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“Para a alma, & para o corpo he a gula o mais mortal peccado”: Discursos religiosos e médicos sobre os entendimentos e os efeitos do consumo alimentar exagerado, Portugal, século XVIII

“Para a alma, & para o corpo he a gula o mais mortal peccado”: Religious and Medical Discourses about the Understandings and the Effects of Exaggerated Food Consumption, Portugal, 18th Century

Resumo

As concepções religiosas e médicas sobre a gula e também sobre seus efeitos são ainda pouco exploradas pela historiografia luso-brasileira que tem se debruçado sobre aspectos como o consumo, a restrição e a interdição de determinados alimentos e bebidas, bem como sobre receituários e a promoção de curas através de misturas de elementos de origem vegetal e animal. Neste artigo, apresentamos e discutimos discursos produzidos sobre a gula divulgados em manuais religiosos e tratados médicos setecentistas, debruçando-nos sobre os diferentes entendimentos que seus autores faziam desse “mortal pecado” e nas aproximações e distinções entre suas percepções sobre os efeitos dos excessos alimentares tanto para o corpo quanto para a alma. Para tanto, analisamos cinco livros religiosos e quatro livros médicos, não necessariamente escritos por portugueses, que circularam em Portugal ao longo do século XVIII. A partir de uma abordagem histórico-cultural, buscamos compreender os significados culturais atribuídos à gula em um universo social coletivamente marcado pela força da crença católica e pelas concepções médicas hipocrático-galênicas, concluindo que as compreensões a respeito do comer desordenado apontavam para interesses médicos na reafirmação de seus saberes sobre saúde e doenças e interesses religiosos na revigoração de uma fé capaz de indicar prejuízos aos caminhos da salvação.

Palavras-chave:
gula; literatura religiosa; tratados médicos

Abstract

The religious and medical concepts about gluttony and also about its effects are still under explored by Portuguese-Brazilian historiography that has focused on aspects such as consumption, restriction and interdiction of certain foods and drinks, as well as on prescriptions and the promotion of cures through mixtures of elements of vegetal and animal origins. In this article, we consider discourses produced about gluttony disclosed in religious manuals and medical treaties in the 18th century, detaining ourselves on the different understandings that their authors had of this “deadly sin” and the approximations and distinctions between their perceptions of the effects of alimentary excess for the body as well as for the soul. To this end, we analyse five religious books and four medical books, not necessarily written by Portuguese authors, that circulated in Portugal throughout the 18th century. With a historical-­cultural approach, we seek to comprehend the cultural significance attributed to gluttony in a social universe collectively marked by strong Catholic belief and by Hippocratic-Galenic medical concepts, concluding that the understanding regarding unrestrained eating pointed to medical interests in the reaffirmation of their knowledge about health and disease and religious interests in the reinvigoration of a faith capable of indicating harm and paths to salvation.

Keywords:
gluttony; religious literature; medical treaties

A GULA NA LITERATURA RELIGIOSA E MÉDICA

Na história cultural da alimentação, na história das ideias religiosas e na história das práticas e conhecimentos médicos, as problemáticas voltadas ao consumo, restrição e interdição de determinados alimentos e bebidas e suas relações com o corpo e a alma, no período moderno europeu, estão significativamente presentes na historiografia. Contudo, uma aproximação entre as concepções cristãs e as médicas na compreensão do pensamento sobre a gula e seus efeitos na referida época ainda é um aspecto pouco explorado pela historiografia luso-brasileira.

Os diferentes significados já atribuídos à gula foram e devem ser considerados em função do tempo, do espaço e das experiências culturais das sociedades a que se referem. E, mesmo no interior de determinada sociedade, a gula assumiu diferentes conotações, que se aproximam e se distanciam, como em Portugal do século XVIII, se considerarmos os discursos médicos e religiosos. A produção historiográfica que aborda a gula - ainda que apenas ligeiramente - está, sobretudo, vinculada a pesquisas sobre alimentação, consumo e dietética, interessadas em receituários e nas curas obtidas através de misturas de variados elementos animais e vegetais.1 1 Estudos sobre alimentação na América portuguesa têm ganhado relevância na historiografia brasileira (veja-se BACELLAR; MOTT, 2016; ALGRANTI, 2009; SILVA, 2005). Outros estudos sobre alimentação/gastronomia a partir de campos do folclore e da psicologia, veja-se CASCUDO, 2016; BARCELLOS, 2017. E sobre alimentação e dietética, ALGRANTI (2012); ARAÚJO; ESTEVES (2015); BRAGA (2000; 2015); CARNEIRO (2003; 2010); NOGUEIRA (2018). Já os estudos antropológicos se caracterizam por se deterem na dinâmica própria dos fluxos que caracterizam a relação entre os alimentos e os indivíduos, defendendo que não há universalidade no comer, mas, sim, especificidades demarcadas por fatores socioculturais (MACIEL; CASTRO, 2013MACIEL, Maria Eunice; CASTRO, Helisa Canfield de. A Comida boa para pensar: sobre práticas, gostos e sistemas alimentares a partir de um olhar socioantropológica. Demetra, v. 8, n. 1, p. 321-328, 2013.). Desta forma, contribuem para pensar o sentido de uma “cultura alimentar”, definida como “o conjunto de representações, crenças, conhecimentos e práticas herdadas e/ou aprendidas que estão associadas à alimentação e são compartilhadas pelos indivíduos de uma dada cultura ou de um grupo social determinado” (CONTRERAS; GRACIA, 2011CONTRERAS, Jesús; GRACIA, Mabel. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 29).

Nos séculos XVII e XVIII, a gula era tida como um pecado capital pela Igreja e como uma prática que corrompia a saúde dos indivíduos pelos médicos,2 2 As faltas consideradas mais graves pela Igreja seriam merecedoras de pena de morte ou capital e eram conhecidas como “pecados capitais”. No século XVIII, eram tidos como pecados a soberba, a avareza, a luxúria, a ira, a gula, a inveja e a preguiça. Para vencer a gula, os confessores recomendavam jejum e abstinência como ações eficazes à sujeição do corpo pecador, sendo, dessa forma, meios possíveis para a aquisição da temperança, do autodomínio e do controle de si. razão pela qual era preocupação regular e constante nos livros religiosos e médicos, apesar de ocupar pouco espaço nos impressos publicados em Portugal à época, se comparada com outros temas. De fato, a gula parece não ter recebido especial atenção a ponto de figurar nos títulos ou merecer obras específicas, de modo que, para conhecermos as compreensões existentes sobre ela no Setecentos, inúmeras fontes precisam (e podem) ser acionadas.

Para este texto, valemo-nos de cinco livros religiosos e quatro livros médicos, não necessariamente escritos por portugueses, que circularam em Portugal ao longo do século XVIII. As obras religiosas3 3 Todos os livros religiosos mencionados e analisados nesse artigo se encontram disponíveis na versão online. são Ideas sagradas, e consagradas em vários Sermoens Panegyricos (Lisboa, 1720), de Manoel de Lima, da Ordem de Santo Agostinho; Exercícios admiráveis (Lisboa, 1728), de Boaventura Maciel Aranha; Flagello do Pecado, composto de vários sermoens (Lisboa, 1736), de Paulo de Santa Theresa; Cathecismmo ou O Christão bem instruído (Lisboa, 1744SANTA CLARA, Fr. Pedro de. Cathecismo, ou o christão bem instruído nas matérias pertencentes ao conhecimento de Deos, e noticia de todos os mysterios da nossa santa fé catholica, e da doutrina christã, que crê, confessa, e ensina a santa madre igreja catholica romana. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa, 1744.), de Pedro de Santa Clara; Espelho monástico, e catholico (Coimbra, 1756), traduzida do latim por Joam Barba Rica, da Ordem Seráfica.4 4 A obra foi originalmente escrita em latim pelo irmão do tradutor, Francisco de Penamacor Barba Rica. Considerando que, à época, os tradutores desfrutavam de autonomia e liberdade criativa, optamos por manter a referência de autoria ao tradutor. Entre os livros médicos, estão Âncora medicinal para conservar a vida com saúde (Lisboa, 1721) e Medicina lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males (Lisboa, 1731), ambos de Francisco da Fonseca Henriquez;5 5 Fonseca Henriquez (1665-1731) foi médico do rei D. João V e suas obras são bastante exploradas pela historiografia. Âncora medicinal conheceu edições em 1721, 1734, 1754 e 1769 (ABREU, 2011), sendo que, neste artigo, utilizamos a edição de 2004. Em relação à Medicina lusitana, sabemos que a Biblioteca Nacional de Portugal guarda edições de 1710, 1731 e de 1750, e nos valemos da edição de 1731. Tratado de las enfermedades mas frequentes de las gentes del campo,6 6 Importa referir que o título completo da obra era Aviso al pueblo acerca de su salud o tratado de las enfermedades más frecuentes de las gentes del campo. Às vezes, ela é referida apenas como Aviso ao povo sobre sua saúde, ou, então, em sua edição em espanhol, como Tratado de las enfermidades, o que pode, equivocadamente, levar a crer tratar-se de duas publicações distintas. Em 1786 e 1787, o médico Manoel Joaquim Henriques Paiva traduzia para o português e publicava em três tomos Aviso ao povo acerca da sua saúde, de Tissot, e ainda Hum tratado das enfermidades mais frequentes, tanto internas, como externas, de que não tratou Mr. Tissot na referida obra. Recomenda-se ver o Catálogo da BNP, que também conta com edições de 1796 e 1816. de Samuel Auguste TissotTISSOT, Samuel A. D. Tratado de las enfermedades mas frequentes de las gentes del campo. Madrid: Imprenta de Pedro Marin, 1776.,7 7 Autor bastante conhecido em Portugal e no Ultramar, sendo que a historiografia já demonstrou que livreiros do Rio de Janeiro comercializavam, no final do século XVIII, vários livros de medicina, inclusive, essa obra de Tissot (MARQUES, 2004, p. 44-45). publicado em Madri, em 1776 (a primeira edição é de 1767), e Medicina Domestica, o Tratado Completo Del Metodo De Precaver y Curar las Enfermedades Com el Regimen, y Medicinas Simples,8 8 Essa obra teve duas traduções portuguesas: a de Francisco Pujol de Padrell, em dez volumes entre 1788 e 1824 e a de Henriques Paiva, com edições entre 1787 e 1836 (BARREIROS, 2014, p. 56). de Guilherme BuchanBUCHAN, Guilhermo. Medicina domestica, o tratado completo del metodo de precaver y curar las enfermedades com el regimen, y medicinas simples. Madrid: Imprenta de D. Antonio de Sancha, 1785.,9 9 Sobre os objetivos de Buchan, ver SMITH (1985, p. 275). As obras de S. Tissot e G. Buchan foram traduzidas para o português e circularam tanto em Portugal, quanto na América portuguesa e espanhola entre o final do século XVIII e o início do XIX. Veja-se MARQUES (2004); ABREU (2011); VIOTTI, (2014). Além disso, foram obras muito elogiadas por médicos, escritores, censores e tradutores, de modo que os próprios editores tratavam de referenciar a fama de Tissot e Buchan em Portugal e a boa acolhida de suas obras em outras nações europeias. Cf. DENIPOTI (2017, p. 920). publicado em Madri, em 1785, tendo tradução para o português já em 1788.10 10 A Biblioteca Nacional de Portugal possui três edições da obra traduzida para o português, a saber, as dos anos de 1788, de 1825 e de 1836. A opção por essas fontes se deve a alguns fatores. Elas possuem capítulos (no caso dos livros religiosos) que contemplam reflexões sobre a gula, constituem uma amostra do grande universo de publicações que circulavam pelo reino português do período que porventura tenham efetivamente abordado os sentidos e os impactos da gula,11 11 Se consideramos os tratados e receituários médicos publicados no período, poucos deles tratavam diretamente dos efeitos do consumo alimentar excessivo para a saúde humana. O mesmo não vale, no entanto, para os elementos nutricionais e as virtudes medicinais ou propriedades analgésicas de alguns alimentos no tratamento de determinadas enfermidades (veja-se CARNEIRO, 2003; 2010). e permitem uma compreensão mínima dos conhecimentos relativos aos efeitos dos excessos alimentares, incluindo o consumo de bebidas, tanto sobre o corpo, quanto sobre a alma.

