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Juventude rural e vivências da sexualidade

Rural youth and their experiences with sexuality

Resumo

O artigo apresenta os sentidos atribuídos por jovens rurais às vivências da sexualidade. Desde a perspectiva sociológica, seguindo as pistas analíticas da teoria da estruturação, realizamos uma pesquisa de ordem qualitativa, na qual ganha destaque a linguagem como meio de acesso à subjetividade dos depoentes. A investigação foi realizada em Orobó, Pernambuco, Brasil. Participaram 27 jovens estudantes, com idades entre 15 e 29 anos. Concluímos que, na orientação da vida sexual, mais do que os conhecimentos adquiridos no universo acadêmico por onde transitam, prevalecem crenças e valores adquiridos na comunidade rural durante a trajetória de vida desses jovens.

juventude rural; corpo; reflexividade moderna; saber tradicional

Abstract

This article presents the meanings attributed to experiences with sexuality by rural youth. This qualitative study from a sociological perspective follows the analytical lines of structuration theory, highlighting language as a means of accessing the subjectivity of the interviewees. The research was conducted in Orobó, Pernambuco, Brazil and involved 27 students aged 15 to 29. We conclude that in terms of sexual orientation, the beliefs and values acquired in the rural community by these young people prevailed over knowledge they acquired in the academic universe during the trajectory of their lives.

rural youth; body; modern reflectivity; traditional knowledge

Recentemente, o Ministério da Saúde publicou dados que mostram que o Brasil passa por uma “epidemia de sífilis” (Brasil, 2016). Sendo transmitida por via sexual, a sífilis coloca em pauta o debate sobre a condução da relação sexual, principalmente entre jovens, que constituem, pelos dados revelados no relatório citado, a parcela da população mais afetada pela doença. Apesar da ampla informação disponível aos jovens a respeito dos modos de prevenção de doenças infectocontagiosas, esses dados mostram que eles são agentes ativos na expansão da doença. No Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde ( Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.47, n.35, Sífilis 2016. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-sifilis-2016. Acesso em: 21 set. 2020. 2016.
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/bo...
), publicado em 17 de maio de 2016, consta a informação de que, em 2014 e 2015, a sífilis adquirida teve aumento de 32,7%. O maior número foi registrado em jovens com idades entre 20 e 39 anos, alcançando 227.663 casos. A quantidade de mulheres infectadas foi de 164.264.

Qual a razão dessa situação contraditória? Para responder a esse questionamento, as observações realizadas em nossa pesquisa nos autorizam a afirmar que uma das causas que favorece a disseminação de doenças infectocontagiosas, entre as quais mencionamos a sífilis, é a ruptura entre os conhecimentos adquiridos sobre saúde sexual e a orientação racional das práticas sexuais dos jovens rurais. Por outras palavras, nas falas dos depoentes observamos que, na condução das experiências sexuais, mais do que a racionalidade própria da reflexividade moderna, prevalece a força coercitiva do saber tradicional. Observamos que, em relação à sexualidade, o silêncio prevalece em sala de aula. O conhecimento adquirido pelos jovens rurais ocorre no acesso que eles têm às novas tecnologias de informação e em conversas informais com colegas e amigos, nos debates que se desenrolam espontaneamente nos corredores ou nos espaços de convivência das instituições educativas. Enquanto nesses encontros casuais a sexualidade é debatida sem inibição, no âmbito familiar, no diálogo com os pais e parentes, esse tema é recalcado, elencado pelos jovens como o assunto sobre o qual “em casa não se pode falar”. Os espaços de socialização por onde os jovens rurais transitam se caracterizam pelo contraste entre a expansão e o recalque, entre a fluidez discursiva e o silêncio forçado. Fica evidente que esses espaços são constituídos por modos de sensibilidade e de pensamento diferentes entre si. Cada um deles incide nas representações das vivências sexuais que os jovens rurais constroem. Como isso ocorre? Qual a melhor estratégia teórico-metodológica para abordar esse fenômeno?

