Acessibilidade / Reportar erro

Coreia: uma manifestação rara da arterite de Takayasu

RESUMO

Relatamos um caso de uma menina com coreia recorrente e diagnóstico de arterite de Takayasu. Esta manifestação clínica foi relatada em apenas um paciente com tal vasculite na faixa etária pediátrica.

Palavras-chave:
Vasculite; Arterite de Takayasu; Coreia; Sintomas neurológicos; Criança

ABSTRACT

The case of a girl with recurring chorea and a Takayasu's arteritis diagnosis is reported. This clinical manifestation has been reported in only one patient with this vasculitis in the pediatric group.

Keywords:
Vasculitis; Takayasu's arteritis; Chorea; Neurologic symptoms; Child

Introdução

A arterite de Takayasu (AT) é uma doença inflamatória crônica de origem desconhecida, que afeta a artéria aorta, e seus maiores ramos, e a artéria pulmonar.11 Hotchi M. Pathological studies on Takayasu's arteritis. Rheumatology. 2002;41:103-6 É uma doença rara, particularmente na infância, a qual corresponde a 20% dos casos.22 Kerr CS, Hallahan CW, Giordano J, Leavitt RY, Fauci AS, Rottem M, et al. Takayasu's arteritis. Ann Intern Med. 1994;120:919-9 Nessa faixa etária os sintomas são insidiosos e as manifestações sistêmicas, como febre, perda de peso e sintomas musculoesqueléticos predominam no início da doença, o que contribui para maior atraso diagnóstico nos pacientes mais jovens.33 Cakar N, Yalcinkaya F, Duzova A, Caliskan S, Sirin A, Oner A, et al. Takayasu arteritis in children. J Rheumatol. 2008;35:913-9,44 Ozen S, Bakkaloglu A, Dusunsel R, Soylemezoglu O, Ozaltin F, Poyrazoglu H, et al., Turkish Pediatric Vasculitis Study Group. Childhood vasculitides in Turkey: a nationwide survey. Clin Rheumatol. 2007;26:196-200

A hipertensão arterial é o principal achado clínico da doença na infância e outros achados incluem sopro vascular, diminuição ou ausência de pulsos, diferença de pressão arterial entre os membros, insuficiência cardíaca e claudicação.44 Ozen S, Bakkaloglu A, Dusunsel R, Soylemezoglu O, Ozaltin F, Poyrazoglu H, et al., Turkish Pediatric Vasculitis Study Group. Childhood vasculitides in Turkey: a nationwide survey. Clin Rheumatol. 2007;26:196-200,55 Hong CY, Yung YS, Choi JY, Sul JH, Lee KS, Cha SH, et al. Takayasu arteritis in Korean children: clinical report of seventy cases. Heart Vessels. 1992;7:91-6 Manifestações do Sistema Nervoso Central (SNC) são comuns na faixa etária pediátrica e podem incluir cefaleia, tontura, síncope, perda visual, convulsão e acidente vascular encefálico.22 Kerr CS, Hallahan CW, Giordano J, Leavitt RY, Fauci AS, Rottem M, et al. Takayasu's arteritis. Ann Intern Med. 1994;120:919-9,33 Cakar N, Yalcinkaya F, Duzova A, Caliskan S, Sirin A, Oner A, et al. Takayasu arteritis in children. J Rheumatol. 2008;35:913-9,66 Castellanos AZ, Campos LA, Liphaus BL, Marino JC, Kiss MHB, Silva CA. Arteritis de Takayasu. An Pediatr. 2003;58:211-6

Muitos trabalhos evidenciam associação de coreia com doenças reumáticas autoimunes, como febre reumática, lúpus eritematoso sistêmico e síndrome do anticorpo antifosfolípide.77 Demiroren K, Yavuz H, Cam L, Oran B, Karaaslan S, Demiroren S. Sydenham's chorea: a clinical follow-up of 65 patients. J Child Neurol. 2007;22:550-41010 Wild EJ, Tabrizi SJ. The differential diagnosis of chorea. Pract Neurol. 2007;7:360-73 Há também relatos da associação de coreia com doença de Behçet e com síndrome de Churg-Strauss.1111 Joseph FG, Scolding NJ. Neuro-Behçet's disease in Caucasians: a study of 22 patients. Euro Neurol. 2007;14:174-80,1212 Twardowsky AO, Paz JA, Pastorino AC, Jacob CMA, Marques-Dias MJ, Silva CAA. Chorea in a child with Churg-Strauss syndrome. Acta Rheumatol Port. 2010;35:72-5 Porém há apenas um caso descrito de coreia em uma criança com arterite de Takayasu.1313 Katsicas M, Pompozi L, Russo R. Grupo para la atención y estúdio de accidentes cerebrovasculares. Arch Argent Pediatr. 2012;110:251-5

Devido à raridade da doença e ao relato de apenas um caso de coreia em pacientes com essa vasculite na faixa etária pediátrica, descrevemos o caso de uma criança com AT com manifestação de coreia no início e na evolução da doença.