Neste texto, então, estamos interessados em entender como a gula era abordada nesses tratados médicos e livros religiosos que circularam em Portugal ao longo do século XVIII, atentando para as aproximações e distanciamentos entre compreensões e explicações a respeito dos efeitos, sobre o corpo e sobre a alma, do consumo exagerado e desordenado de comidas e bebidas. Assim, buscamos analisar os diferentes discursos sobre os impactos da gula na saúde corporal e espiritual dos indivíduos, de modo a compreender os significados desses entendimentos que circulavam ao longo do século em Portugal. Mais do que alertar para aquilo que era dito, escrito, enunciado recorrentemente, configurando, na nossa análise, um discurso ou um modo de entender, estamos interessados em compreender os significados culturais desses entendimentos em um universo social coletivamente marcado pela força da crença católica e pelas concepções médicas hipocrático-galênicas, que, somente a partir da segunda metade do Setecentos, passariam, aos poucos, a sofrer os impactos da racionalidade iluminista, especialmente, de influência francesa. As concepções médicas hipocrático-galênicas eram aquelas que compreendiam as doenças como resultado dos desequilíbrios dos humores (bílis amarela [colérico], sangue [sanguíneo], fleuma [fleumático], bílis negra [melancólico]), que a partir do século XVIII começaram a ser questionadas. Essas contestações, contudo, não impediram que médicos identificados com as mudanças provocadas pelos ideais iluministas, como Guilherme Buchan, continuassem a defender e a propor a observância de pressupostos humoralistas para a conservação da saúde. De acordo com Jean Abreu (2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 156-157), embora não houvesse uma “continuidade entre os textos gregos e os tratados médicos do século XVIII”, pode-se observar a manutenção de um diálogo “com a medicina hipocrática e galênica no que se refere aos cuidados com o corpo”.

Portanto, com uma abordagem histórico-cultural que considera o texto e o contexto, este artigo volta-se para os significados simbólicos compartilhados - mas não necessariamente partilhados por todos os sujeitos, de todos os grupos da hierarquia social ou da diversidade de um mesmo estrato - que permitia à sociedade letrada portuguesa escrever, traduzir, editar, publicar e ler/ouvir a respeito da gula e seus impactos sobre a saúde, a partir de determinados códigos que possuíam significados compreensíveis.12 12 O historiador francês Roger Chartier considera que os discursos “são produzidos e difundidos em um espaço social específico que tem seus lugares, suas hierarquias e seus objetivos próprios”, portanto, são constituidores de significados e de sentidos para determinadas práticas partilhadas por um mesmo grupo. Assim, pensar as “relações que as obras mantêm com o mundo social” implica considerar as variações entre o texto e as realidades sociais, o texto e as significações e apropriações plurais, o texto e as diversas formas de transmissão e recepção (CHARTIER, 2002, p. 258-259).

Se a literatura religiosa, de modo geral, assumia um discurso moralizante, que concebia a gula enquanto vício, gosto e apetite desordenado, tentação e pecado a serem combatidos, o entendimento dos médicos era de que comer de forma demasiada prejudicava a saúde (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 161). Nos tratados médicos, no entanto, esta distinção em relação ao discurso religioso não é tão facilmente constatada, especialmente naqueles que foram escritos ou circularam antes da Reforma da Universidade de Coimbra, em 1772,13 13 Entre inúmeros trabalhos, citamos aqui ABREU (2011); MERLO (2015). nos quais se constata a forte influência do discurso religioso moralizante. Se os livros religiosos estavam mais voltados para os efeitos morais do consumo desordenado, os de Medicina estavam mais interessados nas enfermidades ou indisposições físicas que alimentos e bebidas, quando ingeridos em demasia, poderiam trazer, como aquelas ligadas ao estômago, ao rim, ao fígado e ao coração, desencadeando cólicas, náuseas, desconfortos gastro­intestinais e cardialgias. Mas para muitos autores de tratados médicos, os efeitos da gula sobre o corpo também podiam ter explicações religiosas, causavam danos à alma e demandavam castigos e a misericórdia divina (CUMSTON, 1996CUMSTON, Charles G. The History of Medicine from the time of the Pharaohs to the end of the XVIIIth Century. London; New York: Routledge, 1996., p. 35).

A Igreja Católica buscou regular a prática dos regimes alimentares, tanto entre os fiéis leigos, quanto entre os membros de suas próprias instituições religiosas, como conventos e mosteiros, apresentando a gula como pecado nocivo à vida cristã e à salvação da alma (BRAGA, 2015BRAGA, Isabel Drumond. Sabores e segredos: receituários conventuais portugueses da Época Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015., p. 28). O comer e o beber em demasia, ou o expresso desejo de satisfação pessoal através do paladar, configurava infração às regras alimentares impostas aos cristãos14 14 Segundo Georges Vigarello, já no período medieval, os clérigos realizavam críticas ao glutão, ao gordo, fulminando sua “paixão” pelo excesso do comer e do beber e sua “indignidade”. No período moderno, o sujeito gordo seria visto como incapaz, inerte, ineficaz, pesado e “confinado no torpor” e, no século XVIII, seria acrescentada a noção de inutilidade e improdutividade (VIGARELLO, 2012, p. 11, 170). e prejudicava o estado saudável do corpo, sendo passível de castigos divinos (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 159). Ao abordarem a gula, os autores de obras religiosas, por sua condição de difusores da doutrina da Igreja, instruíam não apenas sobre a quantidade de alimento ingerido, mas, também, sobre os modos como os cristãos deveriam comer, orientando-os a adotarem a (auto)vigilância. Portanto, as variáveis “quantidade de alimento” e “modos de comer” deveriam ser consideradas, levando em consideração os espaços em que os cristãos se encontravam, e que podia ser o ambiente doméstico, o das tavernas, o das igrejas ou, então, das festas.

Em 1720, o padre Manoel de Lima, em sua obra Ideas sagradas, e consagradas, era enfático sobre o sentido do “gosto”, o mais “defeituoso neste tempo”: “Só digo que para a alma, e para o corpo é a gula o mais mortal pecado: para o corpo, pois a falta de saúde, a demasia dos achaques, e até a mesma morte na intemperança tem a sua mortal causa” (LIMA, 1720LIMA, Fr. Manoel de. Ideas sagradas, e consagradas em vários sermoens panegyricos. Tomo I. Lisboa: Officina de Mathias Pereyra da Sylva, 1720., p. 428). Também o médico Francisco Henriquez alertava na Âncora Medicinal para o risco de uma vida curta para os comilões: “o melhor meio para durar pouco é comer muito. Os mesmos alimentos que, tomados com moderação, conservam a vida com saúde, comidos com excesso a arruínam” (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 52).

No caso de Portugal, a medicina praticada no século XVIII defendia o “comer com moderação” como fundamental para a manutenção da boa saúde e não se afastava totalmente da ética-cristã religiosa, embora não entendesse a gula necessariamente como pecado.

A incorporação pelos médicos de certos princípios normatizadores do cristianismo relativos à alimentação indica a conciliação do regime nos moldes galênicos com o significado moral da alimentação. Da mesma forma, alguns moralistas se apropriavam do saber médico expondo aos fiéis as consequências dos excessos alimentares sobre o organismo. Apontar as convergências entre a dieta ditada pelas normas religiosas e aquela regida pelos princípios médicos não significa, entretanto, afirmar que a medicina do século XVIII seguia os princípios religiosos relativos à condenação da gula como pecado (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 159).

O Setecentos europeu, contudo, será marcado por transformações importantes nas percepções sobre a relação entre alimentação e dietética, e das quais decorrerá certa liberação da “gulodice”. Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari apontam que, ao menos na França, o refinamento da cozinha deixaria de conservar ou visar à saúde e às precauções higiênicas segundo concepções médicas e passaria simplesmente a “satisfazer o gosto dos glutões” (FLANDRIN; MONTANARI, 1998FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998., p. 548-549, p. 669).

