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GASTÓN, R. Gordillo. 2014. Rubble: The Afterlife of Destruction. Durham, NC: Duke University Press. 336 pp.

GASTÓN, R. Gordillo. . 2014. Rubble: The Afterlife of Destruction . Durham, NC: Duke University Press. 336 pp.

O livro do antropólogo argentino Gordillo Gastón tem como questão central a problematização do termo ruínas em seus sentidos múltiplos, tomando uma variedade de usos e funções sociais de forma a entendê-lo pelo viés contextual em escala local e global. Tanto que, por isso, a obra se denomina RubbleGASTÓN, R. Gordillo. 2014. Rubble: The Afterlife of Destruction. Durham, NC: Duke University Press. 336 pp., de forma a ter como protagonista os aspectos polissêmicos do termo. O autor parte da análise espacial de um ambiente considerado marginal geograficamente - e tratado socialmente como espaço em desenvolvimento - onde a expansão da agricultura industrializada vislumbra unicamente a maximização dos lucros e, portanto, o aniquilamento de qualquer obstáculo que, por ventura, se oponha a este modelo de economia capitalista. Assim, a pergunta que perpassa os capítulos de sua obra poderia ser: qual a interferência das ruínas no desenvolvimento do capitalismo selvagem?

Gastón Gordillo, professor de Antropologia na University of British Columbia, notoriamente vinculado a outra obra intitulada Landscapes of Devils: Tensions of Place and Memory in the Argentinean Chaco (2004), traz à tona na obra Rubble as múltiplas histórias, os olhares e as conotações sobre as várias ruínas que até então permaneciam escondidas diante dos novos significados e utilidades do espaço em estudo. Esta é, pois, uma obra resultado de mais de uma década de pesquisas no nordeste da Argentina, no local especificamente chamado de Gran Chaco, sendo marcada pelo trabalho de campo com profunda experiência etnográfica e pesquisa documental. Em campo, o autor é confrontado pela realidade de que os seus nativos não utilizavam a nomenclatura ruína para se referirem aos seus monumentos degradados, de modo que Gordillo estabelece um entendimento mútuo dentro da realidade cotidiana dos seus interlocutores utilizando seus próprios termos, como muros velhos ou pilhas de tijolos antigos. Expressões muito distintas são dadas para as mesmas coisas por visitantes de classe média argentina que poderiam chamá-las de escombro (“rubble”).

Neste sentido, o autor argumenta que a discriminação artificial existente entre o que se constituiriam como ruínas e os escombros precisa ser esclarecida para efetivamente mobilizar o patrimônio material como uma ferramenta analítica nos estudos culturais, em sua própria ontologia, o que é crítico para a indústria cultural do patrimônio contemporâneo. Assim, as ruínas do próprio Chaco e as narrativas que são e não são produzidas sobre elas se tornam guias do autor para a compreensão da forma de interpretação do espaço social contemporâneo e, mais importante, para o entendimento de como foram destruídas formas anteriores desse espaço social.

O autor acaba por ressaltar a utilização da palavra escombro, pois esta seria uma noção capaz e mais incisiva de descrever as estratigrafias de experiências sobre o território e os seus bens culturais, que incluem os palimpsestos da história, os processos memorialísticos e os usos da paisagem. Destarte, a necessidade da construção e a atribuição das nomenclaturas escombro e ruínas funcionam como diacríticos que permitem discutir a materialidade da história, vinculada à política, à economia e às identidades, além de estabelecer um diálogo teórico entre produção e destruição, no qual a violência simbólica e física se torna uma vivência que articula a própria narrativa da obra.

Estruturalmente, o livro possui sessões temáticas expressas em quatro partes, sendo ainda subdivido em dez capítulos. A primeira parte apresenta a história da conquista do Chaco e da paisagem social da fronteira historicamente ocupada pelos índios do sudeste de Salta. Os espanhóis encontraram forte resistência dos povos indígenas nessa região, tendo ocorrido já no século XVI as primeiras explosões de violência que resultaram na colonização europeia local. Gordillo explora a complicada relação entre as identidades chamadas “criollo”, “mestizo” e “índio/nativo/aborígene”. Por exemplo, na região, criollo pode ser considerado ao mesmo tempo uma identidade étnica definida pela ancestralidade de etnias diversas e uma espécie de performance cultural, uma afirmação de autenticidade dos modos de vida rural da Argentina ligada à cultura gaúcha.

O autor não se limita a resolver as contradições e os paradoxos da identidade criolla, em vez disso, ressalta convincentemente que a construção da identidade é dinâmica e depende das transformações políticas e econômicas estruturais dos lugares, como a que a Argentina agrária vinha experimentando há décadas. Esta oscilação identitária - uma espécie de jogos de luz e sombra - molda a forma pela qual os criollos são afetados pelos escombros associados aos índios, cujo exemplo pode ser dado pela vila chamada El Fuerte, que carrega a memória dos autóctones sobre a violência que os exterminou, especialmente pelas guerras envolvendo os índios que lutaram contra a invasão dos espanhóis.

Gordillo discute a interseção do território com o processo de desterritorialização com relatos anteriores, como o de Deleuze, interpretado por Alain Badiou, que expuseram a realidade do Gran Chaco que, visto do topo da montanha, vislumbra na paisagem processos de resistência armada indígena em oposição às ações de ocupação do Estado. Assim, o que se sucederia neste lugar tão assustador, nas palavras de Gordillo, seria a manifestação do poder dos índios nos sítios destituídos de uma territorialidade estatal que aparentemente exporia a possibilidade de dissolução de suas ruínas (“ruins”).