Descrição do caso

Menina de 10 anos iniciou um quadro de dor em mãos e em membros inferiores diariamente desde os quatro anos de idade. A dor era preferencialmente no final da tarde, piorava com o frio e exercício e melhorava com o repouso. Negava edema e febre. Após dois anos do início do quadro, mantendo o quadro de dor, a paciente iniciou movimentos involuntários em dimídio esquerdo, que pioravam com o estresse e melhoravam durante o sono. Foi feito o diagnóstico de coreia de causa e desconhecida pelo neurologista, que prescreveu haloperidol (0,5 mg/dia), com melhora do quadro após uma semana de uso da medicação. A ressonância magnética de crânio era normal e o eletroencefalograma evidenciava atividade paroxística temporal posterior e occipital direita.

Permaneceu assintomática até que dois anos depois, iniciou cefaleia diária e hipertensão arterial, quando foi encaminhada para o cardiologista. Foi observada diferença de pressão arterial entre os membros superiores, pressão arterial inaudível em membros inferiores, além de ausência dos pulsos femoral, poplíteo, pedioso e tibial posterior. Foi submetida à angiografia que mostrou coarctação grave de aorta torácica descendente. O ecocardiograma evidenciou refluxo tricúspide de grau discreto. Foi prescrito captopril e propranolol, e a paciente foi encaminhada para a reumatologia pediátrica com hipótese diagnóstica de febre reumática ou AT. Na primeira consulta no ambulatório de reumatologia pediátrica, os exames laboratoriais mostravam aumento discreto de provas inflamatórias (velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa), e ausência de anticorpo antinuclear, anti-DNA, anticorpos contra antígenos nucleares extraíveis, anticardiolipina, e anticorpos anticitoplasma de neutrófilos. Foi feito o diagnóstico de AT e introduzido metotrexato 0,6 mg/kg/semana, ácido fólico, amlodipina e ácido acetilsalicílico em dose antiagregante. Realizada pulsoterapia com metilprednisolona (30 mg/kg, 3 doses) e mantidos captopril, propranolol e haloperidol. Após um mês de evolução reiniciou com coreia, sendo iniciada profilaxia com penicilina benzatina (1.200.000UI, IM, a cada 21 dias). Após seis meses iniciou artrite em tornozelo, joelho e punho direitos, claudicação e cefaleia. Nessa época realizou ultrassonografia com Doppler renal que evidenciou estenose maior que 50% em aorta abdominal suprarrenal e menor que 50% abaixo da emergência das artérias renais. A angiorressonância evidenciou afilamento da aorta infrarrenal e das artérias ilíacas comuns. Devido ao acometimento vascular importante, foi iniciada ciclofosfamida e mantida metilprednisolona na forma de pulsoterapia. Após um mês foi suspenso o haloperidol, devido à ausência de sintomas neurológicos (havia usado por dois anos e meio). No quarto ciclo de ciclofosfamida, três meses após a suspensão do haloperidol, reiniciou a coreia pela terceira vez, sendo reintroduzido o haloperidol (1 mg/dia).

Atualmente a paciente mantém embaçamento visual, artralgia em tornozelos, claudicação a longas distâncias e dispneia aos grandes esforços. A pressão arterial está controlada (em uso de três anti-hipertensivos) e apresentou melhora discreta da amplitude de pulsos de membros inferiores. Após oito meses de tratamento para a coreia, o neurologista suspendeu o haloperidol e já não apresenta coreia há um ano desde a última recorrência. As provas de atividade inflamatória se normalizaram. Realizou novo ecocardiograma que evidenciou coarctação segmentar de porção inferior de arco aórtico, com repercussão hemodinâmica e hipertrofia ventricular esquerda concêntrica de grau discreto. Após sete pulsos com ciclofosfamida (1 g/m2/dose) a paciente mantinha as queixas e a angiorressonância de crânio mostrou estenose da artéria carótida interna. Diante disso optamos por iniciar infliximabe (5 mg/kg/dose). Devido ao quadro sugestivo de coreia associada à arterite de Takayasu optamos por suspender a profilaxia com penicilina benzatina. Atualmente está em uso de metotrexato, ácido fólico, amlodipina, captopril, propranolol, ácido acetilssalicílico, ranitidina e infliximabe. Está clinicamente melhor, em uso do infliximabe há oito meses, ainda com dispneia aos esforços, mas apresentando melhora da artralgia e do embaçamento visual.