Essas distintas percepções sobre a gula - desobediência religiosa, apetite pernicioso à saúde ou requinte do gosto - vigentes na Europa do Setecentos não devem necessariamente ser percebidas como contraditórias ou excludentes. Mesmo assim, é preciso ressaltar que, se a Enciclopédia francesa (1751-1772) ressaltava a gula enquanto o amor refinado à boa mesa, os jesuítas, no Dictionnaire de Trévoux (1771), reforçavam que, “na verdade, esta palavra [gula] encerra e apresenta a ideia de excesso, porém não a de refinamento na alimentação” (citado por FLANDRIN, 2009FLANDRIN, Jean-Louis. A Distinção pelo gosto. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 263-304., p. 288). No início do século XIX, despontariam com força os entendimentos de valorização dos prazeres do comer e das refeições, da satisfação individual e das coletivas, compartilhadas à mesa, nas refeições.15 15 Expoente, nesse sentido, é a obra A fisiologia do gosto (1825), de Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826). Sobre o prazer à mesa, ver BRILLAT-SAVARIN (1995, p. 170).

Se, por um lado, observa-se que as obras religiosas e médicas publicadas em Portugal entre o início e o final do século XVIII apresentavam percepções similares em relação à gula, por outro, não podemos desconsiderar as transformações que o ensino e a prática médica vivenciarão ao longo do Setecentos,16 16 Ressaltamos que não nos deteremos, neste artigo, nas transformações ocorridas no ensino e na prática da Medicina em Portugal na segunda metade do século XVIII. Sobre esse tema, recomendamos ver mais em ABREU (2011). alterando as percepções relativas às causas e aos efeitos do consumo alimentar exagerado sobre o corpo humano. Neste artigo, buscamos identificar e analisar justamente as aproximações e os distanciamentos entre os entendimentos sobre a gula presentes nos cinco livros religiosos e quatro livros médicos que selecionamos.

OS ENTENDIMENTOS DO CONSUMO ALIMENTAR EXAGERADO

Segundo o Vocabulário de Bluteau (1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728., p. 159), a gula, enquanto um pecado capital da Igreja Católica, servia de incentivo a outros pecados e ainda gerava o “apetite”, a “sensualidade” e a “ruina da saúde & morte do espirito”. Em sua definição de gula, o religioso registrou um “vício” do comer e do beber com demasia ou “fora do tempo” e também “comeres proibidos” (BLUTEAU, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728., p. 159). Nos séculos XVII e XVIII, vigoravam ainda alguns dos significados forjados desde a Idade Média, como o de Gregório, o Grande (540-604 d.C.), para quem existiam inúmeras formas da gula: “comer fora das refeições ou antecipar o horário (...); comer e beber muito (...) em relação às próprias necessidades fisiológicas; comer com avidez; buscar preparo sofisticado (...), alimentos mais ricos, iguarias refinadas” (citado por QUELLIER, 2011QUELLIER, Florent. Gula: história de um pecado capital. São Paulo: Senac, 2011., p. 19).

Dentre as causas do pecado da gula apontadas por autores religiosos estavam aquelas relacionadas com o impulso descontrolado para a satisfação do gosto e da vontade, decorrente tanto da voracidade do glutão, que perdia o controle do seu corpo nos atos do comer e do beber (QUELLIER, 2011QUELLIER, Florent. Gula: história de um pecado capital. São Paulo: Senac, 2011., p. 123), quanto de uma precária condição de perseverança nas virtudes religiosas que trariam a almejada paz espiritual aos indivíduos, afastando-os “da tristeza, da cólera e dos comportamentos lascivos, dos quais resultavam outras tantas enfermidades” (STEIN, 2015STEIN, Tarcila N. “Os dois braços da boa medicina”: a medicina do corpo e da alma na obra de Francisco de Mello Franco. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2015., p. 132). Em Medicina Teológica, Francisco de Mello Franco alertava que o homem dominado pela tristeza seguia “combatido de pensamentos impuros”, de modo que o colérico tornava-se uma “besta carnífera” e o ebrioso só com vinho se “contenta[va]” (citado por STEIN, 2015, p. 133). Sendo assim, o contentamento advindo da gula “seria uma contramedida, já que a alegria é o segundo remédio que melhor convém à saúde da alma, e do corpo” (STEIN, 2015, p. 133).

O argumento mais difundido entre os religiosos e médicos em Portugal era o de que se devia comer pouco para sustentar o corpo e garantir a saúde. Nas obras dos primeiros, as explanações a respeito da gula mereciam muito mais atenção, se comparadas com os livros médicos, cujos autores estavam mais preocupados em apontar os benefícios e malefícios de certos alimentos e bebidas para o corpo humano.17 17 O médico Fonseca Henriquez (2004, p. 47), em Âncora medicinal, traz inúmeros exemplos nesse sentido, apontando para a relação de dependência entre o alimento e a condição estomacal de cada sujeito: “a familiaridade ou aversão que os estômagos têm com os alimentos faz com que sejam bons ou maus e não as qualidades (...) de que são dotados”. E continuava: “não há alimento tão bom que para algumas naturezas não possa ser mau, nem alimento tão mau que para outras não possa ser bom”. A condição de saúde perfeita permitia a ingestão de qualquer alimento, desde que feita com moderação. Ainda assim, alimentos diversos (carnes, peixes, legumes, raízes, frutos) e bebidas (água, vinho, café, licores) possuíam propriedades medicamentosas que o autor tenta, ao longo da obra, demonstrar. Antes de atentar para esses entendimentos do consumo, é preciso abordar práticas e hábitos alimentares dos portugueses no início do século XVIII. É evidente que as variações entre o que se comia e a quantidade e a qualidade dos alimentos dependia da condição social dos indivíduos, todavia, a documentação e bibliografia consultadas trazem algumas informações relevantes sobre os alimentos consumidos.

Se recuamos ao século XVII, percebemos que, em geral, predominava o consumo de sardinha, peixes secos e bacalhau, especialmente entre as camadas menos abastadas da população.18 18 Cf. CASTELO-BRANCO, 1990. Mais informações sobre alimentação, saúde e doença em Portugal na época moderna, ver FERREIRA, 1990. Em Lisboa, o peixe ocupava lugar de destaque na alimentação da população, assim como legumes, verduras e frutas produzidas nos arredores da cidade (CASTELO-BRANCO, 1990CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa seiscentista. Lisboa: Livros Horizonte, 1990., p. 107). Já em uma confissão registrada pelo Fr. António das Chagas, o confessante teria dito: “se Deus o deixasse neste mundo sem o chamar ao seu Reino, ele se dava por satisfeito com galinha cozida, marmelada e vinho branco”, dando mostras de um tipo de alimentação que poderia ser compartilhada com diversos grupos. Segundo o mesmo autor, ao hospedar-se no Convento do Loreto, os irmãos ofereceram-lhe o melhor cardápio, “alimentaram-no com peixe, carnes de vaca e carneiro, amêijoas, ovos, alface, biscoitos, peras e cerejas” (CASTELO-BRANCO, 1990, p. 108), o que parece sugerir a existência de um tipo de alimentação diferenciada entre grupos sociais mais privilegiados ou conventuais.19 19 Analisando a dietética e a alimentação no Convento de Nossa Senhora dos Remédios de Braga, Leila Algranti (2012, p. 205-210) observou que a carne de vaca era um alimento “típico dos altos segmentos da sociedade europeia” e fazia parte da alimentação conventual. O pão também tinha importância, mas na dieta de “todos os segmentos sociais” portugueses, sendo utilizado em sopas, migas e açordas. Por fim, o autor apresentou tabelas de preços do período, as quais indicam outros gêneros alimentícios que deviam ser comuns, entre os quais estavam peru, galinha, ovos, pato, perdiz, coelho, pombos, passarinhos, cabrito, leitão, carneiro, linguiça, chouriço, leite, nata, queijo, pasteis.

Se tomarmos como parâmetro os escritos do médico Francisco da Fonseca Henriquez (2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 58), percebemos que, no início do século XVIII, nas mesas dos mais “rústicos” havia pão, vinho, queijo, leite, legumes, couves e toucinho, enquanto que para os de “melhor fortuna” não faltavam sopas, assados, “olha de vaca, presunto e arroz”, e para os mais ricos, havia variedade de alimentos, como “massas, guisados, fricassés e várias iguarias”. Por disporem de maior quantidade e, talvez, qualidade de alimentos, os ricos eram tidos como aqueles que mais facilmente “estragam os estômagos e perdem a saúde”.

Com alguma variedade alimentar e com tantos sabores disponíveis aos mais diversos paladares, torna-se compreensível a preocupação dos religiosos em regular os prazeres do gosto e da gula. O manual religioso traduzido por Boaventura Maciel Aranha, Exercícios admiráveis (1728ARANHA, Boaventura Maciel. Exercicios admiráveis para os dias do recolhimento interior que costumão, & devem ter as pessoas religiosas, & as que desejão salvarse. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1728.), traz um capítulo intitulado “Da mortificação dos sentidos exteriores”, que incluía, entre outros, o sentido do gosto. Nele, a gula aparece vinculada ao regozijo do corpo, ao deleite do sentido, quando, na verdade, deveria estar associada ao consumo necessário, encarando-se a comida como “medicina para conservar a vida” (ARANHA, 1728ARANHA, Boaventura Maciel. Exercicios admiráveis para os dias do recolhimento interior que costumão, & devem ter as pessoas religiosas, & as que desejão salvarse. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1728., p. 188). O gosto extremo pelos manjares e a vontade de comer “fora das horas ordinárias” serviam para incitar o apetite e a sensualidade, não sendo proveitoso e agradável nem ao próprio devoto, nem a Deus. Mesmo em um livro médico, como o Medicina Lusitana (1731), de Francisco Henriquez, observa-se essa associação entre a gula e a luxúria. O “glutão”, o “grande comedor”, o de “estômago fraco” é colocado lado a lado com o indivíduo de “vida sedentária”, o “depravado no exercício libidinoso” e o “depravado com mulheres”, pois entre os glutões e os “dissolutos com mulheres”, “nestes sempre há cruezas no estômago” (HENRIQUEZ, 1731HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Medicina lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731., p. 625, p. 647, p. 738, p. 744).