Definimos nossa pesquisa como sendo de caráter qualitativo. Analisamos, a partir da perspectiva do ator social, a intersecção entre os significados atribuídos e as práticas relativas ao exercício da sexualidade em jovens rurais. Os dados aqui apresentados são um recorte de uma ampla investigação voltada para o estudo da inserção de jovens rurais em cursos de ensino superior no Nordeste brasileiro. De outubro de 2013 a outubro de 2016, observamos um grupo de jovens moradores de áreas rurais de Orobó, município situado no estado de Pernambuco. Orobó tem 22.878 habitantes, 75,1% dos quais asseguram o sustento mediante o uso da terra, fato que, segundo o IBGE (2010)IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos 2010. Inovações e impactos nos sistemas de informações estatísticas e geográficas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE. 2010. , permite considerar essa região “meio rural”. Convidamos 27 estudantes para participar da pesquisa. Deles, dez fazem faculdade e 17 cursam o terceiro ano do ensino médio. Foram 12 homens e 15 mulheres. Embora frequentem instituições diferentes, os estudantes universitários ou do ensino médio adquirem informação mediante o uso das novas tecnologias. Nesse sentido, todos dispõem de conhecimentos relativamente semelhantes sobre a sexualidade humana. Aplicamos entrevistas semiestruturadas, fizemos quatro encontros de um grupo focal e vivenciamos um processo de observação participante nos locais onde esses jovens moram, isto é, em cinco comunidades, na sede municipal e em um distrito. Para o recorte etário dos participantes de nossa pesquisa, adotamos o critério do Conselho Nacional da Juventude/Unesco, que define como jovem os “atores” sociais que se encontram na faixa etária compreendida entre 15 e 29 anos de idade.

As comunidades onde os jovens investigados moram têm estreito contato com a natureza e transformam suas vivências em um tipo de conhecimento que se transmite, especialmente pela oralidade, de geração para geração. Em sintonia com Wanderley (2009)WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. O mundo rural como espaço de vida, reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 2009. , esse fato nos permite afirmar que o universo desses jovens é marcado por fortes traços de um tipo de saber tradicional. No entanto, como acima descrito, os jovens pesquisados são estudantes. Assim, nas linhas seguintes descreveremos a vivência da saúde sexual desses jovens a partir do agenciamento do conhecimento científico e do saber tradicional incorporado por eles no mundo rural. Para definir o roteiro de nossa pesquisa, seguimos as pistas analíticas da teoria da estruturação.

A teoria da estruturação, de Anthony Giddens (2013)GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 2013. , sugere que a vida social é formada por uma realidade objetiva externa ao sujeito. Uma realidade que é produzida e reproduzida por ações individuais. Seguindo as pistas analíticas de Giddens (2013GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 2013. , p.19-29), é possível abordar a vida social a partir de duas categorias: o agente e os processos de interação. Dessa forma será possível perceber a influência do agente na dinâmica social e a influência da sociedade no modo de agir do agente. O fato de nossos interlocutores serem estudantes nos coloca diante de atores sociais reflexivos, isto é, capazes de estar sempre pensando, analisando ou refletindo a respeito da forma como conduzem suas vidas. No entanto, seu contexto vital é o mundo rural, lugar onde existe forte influência de costumes e tradições na orientação das ações individuais. Assim, optamos por priorizar os modos de linguagem como via de acesso ao processo de influência mútua entre os jovens e suas comunidades na condução da vivência da saúde sexual.

A juventude rural

Segundo Philippe Ariès (1981)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC. 1981. , a juventude se tornou um fato social claramente identificado nos alvores do século XX. Poderíamos dizer que a noção de “juventude” designa o período da vida cuja definição corresponde mais a um estatuto social do que a uma etapa dos desenvolvimentos físico e psicológico pelo qual passa um indivíduo. De fato, o que denominamos juventude varia de um tipo de sociedade para outro. Em nosso estudo, adotamos a expressão “juventude rural”. Ela surgiu na década de 1960, a partir dos debates sobre o avanço do capitalismo e das crescentes formas de exclusão social. Foi construída por sindicatos, movimentos sociais, linhas de pesquisa acadêmicas, operadores do Estado e por outras instituições que buscavam analisar o processo por meio do qual os modos de vida são reproduzidos na sucessão geracional. Na prática da sociologia rural, tal categoria permite, entre outros aspectos, pesquisar as oportunidades de trabalho e acesso a bens que se constituem em fundamentos indispensáveis para a permanência da população jovem no campo. Segundo Nazareth Wanderley (2009)WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. O mundo rural como espaço de vida, reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 2009. , “juventude rural” pode ser definida como uma noção que remete a jovens que vivenciam uma situação juvenil específica, no sentido em que têm o meio rural como “lugar de vida”, como espaço a partir do qual eles tecem processos de interação social e constroem suas visões de mundo.

