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Políticas educativas e avaliação educacional: para uma análise sociológica da reforma educativa em Portugal (1985-1995)

RESENHAS

João Baptista Bastos

Professor da Faculdade de Educação da UFF

AFONSO, Almerindo Janela. Políticas educativas e avaliação educacional; para uma análise sociológica da reforma educativa em Portugal (1985-1995). Braga – Portugal: Universidade do Minho, 1998.

No momento em que os governos capitalistas neoliberais centrais começaram a desmontar a escola pública na década de 1980, a avaliação pedagógica, parte integrante dos processos de ensino e de aprendizagem, portanto instrumento inseparável do ofício de mestre e de professor, passou a ser utilizada por grupos alheios aos quadros de professores públicos, contratados temporariamente mediante trabalho de consultoria terceirizada, para avaliar alunos e instituições de escola fundamental.

Almerindo Janela Afonso, sociólogo, professor de Sociologia da Educação e Políticas Educativas da Universidade do Minho, em Portugal resolveu estudar a fundo as mudanças que estão ocorrendo no campo da avaliação, seja comparando projetos de vários países, seja investigando condicionantes econômicos e políticos, seja identificando os impactos dos projetos de avaliação no cotidiano da escola.

A presença do sociólogo professor Almerindo Janela no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFF, no mês de dezembro de 2000, suscitou grande interesse pelos seus pontos de vista sobre a avaliação da educação. Sua conferência "Estado, Mercado, Comunidade e Avaliação; esboço para uma (re)articulação crítica" provocou interrogações e questionamentos em torno de projetos governamentais voltados para a avaliação educacional. Duas questões prevaleceram: "Que relação tem a avaliação com o mercado? Por que os governos capitalistas neoliberais centrais e periféricos estão agilizando projetos de avaliação através de exames públicos de massa, com publicação de resultados?" Para o professor Almerindo, não há dúvida de que os governos tratam a educação escolar como uma quase-mercadoria, que deve necessariamente submeter-se às exigências de mercado para que tenha qualidade. A administração da educação obedece a padrões ou a critérios híbridos, na medida em que se revestem de um discurso democrático, mas na realidade são burocráticos e excludentes.

A entrevista dada ao Jornal do Brasil de 17/12/2000, no Caderno "Educação & Trabalho", sob o título de "Avaliações nacionais ignoram processo de evolução escolar" sintetiza o seu pensamento: os governos estão interessados em ampliar o seu controle sobre a educação, sobre os conteúdos científicos, sobre os professores, sobre a pesquisa e a ciência com a finalidade de adaptar a escola às exigências irracionais de um mercado profundamente desigual. A avaliação saiu das salas de aula das escolas e está se tornando um instrumento para medir apenas resultados e não processos educacionais.

Almerindo Janela em sua tese de doutoramento em Sociologia da Educação, defendida em julho de 1997, e transformado no livro que estamos resenhando, consegue não só responder numerosas questões sobre os diferentes tipos ou modelos de avaliação, como também convida o leitor a acompanhá-lo na sua longa trajetória de uma cuidadosa investigação de novas e detalhadas relações da educação com o Estado, a sociedade e o mercado, no contexto ameaçador e excludente da globalização. Compreender as principais facetas das reformas educacionais na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Espanha e em Portugal tornou-se o grande eixo de seu trabalho. Trata-se de um denso volume de quatrocentas páginas, dividido em seis capítulos, com quinhentos e cinqüenta notas de pé de página e vasta bibliografia (aproximadamente seiscentos e sessenta títulos), abrangendo trabalhos de avaliação educacional publicados em inglês, francês, espanhol e português.

Didaticamente construído, o trabalho de pesquisa segue os padrões clássicos de uma tese de doutoramento, sendo cada capítulo precedido de uma síntese das idéias trabalhadas em seu interior. As visões de mundo de Jürgen Habermas e de Boaventura de Sousa Santos fundamentam a estrutura da investigação. A distinção entre o pilar da regulação e o pilar da emancipação garante a descoberta dos interesses dos governos e do mercado na avaliação criterial com publicação de resultados e o leva a propor a avaliação formativa, como uma proposta de avaliação capaz de resgatar a escola democrática. Após a bibliografia, em anexos, o autor acrescenta o instrumental de pesquisa. Trata-se, portanto, de uma obra de consulta que se recomenda a todos que desejam não só estudar os diferentes aspectos da avaliação, mas sobretudo conhecer a lógica do pensamento conservador da nova direita, concretizada em políticas de educação da Inglaterra, Estados Unidos, Espanha e Portugal.