Discussão

Relatamos o caso de uma menina de 10 anos com episódios recorrentes de coreia associada à hipertensão arterial, diminuição de pulsos periféricos e angiografia compatível com AT. Foram afastadas outras causas reumáticas e não reumáticas de coreia.

A paciente preencheu os critérios de classificação validados para AT na infância,1414 Ozen S, Pistorio A, Iusan SM, Bakkaloglu A, Herlin T, Brik R, et al. EULAR/PRINTO/PRES criteria for Henoch-Schoenlein purpura, childhood polyarteritis nodosa, childhood Wegener granulomatosis and childhood Takayasu's arteritis: Ankara 2008 Part II: Final classification criteria. Ann Rheum Dis. 2010;69:798-806 que incluíram alteração angiográfica associada à hipertensão arterial, diferença de pressão arterial entre os membros, diminuição de pulsos periféricos e claudicação. Optou-se por iniciar profilaxia com penicilina benzatina devido à causa mais frequente de coreia na criança ainda ser a febre reumática,1515 Cardoso F. Sydenham's Chorea. Handb Clin Neurol. 2011;100:221-229 embora a paciente não preenchesse os critérios para a doença. A menor apresentou mais dois episódios de coreia na evolução, sendo uma das recorrências em uso do haloperidol e a outra em uso regular da profilaxia secundária com penicilina benzatina, questionando-se o diagnóstico de febre reumática.

A coreia apresentada pela paciente foi unilateral, de dimídio esquerdo, e recorrente. Esta manifestação só cessou após o tratamento prolongado com imunossupressor. Na ocasião foram investigadas outras causas de coreia. Realizou-se ressonância magnética de crânio e eletroencefalograma que foram compatíveis com a normalidade, sendo afastadas outras causas neurológicas. A tireotoxicose, que também é uma causa de coreia, foi excluída. A ausência de anticorpo antinuclear e de anticorpos antifosfolípides afastaram os diagnósticos de lúpus eritematoso sistêmico e síndrome do anticorpo antifosfolípide, como possíveis causas da coreia. A paciente também não apresentava manifestações clínicas compatíveis com outras vasculites primárias, como doença de Behçet ou poliarterite nodosa. O diagnóstico diferencial mais importante foi a febre reumática, porém essa hipótese é pouco provável pela ausência de outros critérios maiores como cardite ou artrite no início do quadro, pela recorrência na vigência de profilaxia com penicilina benzatina e pela melhora com o tratamento contínuo com imunossupressor. As manifestações constitucionais e os sinais inespecíficos de fase aguda podem ser comuns à febre reumática e à arterite de Takayasu, entretanto os sinais específicos como redução de pulsos periféricos, hipertensão arterial e diferença de PA entre os membros superiores além da documentação por imagem do acometimento da aorta e seus ramos levaram ao diagnóstico de arterite de Takayasu. Adicionalmente a paciente encontra-se há 18 meses sem profilaxia para estreptococcia e sem novos episódios de coreia. No estudo multicêntrico brasileiro realizado com 71 crianças e adolescentes com arterite de Takayasu publicado este ano, mais de 70% dos pacientes apresentaram sintomas neurológicos no início da doença1616 Clemente G, Hilario MO, Lederman H, Silva CA, Sallum AM, Campos LM, et al. Takayasu arteritis in a Brazilian multicenter study: Children with a longer diagnosis delay than adolescents. Clin Exp Rheumatol. 2014;32 3 Suppl 82:128-33. Estes foram representados por cefaleia, convulsão, lipotímia e acidente vascular encefálico. Não houve descrição de coreia, exceto a da paciente relatada neste artigo.

Foi recentemente publicado em língua espanhola um caso de uma criança com AT que apresentou um quadro de hemicoreia.1313 Katsicas M, Pompozi L, Russo R. Grupo para la atención y estúdio de accidentes cerebrovasculares. Arch Argent Pediatr. 2012;110:251-5 Não foram publicados outros relatos até o momento.