Entendemos que o meio rural é heterogêneo e multifacetado. Assim, para estudar os processos sociais que nele se desenvolvem, é preciso levar em consideração os diversos contextos e processos sócio-históricos que o formam. Os jovens rurais aqui estudados vivenciam uma dimensão desse rural na condição de filhos de agricultores. No entendimento de Helena Wendel Abramo (Abramo, Branco, 2005, p.39 e s.), o cotidiano desses jovens transcorre em um “modo de vida” que tem a terra, o trabalho e a família como elementos interdependentes, como elos que articulam a unidade social. Nesse contexto, a família é considerada responsável pela manutenção da ordem moral, como propulsora dos princípios que orientam os modos de ação de seus membros.

No campo da sociologia rural, predominam estudos focados nas formas de reprodução da vida camponesa e no impacto dos processos econômicos na vida dos agricultores e trabalhadores rurais. Na maior parte desses estudos, prevalece a percepção da coletividade e certa omissão das peculiaridades dos sentimentos dos diferentes gêneros e gerações que no mundo rural se tecem. Assim, as diferenças geracionais, apesar de serem perpassadas por conflitos e afetos, têm sido reduzidas ao seio da família e relegadas a um segundo plano por uma visão generalizada de certo modelo de família camponesa. Contudo, essa omissão está mudando nas últimas décadas.

São escassos os trabalhos que procuram dar visibilidade às emoções, aos sentimentos, aos sentidos do corpo, às vivências da sexualidade e da saúde reprodutiva da juventude rural. Como exemplo dessa carência, citamos as recentes publicações da Revista ALASRU: Análisis Latinoamericano del Medio Rural . O periódico compila e publica os principais trabalhos que realizam os pesquisadores vinculados à Asociación Latinoamericana de Sociología Rural. Perscrutando as publicações da ALASRU, observamos que nenhum trabalho aborda a vivência dos sentimentos ou o gerenciamento da vida sexual dos jovens nas sociedades camponesas.1 1 A revista pode ser acessada em: < http://www.alasru.org/index.php/revista> . Em face dessa carência, o presente artigo busca contribuir com o preenchimento de tal lacuna ao problematizar a saúde sexual de jovens camponeses. Definimos como foco para nossa análise os significados que os jovens atribuem à saúde sexual a partir da reflexividade acadêmica e das crenças coletivamente partilhadas no mundo rural. Para tanto, é preciso entender como esses atores sociais inscrevem seu corpo e suas emoções em uma teia de significados e atitudes que afetam seus modos de interação social, ao mesmo tempo que modificam seu olhar sobre si e sobre os outros atores sociais.

As relações amorosas entre os jovens rurais

A categoria gênero designa as práticas coletivas relacionadas à diferenciação social entre os dois sexos. Ela tem vantagem sobre a palavra “sexo” porque sublinha a necessidade de separar as diferenças sociais das diferenças biológicas. Segundo Scott (1991)SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS Corpo. 1991. , a categoria “gênero” dá relevância aos sistemas de significação, que sem dúvida merecem atenção redobrada, porque é por meio deles que podemos compreender a formação e a estruturação das relações sociais. Portanto, não é de estranhar que tal categoria seja indispensável em qualquer estudo que procure mergulhar no mundo dos sistemas de significação, que nos darão o passaporte para uma interpretação mais aproximada da realidade.

Partindo desses pressupostos, fazemos uma reflexão que busca os sentidos e os significados das relações de gênero. Pelo viés do gênero, observamos a maneira por meio da qual se dá a divisão masculino/feminino ou a dicotomia homem/mulher, e ao mesmo tempo fazemos um mapeamento das áreas semânticas e sua relação com as ações relacionadas ao gênero. Para que esse mapeamento seja possível, posto que nossa reflexão se pauta na busca da compreensão das ações humanas, é necessário também ter como foco central de análise os sistemas simbólicos que são a base das significações das coisas. Dessa forma, é necessário entender que as questões de gênero extrapolam o nível das ações sexuadas.

