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Other people’s anthropologies: ethnographic practice on the margins

RESENHAS

Emerson Giumbelli

UFRGS

BOSKOVIC, Aleksandar (org.). 2008. Other people’s anthropologies. Ethnographic practice on the margins. Nova York: Berrghahn Books. 238pp.

A antropologia, desde seus primórdios, reivindicou uma pretensão universalista, investida na promessa de um conhecimento do humano. Esta pretensão, em muitos momentos, teve de enfrentar o desafio posto pela condição situada de seu empreendimento, ou seja, a antropologia, na sua forma institucionalizada, surge como um saber produzido em uma parte do mundo para apreendê-lo na sua totalidade. Mais recentemente, aos debates sobre o universalismo da antropologia agrega-se o tema da reversibilidade, em suas muitas formulações, sempre envolvendo a possibilidade de uma via de mão dupla, algo que providenciasse a comutação entre sujeito e objeto do conhecimento. Tal provocação vem se dirigindo à antropologia não apenas na sua condição de saber, mas também enquanto empreendimento institucionalizado. Disto resulta a seguinte questão: quais são as implicações para aquele saber quando se constata que a antropologia está instalada em muitos lugares?

O livro organizado por Boskovic é mais uma contribuição para esse debate, colocando-se, como nota sua introdução (:1), na esteira de outras iniciativas que remontam ao começo dos anos 1980 e recuperam impulso mais recentemente. Trata-se de publicações que propõem termos como "indígena", "nativa", "do Terceiro Mundo", "não ocidental", "local", "do Sul", "nacional", "marginal", "periférica" para designar a antropologia institucionalizada e praticada fora dos países que foram reconhecidos como as principais referências na maior parte do século XX. Recusando tomar partido nesse imbróglio terminológico, o livro opta pelo que poderíamos traduzir como "antropologia de outros povos". Boa parte dos textos que o compõem esteve inicialmente reunida em uma sessão do encontro da Associação Europeia de Antropólogos Sociais, em 2004, sessão que se intitulava, ainda mais simplesmente, "Outras Antropologias". Seu objetivo parece ser sugerir que "as diferenças entre 'antropologias marginais' são ao menos tão pronunciadas quanto as similaridades, tornando as comparações requisitadas e necessárias" (:3). Assim, encontramos 11 capítulos, cada um dos quais dedicado à descrição de aspectos da antropologia instaurada e desenvolvida em países específicos, escritos (com uma exceção) por antropólogos/as originados/as e/ou radicados/as nesses países.

O primeiro capítulo é dedicado à Rússia, tratando dos primórdios da antropologia ainda no séc.XVIII para mostrar que até o fim dos anos 1920 a disciplina acompanhava os desenvolvimentos e os debates em outros países. A história política teve grande impacto na antropologia, operando triagens baseadas em critérios ideológicos, embora intelectuais soviéticos tenham continuado a atrair pesquisadores do Segundo Mundo. Com a dissolução da União Soviética, há um esforço de sintonia com a "antropologia social", que disputa espaço com disciplinas próximas consolidadas em momentos anteriores. A Holanda é objeto do segundo capítulo, que também recupera um passado longínquo da antropologia, relacionado com a colonização das Índias Orientais (atual Indonésia). A história da antropologia nestes dois países sustenta assim a reivindicação de que a disciplina "nunca teve um único ponto de origem" (:2). O presente da antropologia na Holanda lida com o legado da situação definida em meados do séc. XX, uma divisão entre "antropologia cultural", mais voltada para a realidade nacional e europeia, e "sociologia dos povos não-ocidentais", que elege o desenvolvimento como seu tema principal.

O capítulo três é dedicado à situação recente da "antropologia sociocultural" na Bulgária, disciplina ainda frágil em termos institucionais, que convive com a "etnologia", esta mais voltada para dimensões históricas, folclorísticas e filológicas. O apelo da "antropologia" para os nela interessados reside em boa parte em suas referências "ocidentais". O resultado é uma espécie de dilaceramento, pois esta antropologia, por um lado, abre-se ao acompanhamento das novas realidades europeias e, por outro, está focada mais estritamente na região balcânica, sobretudo nas minorias que ali vivem. Sobre a mesma região, temos no livro o capítulo sobre "etnologia iugoslava", que recebe de Boskovic (que trabalha na Sérvia e na Eslovênia) um diagnóstico em geral negativo. Segundo ele, com o final do período comunista, ocorreu uma mera substituição de uma etnologia nacionalista pela antropologia baseada em tradições centrais. Não houve preocupação com perspectivas comparativas mais amplas e manteve-se um fechamento que alimenta hostilidades contra pesquisadores estrangeiros.

