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Dos autos da cova rasa: a identificação de corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960

RESENHAS

MESQUITA FERREIRA, Letícia Carvalho de. Dos autos da cova rasa: a identificação de corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro: e-papers, 2009. 197 p.

Patricia Kunrath Silva* * Mestranda em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

O livro Dos autos da cova rasa: a identificação de corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960, de Letícia de Carvalho de Mesquita Ferreira, fruto de um trabalho elaborado inicialmente como dissertação de mestrado, remete o leitor a um universo de esquecimento, em que fichas e registros burocráticos, sepultados em arquivos, registram o abandono e a desimportância de pessoas que tiveram seus corpos categorizados como "não identificados". A autora parte da ideia de que, embora possa parecer a um olhar superficial que haja corpos essencialmente destituídos de identidade, a realidade exprime o contrário, a não identificação implica um "processo criador", de construção e atribuição de identidade.

Trata-se de uma etnografia que aponta para o registro de relações de desigualdade, em corpos que foram "identificados" e tiveram seus respectivos documentos arquivados sob designação de "um homem desconhecido", "um feto", "uma mulher", "uma mulher desconhecida". Os cadáveres "não identificados", muitas vezes vulgarmente chamados de indigentes e desprovidos de laços sociais, aparecem como cadáveres cujas identidades foram burocraticamente construídas e certificadas por meio de "laços estabelecidos entre o corpo, o Instituto Médico-Legal, delegados e comissários de polícia, hospitais, cartórios e toda uma multiplicidade de funcionários, repartições, instituições e processos de documentação" (p. 26).

Dividido em três capítulos, o livro apresenta as diferentes etapas da pesquisa realizada e conduz à reflexão de que a vala comum serve aos corpos se revelaram sem importância suficiente que justificasse buscas por mais referências, mesmo àqueles que, tendo identificados seus nomes próprios, ocupações e endereços, encontravam-se em vida à margem da estrutura social.

Com referência na genealogia do método clínico construída por Michel Foucault (1987) – obra em que o autor apresenta o cadáver entregue à dissecação nos estudos de anatomia como mais do que a encarnação do fenômeno da morte, como o espaço discursivo em que se daria o desvelamento da verdade – a autora constrói seu objeto de pesquisa. Buscando explorar, em outro plano e escala, a premissa dos corpos enquanto espaços discursivos, o estudo procede demonstrando que esses cadáveres não identificados são espaços discursivos das verdades acerca das identidades.

Tendo ainda como aporte teórico autores como Weber, Durkheim e Mauss, Bourdieu, Herzfeld, Bauman e Reis, ao longo dos capítulos o leitor é guiado em uma de tentativa de pensar a burocracia administrativa no processo de identificação dos corpos não identificados, bem como "descortinar contingências, relações, papéis e pessoas envolvidas neste processo [...] no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, entre 1942-1960" (p. 33). A autora soma ainda a ideia de que "os procedimentos constitutivos desta identificação guardam particularidades e se destinam a corpos também particulares" (p. 33).

No primeiro capítulo – "Identificando os não-identificados" – a classificação dos não identificados é situada entre as práticas de identificação, em seguida demonstrando que estas são partes dos processos de formação do Estado nacional moderno, na medida em que este se constitui identificando indivíduos, controlando a propriedade de bens e mapeando espaços. A figura do "homem desconhecido" é assim apresentada como uma figura suspeita, em uma sociedade que busca controlar a criminalidade; embora não haja outro porquê, o simples fato de ser "desconhecido", logo, não identificado, justificaria tal suspeita. Dessa forma, as autoridades, diante de sua "ameaça", deveriam buscá-lo, conhecê-lo e controlá-lo, argumento que permeia empreendimentos classificadores como a identificação dos não identificados, as intervenções específicas a esses cadáveres num processo que seria tão atribuidor de status quanto os destinados a situar indivíduos vivos, seus corpos e grupos em espaços geograficamente delimitados. A autora apresenta ainda o formato dado a essa identificação no Brasil, por meio do método datiloscópico – impressões digitais, ponte com o sistema criminal – e do registro geral RG.