Na execução de nossa pesquisa, observamos que as significações de gênero são amplas, uma vez que englobam uma infinidade de conteúdos e fatores sociais que estão presentes nas coisas, instituições, pessoas, brincadeiras e, quase sempre, nos sistemas de relações sociais. Nesse sentido, verificamos que as relações de gênero aparecem no mundo dos jovens observados como questões norteadoras da experiência sexual vivenciada por eles em suas trajetórias de vida. Mas essa tendência diverge entre homens e mulheres, talvez por estar ancorada em teias de significados diferenciados. No quadro geral das interações humanas, observa-se que os significados das ações são atribuídos pelos indivíduos a partir de padrões de comportamento estabelecidos em seus contextos históricos e culturais. Dessa forma, ações semelhantes podem ter significados diferentes entre culturas. Por exemplo, o empoderamento feminino é observado como uma tendência predominante. Nos discursos midiáticos, afirma-se que a liberação sexual feminina alcançou todas as mulheres, mas em nossa pesquisa constatamos que as representações com relação a valores ligados à sexualidade são bastante diferenciadas. Por exemplo, a virgindade dos homens é paradoxal em relação à percepção da virgindade das mulheres. É possível que a divergência nesse modo de percepção resulte da influência de crenças religiosas e da ativação de processos disciplinares impostos desde a infância aos indivíduos pelos sistemas sociais onde eles transitam.

Dos ritos de passagem da infância para a juventude, observamos nos jovens rurais de Orobó que os contatos sexuais ganham destaque no sentido em que eles são os mais representativos para que um indivíduo, na condição de menino, ganhe o status de homem. Em outras palavras, para se tornar homem, o rapaz necessita do corpo feminino. Já para as moças, passar da etapa da infância para a de mulher socialmente aceita está condicionada à celebração do ritual do casamento, quando enfim se espera a relação sexual por parte dela. Se porventura uma jovem se permite manter relações sexuais antes do casamento, ela passa da condição de “moça direita” para a de “moça perdida” ou “mulher perdida”. A vivência da sexualidade imprime sobre o corpo do rapaz a marca da masculinidade, no corpo da “moça”, a marca da transgressão. Em outras palavras, poderíamos dizer que a sociedade imprime sua marca no corpo dos jovens. De fato, sabe-se que o processo de construção da identidade de um indivíduo é atingido por questões relativas, entre outros aspectos, a raça, gênero, classe, geração e nacionalidade. Essas questões afetam a identidade sexual. Podem definir os traços caraterísticos de um indivíduo concreto. Esses traços, por sua vez, acabam se tornando marcadores sociais, mecanismos de coerção individual capazes de interferir na forma de viver a identidade sexual. Contudo, a identidade sexual não é estanque; mesmo internalizada e por vezes exercida de forma inconsciente, ela não deixa de ser processual. Em qualquer momento ela pode ser perturbada ou atingida por diversos fatores de ordem social, que podem levar um indivíduo a desencadear vivências de transformação ou de subversão dos modos de exercer a sexualidade tolerados pela sociedade.

Para apreender as peculiaridades das vivências da sexualidade dos jovens rurais de Orobó, priorizamos, num primeiro momento, as formas de linguagem usadas em seu cotidiano. Nesse sentido, a filosofia da linguagem de Wittgenstein (1994)WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp. 1994. nos alerta que, para apreender as singularidades da vida social, é preciso revisar a natureza da linguagem e sua significação na vida coletiva. Essa preocupação, em certa medida, obedece ao fato de que os limites da linguagem constituem também o limite do mundo. Em outras palavras, pode-se dizer que o ser social de um indivíduo se torna explícito ou se manifesta nas categorias da linguagem. Para Wittgenstein, a linguagem é uma expressão da maneira humana de estar no mundo. Nessa linha de pensamento, as categorias locais de classificação dos jovens se tornam pertinentes.

