciplina e dispersão.

Avaliação do PETI em Pernambuco, da ótica de professores, monitores e educadores de apoio

A coleta de informações foi feita com base em um trabalho de discussão com os profissionais que faziam o Programa no seu dia-a-dia (professores, monitores e educadores de apoio). Além dessa fonte de dados, utilizamos ainda fontes documentais e entrevistas com gestores nos níveis estaduais e municipais.

Metodologia utilizada na coleta de dados

A coleta de dados foi feita tomando como referência um universo de 1.497 profissionais que trabalhavam no Programa. Participaram da pesquisa 800 profissionais dos três segmentos, perfazendo um total de 53%; destes, 76% eram educadores de apoio, 65% monitores e 38% professores.

O trabalho foi desenvolvido em dois momentos, conforme descritos a seguir:

a) Trabalho em grupo: Apresentação e explicação dos objetivos da pesquisa e de um roteiro para discussão em grupo, trabalho em grupo com debate e registro dos resultados e apresentação do resultado do debate em discussão ampliada.

b) Trabalho individual: Apresentação e explicação do questionário individual e preenchimento do questionário individual pelos participantes.

A decisão metodológica para trabalhar com professores, monitores e educadores de apoio baseou-se na hipótese central de que, para a realização com êxito de qualquer projeto, a ação daqueles que estão diretamente ligados à sua execução é fundamental e pode se constituir em momento de resistência e/ou de adesão e construção coletiva. Nesta direção, assumiu-se o pressuposto de que a adesão dos participantes é construída, principalmente, a partir da compreensão do projeto e do reconhecimento da importância do papel de cada um e de todos na sua viabilização. Assim, uma vez que se pretendia analisar os aspectos pedagógicos relacionados ao PETI, o trabalho concentrou-se na perspectiva daqueles que, através de sua prática cotidiana, deram vida à escola, enfrentando as dificuldades e criando formas para lidar com elas. Dessa forma, avaliando as entrelinhas de seus discursos, a adesão que esses segmentos mostravam em relação ao Programa como um elemento importante para o seu sucesso.

Em função da perspectiva adotada, foram destacados os seguintes aspectos relacionados com a visão dos segmentos sobre jornada ampliada e a sua relação com a educação do município: a) compreensão dos objetivos do PETI; b) concepção de jornada ampliada; c)contribuição do PETI para a educação municipal; d)o cotidiano do PETI (dificuldades e interferência da jornada ampliada no ensino regular).

Apresentação dos resultados

a)Compreensão dos objetivos do PETI

Um dos aspectos a destacar, em princípio, é aquele relativo ao conhecimento do Programa, principalmente no que se refere aos seus objetivos. Entre os professores foi marcante a afirmação de que conheciam pouco sobre o PETI. Mesmo considerando os monitores que trabalhavam diretamente na jornada ampliada, esta é uma resposta que também se evidencia.

Nas discussões realizadas com os três segmentos sobre os objetivos do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e nas respostas que estes deram aos questionários aplicados, apesar de em alguns municípios ter sido registrada a falta de informações sobre o Programa, principalmente no que se refere aos professores, a grande maioria afirma que o objetivo principal do Programa é tirar a criança do trabalho da cana-de-açúcar. Em seguida, aparece o aspecto da qualidade da educação.

Neste sentido, as concepções de professores, monitores e educadores de apoio podem ser agrupadas em três blocos,6 6 Os percentuais relativos a cada agrupamento de respostas não equivalem a um total de 100%, pois os agrupamentos foram construídos em razão das respostas e não dos sujeitos. em função do destaque dado para aspectos específicos, a saber:

1. Os aspectos socioeconômicos relacionados ao combate do trabalho infantil (86% dos professores, 95% dos monitores e 84% dos educadores de apoio).

2. Os aspectos educacionais relacionados à permanência da criança na escola e à melhoria de sua qualidade do ensino (52% dos professores, 78% dos monitores e 67% dos educadores de apoio).

3. A formação da cidadania (48% dos professores, 20% dos monitores e 38% dos educadores de apoio).

No que se refere ao primeiro aspecto, este coincide mais explicitamente com os objetivos colocados pelo PETI que se afirma a partir da proposta de erradicação do trabalho infantil, ponto que mais chama a atenção dos segmentos envolvidos. Quanto ao segundo, percebe-se uma significativa diferença entre os discursos de monitores e educadores de apoio com relação aos professores. Os primeiros apresentam maior ênfase para os aspectos educacionais do PETI, talvez isso em função do envolvimento mais direto desses segmentos com a jornada ampliada, cujo caráter de inovação pedagógica precisa ser enfrentado mais concretamente.