Após apresentar os principais documentos que acompanham os corpos não identificados em sua trajetória – desde a sua remoção do local onde foram encontrados, a sua entrada no Instituo Médico-Legal, aceite ou rejeição, até chegar na vala comum –, no capítulo 2, intitulado "Os vários nomes do anonimato", a autora apresenta algumas das fichas que compuseram sua "aldeia-arquivo" de pesquisa e dez aspectos da lógica classificatória utilizada pela organização burocrática responsável no processo de identificação dos "não identificados":

1 – Nomeação de cadáveres com designações genéricas, tais como "um homem", "um feto", "uma mulher desconhecida", etc., a partir da guia de remoção – documento apurado como possuidor de peso superior em relação aos demais, uma vez que seu conteúdo tende a ser reproduzido em todos os outros.

2 – Os documentos arquivados nas fichas dos cadáveres não se prestam exatamente à sua individualização, mas sim os singularizam para possibilidade de localização em arquivo.

3 – Constante repetição, nos diversos documentos de cada ficha, de dados referentes ao corpo e sua morte, combinada com a demonstração de desconhecimento de certas informações.

4 – Frequente presença de "dados soltos" em alguns documentos arquivados, "informações avulsas", tais como profissão, nacionalidade e/ou endereço.

5 – Economia de esforços por parte dos funcionários da organização envolvida nas trajetórias dos corpos revelada nas fichas.

6 – Inadequação e aparente descuido material com os documentos.

7 – Exibição de um suposto controle e cuidado totais de corpos e territórios pelos agentes envolvidos configurada nos documentos.

8 – Alto valor agregado ao procedimento de remoção do corpo.

9 – Importância desigual dos documentos arquivados em cada ficha.

10 – Lugar atribuído à palavra "indigente": segundo a autora, entre 1942-1960, período pesquisado, este não era um dos nomes genéricos atribuídos a esses corpos na organização burocrática que com eles lidavam.

A autora apresenta ainda uma entrevista realizada com um médico-legista, mestre em administração pública e funcionário de um Instituto Médico- Legal brasileiro que não o IML-RJ e cuja identidade foi mantida em sigilo. A entrevista veio a confirmar as observações da pesquisadora e, com aporte em Norbert Elias (2000), foi tecida uma reflexão acerca do local de fundo, de bastidores escondidos, para onde é "empurrada" a imagem da morte em nossa sociedade devido ao impulso civilizador.

Já no capítulo 3, "O saber de uns, a morte de outros", a autora distribui as fichas pesquisadas em cinco grupos por ela denominados: Corpos Liminares, corpos de fetos ou recém-nascidos, que muitas vezes têm sua própria condição de vida questionada e/ou negada, possuem um status ambíguo e suas fichas não respondem à questão de se houve morte; Corpos Recusados, aqueles que são enviados para outras instituições e não são submetidos à necropsia no IML-RJ por ser negado indício de morte criminosa ou suspeita; Corpos Conhecidos, aqueles sobre os quais se sabe alguma coisa, mas prevalece um amplo desconhecimento; Corpos Identificados, aqueles que apesar de uma gama extensa de desconhecimento registram o dado que a classificação de não identificado nega por definição: o nome próprio, e os Corpos Indigentes, que englobam também os outros quatro grupos.

Ao longo do texto é possível observar como, nas próprias fichas dos cadáveres, figura a sua "irrelevância". A autora encerra seu texto com uma citação de Saramago, afirmando que "a morte tem inegável serventia a poderes de Estado" (p. 160). Tendo constatado que esses corpos, além de literalmente enterrados em uma vala comum, são registrados em uma vala comum documental, o trabalho não se propõe a encerrar questões. Pelo contrário, nos deixa em aberto reflexões sobre as condições de trabalho dos profissionais das organizações burocrático-administrativas, a percepção de valor do trabalho executado pelos funcionários da mesma, o peso da impessoalidade do trabalho burocrático, enfim, tópicos que podem ser diretrizes a desdobramentos futuros.

  • ELIAS, N. The civilizing process: sociogenetic and psychogenetic investigations. Massachusetts: Blackwell, 2000.
  • FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
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    Mestranda em Antropologia Social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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