No primeiro capítulo, há uma passagem que estabelece o cruzamento de uma dupla trajetória em toda sua pesquisa: Almerindo Janela afirma que, de um lado, o estudo da avaliação educacional exige o conhecimento aprofundado de períodos históricos específicos, ou de determinadas conjunturas políticas, sociais e econômicas – trata-se de um eixo diacrônico. Por outro lado, o estudo da avaliação educacional não pode deixar de considerar as eventuais formas de regulação social ao nível do Estado, do mercado e da comunidade – trata-se de um eixo sincrônico.

É a partir destes eixos que se deve examinar os vários capítulos da obra. Embora cada capítulo tenha um conteúdo específico, os seis constituem um conjunto muito bem arquitetado. No primeiro capítulo, o autor traça uma panorâmica dos diferentes funções da avaliação, tendo como pano de fundo a constituição de um campo de estudo – a sociologia da avaliação.

Do nosso ponto de vista, à sociologia da avaliação poderá incumbir ainda problematizar a relação da avaliação com os processos de mudança social (mas também organizacional e grupal), bem como discutir a sua utilização enquanto suporte dos processos de legitimação e de regulação/desregulação, em diferentes níveis societais e institucionais (p. 30).

Daí o interesse do Estado pela avaliação a partir da década de 1980. Alguns autores passaram a denominar os governos neoconservadores e neoliberais centrais de "Estado avaliador".

No segundo capítulo, o autor procura responder a questão: O que é uma reforma educacional no contexto internacional e por que a avaliação educacional ganha prioridade na execução de projetos? De acordo com o estudo de vários autores, Almerindo Janela situa nos EUA, em 1983, o grande impacto político e social provocado "pela divulgação dos baixos níveis de realização dos alunos americanos quando submetidos a testes internacionais comparativos em matérias escolares consideradas fundamentais". O presidente Reagan, mediante o relatório A Nation at risk, conseguiu sensibilizar os empresários, os Estados e a opinião pública no sentido de alterar a política educacional da década de setenta: "da regulação para a desregulação; da escola pública para as escolhas educacionais e para a competição entre escolas; das preocupações sociais para as preocupações com a economia e com a produtividade; da igualdade de oportunidades para a excelência, das necessidades educativas para as capacidades e para a seletividade" (p. 96). Se a avaliação foi, nos Estados Unidos, o instrumento provocador de `mudanças' na educação, então deverá ser para todos os países! O que é bom para os americanos deve ser bom para todos os países!

A Inglaterra foi o segundo país a implementar a reforma educacional, em 1988, durante o terceiro mandato de Margaret Thatcher, centrada na implantação do currículo nacional para todos os alunos em idade de freqüentar a escolaridade obrigatória, dos 5 aos 16 anos, e de um novo sistema de exames nacionais. Almerindo Janela incorpora neste capítulo, a opinião de Michael Apple:

[...] a introdução de um currículo nacional e de uma avaliação também a nível nacional transmitem a idéia de que o governo está preocupado com os consumidores e com a necessidade de elevar os níveis educacionais – o que é, afinal, a principal preocupação do mercado. Para este autor, a criação de um currículo nacional, o estabelecimento de normas-padrão e a realização de testes também a nível nacional são condições prévias para que se possam implementar políticas de privatização e mercadorização da educação, representando, portanto, um compromisso ideal no âmbito da coligação da direita.

No terceiro capítulo, o autor esboça seu quadro teórico-sociológico fundado no pilar da regulação e no pilar da emancipação. Três autores constituem os alicerces de seu referencial: Claus Offe, Jürgen Habermas e Boaventura Souza Santos. É neste capítulo que o autor aponta a redefinição do papel do Estado e a revalorização da ideologia do mercado como dois vetores essenciais às mudanças. E finalmente, a expressão quase-mercados em educação de Roger Dale é reassumida pelo autor, para explicar a combinação da regulação do Estado e com os elementos de mercado com a finalidade de ampliar o controle sobre as escolas – principalmente pela introdução de um currículo nacional e exames nacionais.