Quando discutimos sobre a realização dos objetivos propostos, a maioria dos profissionais entrevistados afirmou que os mesmos foram realizados em parte. As justificativas afirmam que o objetivo relativo à retirada da criança do trabalho na cana-de-açúcar foi quase totalmente realizado, porém, no que se refere aos aspectos educacionais, estes profissionais afirmam que não houve o investimento necessário na melhoria das condições da escola para poder trabalhar com o aluno em horário integral.

b) Concepção de jornada ampliada

Na avaliação do cotidiano do Programa, um aspecto importante foi destacado. Tratava-se da concepção de "jornada ampliada". A implantação da jornada ampliada significou uma mudança significativa na organização escolar dos municípios participantes do Programa.

A implementação do PETI, nos aspectos relacionados à educação escolar, significou a criação de uma "jornada ampliada" cujo sentido, no seu início, era bastante confuso. As orientações dadas para os monitores não apresentavam uma condução clara do que deveria ser trabalhado nessa jornada; as questões relativas à integração com o ensino regular no interior da escola também não eram tratadas. Nos depoimentos dos profissionais, estes afirmavam que "a jornada ampliada era entendida no começo como um espaço para brincadeiras, lazer; nenhuma atividade que lembre o ensino regular deveria ser realizada" (monitor). Num segundo momento, afirmava-se que "a jornada ampliada deveria se constituir num momento de atividades lúdicas e pedagógicas e de reforço escolar" (monitor). Para esses profissionais, a situação era bastante confusa.

Apesar de a concepção de jornada ampliada constante na definição das diretrizes do Programa destacar os aspectos pedagógicos, a concepção repassada pelas pessoas responsáveis pelo acompanhamento das atividades realizadas nos espaços da "jornada ampliada" geralmente não coincidia com essa concepção, gerando confusão entre monitores e professores.

Em função dessas informações imprecisas instalou-se a confusão e a separação entre as atividades lúdicas, características da jornada ampliada, e as atividades do ensino regular. Estabeleceu-se aí uma distinção entre as atividades de caráter pedagógico, a cargo do ensino regular, e as atividades mais livres, a cargo da jornada ampliada. Esse tipo de concepção gerou sérias dificuldades para os professores, uma vez que as crianças que passaram a freqüentar a jornada ampliada não queriam mais participar do tipo de atividade realizada no ensino regular, consideradas "chatas", "cansativas" e "obrigatórias", levando muitos professores a se desmotivarem ainda mais.

Quanto às concepções que monitores e educadores de apoio tinham da jornada ampliada, aspecto central do PETI, estas foram agrupadas em três categorias:7 7 Idem nota 6.

Categoria 1

Respostas que destacavam o aspecto pedagógico da jornada ampliada, como: "forma de aprender brincando"; "forma de ampliar o conhecimento escolar"; "complemento da aprendizagem através de cultura, lazer e atividades pedagógicas"; "formação da cidadania e ampliação do seu campo de conhecimento" (88% dos monitores e 100% dos educadores de apoio).

Categoria 2

Respostas que destacavam o aspecto socioeconômico da jornada ampliada, incluindo: "forma de tirar a criança do trabalho da cana"; "de garantir a permanência da criança na escola"; "forma de melhorar as condições de vida da família" (43% dos monitores e 44% dos educadores de apoio).

Categoria 3

Respostas que destacavam o aspecto assistencial da jornada ampliada, enquanto uma forma de o governo ajudar as crianças, os professores e a comunidade (4% dos monitores).

Aspecto fundamental a ser considerado nesse debate é que a "jornada ampliada" poderia ter se constituído em um momento articulado ao conjunto das atividades escolares para que se pudesse avançar no sentido da construção da concepção de uma escola de tempo integral, e não como um momento à parte, o que, considerando as condições efetivas dos municípios no período de implantação do Programa, não poderia ser diferente. Essa é uma questão que ainda vem sendo objeto de discussão até hoje, buscando-se a sua superação. Por sua vez, era importante repensar também o ensino regular, suas práticas, sua rotina de atividades desmotivadoras e promotoras de fracasso escolar, o que também não foi realizado. Esqueceu-se do ensino regular. Era como se a jornada ampliada se realizasse na escola mas não tivesse nada a ver com ela, a escola era apenas um espaço físico para a sua realização.

Com o desenvolvimento do Programa, essa situação chegou ao final de 1997 praticamente superada em termos de concepção, o que pode ter sido resultante das inúmeras capacitações, encontros para discussão e troca de experiências. Essa situação materializa-se até mesmo nos discursos de professores, monitores e educadores de apoio, que passam a ter uma compreensão mais clara do significado da jornada ampliada, fruto, a nosso ver, da circulação das informações que aos poucos foram sendo disseminadas. Apesar disso, vale destacar que a mudança em termo de concepção não significou, por si só, uma mudança na condução ou no funcionamento da jornada ampliada.

c) A contribuição do PETI para a educação do município

A avaliação positiva do Programa entre os professores foi justificada destacando-se "o aumento da freqüência", "o maior empenho dos alunos", o que estaria levando a "um melhor aproveitamento".