As palavras “rapazes” e “moças” são categorias êmicas classificatórias que indicam modos de percepção construídos sobre princípios morais. “Rapaz” diz respeito aos jovens do sexo masculino e, em geral, homens solteiros. O termo “moça” não faz referência simplesmente à idade ou à condição de solteira. Remete àquelas jovens que ainda não iniciaram a vida sexual. Em Orobó, moça é sinônimo de virgem, e uma jovem/moça usufrui de respeito social e distinção moral. Assim, observamos que as relações sociais que estabelecem as jovens que são vistas como “não virgens” são pautadas em modos de interação pouco respeitosos, em razão de elas serem estigmatizadas e tidas como mulheres feitas ou “moças perdidas”, inadequadas para o casamento.

No trabalho de campo, observamos que rapazes e moças constroem sua identidade de forma relacional e de fluxo contínuo, a partir de suas vivências no meio rural de Orobó. Assim, definir-se como rapaz, que vive no meio rural, pressupõe vivenciar uma experiência de autovaloração no ato de confrontar-se com o “outro”, com os rapazes da cidade, os adultos, as moças e outros rapazes rurais que moram em lugares ainda mais distantes do centro urbano. No confronto com o outro, o corpo desempenha um papel importante. Dotado de traços peculiares, o corpo do jovem camponês analisado pode ser visto como possuidor de conteúdo comunicacional. Com seu corpo, o jovem camponês descreve uma identidade singular, que se revela na forma de saudar, na maneira de trajar suas roupas, nas posturas corporais, gestos, falas, jeito de andar e interagir. Nesse conjunto de atividades corporais, procuramos compreender os modos de expressão da sexualidade do jovem camponês.

Em nossa pesquisa de campo, observamos que a percepção dos jovens acerca do exercício da sexualidade está orientada por valores que perpassam posturas, sentimentos, sentidos e usos corporais. Esses valores têm suas raízes nos modos de vida que se tecem no âmbito da família patriarcal camponesa.2 2 Segundo Göran Therborn (2006, p , p.34 e s.), o “patriarcado” pode ser entendido como uma forma de organização social alicerçada na figura do pai, o qual deve ter controle, poder e dominação sobre filhos, filhas, esposa e serviçais. No caso das famílias rurais de Orobó, o saber que norteia suas ações encontra seu fundamento na moral católica. Em certa ocasião, conversamos com um jovem a respeito de virgindade. Em seus argumentos, observamos que a vivência desse valor é diferente para homens e mulheres. Apoiado nos mais diversos argumentos, nosso depoente insistia na importância de a mulher jovem permanecer virgem. Segundo ele, a mulher deve ser “pura”, a exemplo de Nossa Senhora.3 3 Uma das práticas religiosas mais cultivadas nas comunidades rurais do Nordeste do Brasil é a devoção à Nossa Senhora, à Virgem Maria, Mãe de Jesus. As “Filhas de Maria” ou as devotas da “Mãe Rainha” são associações que em seus ensinamentos insistem em colocar a figura da Virgem Maria como modelo de ser mulher. O corpo da moça não deve ser tocado. Ela deve manter total domínio sobre qualquer emoção relacionada ao prazer. Seu corpo deve ser preservado por ela, por sua família e pela sociedade. Dessa maneira, orientado por princípios religiosos, o controle social do corpo da moça deve ser expresso na forma como ela se veste, porta-se e se relaciona com os outros.

No convívio com os outros, é a jovem que tem o desafio de “se fazer respeitar”. Em uma relação afetiva, o respeito prodigado à moça é interpretado pelos rapazes como uma forma de contribuir para que o corpo da jovem continue “casto”. No entanto, os cuidados com a virgindade no mundo rural por nós pesquisado parece ser uma obrigação social que recai com rigor tão somente sobre as mulheres. De fato, a castidade parece ser uma prática que não condiz com os padrões de masculinidade que identificam os homens de Orobó. Nesse contexto, pode-se pensar que desejo e necessidade se conectam, procurando sua imediata satisfação. Observamos que aos jovens comprometidos, como aqueles que se encontram em um namoro ou noivado com uma moça de “família”, é permitido procurar mulheres “por fora”, a fim de satisfazer as necessidades “físicas” de sexo. Para os homens, o amor é desvinculado do sexo, e as experiências sexuais do noivo ganham a forma de dádiva, de algo que se recebe sem pedir. A tolerância das moças a esse tipo de traição encontra seu fundamento na razão, no fato de saber que elas não podem proporcionar o prazer que os homens buscam na juventude como fase da vida. Ao questionar uma jovem sobre possíveis relações sexuais de seu namorado com outra mulher, ela respondeu:

Se ele me pedisse para fazer sexo e eu não quisesse, ele poderia dizer assim: ‘Eu pedi para você e você não quis’. Nesse caso eu perdoaria. É sim. O homem é sempre um garanhão ... mas para a mulher é complicado. Se o pessoal souber poderia dizer: ‘Essa mulher é safada’. E já com o homem é do outro jeito. Se apanharem ele com outra mulher, com certeza diriam: ‘Eita! Aquele é um garanhão mesmo’ (M.N., 18 anos, sexo feminino, comunidade de João Gomes).

