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Vasculite reumatoide – Relato de caso Trabalho feito na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro – 4 a e 20a enfermarias – Serviço do Professor Milton dos Reis Arantes.

Resumo

A artrite reumatoide (AR) é uma doença crônica autoimune inflamatória sistêmica e sua principal manifestação é a sinovite persistente, que compromete articulações periféricas de forma simétrica. Apesar do seu potencial destrutivo, a evolução da AR é muito variável. Alguns pacientes podem ter apenas um processo de curta duração oligoarticular com lesão mínima, enquanto outros sofrem uma poliartrite progressiva e contínua e evoluem com acometimento de outros órgãos e sistemas, como pele, coração, pulmões, músculos e mais raramente vasos sanguíneos, que leva à vasculite reumatoide. O objetivo deste estudo foi descrever um caso de vasculite reumatoide, uma condição rara e grave.

Palavras-chave
Vasculite; Artrite reumatoide; Vasculite reumatoide

Abstract

Rheumatoid arthritis (RA) is a chronic systemic inflammatory autoimmune disease and its main manifestation is persistent synovitis affecting peripheral joints symmetrically, In spite of its destructive potential, the evolution of RA is highly variable. Some patients may have only a short-term process oligoarticular with minimum lesion, while others suffer a polyarthritis evolving with progressive and continuous involvement of other organ systems such as skin, heart, lungs, muscles and blood vessels rarely leading to rheumatoid vasculitis. The aim of this study was to describe a case of rheumatoid vasculitis a rare and severe condition.

Keywords
Vasculitis; Rheumatoid arthritis; Rheumatoid vasculitis

Introdução

As vasculites sistêmicas têm sido por muitos anos um desafio diagnóstico na área da clínica médica e da reumatologia. Entre essas está a vasculite reumatoide, uma complicação rara e grave da artrite reumatoide. A apresentação cutânea mais comum da vasculite reumatoide é o desenvolvimento de uma púrpura palpável em extremidades inferiores, que se não é tratada precocemente pode evoluir para uma vasculite sistêmica de múltiplos órgãos.11 Goldsmith LA, Katz SI, Gilchrest B, Leffell DJ, Wolff K. Fitzpatricks Dermatology General Medicine. 8 ed. New York: McGraw-Hill; 2012.

Relato de caso

Paciente do gênero feminino, 64 anos, não branca, portadora de AR, havia 25 anos sem tratamento, iniciou há cerca de seis anos edema no membro inferior esquerdo, eritema e nódulos duros que ulceraram na região lateral da perna com secreção serossanguinolenta em moderada quantidade. Foi tratada com múltiplos antibióticos tópicos e sistêmicos sem melhoria e evoluiu com aumento do tamanho da lesão até envolver os dois terços distais do membro inferior esquerdo em bota. Dois anos após, apresentou ulceração semelhante na perna direita, para a qual recebeu vários tratamentos tópicos, inespecíficos, sem boa resposta. Em função do comprometimento do seu estado geral e pioria das lesões, procurou unidade de pronto atendimento, onde foi avaliada e encaminhada para tratamento hospitalar. No ingresso no hospital, a paciente encontrava-se em regular estado geral, emagrecida, com astenia e anemia, referia rigidez articular matinal maior havia uma hora, apresentava desvio ulnar dos dedos das mãos simétricas com proeminências ósseas tanto nas articulações metacarpofalangeanas quanto nas interfalangeanas proximais (Fig. 1), acometimento de cotovelos e joelhos bilateral. Apresentava também lesões ulceradas de bordos rasos com secreção serossanguinolenta em moderada quantidade nos dois terços distais dos membros inferiores (Fig. 2).

Figura 1
Deformidades nas mãos. Desvio ulnar dos dedos das mãos com proeminências ósseas tanto nas articulações metacarpofalangeanas quanto nas interfalangeanas proximais secundários a artrite reumatoide.
Figura 2
Vasculite menos membros inferiores. Lesões vasculíticas ulceradas de bordos rasos com secreção serossanguinolenta em moderada quantidade nos dois terços distais dos membros inferiores secundária a artrite reumatoide.