O religioso Pedro de Santa Clara, por sua vez, lembra que “sempre deveis comer com moderação, comendo para viver, e não vivendo para comer” (SANTA CLARA, 1744SANTA CLARA, Fr. Pedro de. Cathecismo, ou o christão bem instruído nas matérias pertencentes ao conhecimento de Deos, e noticia de todos os mysterios da nossa santa fé catholica, e da doutrina christã, que crê, confessa, e ensina a santa madre igreja catholica romana. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa, 1744., p. 359), um adágio, aliás, bastante disseminado no mundo português. Também Joam Barba Rica, da Ordem Seráfica, traduzindo do latim a obra de seu irmão Francisco de Penamacor Barba Rica, intitulada Espelho monástico, e catholico (1756), disse: “Não devemos comer para encher o estômago, senão para sustentar o corpo” e “a corrupção do corpo é a demasia do comer” (BARBA RICA, 1756BARBA RICA, Fr. Joam. Espelho monastico, e catholico, que em discursos moraes, e predicavaes sobre os dictames que para a vida religiosa, e perfeita escreveo o melifluo doutor S. Bernardo no seu Tratado do modo de bem viver. Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1756., p. 2, p. 14). Alimentar-se bem estava diretamente relacionado com quantidade e não com a qualidade dos alimentos. Recorrendo a Hipócrates, o já citado Francisco Henriquez (2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 52) afirma que “sejam eles [os alimentos] quais forem, comidos com parcimônia, não ofendem e, ainda que sejam os melhores, tomados com insaciável voracidade, sempre causam dano”.

O padre Manoel de Lima, em sua obra Ideas sagradas, e consagradas (1720LIMA, Fr. Manoel de. Ideas sagradas, e consagradas em vários sermoens panegyricos. Tomo I. Lisboa: Officina de Mathias Pereyra da Sylva, 1720.), refere a gula como o pecado que “se costuma mais repreender”, fazendo crer que tal repreensão religiosa ao consumo exagerado era uma constante no período. Para ele, seria a gula o mais mortal dos pecados, porque estabeleceria uma relação de conflito com os dez mandamentos. Assim estabelecia: “Não ama ao próximo, pois só tem por próximo o seu estômago. O que furta o alheio é para comer. O que se desenfreia no luxo, é porque tem comido. De modo que (...) o pecado da gula (...) é dispositivo para que se quebrem todos os dez mandamentos” (LIMA, 1720LIMA, Fr. Manoel de. Ideas sagradas, e consagradas em vários sermoens panegyricos. Tomo I. Lisboa: Officina de Mathias Pereyra da Sylva, 1720., p. 429). Mas essa gravidade atribuída à gula não era consenso entre os autores religiosos. Para Pedro de Santa Clara, a gula poderia se tornar pecado mortal devido à malícia e ao “comer com (...) voracidade, que ofenda a saúde” (SANTA CLARA, 1744SANTA CLARA, Fr. Pedro de. Cathecismo, ou o christão bem instruído nas matérias pertencentes ao conhecimento de Deos, e noticia de todos os mysterios da nossa santa fé catholica, e da doutrina christã, que crê, confessa, e ensina a santa madre igreja catholica romana. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa, 1744., p. 356). Assim, o consumo desnecessário à manutenção da vida que se configurasse uma ofensa à saúde física - e também espiritual - seria uma das razões para considerar a gula um pecado mortal.

A quantidade de alimentos ingeridos deveria ser ordinária, especialmente pelos sujeitos religiosos, a quem a gula poderia soar ultrajante: “porque exceder de maneira que o corpo se ache pesado, e o ventre indigesto, é cousa mui vituperada para religiosos e pessoas espirituais” (ARANHA, 1728ARANHA, Boaventura Maciel. Exercicios admiráveis para os dias do recolhimento interior que costumão, & devem ter as pessoas religiosas, & as que desejão salvarse. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1728., p. 189). Assim, abster-se de manjares demasiados e evitar a gordura corporal era a melhor alternativa, recomendando-se que “melhor ficas se andares pálida do que corada; foge do que engrossa o corpo; não o regales, nem o cries para os bichos” (BARBA RICA, 1756BARBA RICA, Fr. Joam. Espelho monastico, e catholico, que em discursos moraes, e predicavaes sobre os dictames que para a vida religiosa, e perfeita escreveo o melifluo doutor S. Bernardo no seu Tratado do modo de bem viver. Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1756., p. 4). Evidentemente, o cuidado com o excesso alimentar, por parte dos religiosos, estava mais voltado para a alma do que para o corpo, todavia a interligação possibilitava a Barba Rica, por exemplo, valorizar aqueles que cuidassem “em emagrecer” (BARBA RICA, 1756, p. 7). Vale lembrar que, no século XVIII, a obesidade era tida como uma doença, sendo referida tanto em dicionários e enciclopédias, quanto em tratados médicos. De acordo com Vigarello (2012VIGARELLO, Georges. As Metamorfoses do gordo: história da obesidade. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 164), nesse período, a gordura não era “mais simples excesso quantitativo que a sobriedade deve evitar, mas, sim, desordem, degradação interna” e enfermidade específica.

Incorrer no pecado da gula significava desconsiderar a importância dos jejuns, da pobreza, da temperança, das abstinências, tanto os exemplos presentes na história de Cristo, quanto dos inúmeros modelos das vidas de santos e patriarcas da Igreja, a exemplo de São Francisco, São Bento e São Bernardo (BARBA RICA, 1756BARBA RICA, Fr. Joam. Espelho monastico, e catholico, que em discursos moraes, e predicavaes sobre os dictames que para a vida religiosa, e perfeita escreveo o melifluo doutor S. Bernardo no seu Tratado do modo de bem viver. Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1756., p. 22). Exceder-se na comida, deixando-se vencer pelo apetite, significava trazer a alma “oprimida e lastimada com a culpa” (ARANHA, 1728ARANHA, Boaventura Maciel. Exercicios admiráveis para os dias do recolhimento interior que costumão, & devem ter as pessoas religiosas, & as que desejão salvarse. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1728., p. 189). Assim, entre os religiosos era praticamente consensual a incompatibilidade entre “as delícias do espírito” e “os regalos do corpo”, pois para conseguir as primeiras era necessário deixar de ter à mesa os “manjares mais seletos” e de “maior custo”, para ter o corpo “domado” e sujeitado (BARBA RICA, 1756, p. 8, p. 22).

Já os livros médicos não traziam demoradas reflexões de ordem moral-religiosa a respeito da gula, embora também estivessem atentos aos sentidos do comer para o espírito humano, para as ações e os comportamentos, e, especialmente, para seus efeitos sobre o corpo, como veremos na sequência.

OS EFEITOS DO EXCESSO ALIMENTAR NA SAÚDE DO CORPO E DA ALMA

Se, para os autores religiosos, a gula era prejudicial para a virtude da temperança e da sobriedade, nos tratados médicos, a gula era tida como prejudicial à saúde, embora, como já observado, tanto a literatura religiosa quanto a médica fizessem referências à dúplice condição ao tratarem sobre os efeitos da gula. Mas essa distinção entre saúde da alma e do corpo nem sempre estava presente, na medida em que o excesso alimentar advindo do apetite desordenado poderia causar enfermidades e, até mesmo, a morte, sem tempo para os devidos e tão necessários sacramentos.

O médico Francisco Henriquez, em Medicina Lusitana (1731HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Medicina lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731.), num capítulo intitulado “Da sufocação por causa de muito comer”, indica claramente um sentido (médico) para a gula e para a sua “cura”. Para o autor, o excesso no comer traria inúmeros incômodos à vida, “quando não concluam brevemente com ela”, pois seria “maior o número dos que morrem com a gula [do] que com a espada” (HENRIQUEZ, 1731HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Medicina lusitana, soccorro délfico, aos clamores da natureza humana, para total profligaçaó de seus males. Amsterdam: Casa de Miguel Diaz, 1731., p. 402). Esse, talvez, fosse um argumento meramente retórico, pois em obra anterior, a Âncora Medicinal, publicada dez anos antes, já empregava as mesmas palavras. Nela, o médico diz ser uma “lástima” que os homens, com conhecimento dos perigos, mantivessem veementes apetites “para se soltarem na mesa com excesso”, quando deveriam, “com os ditames da razão”, “se conterem nos limites da frugalidade com prudência”. Para o mesmo autor, a “demasiada saturação”, que “sempre ofende”, muitas vezes mata, sendo que “são mais os que morrem com os excessos da gula que com os golpes da espada” (HENRIQUEZ, 2004, p. 52). No Medicina Lusitana, Henriquez traz exemplos de pessoas que haviam morrido “sem sacramentos”, pois se encontravam com suas vias respiratórias comprometidas, devido ao voraz consumo alimentar, para além da capacidade de seus estômagos. Nesses casos extremos de consumo, a recomendação era a de que os glutões vomitassem o alimento ingerido e seguissem uma dieta de três dias consecutivos baseada em caldos de galinha com gemas de ovos.

Enquanto o médico Henriquez apontava para o perigo da morte sem sacramento e para a possibilidade de sufocação devido à fermentação dos alimentos no estômago, religiosos como o frade Paulo Theresa, em 1736THERESA, Fr. Paulo de S. Flagello do pecado. Dos damnos, que causa esta fera cruel, e singular. Tomo II. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1736., alertavam para a destruição da vida e para o risco da condenação da alma:

Os demasiados no comer e beber (...) indiferentemente comem de tudo, frutos e carnes (...), tudo devoram e tragam. Os gulosos, de tudo comem e bebem; e ainda que o comer ou o beber lhes faça dano à saúde, e vá destruindo a vida, não se abstêm de sua demasia, não reparando em quebrantar o jejum, nem em destruir com suas demasias a saúde, a fazenda, e arriscar a salvação da alma (...). Quantos nesse mundo tudo vendem e destroem para comer e beber, sem advertir o mal que fazem não só ao corpo, mas também ao espírito? (THERESA, 1736THERESA, Fr. Paulo de S. Flagello do pecado. Dos damnos, que causa esta fera cruel, e singular. Tomo II. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1736., p. 23).