Os principais aspectos destacados pelos professores para justificar uma avaliação negativa iam de encontro aos objetivos propostos para a jornada ampliada, afirmando estes que o fato de as crianças passaram o dia inteiro na escola estaria deixando-as "cansadas", "aflitas" e "indisciplinadas", atrapalhando o seu rendimento.

A avaliação negativa, maioria naquele momento, era um forte indicador da desarticulação entre o trabalho desenvolvido no ensino regular e na jornada ampliada.

d) O cotidiano de professores, monitores e educadores de apoio

A seguir, apresentaremos os resultados das discussões realizadas com professores, monitores e educadores de apoio sobre o cotidiano de seus trabalhos, especialmente no que se refere às dificuldades vividas e às estratégias para solucioná-las.

No que diz respeito aos problemas encontrados na realização do trabalho na escola, destacamos aqueles que foram mais indicados e que coincidiram nos três segmentos.

Verificamos, neste sentido, a indicação da falta de material e de apoio didático e de um local específico para funcionamento da jornada ampliada. Vale ressaltar que o problema da falta de material didático é citado como dificuldade principal em 12 dos 13 municípios participantes da pesquisa.

É interessante que a referência feita por grande parte dos professores indicando a falta de locais para a jornada ampliada como a segunda dificuldade mais séria enfrentada por eles está relacionada com o problema da convivência em locais muito próximos das atividades das duas jornadas ao mesmo tempo, o que, segundo o argumento dos próprios professores, com o barulho que acontece com as atividades da jornada ampliada cuja rotina se propõe diferenciada do ensino regular, acaba tumultuando o trabalho realizado pelos alunos durante as aulas.

Novamente, coloca-se o problema da concepção pedagógica que permeia este novo momento vivido pela escola que não consegue materializar um processo de articulação do trabalho a ser realizado, e é colocado, na prática, como dois momentos estanques e distintos.

As dificuldades existentes, principalmente com relação à estrutura física, à falta de material didático e de qualificação dos profissionais, que se explicitam com mais clareza a partir da implantação da jornada ampliada, ainda persistem após quase um ano de desenvolvimento do PETI. Essas dificuldades, que já existiam antes do início do Programa, precisam ser urgentemente tratadas, uma vez que rebatem diretamente no trabalho do professor e se materializam nas dificuldades apresentadas pelos alunos, cujo desempenho ainda é marcado pelos altos índices de evasão e repetência.

Considerações finais

A análise decorrente do trabalho realizado ao término de dois anos de implantação do PETI em Pernambuco (iniciado em 1997) revela que o processo de articulação entre as atividades desenvolvidas no ensino regular e na jornada ampliada constituiu-se em um dos principais problemas da implantação do PETI, no que se refere aos aspectos pedagógicos. Não estava clara a concepção pedagógica que deveria nortear a implantação do Programa, o que gerou dispersão de esforços e confusão entre professores e monitores na execução de seus trabalhos. É claro que essas não foram as únicas dificuldades. A elas se juntaram dificuldades de ordem estrutural, pois os municípios, em sua maioria, não estavam com suas redes de ensino preparadas para a viabilização de um projeto desse porte.

O que se verificou foi uma proposição e, na maioria dos casos, a "imposição" de prazos e determinações formais para que os municípios entrassem no Programa, sem que as condições necessárias e fundamentais fossem avaliadas e criadas para a implantação.

Em contrapartida, talvez pudéssemos dizer que, se os municípios tivessem esperado para que as condições adequadas fossem criadas, o Programa talvez não tivesse sido implantado na sua grande maioria. Tornou-se fundamental, portanto, correr contra o tempo e procurar, durante o próprio percurso do Programa, corrigir as falhas e resolver os problemas que, geralmente, eram atacados em função de sua prioridade.

Assim, os problemas e dificuldades relativos às condições infra-estruturais – local para funcionamento da jornada ampliada, contratação de pessoal para preencher as funções que estavam sendo criadas, aquisição e distribuição de merenda, falta de saneamento e água potável, banheiros – foram priorizados. Entendemos que essas eram questões urgentes e que sem a sua solução não seria possível a continuidade do Programa.

