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FRANCHETTO, Bruna & BALYKOVA, Kristina (orgs.). 2020. Índio não fala só tupi: uma viagem pelas línguas dos povos originários no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras. 249 pp.

FRANCHETTO, Bruna; BALYKOVA, Kristina. (orgs.). 2020. Índio não fala só tupi: uma viagem pelas línguas dos povos originários no Brasil . Rio de Janeiro: 7Letras. 249 pp.

O Brasil, esta nação que habitamos e que se diz “moderna”, foi constituído através da violência da colonização e da escravização de indígenas e de populações trazidas à força do continente africano. Ainda que certos setores se esforcem desde sempre, mas com uma pressão recentemente mais assustadora desde o resultado das eleições de 2018, a negá-lo, este é um fato reconhecido de maneira mais ou menos consensual pela historiografia brasileira. Acostumamo-nos à formação colonizatória e escravocrata deste país.

No entanto, o reconhecimento da violência que se desenvolveu e ainda se desenvolve ao longo dos últimos quinhentos anos não impediu que as populações atingidas fossem invisibilizadas. De fato, diante de uma nação que tem como exemplo de heroismo bandeirantes e como língua oficial única o português, as populações originárias deste território acabaram submergidas em uma massa anônima de vítimas idealizadas, os “índios”. Não é à toa, aliás, que o Estatuto do Índio ainda reconheça as populações originárias como “relativamente incapazes”, com diferentes graus de “integração à sociedade”, e que suas tentativas de reforma se encontrem paralisadas há mais de duas décadas. Na Educação Básica, e a despeito da Lei nº 11.741/2008, que inclui o ensino de história e as manifestações culturais indígenas no currículo escolar, “índio” é normalmente apenas aquela figurinha simpática, de cara pintada e cocar de plumas, que enfeita as escolas em sua suposta data comemorativa, o tal “Dia do Índio”.

Não é surpeendente, tampouco, que a imagem da vítima idealizada caminhe lado a lado com a destruição constante e real de quaisquer maneiras de viver dessas populações que as afastem da imagem de vítimas idealizadas. No carrossel das atrocidades que foram cometidas na constituição deste país, as políticas do governo Bolsonaro, que incluem incentivo ao garimpo e à grilagem e ataque à demarcação de terras indígenas, são apenas o capítulo mais recente.

A frase “Índio não fala só tupi”, portanto, e como as próprias autoras e organizadoras Bruna Franchetto e Kristina Balykova defendem no prefácio do livro homônimo, não é ao acaso ou uma simples ironia. Intermediados por um “não” categórico, deparamo-nos, desde a capa, com dois sensos comuns que precisam ser desmontados e destruídos: o tal do “índio”, e o tal do “tupi”. E que são, capítulo a capítulo, página a página, complexificados, matizados, abertos e redefinidos.

Por meio do cuidadoso equilíbrio entre a universalidade da linguagem humana e as particularidades de cada idioma, descobrimos um território brasileiro riquíssimo em diversidade linguística, ainda que normalmente escondida pelo monolinguismo formal do português e a imagem vaga e difusa de uma tal língua tupi. Encontramos troncos e famílias linguísticas, línguas isoladas e regiões - como o estado de Rondônia, o Alto Xingu e o Alto Rio Negro - em que as populações indígenas são verdadeiras poliglotas, enredadas em intrincadas relações entre diferentes tradições e línguas - muitas vezes tão diferentes entre si quanto, por exemplo, o português e o alemão ou o turco.

Cada um dos vinte capítulos, escritos por linguistas de primeira linha, concentra-se na apresentação de uma língua indígena em específico e de alguns níveis de possível estudo e pesquisa. Descobrimos como a língua hup mobiliza nomes de partes de plantas para classificar alguns de seus substantivos, como a língua terena usa partes do corpo para suas metáforas espaciais e o repertório de posposições espaciais do tiriyó. O yawanawa nos abre um leque de marcações e distinções do tempo passado através de sufixos em seus verbos, e o kuikuro nos revela a riqueza morfológica de uma língua aglutinativa e seus processos de formação de nomes e verbos. Entramos em contato com a forma como o kadiwéu classifica seus substantivos sem recorrer a artigos, e o tupari nos mostra como o gênero de seus falantes é marcado morfologicamente em seus enunciados. Descreve-se como a língua wari’ ordena seus predicados de forma distinta do português e, na comparação do antigo tupinambá com o atual guarani-mbya, encontramos o fenômeno da incorporação de objetos diretos pelos seus verbos.