Mas os livros religiosos também buscavam na medicina subsídios para apontar os efeitos negativos da gula sobre o corpo ou sobre as práticas cotidianas, como se constata na menção à indisposição física que comprometia a realização de exercícios espirituais. O conselho, tido como “importantíssimo”, era de que todos se alimentassem com muita “temperança”, de modo a garantir o bom exercício da oração e a “saúde corporal”:

Quanto à quantidade da comida, ainda os médicos aconselham que sempre se levante o homem da mesa com fome e disposição de poder tornar a comer, e os mestres de espírito que se coma com tal temperança, ou medida, que não estorve a Oração, lição, e outros exercícios espirituais, ao menos que passada uma hora se possa acudir sem impedimento a eles (ARANHA, 1728ARANHA, Boaventura Maciel. Exercicios admiráveis para os dias do recolhimento interior que costumão, & devem ter as pessoas religiosas, & as que desejão salvarse. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1728., p. 189).

No capítulo “Da quantidade de alimento” do livro Âncora Medicinal, o médico Francisco Henriquez nos oferece sua percepção sobre os efeitos do imoderado apetite sobre o corpo humano, os chamados “estragos da gula”:

Há alguns glutões e comilões que, levados pela sua voracidade e mesclados com o agradável condimento de iguarias e manjares de bom gosto, soltam as rédeas ao apetite e transcendem os lindes da moderação, até chegarem a experimentar os estragos da gula (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 51).

Se, no início do século XVIII, Henriquez se referia às reações observáveis no organismo e às doenças decorrentes da gula, Barba Rica destacava que o maior estrago seria a condenação e o tormento demoníaco, razão pela qual defendia a manutenção de “um corpo pálido, fraco e enfermo” para vencer as forças infernais (BARCA RICA, 1756, p. 10). Para o religioso, “o corpo não deprime e abate a alma e ao entendimento por ser corpo, senão por ser corruptível” (BARCA RICA, 1756, p. 14).

Tendo publicado suas principais obras nas primeiras décadas do século XVIII, as percepções de Francisco Henriquez não vigoraram durante todo o século,20 20 Veja-se, por exemplo, as críticas de Luís António Verney, em Verdadeiro Método de Estudar (1746) às concepções hipocráticas e galênicas na medicina (MERLO, 2015, p. 59-65). muito embora a relação estreita entre o conhecimento científico e as crenças cristãs a respeito da saúde humana tenha perdurado na sociedade portuguesa na segunda metade do Setecentos. Enquanto médico, Fonseca Henriquez defende a moderação à mesa como forma de assegurar saúde e vida longeva, afirmando que os alimentos, por suas virtudes, podiam auxiliar no combate a dores e desconfortos. Henriquez traz ainda recomendações para o controle dos apetites, especialmente para mulheres e velhos, a quem Deus poderia punir severamente em caso de destemperos provocados pela gula. Ao fazer referência aos benefícios da “água nevada”, afirma que:

usando-a com moderação, conforta o estômago, refrigera as entranhas, extingue a sede, enfreia e tempera o furor e orgulho da cólera, que no estio se enfurece, sendo causa de haver dores ictéricas, cólicas convulsivas, diarreias, tenesmos, disenterias, sezões, febres ardentes e coliquativas e outros mais danos que a cólera costuma causar em tempo e região quente, dos quais se preservará quem beber água de neve e se tratar na mesa com moderação nos frutos fugazes e alimentos quentes. (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 227-228).

Em relação às bebidas, o religioso Joam Barba Rica (1756, p. 27) destaca que o consumo do vinho com medida e temperança não configurava um pecado, devendo ser ingerido “só quando pede a necessidade”, pois era bebida que “Deus criou para medicina”.21 21 O consumo do vinho como remédio era bastante defendido no século XVIII, mas o abuso poderia trazer inúmeras enfermidades, tais como tísica nervosa, letargo, apoplexia e paralisia, como observou o médico português Francisco de Melo Franco (VIOTTI, 2017, p. 108). Consumido adequadamente, o vinho proporcionaria disposição, solicitude e saúde ao corpo e ao coração, afastando a preguiça e a negligência. Também na obra do médico Fonseca Henriquez, encontramos menções aos efeitos do consumo de águas e de bebidas frias ou geladas, pois segundo ele:

O esforço exigia equilibrar-se entre legitimar a busca dos prazeres pela gula e manter os freios ao apetite exagerado que conduzia à corrupção e à danação humana: as pessoas excessivamente frias, de estômago e de nervos fracos, “as mulheres que não forem bem regadas” e as que “parissem muitas vezes”, os velhos que não tivessem se criado com estas bebidas e sorvetes eram advertidos a não fazerem uso dos mesmos ou a tomar cuidado redobrado. O Criador ainda punia os destemperados que não contivessem seus apetites (PALMESI, 2014PALMESI, Luca. Saber e sabor: corpo, medicina e cozinha na obra de Francisco da Fonseca Henriquez. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014., p. 174).

Tanto para os religiosos quanto para os médicos, uma das principais recomendações era pela moderação no consumo. Em inúmeros tratados médicos publicados em Portugal no século XVIII, bebidas como chá, chocolate, café ou aguardentes eram tidas como úteis para a saúde, seu consumo em excesso, no entanto, era considerado extremamente nocivo por agitar os humores do corpo (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 160).

Henriquez julgava o ser humano “corrompido e multiplicado às doenças”, caso não conseguisse conter seus desejos alimentares incontroláveis,22 22 O autor de Âncora Medicinal aponta para a natureza dos alimentos mais comuns à época, seus humores (frios, quentes, secos, úmidos), os meios ideais de seu preparo e consumo, bem como suas virtudes medicinais, considerando diferenças de sexo e de idade (ABREU, 2011, p. 157-159). a ponto de a gula poder “ceifar-lhe a vida antes da velhice” (PALMESI, 2014PALMESI, Luca. Saber e sabor: corpo, medicina e cozinha na obra de Francisco da Fonseca Henriquez. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014., p. 178). O consumo excessivo de determinados alimentos (e seus efeitos nocivos ao corpo, provocando enfermidades) estava diretamente relacionado com o lugar que os indivíduos ocupavam na hierarquia social. A nobreza, alguns segmentos do clero e a alta burguesia, segundo Gonçalves Ferreira (1990FERREIRA, F. A. Gonçalves. História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990., p. 185), alimentavam-se desregradamente de alimentos cozidos e gordurosos, desencadeadores de diabetes, gota, hipertensão e doenças digestivas e renais. Vigarello, ao analisar livros médicos e de receitas do início do século XVIII, observou que dentre os alimentos considerados mais perigosos, porque favoreciam a obesidade, estavam os cordeiros jovens, peixes de carne gorda, legumes e frutas muito sumosas e alimentos que produziriam muitos gases. Evidenciando a forte presença dos pressupostos humoralistas no período, o mesmo autor afirma que “os limites entre o líquido e o seco, com seus equilíbrios, desordens (...) [eram] os limites entre o saudável e o insalubre, o digestivo e o indigesto, o magro e o gordo” (VIGARELLO, 2012VIGARELLO, Georges. As Metamorfoses do gordo: história da obesidade. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 127-128).

Outro propulsor de enfermidades nas primeiras décadas do século XVIII era o consumo exagerado de açúcar.23 23 Já no século XVI, o geógrafo Ortelius, na obra Théatre de l’Univers, detectou “a mudança que estava ocorrendo em relação à utilização do açúcar ao comentar: ‘Enquanto antigamente só se encontrava açúcar nas boticas dos farmacêuticos que o guardavam para os doentes, hoje devoram-no por gulodice (...). O que ontem servia de remédio, serve hoje de gulodice’” (ALGRANTI, 2005, p. 35). Apesar de considerarem “muito importante a capacidade” do açúcar “de apetecer e de ser recebido com gosto pelos paladares”, os médicos não descuidavam de chamar a atenção para certo afrouxamento das “regras dietéticas”, como se pode constatar na tolerância do médico Henriquez em relação aos excessos do açúcar (PALMESI, 2014PALMESI, Luca. Saber e sabor: corpo, medicina e cozinha na obra de Francisco da Fonseca Henriquez. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014., p. 226-227). Mas, no caso do chocolate, o médico português afirma que seu consumo em excesso poderia ser bastante prejudicial:

não se há de usar com excesso, porque fará os danos de esquentar as entranhas, inquietar os espíritos, esturrar os alimentos, causar febres, indigestões, cólicas quentes, tenesmos, vigílias e outros males de calor, principalmente se se usar em temperamentos quentes, secos e adustos, nos quais não tem tanto lugar como nos frios, úmidos, fleumáticos e pingues; por isto, quando for preciso que pessoas de temperamento quente se valham dele, será em moderada quantidade, que assim o temos usado sem ofensa, não só em naturezas quentes, mas em febricitantes, por razão de alguns sintomas que a isso nos obrigaram (HENRIQUEZ, 2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 250).

Para além da consideração do que se comia, o que nos interessa, vale reforçar, é perceber como médicos e religiosos entendiam e indicavam os resultados físicos e espirituais da exagerada ingestão alimentar. Nem toda literatura médica trazia as consequências espirituais da gula, especialmente, na segunda metade do século XVIII.