No quarto capítulo, Almerindo Janela se dedica às reformas educacionais em Portugal, no período de 1985 a 1995. O capítulo se divide em três partes: a fragmentação das políticas educacionais e os dois momentos da reforma em Portugal, as contradições do Estado-providência e a Social Democracia e o discurso da qualidade na educação. Para ele o pensamento de Boaventura Santos sintetiza as principais características do Estado-providência, quando escreve em Portugal: um retrato singular (1993, p. 43-44):

O Estado-providência é a forma política dominante nos países centrais na fase de `capitalismo organizado', constituindo, por isso, parte integrante do modo de regulação fordista. Baseia-se em quatro elementos estruturais: um pacto entre o capital e o trabalho sob a égide do Estado, com o objetivo fundamental de compatibilizar capitalismo e democracia; uma relação constante, mesmo que tensa, entre acumulação e legitimação; um elevado nível de despesas em investimentos e consumos sociais; e uma estrutura administrativa consciente de que os direitos sociais são direitos dos cidadãos e não produtos da benevolência estatal. (citado na p. 138)

No quinto capítulo, o autor elege a avaliação pedagógica dos alunos do ensino básico como tema de análise nas políticas de educação em Portugal. Ganham destaque dois documentos, um da Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE) e outro o Despacho Normativo n. 98-A/92. Assim Almerindo Janela, no início do capítulo, sintetiza e qualifica este documento:

As tensões contraditórias implícitas neste texto regulador da avaliação pedagógica para o ensino básico, sobretudo depois das alterações a que foi sujeito, revelam, como procuraremos demonstrar, alguns avanços mas também alguns retrocessos importantes na construção da escola democrática no espaço temporal da reforma educativa.(p. 233)

O documento da Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE) centraliza a avaliação no aluno, conforme se pode verificar na transcrição dos princípios sugeridos:

• desempenhar uma função eminentemente formativa, constituindo um instrumento fundamental de um processo educativo personalizado;

• permitir despistar pontos de dificuldade e de facilidade de aprendizagem por parte do educando, em ordem a reajustamentos conseqüentes do processo de aprendizagem;

• auxiliar o educando no seu processo de aprendizagem e crescimento humano;

• permitir a identificação de deficiências e propiciar a implementação de melhorias nos planos de formação e nos programas educativos, numa perspectiva de avaliação contínua do próprio currículo;

• ser aberta e transparente, na base do diálogo formativo dos educadores com os educandos;

• possibilitar e mesmo promover a participação dos principais implicados no processo educativo;

• tanto quanto possível, ter caráter contínuo;

• facilitar a realização prática de uma educação ordenada para o sucesso, estruturando flexivelmente os programas de aprendizagem, a partir da definição clara de mínimos educativos essenciais. (CRSE, 1988, p.152-153, citado na p. 243)

O segundo documento analisado por Almerindo Janela traz algumas modificações, consideradas pelo autor como um retrocesso político:

[...] que só se pode compreender se for amplamente contextualizado, quer em relação a alguns vetores do debate nacional originado com a Lei de Bases do Sistema Educativo na Segunda metade dos anos oitenta, quer, sobretudo, em relação aos processos de recontextualização e assunção de certos valores politicamente conservadores e de inspiração neoliberal, gradualmente dominantes na sociedade portuguesa na viragem para os anos noventa. (p. 263)

No sexto capítulo, o autor procura incorporar em seu trabalho as opiniões de sindicatos, de partidos políticos, de especialistas do campo das ciências da educação, de líderes de opinião e de outros agentes e atores educativos. No ano letivo de 1993/94, o autor construiu um questionário tipo-Likert com 68 itens, aos quais os sujeitos eram convidados a se posicionar escolhendo uma das alternativas: concordo totalmente, concordo, indeciso, discordo e discordo totalmente. Dos quatrocentos professores convidados, apenas duzentos e oito responderam. Seleciono algumas respostas para se ter uma idéia dos resultados dos questionários.

• A avaliação pode ser um meio de o Estado garantir o controle sobre os produtos e resultados da educação – (item 8) com 70% de concordância;

• Somente a avaliação realizado por uma entidade exterior à escola pode permitir o controle da qualidade do ensino – (item 27) com 68% de discordância;

• Uma importante fonte de poder dos professores – (item 11) com 51% de discordância e 42% de concordância;

• A avaliação envolve não só aspectos técnicos, como também aspectos psicológicos, políticos, éticos e sociológicos – (item 67) com 81% de concordância;

• Os professores sabem que a avaliação está sujeita a valores e ideologia – (item 52) com 58% de concordância;

• A avaliação é uma atividade com implicações sociais e econômicas – (item 63) com 65% de concordância;

• Os professores sabem que a avaliação é um processo que não pode ser totalmente neutro ou objetivo – (item 66) com 78% de concordância.

Ao encerrar este capítulo, o autor menciona o resultado de onze entrevistas semi-estruturadas realizadas em duas escolas com professores, diretores, coordenadores num total superior a dez horas de gravação em áudio. Inúmeras falas ricas em informação e conteúdo estão relatadas nas notas do capítulo, mas o espaço deste texto não permite reproduzi-las.