Recebeu diagnóstico de AR soropositiva segundo critérios do American College of Rheumatology 1987 e preencheu mais de quatro (rigidez matinal, artrite de três ou mais áreas articulares, artrite das articulações das mãos, artrite simétrica e fator reumatoide positivo) e com uma pontuação maior do que 6 nos novos critérios classificatórios para a artrite reumatoide 2010 ACR/Eular (acometimento articular pontuação 5, sorologia pontuação 3, duração dos sintomas pontuação 1), índice de atividade da doença DAS28: 4,83 (moderada atividade), complicada com vasculite reumatoide, diagnóstico feito segundo avaliação clínica do serviço de reumatologia e foi tratada com metotrexate 15 mg semanais após antibioticoterapia sistêmica e tratamento tópico das úlceras, apresentou melhoria importante das lesões nos membros inferiores e do seu estado geral. Alta hospitalar para dar continuidade ao tratamento ambulatorialmente.

Exames laboratoriais

Hemograma: hemácias 3,81 milhões/mL; hemoglobina 7,8 g; hematócrito 24,6%; volume corpuscular médio 64,6 fL; hemoglobina corpuscular média 20,5 pg; concentração de hemoglobina corpuscular média 31,7 g/dL; índice de anisocitose 20,4%; leucócitos 2.950; segmentados 44%; linfócitos 39%; monócitos 8%; plaquetas 404 mil. Hematoscopia: hemácias microcíticas; hipocromia intensa; numerosas hemácias em alvo e raros eliptócitos e raros esquizócitos; presença de “rouleaux”; ferro sérico 29 mcg/dL (referência 60-160mcg/dL); índice de saturação de transferrina 18,13% (referência 20%-25%); velocidade de hemossedimentação 35 mm; creatinina 0,5 mg/dL; ureia 15 mg/dL; fator reumatoide 94 UI/mL (referência: até 20 UI/mL, método turbidimetria, repetido e confirmado); anticorpos anti-HIV 1-2 não reagentes; anti-HBSAg, reagente (193,6mUI/mL). Referência: não reagente menor do que 10 mUI/mL; HbsAg, não reagente; anti- HCV, não reagente. Ultrassonografia abdominal total: sem alterações, com baço de volume normal e textura homogênea.

Discussão

A artrite reumatoide é uma doença inflamatória crônica, relativamente comum, que afeta homens e mulheres de todas as idades e está presente em todo o mundo. Afeta 0,3% a 2,1% da população mundial, porém em algumas populações, como a população negra do Caribe e da África subsaariana rural, a doença é menos incidente e menos grave.22 Fauci AS, Braunwald E, Kasper DL, Hauser SL, Longo DL, Jameson JL, Loscalzo J. Harrison's Principles of Internal Medicine. 17 ed. New York: McGraw-Hill; 2008. No Brasil, estima-se que existam cerca de 1.300.000 pessoas acometidas, é mais comum na faixa de 30 a 50 anos, acomete mais mulheres do que homens, numa proporção 3:1.33 Henrique da Mota LM, Cruz BA, Brenol CV, Pereira IA, Rezende LS, Bertolo MB, et al. 2011 Consensus of the Brazilian Society of Rheumatology for diagnosis and early assessment of rheumatoid arthritis. Rev Bras Reumatol.. 2011;51:199-219. Sua apresentação clínica é caracterizada pelo envolvimento das articulações, em um processo insidioso que frequentemente resulta em deformidades. No entanto, é importante reconhecer que a AR é uma doença sistêmica e que, portanto, além das manifestações articulares, vários órgãos e sistemas específicos podem ser acometidos, o que torna possível o surgimento de diversas manifestações extra-articulares.44 Mclnnes IB, Schett G. The pathogenesis of rheumatoid arthritis. N Engl J Med. 2011;365:2205-19. Essas manifestações são geralmente observadas em indivíduos que têm altos títulos de fator reumatoide e anti-CCP.55 Mongan ES, Cass RM, Jacox RF, Vaughen JH. A study of the relation of seronegative and seropositive rheumatoid arthritis to each other and to necrotizing vasculitis. Am J Med. (Rochester, New York). 1969;47:23-35. Em nossa doente títulos de fator reumatoide de 94UI/mL (limite de referência até 20UI/mL), maior do que três vezes o limite superior da normalidade.