O sanöma, da família yanomami, nos introduz ao fenômeno dos marcadores evidenciais das línguas humanas, e conhecemos uma rica codificação de movimentos e descrições espaciais possíveis na língua kotiria e suas narrativas, assim como as transformações morfológicas para indicar falas de personagens e espaços em narrativas karajá. O kwazá e o trumai ainda nos abrem reflexões sobre o que são línguas isoladas e seus lugares no processo de colonização do Brasil. Tesouros e mais tesouros linguísticos que nos ajudam a compor uma imagem mais ampla das possibilidades comunicativas e cognitivas das populações humanas e que, ao mesmo tempo, nos afastam de qualquer tipo de exotização dessas mesmas línguas e seus falantes - ao contrário, aproximam-nos, enquanto humanos, bichos falantes, por meio de nossas diferenças e daquilo que podemos aprender com elas. Entre o sublinhar da diferença e a explicitação do comum, Índio não fala só tupiFRANCHETTO, Bruna & BALYKOVA, Kristina (orgs.). 2020. Índio não fala só tupi: uma viagem pelas línguas dos povos originários no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras. 249 pp. nos convida a pensar a universalidade da linguagem humana como um campo multitonal de conhecimentos, narrativas, poéticas, paralelismos, intencionalidades, transformações e ritmos, cujo maior valor é sua própria variação.

O panorama que Índio não fala só tupi nos apresenta não se limita tampouco a um retrato de línguas pertencentes a nove famílias - além de duas isoladas - dentre as existentes hoje no território brasileiro: ramifica-se também ao longo das histórias que o compõem e alimenta-se delas. Conhecemos, por exemplo, um pouco mais de perto uma língua crioula, o khéuol, e a maneira como - índice de resiliência! - foi formada em meio às condições mais violentas e adversas da escravização colonial. Encontramos também a antiga candidata à língua nacional, a língua geral, e descobrimos como ela termina sendo marginalizada e quase apagada pelo português. Seu último capítulo ainda nos leva a uma reflexão sobre as estratégias de diferentes línguas indígenas para produzir e expressar quantidades e medidas e o que podemos aprender, dessa comparação, sobre nossa capacidade humana para operações algébricas e lógicas.

A linguagem e o estilo com os quais as pesquisas são apresentadas permitem que o leitor comum, não especialista, construa um panorama das possibilidades dos estudos linguísticos em diferentes níveis e seus cruzamentos: fonológico, histórico, morfossintático, semântico, pragmático... Este é, afinal, e até certo ponto, um livro de linguística. Mas um livro que demonstra que o conhecimento linguístico pode ser claro, acessível e participante de um debate político e social mais amplo. Os capítulos são curtos e não pretendem exaurir todas as dimensões das línguas que abordam; pelo contrário, através da didática comparativa com elementos da língua portuguesa - o idioma materno que muitos de suas leitoras e seus leitores conhecem de maneira intuitiva - Índio não fala só tupi é capaz de atravessar uma ponte normalmente difícil: aquela entre a pesquisa acadêmica e o cotidiano de pessoas que não necessariamente estão inseridas em universidades. E faz isso sem que a simplificação do assunto signifique perda de qualidade das informações e reflexões envolvidas.

De fato, mais do que apresentar uma linguística para não linguistas, este livro marca uma posição bem definida e situada: a de que a produção de conhecimento acadêmico pode - e deve! - estar a serviço das pessoas mais diretamente envolvidas com esse conhecimento: neste caso, as próprias populações que falam as línguas apresentadas. O resultado desse movimento não é apenas a implosão do idioma-fantasma “tupi” em uma constelação de línguas, com suas próprias belezas e poéticas, além de semelhanças e ramificações, mas também a da imagem do “índio”, abrindo espaço para a emergência de populações com histórias, teorias, falas, práticas, interesses e sonhos diversos e variados.

Sim, Índio não fala só tupi é, realmente, um livro de linguística. Mas uma linguística viva, constantemente atravessada pela experiência de pessoas - e a despeito dos esforços desta nação brasileira - ainda vivas.

Referência

  • FRANCHETTO, Bruna & BALYKOVA, Kristina (orgs.). 2020. Índio não fala só tupi: uma viagem pelas línguas dos povos originários no Brasil Rio de Janeiro: 7Letras. 249 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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