Relatos como o de M.N. mostram que os códigos morais incidem no modelamento dos sentimentos. O ciúme, por exemplo, é um sentimento que encontra seus canais de expressão conforme as condições sociais em que o agente está inserido. No caso das moças de Orobó, o ciúme é controlado e orientado de forma racional em razão da necessidade das moças de preservar a relação amorosa e, ao mesmo tempo, evitar o contato sexual do casal. Ao naturalizar a necessidade de sexo do rapaz, a moça separa o prazer do amor. Essa separação se torna um traço da identidade da moça, um traço que a denota como mulher “direita”, apta para um “bom” casamento. Na privação do prazer ela se revela merecedora de amor e respeito. Enquanto a “outra”, a mulher com quem o namorado ou noivo se relaciona por prazer, é vista com despeito. Pela abstenção de fazer sexo, a moça ganha distinção social, reconhecimento pela capacidade de controlar seus desejos. A moça percebe o amor desvinculado do corpo ou para além dele. Para ela, o prazer é compreendido dentro de uma percepção utilitária, remete a uma visão de corpo instrumental que pode ser “usado” para a satisfação sexual do homem.

A ruptura entre amor e sexo, junto com a permissividade da comunidade de Orobó em relação à liberdade sexual dos homens, suscita um questionamento: por que os homens são agraciados com a possibilidade de fazer sexo, de sentir prazer, e as mulheres não? A busca por uma resposta nos remete às pistas analíticas de Georg Simmel (1983)SIMMEL, Georg. Sociologia. Organização de Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática. 1983. . Para o autor, certas categorias sociais se apresentam como algo natural, que não precisa ser explicado. No caso, a posição de poder ocupada pelo homem diz respeito a uma sinonímia construída entre o objetivo e o masculino. O mundo carregado de significado expressa um consenso alicerçado na facticidade histórica de um fenômeno social, a impregnação do objetivo pelo masculino; mas não expressa um conjunto plausível e legítimo, o da existência de duas totalidades ou constelações de sentido: a masculina e a feminina. Estabelecemos a produtividade e a natureza da essência masculina e feminina segundo normas determinadas por tais constelações, mas tais normas não são neutras nem alheias ao antagonismo dos gêneros, e sim manifestações da masculinidade. Assim, o amor, o desejo, o ciúme e outros sentimentos suscitados nas mulheres, considerados indispensáveis à manutenção das relações amorosas, são racionalizados por elas num jogo de poder e dominação masculina cujo árbitro são questões de ordem moral. Na forma de lidar com as relações amorosas dos jovens de Orobó, percebemos, nos dizeres de Le Breton (2009)LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes. 2009. , que não é possível opor “razão” e “emoção”, dado que essas duas dimensões estão inscritas no seio de lógicas pessoais, impregnadas de valores e, portanto, afetividade. Existe uma inteligibilidade na emoção, uma lógica que a ela se impõe; da mesma maneira, existe afetividade no mais rigoroso dos pensamentos, uma emoção que o condiciona.

Enquanto o sexo é colocado para os rapazes de Orobó como uma necessidade, as moças solteiras não devem demonstrar esse desejo, ter desejo significa não “ser direita”. No imaginário de uma moça, a relação sexual pode aparecer como mera curiosidade. Referindo-se à relação sexual, uma jovem nos falou:

Eu acho que uma jovem sente curiosidade. Tudo aquilo que você nunca fez, que você não sabe como é, você quer aprender. O que não conhece você quer saber como é, você quer passar por aquilo. Penso que mente quando alguém diz que namorou um ano e o namorado nunca sentiu vontade. Em um namoro você tem curiosidade. Acho que o freio, o que segura, são os tabus da família, o medo dos pais. A consciência que você tem de saber que não pode, porque tem algum princípio para isso, tem algo que não quer. Mas que sente vontade, que tem a curiosidade eu acho que sim. Toda mulher tem (T.S., 17 anos, moradora de Orobó).