Na segunda parte de sua obra, Gordillo desenvolve a noção de vida após a morte para entender como os escombros das insurreições passadas contra a invasão espanhola continuam a afetar os atuais desenvolvimentos na região do Chaco. O autor, através da multiplicidade de leituras sobre o espaço e a crítica do capitalismo - ressaltando a sua severidade destrutiva dos lugares - retoma a visão de Marx e Engels a respeito da fabulosa produtividade do capitalismo estabelecida sob o nível igualmente legendário de devastação. No mesmo raciocínio, a noção de desprezo imperial inspirado em Anne Stoller ressalta a atitude de desatenção a tal questão, sendo esta uma estratégia central de desprezo das elites em relação à devastação ocasionada pelo modo de vida capitalista. E demonstra como, pelo contrário, a celebração dos espaços burgueses costuma ser apresentada na memória social como positiva, posto que é artificial e edificada pelo poder de uma considerada civilização humana.

Em diálogo com Walter Benjamin, Gastón Gordillo reafirma que esta fascinação moderna pelos espaços monumentais, imponentes e excessivamente luxuosos induz a um estado de devaneio que se torna um fenômeno incorporado globalmente no século XXI, no qual a verticalização define a celebração pelos arranha-céus que são proeminentes nas arquiteturas cultivadas pelo capitalismo com o intuito de impressionar, exibir-se. Gordillo também acredita que é necessário enxergar que os espaços não espetaculares e não monumentais são lugares reduzidos a escombros, mas que possuem sentidos estratégicos na memória coletiva de desvalorização e desinteresse.

Contudo, em alguns casos, a abertura às múltiplas percepções dessas ruínas, consideradas nodais à estrutura comunitária, variam no tempo e no espaço, de modo que suas memórias podem ser retomadas durante os festivais que ocorrem no Chaco. Nesse sentido, ressalta-se que a exploração de Gordillo a respeito da relação entre a população local e o seu patrimônio ventila importantes questões sobre o aspecto ideológico das sensibilidades (pós)modernas em relação às ruínas.

Na terceira e quarta parte da obra, o autor explora especificamente alguns tipos de ruínas mais provocantes ao olhar dos modernos: os escombros criados pelos processos mais recentes de expansão e declínio do capitalismo. Gordillo desconstrói a interpretação de alguns sítios por meio da análise dos processos de sedimentação da violência espacial em ruínas ao longo dos séculos XIX e XX. Esses entulhos decorrentes de projetos modernizadores são evocados em discursos de evolução baseados em um progresso civilizatório que são exemplificados na obra em vestígios de navios a vapor sem litoral, ferrovias abandonadas e vastos campos de soja. Influenciadas por suas experiências e identidades históricas, as rupturas criadas por esses recentes episódios de violência espacial refletiram em uma população local de povos indígenas e criollos dispostos a incitarem uma resistência coletiva contra a intrusão e a desapropriação externa, o que se processa até a atualidade.

Em grande medida, o livro traz reflexões a respeito das questões de mobilidade e conectividade que são caras e intrínsecas ao capitalismo, uma vez que, em busca do lucro, materializam-se em efemeridades descartáveis e em um constante movimento. Dessa forma, o autor demonstra ao longo de sua obra que os territórios, os ambientes, as paisagens e as pessoas que experimentam a conexão com o mercado capitalista e o sistema produtivo industrial são mudados para sempre, tornando insustentáveis ​​os antigos modos de vida e refletindo em marcas a competição acirrada proposta pelo capitalismo. Como um meio ambiente muitas vezes completamente devastado e uma vida econômica exclusivamente monetizada.

As ruínas na obra de Gordillo são um dispositivo heurístico que permite a crítica sobre os impactos da modernidade em comunidades localizadas nas franjas dos centros capitalistas expondo um contexto pós-industrial que discute os resultados de um pretenso progresso. Na medida em que a territorialização estatal no Chaco promoveu a integração destas terras à Argentina, ironicamente, sua territorialização econômica como um lugar de riqueza e progresso fez falhar quando a lógica implacável da mobilidade capitalista, dominada pela curva de custo-benefício, deslocou o Chaco para sua posição periférica nas redes capitalistas globais.

O livro Rubble permite incursões interdisciplinares interessantes sobre o estudo do espaço por meio de uma análise histórica, da cultura material e da interpretação da paisagem, o que contribui para as especificidades em escala regional, nacional e global. E como a produção social dos espaços e sua destruição permitem uma crítica ao sistema capitalista, às visões teleológicas de modernidade, progresso e civilização. Sugere, ainda, confrontos com os diversos processos de uso e ocupação da terra em face das narrativas de patrimonialização das sociedades neoliberais contemporâneas. Ademais, ponto fulcral são as tensões decorrentes das disputas pela significação dos patrimônios, em seus revérberos memorialísticos entre o lembrar e o esquecer, valorização e desvalorização, mas que possui criativas respostas no horizonte de experiências e expectativas relacionadas às lutas e às resistências travadas em nível local pelas comunidades.

Referência bibliográfica

  • GASTÓN, R. Gordillo. 2014. Rubble: The Afterlife of Destruction Durham, NC: Duke University Press. 336 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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