Vasculite reumatoide é uma forma de apresentação cutânea com uma incidência anual de 12,5 pacientes/1.000.000, acomete tipicamente pequenos e médios vasos, com neuropatia periférica associada (muito frequentemente motora), gangrena digital, infartos de leito ungueal e púrpura palpável.66 Staub HL. Immune vasculitis – Diagnosis and differential diagnosis. Themes Rheumatology Clinic. 2008. Available from: http://www.cerir.org.br/pdf/Vasculites.pdf [acessado em junho de 2008].
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O espectro das lesões clínicas reportadas na vasculite reumatoide é amplo e varia com o tamanho e a localização dos vasos acometidos e com a extensão da doença.77 Barteis CM, Bridges AJ. Rheumatoid vasculitis: vanishing menace or target for new treatments. Curr Rheumatol Rep. 2010. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2950222/pdf/nihms-230357.pdf [acessado em 1 de março de 2011].
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Trata-se de uma complicação rara e grave que deve ter diagnóstico precoce, haja vista a grande interferência na evolução, no tratamento e no prognóstico da doença de base.

Em nossa doente não foi feito exame anatomopatológico (biópsia). Por ser um exame não facilmente acessível na instituição, o diagnóstico foi feito baseado no quadro clínico e na experiência do serviço de reumatologia do hospital.

Em função da presença de neutropenia, investigamos a possibilidade de síndrome de Felty (artrite reumatoide, neutropenia e esplenomegalia). No entanto, a paciente não tinha sinais de esplenomegalia no exame físico nem no ultrassom abdominal e essa hipótese foi afastada.

A paciente apresentou uma anemia microcítica, hipocrômica, com níveis de ferro baixos e RDW alto, índice de saturação de transferrina baixo compatível com anemia por deficiência de ferro, associada à baixa ingestão de alimentos específicos, segundo recordatório alimentar, associada à anemia da doença crônica.

Um dos aspectos que tornam particularmente interessante este caso é o fato de essa doença ter evoluído por muitos anos sem nenhum tipo de tratamento nem para a doença de base (artrite reumatoide) nem para a vasculite, o que destaca a importância do adequado diagnóstico e tratamento precoce da doença.

Conclusão

Apesar de ser uma condição rara, é importante estar atento ao desenvolvimento da vasculite reumatoide no curso clínico da artrite reumatóide, para que o tratamento apropriado possa ser rapidamente instituído e se evite a progressão das lesões e possíveis complicações associadas.

  • Trabalho feito na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro – 4 a e 20a enfermarias – Serviço do Professor Milton dos Reis Arantes.

Referências

  • 1
    Goldsmith LA, Katz SI, Gilchrest B, Leffell DJ, Wolff K. Fitzpatricks Dermatology General Medicine. 8 ed. New York: McGraw-Hill; 2012.
  • 2
    Fauci AS, Braunwald E, Kasper DL, Hauser SL, Longo DL, Jameson JL, Loscalzo J. Harrison's Principles of Internal Medicine. 17 ed. New York: McGraw-Hill; 2008.
  • 3
    Henrique da Mota LM, Cruz BA, Brenol CV, Pereira IA, Rezende LS, Bertolo MB, et al. 2011 Consensus of the Brazilian Society of Rheumatology for diagnosis and early assessment of rheumatoid arthritis. Rev Bras Reumatol.. 2011;51:199-219.
  • 4
    Mclnnes IB, Schett G. The pathogenesis of rheumatoid arthritis. N Engl J Med. 2011;365:2205-19.
  • 5
    Mongan ES, Cass RM, Jacox RF, Vaughen JH. A study of the relation of seronegative and seropositive rheumatoid arthritis to each other and to necrotizing vasculitis. Am J Med. (Rochester, New York). 1969;47:23-35.
  • 6
    Staub HL. Immune vasculitis – Diagnosis and differential diagnosis. Themes Rheumatology Clinic. 2008. Available from: http://www.cerir.org.br/pdf/Vasculites.pdf [acessado em junho de 2008].
    » http://www.cerir.org.br/pdf/Vasculites.pdf
  • 7
    Barteis CM, Bridges AJ. Rheumatoid vasculitis: vanishing menace or target for new treatments. Curr Rheumatol Rep. 2010. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2950222/pdf/nihms-230357.pdf [acessado em 1 de março de 2011].
    » http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2950222/pdf/nihms-230357.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2013
  • Aceito
    18 Jul 2014
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