O livro traz ainda contribuições sobre outros dois países da periferia europeia, mas com situações muito distintas em relação à sua inserção no continente e ao panorama da antropologia. Na Turquia, a antropologia passa a ser praticada com a República de inspiração ocidental na década de 1920, mas é apenas em 1997 que um departamento é criado em uma universidade. Ecletismo, fragmentação, pouco contato com centros ocidentais, baixo impacto na esfera pública - são pontos que se destacam no panorama recente. Mas isso convive com debates sobre descolonização intelectual, com o surgimento de "estudos culturais" e com a criação de centros de pesquisas interdisciplinares. Já na Noruega, apresentada por T. Eriksen (coautor de um livro sobre história da antropologia recentemente traduzido no Brasil), a antropologia se beneficia de uma alta demanda de estudantes e uma expressiva presença na mídia de massa. Os antropólogos noruegueses publicam em inglês e fazem pesquisa frequentemente fora de seu país, em muitos lugares do mundo. A situação atual deve algo à atuação e ao renome adquirido por Sommerfelt e Barth, depois da década de 1950, quando vínculos consistentes foram estabelecidos com a antropologia britânica. O preço disso, segundo Eriksen, é certo esquecimento da história anterior e a necessidade de mais pesquisas na própria Noruega.

Quênia e Camarões são também contemplados. Compartilham a condição de ocuparem territórios colonizados por potências europeias e convertidos em sítios de pesquisas antropológicas. Atualmente, apesar de muitos saírem do país, há incentivos para o desenvolvimento de uma antropologia local, e a formação e a atuação dos antropólogos apresentam muitas interfaces com políticas públicas e projetos sociais. Os impactos da pesquisa europeia são também um tema comum. No Quênia, o primeiro presidente foi aluno de Malinowski, mas sua apreciação política da antropologia, em nome da modernização e do nacionalismo, tornou-se negativa. Mais recentemente, os governos buscam uma conciliação entre desenvolvimento e cultura. Em Camarões, onde houve maior continuidade, predominam ainda hoje temas tradicionais de pesquisa, e o texto dá destaque a um centro de pesquisa que leva o nome de uma orientanda de A. Richards.

O capítulo sobre a Argentina volta-se para aspectos bem específicos da história da antropologia naquele país. Acompanha dois intelectuais que atuaram em universidades de Buenos Aires entre as décadas de 1950 e 1970 e que desenvolveram entendimentos singulares e politicamente engajados da noção de "antropologia social". Esther Hermitte formou-se em Chicago e fez pesquisas em áreas rurais; Eduardo Menéndez construiu uma crítica ao que chamou, para sintetizar referências euroamericanas, de "modelo antropológico clássico". Em contraste, o capítulo sobre a antropologia brasileira adota uma abordagem abrangente. Escrito por Mariza Peirano, o texto retoma alguns aspectos das análises que vem exercitando desde a elaboração de sua tese de doutorado sobre o assunto. São tratadas características gerais da antropologia praticada no Brasil, como o predomínio da pesquisa no território nacional e a conexão com a sociologia e seus ideais. Peirano distribui a produção antropológica de acordo com quatro categorias de alteridade: mesmo na mais "radical" de suas formas, contorna-se o risco da exotização.

Há, por fim, um capítulo sobre a antropologia japonesa, que se constrói pela descrição de seu trajeto desde o século XIX até o período atual. A resultante desta descrição está diretamente atrelada com a história política do Japão nas suas relações com territórios próximos e com o Ocidente. A situação contemporânea da antropologia japonesa é a de uma grande sintonia com a antropologia euroamericana, mas com pouco impacto sobre ela - uma marginalidade, na visão da autora, bem merecida (:143). É interessante fazer aproximações com a descrição que recebe o Brasil, onde a antropologia também teve êxito institucional, mostra-se altamente sintonizada e predomina a publicação no idioma nacional. Em contraste, no Japão, a maior parte das pesquisas ocorre em sítios fora do país. O ponto mais importante, porém, está nas perspectivas adotadas pelas autoras dos textos que mais enfrentam a questão da relação entre antropologias periféricas e centrais. Sobre a antropologia brasileira resulta uma visão positiva, no sentido de que reuniu condições que a eximem dos "pecados" que causam tanta "culpa" aos antropólogos dos países centrais e de que permite um acesso particular aos valores da tradição antropológica; sobre a antropologia japonesa pesa uma condenação pelo fato de pouco se dispor a refletir sobre os caminhos da modernidade em seu país, na sua relação ora imitativa ora contrastiva do Ocidente.