A obra de W. Buchan, Medicina Domestica, o Tratado Completo Del Metodo De Precaver y Curar las Enfermedades Com el Regimen, y Medicinas Simples, publicada em Madri em 1785, estabelecia diferenças entre modos de sentir o corpo enfermo a partir de distintas situações e variáveis como clima da região em que se vivia, ar que se respirava e alimento que se consumia. Nessa obra, o médico escocês destacava que “as pessoas que se alimentam delicadamente, mas não são moderadas no uso de bebidas fortes, sofrem males que não afligem aos comedidos e abstinentes”24 24 Trad. livre dos autores: “las personas que se alimentan con delicadeza, y no son parcos en el uso de licores fuertes, sufren males que no afligen al que es templado, y abstinente”. (BUCHAN, 1785BUCHAN, Guilhermo. Medicina domestica, o tratado completo del metodo de precaver y curar las enfermedades com el regimen, y medicinas simples. Madrid: Imprenta de D. Antonio de Sancha, 1785., p. 157). Ao deter-se nas relações entre o tipo de alimento consumido, digestão e saúde, Buchan reforça que “a abstinência muitas vezes cura somente uma febre, especialmente se for ocasionada pelo excesso de comida ou bebida”25 25 Trad. livre dos autores: “la abstinencia solo cura muchas veces una fiebre especialmente si es ocasionada de exceso en la comida, o la bebida”. (BUCHAN, 1785, p. 159). Merece ser destacada a menção à abstinência, associada à contenção no ato de comer, muito próxima ao jejum (BLUTEAU, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728., p. 51) que se assemelha ao proposto pelos autores religiosos, com a finalidade de produzir outros efeitos - de ordem moral - vinculados a certas virtudes, tais como castidade, sobriedade e prudência (BARBA RICA, 1756BARBA RICA, Fr. Joam. Espelho monastico, e catholico, que em discursos moraes, e predicavaes sobre os dictames que para a vida religiosa, e perfeita escreveo o melifluo doutor S. Bernardo no seu Tratado do modo de bem viver. Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1756., p. 23).

Comer demais também podia suscitar doenças ou acentuar dores pré-existentes. O médico suíço Samuel Tissot (1728-1797), na obra traduzida para o espanhol como Tratado de las enfermidades mas frequentes de las gentes del campo (1776), apontava que, em função da icterícia, uma enfermidade “difícil de curar” decorrente “muitas vezes da obstrução dos vasos da bílis”, o fígado poderia padecer, principalmente depois de “ter comido” e “de ter carregado muito o estômago, notadamente com alimentos quentes”26 26 Trad. livre dos autores: “muchas veces de la obstruccion de los vasos de la bílis”; “haber comido”; “si se há cargado mucho el estomago, y usado de cosas cálidas”. (TISSOT, 1776TISSOT, Samuel A. D. Tratado de las enfermedades mas frequentes de las gentes del campo. Madrid: Imprenta de Pedro Marin, 1776., p. 421). O estômago era, sem dúvida, um dos órgãos mais citados quando o assunto era excesso de comida, visto que uma série de males graves podiam acometê-lo. Em relação a esse aspecto, Fonseca Henriquez (2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 52) afirma que os alimentos “ainda que bons, comidos com excesso, subvertem o estômago, que não os pode assimilar bem, por demasiados, de que resultam indigestões, cólicas, cardialgias e uma síndrome de males”.

Com argumentos que visavam a se apresentar como eminentemente científicos, os médicos procuravam, de algum modo, desvincular-se dos discursos morais-religiosos e/ou místicos, na medida em que seus aconselhamentos e recomendações passavam pela tentativa de evitar os enganos advindos dos “charlatões” (MARQUES, 2004MARQUES, Vera Regina Beltrão. Instruir para fazer a ciência e a medicina ao povo no setecentos. Varia Historia, v. 20, n. 32, p. 37-47, jul. 2004., p. 39). Além da higiene e da manutenção da saúde, os médicos procuravam “regrar procedimentos” e normatizar os modos de tratar os doentes e as doenças, disseminando os preceitos de “medicina dita científica”, mesmo em lugares nos quais não eram encontrados (MARQUES, 2004, p. 39). Autores como Tissot e Buchan, por exemplo, propunham que suas obras fossem percebidas como um manual confiável tanto pelos que praticavam a assistência médica sem serem médicos (VIOTTI, 2014VIOTTI, Ana Carolina de C. Entre homens de saber, de letras e de ciência: médicos e outros agentes da cura no Brasil colonial. Clio, v. 32, n. 1, p. 5-27, 2014., p. 14-15), quanto por aqueles que pretendiam cuidar de si mesmos, sem recorrer a médicos ou curandeiros.

Sem qualquer referência de caráter espiritual, Samuel Tissot alertava também para as cólicas que resultavam da indigestão e que estariam diretamente relacionadas com o modo como os indivíduos se alimentavam ou ao que e como era ingerido: o comer demasiadamente de uma única vez; a ingestão, pouco a pouco, de uma série de alimentos que não digerem bem; o consumo de misturas consideradas nocivas ao estômago, como frutas cítricas e leite; ou, ainda, o consumo de alimentos reconhecidamente prejudiciais à saúde ou mal acondicionados (TISSOT, 1776TISSOT, Samuel A. D. Tratado de las enfermedades mas frequentes de las gentes del campo. Madrid: Imprenta de Pedro Marin, 1776., p. 205). A parcimônia no alimentar-se poderia ser atingida por meio de um equilíbrio na quantidade de alimentos ingeridos entre o almoço e o jantar, tal como sugerido também por Henriquez (2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 71), para quem “o certo é que jantar muito, depois do almoço com excesso, se granjeiam achaques e muitas vezes mortes repentinas”.27 27 No século XVIII, as preocupações com mortes aparentes (como os estados de asfixia) ou repentinas eram bastante comuns. O próprio Samuel Tissot dedica um capítulo de sua obra (Tratado de las enfermedades mas frequentes de las gentes del campo, de 1776) a essa temática.

Mas, se alguns autores médicos procuravam seguir preceitos restritos à ciência médica da época, Francisco de Melo Franco afirmava enfaticamente que a gula era “sempre” a causa “não só de todas as enfermidades corporais, mas também das espirituais”, de modo que a sobriedade era o remédio para a “saúde da alma e do corpo” (citado por BREU, 2011, p. 159). Para que fossem evitados “os efeitos nefastos provocados pela gula”, o médico português “indicava os alimentos moderados, como o pão, as ervas e legumes” (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 159).

Em síntese, os efeitos dos excessos alimentares sobre o corpo e sobre a alma mereceram a atenção dos autores religiosos e médicos das obras que analisamos, os quais esforçaram-se para demonstrá-los e instruir seus leitores. Se, por um lado, da gula resultava o comprometimento de uma vivência religiosa adequada, como a regular prática de orações e a crença de que o comer desordenado fragilizava a alma diante dos tormentos infernais, que levavam à consequente condenação eterna; por outro, ela seria capaz de promover uma série de dores, desconfortos físicos, indisposições e doenças que, em última instância, poderiam abreviar o tempo de vida ou mesmo resultar na morte. Assim, ânsias, náuseas, vômitos, sufocações, febres, indigestões e outros problemas vinculados ao estômago e ao fígado, derivados do consumo exagerado de comidas ou bebidas - que podiam também causar perda da razão - estiveram entre os principais temas abordados nos livros médicos que analisamos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os discursos religiosos e médicos sobre a gula revelam, em parte, alguns aspectos acerca dos conhecimentos que circulavam a respeito da saúde, da dietética e da alimentação em Portugal no Setecentos. Embora não tenha sido nosso objetivo o de verificar as dietas alimentares mencionadas em tratados e em receituários, as quais, provavelmente, obedeciam a uma hierarquia social, embora nem sempre em movimento unidirecional, consideramos relevante descrever o universo alimentar português ao qual os leitores dos livros religiosos e médicos que faziam referência à gula tiveram a seu dispor. Sopas, carnes, peixes, mariscos, ovos, galinhas, javalis, perdizes e pombos, além de diversas especiarias como canela, cravo, noz-moscada, açúcar e açafrão, compunham a dieta dos distintos grupos da sociedade portuguesa (MONTELEONE, 2009MONTELEONE, Joana. Sobre reis, livros e cozinheiros: notas para uma pequena história dos tratados de cozinha em português. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula (orgs). O Império por Escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. p. 427-438., p. 434). Também a doçaria ganhava destaque, com notoriedade para os produtos de pastelaria e confeitaria, preparados, em sua maioria, nos conventos de diferentes ordens, e “que incluíam ingredientes como limão, maçã, marmelo, melão, pêssego, pera, amêndoa, açúcar, ovos, frutas, leite, natas e requeijão (BRAGA, 2015BRAGA, Isabel Drumond. Sabores e segredos: receituários conventuais portugueses da Época Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015., p. 15).

Sendo assim, os livros de culinária testemunham a valorização do paladar e da sensibilidade para a identificação do comestível e distinção entre o bom e o ruim (FLANDRIN; MONTANARI, 1998FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998., p. 549). Essa, no entanto, era uma concepção “profana” da alimentação, que não condizia com os entendimentos dos religiosos, especialmente se consideramos a “ascese alimentar”, tão presente na vida de homens e mulheres religiosas, sobretudo daqueles que buscavam copiar o comportamento alimentar dos santos cujas condutas serviam de modelo aos leigos. Os jejuns, tal como as penitências e outras mortificações, tornaram-se, segundo William Martins (2013MARTINS, William de Souza. Um Espelho possível de santidade na Bahia colonial: madre Vitória da Encarnação (1661-1715). Revista Brasileira de História, v. 33, n. 66, p. 209-227, 2013., p. 213), “instrumento recorrente para garantir a submissão do corpo e do espírito a um ideal de vida santa”. Segundo Jacques Gélis, “a privação alimentar” era “a punição mais imediata” que o fiel poderia fazer “ao próprio corpo”, através da abstinência quantitativa e seletiva de alimentos. Assim, jejuns e alimentações frugais eram práticas comuns nos séculos XVII e XVIII, e, em casos mais extremos de comportamento piedoso, havia o consumo de alimentos como pão bolorento misturado com cinzas ou relíquias misturadas em água ou vinho (GÉLIS, 2008GÉLIS, Jacques. O Corpo, a Igreja e o sagrado. In: VIGARELLO, Georges (Dir.). História do corpo. v. 1: Da Renascença às Luzes. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 19-130., p. 56-58). Para a vida religiosa “exemplar”, o requinte do gosto era entendido como porta aberta para o pecado, de modo que os alimentos mais saborosos eram evitados e/ou excluídos da dieta alimentar daqueles que buscavam a virtude, a perfeição e a salvação sem necessidade de passagem pelo Purgatório. Para Braga (2015BRAGA, Isabel Drumond. Sabores e segredos: receituários conventuais portugueses da Época Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015., p. 28), as práticas ascéticas ou “uma certa aversão pela comida” não desapareceram no século XVIII, de modo que a renúncia era entendida como “um instrumento de mortificação”, embora a privação não significasse o desabastecimento ou a desrecomendação do consumo de certos alimentos.28 28 No século XVIII, porém, visitadores dos conventos femininos de Évora, segundo Isabel Braga (2016, p. 158-159) alertavam sobre a “boa administração dos bens alimentares”, como por exemplo, que “nunca faltasse o quarto de galinha para as doentes”.