É possível que anticorpos contra núcleos da base, além da presença de linfócitos T levando a resposta imunológica celular alterada, possam explicar a ocorrência dessa manifestação rara. Além disso, o acometimento de vasos intracranianos poderia levar à hipoperfusão de áreas cerebrais, em especial de núcleos da base, e consequentemente ao aparecimento da coreia.

Queremos com este caso chamar a atenção para uma manifestação rara da AT. O médico deve ficar em alerta com manifestações atípicas da doença, para que o diagnóstico e o tratamento não sejam retardados.

Referências

  • 1
    Hotchi M. Pathological studies on Takayasu's arteritis. Rheumatology. 2002;41:103-6
  • 2
    Kerr CS, Hallahan CW, Giordano J, Leavitt RY, Fauci AS, Rottem M, et al. Takayasu's arteritis. Ann Intern Med. 1994;120:919-9
  • 3
    Cakar N, Yalcinkaya F, Duzova A, Caliskan S, Sirin A, Oner A, et al. Takayasu arteritis in children. J Rheumatol. 2008;35:913-9
  • 4
    Ozen S, Bakkaloglu A, Dusunsel R, Soylemezoglu O, Ozaltin F, Poyrazoglu H, et al., Turkish Pediatric Vasculitis Study Group. Childhood vasculitides in Turkey: a nationwide survey. Clin Rheumatol. 2007;26:196-200
  • 5
    Hong CY, Yung YS, Choi JY, Sul JH, Lee KS, Cha SH, et al. Takayasu arteritis in Korean children: clinical report of seventy cases. Heart Vessels. 1992;7:91-6
  • 6
    Castellanos AZ, Campos LA, Liphaus BL, Marino JC, Kiss MHB, Silva CA. Arteritis de Takayasu. An Pediatr. 2003;58:211-6
  • 7
    Demiroren K, Yavuz H, Cam L, Oran B, Karaaslan S, Demiroren S. Sydenham's chorea: a clinical follow-up of 65 patients. J Child Neurol. 2007;22:550-4
  • 8
    Baizabal-Carvallo JF, Alonso-Juarez M, Koslowski M. Chorea in systemic lupus erythematosus. J Clin Rheumatol. 2011;17:69-72
  • 9
    Rodrigues CE, Carvalho JF, Shoenfeld Y. Neurological manifestations of antiphospholipid syndrome. Eur J Clin Invest. 2010;40:350-9
  • 10
    Wild EJ, Tabrizi SJ. The differential diagnosis of chorea. Pract Neurol. 2007;7:360-73
  • 11
    Joseph FG, Scolding NJ. Neuro-Behçet's disease in Caucasians: a study of 22 patients. Euro Neurol. 2007;14:174-80
  • 12
    Twardowsky AO, Paz JA, Pastorino AC, Jacob CMA, Marques-Dias MJ, Silva CAA. Chorea in a child with Churg-Strauss syndrome. Acta Rheumatol Port. 2010;35:72-5
  • 13
    Katsicas M, Pompozi L, Russo R. Grupo para la atención y estúdio de accidentes cerebrovasculares. Arch Argent Pediatr. 2012;110:251-5
  • 14
    Ozen S, Pistorio A, Iusan SM, Bakkaloglu A, Herlin T, Brik R, et al. EULAR/PRINTO/PRES criteria for Henoch-Schoenlein purpura, childhood polyarteritis nodosa, childhood Wegener granulomatosis and childhood Takayasu's arteritis: Ankara 2008 Part II: Final classification criteria. Ann Rheum Dis. 2010;69:798-806
  • 15
    Cardoso F. Sydenham's Chorea. Handb Clin Neurol. 2011;100:221-229
  • 16
    Clemente G, Hilario MO, Lederman H, Silva CA, Sallum AM, Campos LM, et al. Takayasu arteritis in a Brazilian multicenter study: Children with a longer diagnosis delay than adolescents. Clin Exp Rheumatol. 2014;32 3 Suppl 82:128-33

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    4 Abr 2013
  • Aceito
    16 Set 2013
Sociedade Brasileira de Reumatologia Av Brigadeiro Luiz Antonio, 2466 - Cj 93., 01402-000 São Paulo - SP, Tel./Fax: 55 11 3289 7165 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: sbre@terra.com.br