George Marcus também participa do livro, em um pós-escrito sobre desenvolvimentos recentes na antropologia dos Estados Unidos. Marcus parte das provocações levantadas nos anos 80 para constatar a dificuldade de definir o que é distintivo à antropologia e o aumento do escrutínio sobre o que ela produz. Para tanto, lembra, quanto ao primeiro ponto, de diálogos disciplinares e de empreendimentos transdisciplinares que atingem a antropologia e, quanto ao segundo, de algumas controvérsias transnacionais, entre elas a que envolveu Sahlins e Obeyesekere. Marcus defende uma "antropologia pública", preocupada com suas repercussões e também com suas audiências, ambas a serem incorporadas às teorizações de uma disciplina de limites indefinidos e sob um escrutínio generalizado.

Para encerrá-lo, o livro traz um posfácio escrito por Ulf Hannerz, no qual este tece comentários sobre o conjunto dos capítulos - algo que Marcus também não resiste a fazer - e retoma algumas das questões levantadas na edição de Ethnos, de 1982, dedicada às "antropologias nacionais". O posfácio junta-se então à introdução do livro, composta por Boskovic e Eriksen, na qual a edição de Ethnos organizada por Hannerz é mencionada, e também voltada para a menção e a discussão de pontos mais gerais. Alguns dentre eles podem ser destacados. Primeiro, a reiterada constatação de assimetrias na configuração mundial da antropologia, bem como da diversidade dos modos pelos quais a antropologia é praticada e institucionalizada mundo afora. As assimetrias não desenham um quadro meramente antagônico; ao contrário, a marginalidade não é um atributo necessariamente assumido ou problematizado, e as assimetrias movimentam fluxos que geram vínculos e dependências entre sítios metropolitanos e periféricos. Além disso, a conformação de centros e margens não ocorre apenas globalmente, mas também em âmbitos regionais e no interior dos países.

Hannerz inverte um raciocínio comum quando nos provoca a ver as antropologias metropolitanas como "as mais puramente nacionais" (:219), no sentido de que são as menos influenciadas por outras antropologias - como, aliás, demonstra o relato de Marcus sobre os EUA. Há ainda comentários sobre a dimensão do idioma, considerando-se a hegemonia do inglês e os limites que isto representa. Mas Boskovic e Eriksen complementam que o impacto disto na configuração das antropologias periféricas é variável. Outras questões envolvem a relação diversa da comunidade antropológica com agendas políticas e sociais internas; a relação com disciplinas próximas, cuja configuração pode variar bastante; as modalidades e as consequências dos locais predominantes de pesquisa (tendo como referência os territórios nacionais); a presença e a forma de empreendimentos comparativos; a distribuição dos antropólogos em função de instituições de formação, do trajeto pessoal e profissional, dos sítios de pesquisa; os fatores institucionais, ideológicos e financeiros para a consolidação e a conformação da antropologia em países periféricos.

Enfim, há no livro organizado por Boskovic materiais e questões que possibilitariam a elaboração de uma verdadeira agenda de pesquisa sobre a configuração das antropologias nos vários países em que ela floresce. Uma das limitações do livro é exatamente quase que pressupor tal agenda sem no entanto partir dela. A razão pela qual foram os 11 países acima mencionados ou incluídos na coletânea também não é explicitada. Mas empreender aquela agenda de pesquisa envolveria talvez explicitar outra limitação do livro, uma vez que não há razões - a não ser aquelas que reproduzem as assimetrias - que proíbam de aplicar às antropologias centrais ou metropolitanas o mesmo conjunto de questões levantado a propósito das demais. Esta, no entanto, continuaria a ser apenas uma operação entre outras para atenuar as assimetrias, cujo enfrentamento demanda muita criatividade e empenho na montagem de novas tecnologias de diálogo. Isso poderia corresponder àquilo que aparece como mera expectativa na introdução de Boskovic e Eriksen: "uma disciplina pluralista, multicentrada" (:16). Ao construí-la, talvez sejamos surpreendidos pelas formas que podem resultar da busca por um conhecimento que se deseja universal e reversível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Out 2010
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