Esta obra chega ao Brasil em boa hora, exatamente quando termina o primeiro ano de avaliação externa das escolas estaduais do Estado do Rio de Janeiro, avaliação vinculada a uma gratificação funcional diferenciada, dependendo do grau de classificação numa escala de 1 a 5. A avaliação das escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, realizada no ano passado pela Fundação Cesgranrio, de acordo com o decreto n.25.959 de 12 de janeiro de 2000, pelo qual fica instituído o Programa Nova Escola, Sistema Permanente de Avaliação das Escolas da Rede Pública Estadual de Educação reascendeu a polêmica entre os professores e funcionários e a Secretaria de Educação, que terceirizou o Programa Nova Escola com a finalidade de avaliar as escolas estaduais, vinculando a avaliação às gratificações, de acordo com as reformas educacionais promovidas pelos países capitalistas neoliberais.

A importância do estudo de Almerindo Janela pode ser vista sob dois aspectos. O primeiro é a possibilidade de desvendar os significados da avaliação educacional em suas múltiplas relações estabelecidas com a escola, com o Estado, com a sociedade e atualmente com o mercado. O segundo é a possibilidade de compreender melhor as reformas educacionais de países capitalista centrais.

Quanto ao primeiro aspecto, embora não seja um estudo pioneiro, já que retoma o caminho percorrido por outra socióloga da educação, Patrícia Broadfoot – autora de Assessment, schools and society, situa-se nas relações políticas, sociais e econômicas que a avaliação educacional estabelece na escola. De acordo com este estudo,

[...] os aspectos do desempenho dos alunos que as escolas escolhem para avaliar refletem muito claramente as funções requeridas de um sistema educativo específico. Pode argumentar-se que as práticas de avaliação constituem um dos mais claros indicadores da relação entre a escola e a sociedade, pois elas fornecem a comunicação entre as duas. (Patrícia Broadfoot, Assessment, schools and society, London: Methuen, 1979, p. 11)

A avaliação é do interesse do aluno, dos pais e da comunidade, porque tradicionalmente todo processo de aprendizagem pressupõe formas de aferição para garantir a confirmação dos conhecimentos que o aluno aprendeu e daqueles que não conseguiu compreender. A aprendizagem não é um processo individual e isolado, mas um processo coletivo, social e cultural. Só que agora o maior interesse na avaliação é dos governos no sentido de inserir a escola no mercado.

Ao significado pedagógico, existe outro que está sendo explorado na atualidade, que é o da avaliação como controle para os governos de países capitalistas. Os governos têm se utilizado mais recentemente de exames de massa para exercer o controle da adequação do nível educacional dos trabalhadores ao mercado. Este significado da avaliação– como controle da população pelos governos – é particularmente interessante, porque revela um procedimento já sugerido por Adam Smith em sua obra clássica A riqueza das nações, quando aconselhou os soberanos a não investirem em educação, mas na aplicação periódica de exames no povo.

O segundo aspecto que qualifica a obra de Almerindo Janela, na medida em que o leitor também se familiariza com numerosas obras de sociologia da educação citadas, é fazer compreender como a lógica das reformas educacionais dos países capitalistas de centro torna-se uma ideologia conservadora nos países periféricos. Uma reforma educacional para Inglaterra é um pacote ideológico e conservador para os países capitalistas periféricos da América Latina. Para nós, o processo de avaliação nas mãos de fundações privadas faz parte de um processo de terceirização e desmonte da escola pública, porque retira dos processos de trabalho profissional dos professores aquilo que é parte inerente ao trabalho docente, porque tenta desmobilizar as campanhas salariais, atrelando a avaliação da escola à baixa remuneração salarial, e finalmente a publicação destes resultados leva a opinião pública a creditar o fracasso da escola exclusivamente aos professores, encobrindo os compromissos constitucionais do Estado com a manutenção digna da escola pública.

Concluindo, resta apenas o convite ao leitor que deseja enfrentar o desafio de percorrer a bela trajetória percorrida por Almerindo Janela, que admite haver

[...] outros sentidos e outras leituras que este trabalho não foi capaz de descobrir ou de realizar e que, certamente, não são independentes dos limites, dilemas e fragilidades incorporados no seu desenvolvimento; ou então, talvez a investigação seja como a democracia – "a democracia é algo de incerto e improvável e nunca deve ser tida como garantida. É sempre uma conquista frágil, que precisa de ser defendida e aprofundada" (Chantal Mouffe, O regresso do político, Lisboa: Gradiva, 1996, p.17, citado na p. 335).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2001
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