A implementação do Programa, portanto, deixou de lado os aspectos mais diretamente relacionados com as questões pedagógicas pertinentes ao trabalho a ser desenvolvido. Na maioria das vezes, quando essa questão era posta em debate, tratava-se principalmente da jornada ampliada que se constituía no ponto central e mais visível do Programa. O ensino regular tradicionalmente de má qualidade, improdutivo, parceiro do fracasso escolar, não era trazido para a discussão na perspectiva de articulação para uma jornada integral com qualidade.

A continuidade do processo de acompanhamento do PETI revela que apesar das muitas dificuldades existentes no início do Programa ainda continuarem existindo, algumas inovações significativas vêm sendo construídas, destacando-se, nesse sentido, àquelas relacionadas aos aspectos pedagógicos: consolidação de uma concepção de escola de tempo integral, o que certamente vem materializando uma maior integração entre as jornadas regular e complementar, investimento na qualificação dos professores e monitores, que, em alguns municípios, trabalham de forma integrada.

Numa aproximação inicial, fruto de novas reflexões que estamos realizando, poderíamos dizer que no conjunto destes municípios vêm se consolidando, em linhas gerais, três configurações distintas: a primeira, presente na maioria dos municípios, em que a jornada ampliada se mantém como um Programa específico sem nenhuma articulação com um projeto socioeducativo para o município; a segunda, presente em um menor número de municípios, em que vem se consolidando a perspectiva de uma escola de tempo integral e se definindo um novo modelo de escola rural; e a terceira, presente em um dos municípios acompanhados, em que se consolida um novo modelo de escola rural voltado para a afirmação de uma proposta educativa em que a escola é vista como pólo aglutinador dos interesses da comunidade e articulada a uma proposta de desenvolvimento sustentável.

Vale destacar, ainda, que a ampliação do Programa que vem se verificando no estado de Pernambuco, por si só, não garante a erradicação definitiva do trabalho infantil em Pernambuco, apesar de permitir a sua suspensão de imediato. Para a consecução efetiva da meta de erradicar o trabalho infantil, torna-se fundamental que se consolidem investimentos na construção de uma nova mentalidade que combata a visão de mundo sobre o trabalho que se encontra arraigada nesse ambiente socioeconômico e cultural. É importante que se abram novas perspectivas para a criança e o adolescente que lá vivem, local em que o trabalho precoce se constitui na única alternativa para a sua formação. Formação esta que tradicionalmente não se dá na escola, mas na labuta diária, no cotidiano penoso do trabalho pesado, insalubre, que acaba com qualquer perspectiva de futuro em que a cidadania verdadeiramente se instaure. Torna-se, assim, necessário que sejam feitos investimentos na qualidade política da implantação do Programa, o que significa ir além de seus aspectos formais, buscando-se discutir e consolidar um novo projeto social. Nesta perspectiva, inclusive, são de fundamental importância o acompanhamento e a avaliação permanente dos resultados do Programa naqueles aspectos que revelam as perspectivas para a viabilização das mudanças aqui apontadas.

Recebido em setembro de 2001

Aprovado em janeiro de 2002

ROSILDA ARRUDA FERREIRA, doutora em educação, é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Educação. Últimas publicações: A pesquisa científica nas ciências sociais: caracterização e procedimentos (Recife, Editora Universitária, UFPE, 1998) e, em colaboração com Edna M. G. da R. Pessoa, Diagnóstico do ensino público no município de Camaragibe-PE, publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (v. 80, nº 195, maio/ago. 1999, p. 342-351). E-mail: rosildaferreira@bol.com.br.

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  • MPAS/SAS, (1996). Projetos de Ações Integradas em Pernambuco – PAI. Recife.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório de Desenvolvimento Humano, 1990.
  • 1
    Em Pernambuco, durante os três primeiros anos de desenvolvimento do Programa (1997-1999), o valor da bolsa paga era de R$50,00. A partir de 2000, o valor da bolsa baixou para R$25,00, propondo-se agora a sua ampliação para a área urbana.
  • 2
    Termo utilizado pelo Programa para designar a jornada complementar ao ensino regular.
  • 3
    Os princípios básicos que orientam a reforma são: desburocratização, descentralização, transparência,
    accountability, ética, profissionalismo, competitividade e enfoque no cidadão cliente, os dois últimos são próprios da linguagem neoliberal (Bresser Pereira, 1996).
  • 4
    A população de crianças e adolescentes desses municípios é de 70.069 – Fonte IBGE/1991.
  • 5
  • 6
    Os percentuais relativos a cada agrupamento de respostas não equivalem a um total de 100%, pois os agrupamentos foram construídos em razão das respostas e não dos sujeitos.
  • 7
    Idem nota 6.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2002

    Histórico

    • Aceito
      Jan 2002
    • Recebido
      Set 2001
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