Dado o grande número de opções de alimentos e de sabores para o deleite dos comensais, os autores religiosos, ao se dirigirem aos fiéis, não apenas reforçavam os exemplos virtuosos de jejuns e abstinências alimentares, como também apontavam para os aspectos práticos e os efeitos físicos dos excessos cometidos. De todo modo, uma consequência física do desregramento no consumo alimentar era o corpo e o ventre pesados, motivo pelo qual tornava-se importante perceber e determinar a quantidade de comida e bebida a ser consumida (ARANHA, 1728ARANHA, Boaventura Maciel. Exercicios admiráveis para os dias do recolhimento interior que costumão, & devem ter as pessoas religiosas, & as que desejão salvarse. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1728., p. 190). Para tal determinação, era necessário aprimorar o autodomínio e o controle de si diante dos tantos “regalos do corpo” que incitavam o desordenado desejo de comer e beber, com o qual a saúde física e espiritual estariam comprometidas (FLECK; DILLMANN, 2013FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Os Sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII. Topoi, v. 14, n. 27, p. 285-317, jul.-dez. 2013., p. 304).

A linguagem religiosa estava também bastante presente nos discursos médicos e essa aproximação entre ideias morais-cristãs e medicina, segundo Bruno Barreiros (2014BARREIROS, Bruno Paulo Fernandes. Concepções do corpo no Portugal do século XVIII: sensibilidade, higiene e saúde pública. Tese (Doutorado em História) - Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014., p. 53), não deve causar estranheza, na medida em que ela visava a “persuadir os indivíduos a transcenderem as suas necessidades (...) em prol do bem comum”. A obra de Samuel Tissot ilustra essa “tendência discursiva”, ao ressaltar que “um regime de vida bem regulado (...) passava pela culpabilização de todos aqueles que se deixavam lesar pela ociosidade, verdadeiro pecado do corpo”, pois, segundo o médico, a ociosidade não só “debilita, e os conduz à gula, que os enfraquece ainda mais”, como também comprometeria a salvação da espécie, pois “nunca terão senão poucos filhos valetudinários” (citado por BARREIROS, 2014BARREIROS, Bruno Paulo Fernandes. Concepções do corpo no Portugal do século XVIII: sensibilidade, higiene e saúde pública. Tese (Doutorado em História) - Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014., p. 53). Essa proximidade entre religião e medicina não estava apenas na formulação das proposições teóricas, mas também na intencionalidade de popularização do conhecimento médico. Assim, Samuel Tissot (1776, p. 22) mencionava que seria grande seu contentamento se as orientações presentes em sua obra fossem adotadas pelos curas, “estes eclesiásticos respeitáveis”, que socorriam as pessoas nas aldeias, munidos de “suas caritativas intenções” para com suas “ovelhas enfermas”. Assim, se, por um lado, constata-se o esforço de diferenciação do saber médico em relação ao empirismo e às “superstições” vigentes (VIOTTI, 2014VIOTTI, Ana Carolina de C. Entre homens de saber, de letras e de ciência: médicos e outros agentes da cura no Brasil colonial. Clio, v. 32, n. 1, p. 5-27, 2014., p. 20), por outro, ficam evidentes as preocupações com o alcance das obras de medicina, visto que a maioria da população ainda buscava cuidados e curas entre religiosos e curandeiros (MARQUES, 2004MARQUES, Vera Regina Beltrão. Instruir para fazer a ciência e a medicina ao povo no setecentos. Varia Historia, v. 20, n. 32, p. 37-47, jul. 2004., p. 40).

Os entendimentos religiosos e médicos, a partir das fontes consultadas - considerando suas especificidades temáticas e seus diferentes objetivos e público-alvo - aproximavam-se por considerarem que a gula impactava diretamente na saúde dos indivíduos, mas também se distanciavam em alguns pontos, especialmente na ênfase dada aos princípios normativos do comer e beber. As obras católicas, embora escritas por autores de diferentes ordens religiosas, reforçavam concepções doutrinárias e morais, ao apontarem para a noção de pecado, tentação e vício em relação ao quanto e como comer, e ao reconhecerem que alimentos e bebidas deveriam ser consumidos apenas o necessário/suficiente para viver. Já os livros de medicina aqui analisados, de F. Henriquez, G. Buchan e S. Tissot, reconheciam, não sem alguma preocupação de ordem moral, que a ingestão exagerada carregava suas variáveis - como a natureza peculiar dos humores de cada pessoa - e poderia trazer prejuízos para a vida com saúde. Esse parece ter sido o principal elemento a diferenciar os discursos religiosos dos médicos, sendo que os últimos estavam muito menos empenhados em condenar certas maneiras de comer e mais preocupados com os efeitos do comer excessivo sobre a saúde.

De todo modo, a análise comparativa permitiu perceber que se a gula podia ser mobilizada pelo apetite voraz, pelo comportamento lascivo, pela tentação das guloseimas, pela ociosidade ou pela desconsolação que impedia o uso da razão (STEIN, 2015STEIN, Tarcila N. “Os dois braços da boa medicina”: a medicina do corpo e da alma na obra de Francisco de Mello Franco. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2015., p. 133), seus efeitos haviam de ser extremamente perigosos para o corpo e para a alma, de tal forma que os médicos e os religiosos empenhavam-se fortemente em alertar seus leitores em relação aos malefícios do consumo alimentar exagerado.

AGRADECIMENTOS

Este texto resulta da conjugação de temas contemplados em investigações realizadas pelos dois autores. Trata-se dos projetos de pesquisa Circulação e apropriação de saberes em obras manuscritas e impressas de Cirurgia na América meridional do Setecentos, coordenado por Eliane Cristina Deckmann Fleck e que conta com apoio do CNPq e da FAPERGS, e O pecado da gula: discursos religiosos em Portugal dos séculos XVII e XVIII, desenvolvido como estágio pós-doutoral por Mauro Dillmann na UFRJ (2020-2021).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Estudos sobre alimentação na América portuguesa têm ganhado relevância na historiografia brasileira (veja-se BACELLAR; MOTT, 2016; ALGRANTI, 2009ALGRANTI, Leila. “Bebida dos deuses”: técnicas de fabricação e utilidades do chocolate no império português. In: ALGRANTI, Leila; MEGIANI, Ana Paula (Org.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. p. 403-426.; SILVA, 2005SILVA, Paula P. Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no Brasil colonial. São Paulo: Senac, 2005.). Outros estudos sobre alimentação/gastronomia a partir de campos do folclore e da psicologia, veja-se CASCUDO, 2016CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2016.; BARCELLOS, 2017BARCELLOS, Gustavo. O Banquete da psique: imaginação, cultura e psicologia da alimentação. Petrópolis: Vozes, 2017.. E sobre alimentação e dietética, ALGRANTI (2012); ARAÚJO; ESTEVES (2015ARAÚJO, Maria Marta L.; ESTEVES, Alexandra (Org.). Hábitos alimentares e práticas quotidianas nas instituições portuguesas. Braga: Diário do Minho, 2015.); BRAGA (2000BRAGA, Isabel Drumond. Portugal à mesa. Alimentação, etiqueta e sociabilidade (1800-1850). Lisboa: Hugin, 2000.; 2015); CARNEIRO (2003CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.; 2010); NOGUEIRA (2018NOGUEIRA, André Luís Lima. “Comida como remédio”: agentes de cura e receitas médicas no setecentos. Revista do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, n. 14, p. 19-40, 2018.).
  • 2
    As faltas consideradas mais graves pela Igreja seriam merecedoras de pena de morte ou capital e eram conhecidas como “pecados capitais”. No século XVIII, eram tidos como pecados a soberba, a avareza, a luxúria, a ira, a gula, a inveja e a preguiça. Para vencer a gula, os confessores recomendavam jejum e abstinência como ações eficazes à sujeição do corpo pecador, sendo, dessa forma, meios possíveis para a aquisição da temperança, do autodomínio e do controle de si.
  • 3
    Todos os livros religiosos mencionados e analisados nesse artigo se encontram disponíveis na versão online.
  • 4
    A obra foi originalmente escrita em latim pelo irmão do tradutor, Francisco de Penamacor Barba Rica. Considerando que, à época, os tradutores desfrutavam de autonomia e liberdade criativa, optamos por manter a referência de autoria ao tradutor.
  • 5
    Fonseca Henriquez (1665-1731) foi médico do rei D. João V e suas obras são bastante exploradas pela historiografia. Âncora medicinal conheceu edições em 1721, 1734, 1754 e 1769 (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.), sendo que, neste artigo, utilizamos a edição de 2004. Em relação à Medicina lusitana, sabemos que a Biblioteca Nacional de Portugal guarda edições de 1710, 1731 e de 1750, e nos valemos da edição de 1731.
  • 6
    Importa referir que o título completo da obra era Aviso al pueblo acerca de su salud o tratado de las enfermedades más frecuentes de las gentes del campo. Às vezes, ela é referida apenas como Aviso ao povo sobre sua saúde, ou, então, em sua edição em espanhol, como Tratado de las enfermidades, o que pode, equivocadamente, levar a crer tratar-se de duas publicações distintas. Em 1786 e 1787, o médico Manoel Joaquim Henriques Paiva traduzia para o português e publicava em três tomos Aviso ao povo acerca da sua saúde, de Tissot, e ainda Hum tratado das enfermidades mais frequentes, tanto internas, como externas, de que não tratou Mr. Tissot na referida obra. Recomenda-se ver o Catálogo da BNP, que também conta com edições de 1796 e 1816.
  • 7
    Autor bastante conhecido em Portugal e no Ultramar, sendo que a historiografia já demonstrou que livreiros do Rio de Janeiro comercializavam, no final do século XVIII, vários livros de medicina, inclusive, essa obra de Tissot (MARQUES, 2004MARQUES, Vera Regina Beltrão. Instruir para fazer a ciência e a medicina ao povo no setecentos. Varia Historia, v. 20, n. 32, p. 37-47, jul. 2004., p. 44-45).
  • 8
    Essa obra teve duas traduções portuguesas: a de Francisco Pujol de Padrell, em dez volumes entre 1788 e 1824 e a de Henriques Paiva, com edições entre 1787 e 1836 (BARREIROS, 2014BARREIROS, Bruno Paulo Fernandes. Concepções do corpo no Portugal do século XVIII: sensibilidade, higiene e saúde pública. Tese (Doutorado em História) - Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014., p. 56).
  • 9
    Sobre os objetivos de Buchan, ver SMITH (1985SMITH, Ginnie. Prescribing the Rules of Health: Self-help and Advice in the late Eighteenth Century. In: PORTER, Roy (Ed.). Patients and Practitioners: Lay Perceptions of Medicine in Pre-Industrial Society. London: Cambridge University Press, 1985. p. 249-282., p. 275). As obras de S. Tissot e G. Buchan foram traduzidas para o português e circularam tanto em Portugal, quanto na América portuguesa e espanhola entre o final do século XVIII e o início do XIX. Veja-se MARQUES (2004MARQUES, Vera Regina Beltrão. Instruir para fazer a ciência e a medicina ao povo no setecentos. Varia Historia, v. 20, n. 32, p. 37-47, jul. 2004.); ABREU (2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.); VIOTTI, (2014VIOTTI, Ana Carolina de C. Entre homens de saber, de letras e de ciência: médicos e outros agentes da cura no Brasil colonial. Clio, v. 32, n. 1, p. 5-27, 2014.). Além disso, foram obras muito elogiadas por médicos, escritores, censores e tradutores, de modo que os próprios editores tratavam de referenciar a fama de Tissot e Buchan em Portugal e a boa acolhida de suas obras em outras nações europeias. Cf. DENIPOTI (2017DENIPOTI, Cláudio. Tratados médicos e a ideia de tradução em Portugal em fins do século XVIII: o caso dos livros de medicina. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 24, n. 4, p. 913-931, out.-dez. 2017., p. 920).
  • 10
    A Biblioteca Nacional de Portugal possui três edições da obra traduzida para o português, a saber, as dos anos de 1788, de 1825 e de 1836.
  • 11
    Se consideramos os tratados e receituários médicos publicados no período, poucos deles tratavam diretamente dos efeitos do consumo alimentar excessivo para a saúde humana. O mesmo não vale, no entanto, para os elementos nutricionais e as virtudes medicinais ou propriedades analgésicas de alguns alimentos no tratamento de determinadas enfermidades (veja-se CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.; 2010).
  • 12
    O historiador francês Roger Chartier considera que os discursos “são produzidos e difundidos em um espaço social específico que tem seus lugares, suas hierarquias e seus objetivos próprios”, portanto, são constituidores de significados e de sentidos para determinadas práticas partilhadas por um mesmo grupo. Assim, pensar as “relações que as obras mantêm com o mundo social” implica considerar as variações entre o texto e as realidades sociais, o texto e as significações e apropriações plurais, o texto e as diversas formas de transmissão e recepção (CHARTIER, 2002CHARTIER, Roger. À Beira da falésia. A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002., p. 258-259).
  • 13
    Entre inúmeros trabalhos, citamos aqui ABREU (2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.); MERLO (2015MERLO, Patrícia. Os Estudos médicos e o (des)conhecimento sobre o corpo no setecentos português. Dimensões, n. 34, p. 50-68, 2015.).
  • 14
    Segundo Georges Vigarello, já no período medieval, os clérigos realizavam críticas ao glutão, ao gordo, fulminando sua “paixão” pelo excesso do comer e do beber e sua “indignidade”. No período moderno, o sujeito gordo seria visto como incapaz, inerte, ineficaz, pesado e “confinado no torpor” e, no século XVIII, seria acrescentada a noção de inutilidade e improdutividade (VIGARELLO, 2012VIGARELLO, Georges. As Metamorfoses do gordo: história da obesidade. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 11, 170).
  • 15
    Expoente, nesse sentido, é a obra A fisiologia do gosto (1825), de Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826). Sobre o prazer à mesa, ver BRILLAT-SAVARIN (1995BRILLAT-SAVARIN. A Fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 170).
  • 16
    Ressaltamos que não nos deteremos, neste artigo, nas transformações ocorridas no ensino e na prática da Medicina em Portugal na segunda metade do século XVIII. Sobre esse tema, recomendamos ver mais em ABREU (2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.).
  • 17
    O médico Fonseca Henriquez (2004HENRIQUEZ, Francisco da Fonseca. Âncora medicinal para conservar a vida com saúde. Cotia: Ateliê Editorial, 2004., p. 47), em Âncora medicinal, traz inúmeros exemplos nesse sentido, apontando para a relação de dependência entre o alimento e a condição estomacal de cada sujeito: “a familiaridade ou aversão que os estômagos têm com os alimentos faz com que sejam bons ou maus e não as qualidades (...) de que são dotados”. E continuava: “não há alimento tão bom que para algumas naturezas não possa ser mau, nem alimento tão mau que para outras não possa ser bom”. A condição de saúde perfeita permitia a ingestão de qualquer alimento, desde que feita com moderação. Ainda assim, alimentos diversos (carnes, peixes, legumes, raízes, frutos) e bebidas (água, vinho, café, licores) possuíam propriedades medicamentosas que o autor tenta, ao longo da obra, demonstrar.
  • 18
    Cf. CASTELO-BRANCO, 1990CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa seiscentista. Lisboa: Livros Horizonte, 1990.. Mais informações sobre alimentação, saúde e doença em Portugal na época moderna, ver FERREIRA, 1990FERREIRA, F. A. Gonçalves. História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990..
  • 19
    Analisando a dietética e a alimentação no Convento de Nossa Senhora dos Remédios de Braga, Leila Algranti (2012ALGRANTI, Leila. Refeições festivas e cotidianas em Portugal no século XVIII: as religiosas do Convento de Nossa Senhora dos Remédios (Braga). In: ANDRADE, Marta Mega; SEDREZ, Lise; MARTINS, William (Org.). Corpo: sujeito e objeto. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. p. 203-220., p. 205-210) observou que a carne de vaca era um alimento “típico dos altos segmentos da sociedade europeia” e fazia parte da alimentação conventual. O pão também tinha importância, mas na dieta de “todos os segmentos sociais” portugueses, sendo utilizado em sopas, migas e açordas.
  • 20
    Veja-se, por exemplo, as críticas de Luís António Verney, em Verdadeiro Método de Estudar (1746VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar: para ser útil à Republica, e à Igreja, proporcionado ao estilo, e necessidade de Portugal. Valensa: Oficina de António Balle, 1746. Disponível em: <http://purl.pt/118>. Acesso em: 04 out. 2020.
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    ) às concepções hipocráticas e galênicas na medicina (MERLO, 2015MERLO, Patrícia. Os Estudos médicos e o (des)conhecimento sobre o corpo no setecentos português. Dimensões, n. 34, p. 50-68, 2015., p. 59-65).
  • 21
    O consumo do vinho como remédio era bastante defendido no século XVIII, mas o abuso poderia trazer inúmeras enfermidades, tais como tísica nervosa, letargo, apoplexia e paralisia, como observou o médico português Francisco de Melo Franco (VIOTTI, 2017VIOTTI, Ana Carolina de C. As Práticas e os saberes médicos no Brasil Colonial (1677-1808). São Paulo: Alameda, 2017., p. 108).
  • 22
    O autor de Âncora Medicinal aponta para a natureza dos alimentos mais comuns à época, seus humores (frios, quentes, secos, úmidos), os meios ideais de seu preparo e consumo, bem como suas virtudes medicinais, considerando diferenças de sexo e de idade (ABREU, 2011ABREU, Jean Luiz N. Nos Domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011., p. 157-159).
  • 23
    Já no século XVI, o geógrafo Ortelius, na obra Théatre de l’Univers, detectou “a mudança que estava ocorrendo em relação à utilização do açúcar ao comentar: ‘Enquanto antigamente só se encontrava açúcar nas boticas dos farmacêuticos que o guardavam para os doentes, hoje devoram-no por gulodice (...). O que ontem servia de remédio, serve hoje de gulodice’” (ALGRANTI, 2005ALGRANTI, Leila Mezan. Alimentação, saúde e sociabilidade: a arte de conservar e confeitar os frutos (séculos XV-XVIII). História: Questões & Debates, n. 42, p. 33-52, 2005., p. 35).
  • 24
    Trad. livre dos autores: “las personas que se alimentan con delicadeza, y no son parcos en el uso de licores fuertes, sufren males que no afligen al que es templado, y abstinente”.
  • 25
    Trad. livre dos autores: “la abstinencia solo cura muchas veces una fiebre especialmente si es ocasionada de exceso en la comida, o la bebida”.
  • 26
    Trad. livre dos autores: “muchas veces de la obstruccion de los vasos de la bílis”; “haber comido”; “si se há cargado mucho el estomago, y usado de cosas cálidas”.
  • 27
    No século XVIII, as preocupações com mortes aparentes (como os estados de asfixia) ou repentinas eram bastante comuns. O próprio Samuel Tissot dedica um capítulo de sua obra (Tratado de las enfermedades mas frequentes de las gentes del campo, de 1776) a essa temática.
  • 28
    No século XVIII, porém, visitadores dos conventos femininos de Évora, segundo Isabel Braga (2016BRAGA, Isabel Mendes Drumond. Conventos femininos e religiosidade subvertida: Évora, séculos XVII e XVIII. In: HERMANN, Jacqueline; MARTINS, William de Souza (Org.). Poderes do sagrado: Europa católica, América ibérica, África e Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Multifoco, 2016. p. 139-172., p. 158-159) alertavam sobre a “boa administração dos bens alimentares”, como por exemplo, que “nunca faltasse o quarto de galinha para as doentes”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2020
  • Revisado
    10 Nov 2020
  • Aceito
    17 Dez 2020
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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