Já afirmamos que no imaginário da população de Orobó, a admissão do desejo sexual denota a postura da “moça fácil”. A moça em seu depoimento insinua não desejar o “fruto proibido”, mas apenas querer saber que fruto é. Afirmar que é “curiosidade”, e não desejo, denota a inocência como valor caraterístico da moça. Essa autopercepção da mulher como um ser inocente, privado de desejo, segundo Nancy Chodorow (2009)CHODOROW, Nancy. El ejercício de la maternidad. Barcelona: Gedisa. 2009. , deve ser compreendida a partir do contexto relacional no qual essa mulher foi socializada.

As diferenças nas formas de agir, sentir e pensar entre homens e mulheres, continuando com o raciocínio de Chodorow, surgem dos respectivos modos de socialização das crianças com suas mães, o primeiro “outro” que cuida delas, seu objeto de amor e identificação. O ser não é uma coisa, uma abstração. É o protagonista de um encontro com a vida. A concepção do ser como indivíduo isolado, que desenvolve por si mesmo os valores morais que o caracterizam é no mínimo incoerente se considerarmos a força coercitiva da vida social. No caso das mulheres jovens que entrevistamos, ficou evidente que suas exigências, crenças e valores são investimentos individuais que respondem a demandas sociais. A virgindade feminina é um valor exigido pela comunidade às moças de Orobó. Preservar seu corpo e dominar suas paixões constituem uma obrigação moral cujo fardo recai sobre as moças. É um imperativo social o fato de que elas se mantenham virgens até o casamento. A virgindade termina sendo o boleto que assegura a entrada para uma vida social e conjugal estável, marcada pelo respeito.

A economia do corpo

No processo de compreensão dos jovens rurais de Orobó, a sociologia contemporânea nos oferece pistas analíticas importantes. Em seu livro O senso prático , Pierre Bourdieu (2009)BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes. 2009. sugere que a ordem social determina as funções e a hierarquia dos corpos. Embora o dado biológico seja importante, a mediação social se torna fundamental nos modos de percepção que cada indivíduo desenvolve sobre o corpo. Assim, o corpo do agente deve abandonar sua dimensão “natural” para alcançar o estágio superior de um tipo específico de civilidade. Em outras palavras, como consequência da combinação de diversas forças de coerção, o corpo biológico alcança uma “natureza” de ordem social.

No contexto da nossa pesquisa, observamos que, em sintonia com a ordem social estabelecida, estrutura-se uma hierarquização dos corpos na qual ganha superioridade o marido, no casal, e o pai, na família. Essa forma de estruturação hierárquica dos corpos parece ter alcance universal. Para verificar essa formulação, lembramos os discursos políticos expressados documentalmente no Código Napoleônico. Pode-se verificar que a superioridade do homem se justifica em razão da fragilidade física da mulher, assim como na preponderância da emoção na orientação das ações executadas pelas mulheres. Nesses pensamentos predominantes, a superioridade do homem resulta das virtudes da razão. Pela primazia dos dados biológicos, as tarefas da mulher, como ser corpóreo, têm sido reduzidas à maternidade, ao cuidado do lar, ao espaço privado. Na vivência das emoções, como é o caso da satisfação dos desejos, espera-se que a mulher encontre conforto no amor, no cuidado e em outras emoções que denotam elevação espiritual. A exploração dos espaços públicos é considerada uma atividade masculina. É nessa perspectiva que encontramos a lógica das nossas observações em Orobó: “ser garanhão” é símbolo de masculinidade para os rapazes; para as moças, privar-se do prazer é um distintivo que lhes assegura reconhecimento e distinção social.

Na execução da nossa investigação, constatamos que as diferenças de gênero delimitam os usos do corpo para os jovens, bem como afetam as emoções e as formas de vivenciar o corpo e a sexualidade. Tomando como referência o pensamento de Giddens (2013GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 2013. , p.377 e s.), poderíamos afirmar que essas diferenças são contornadas por questões morais, assim como por conhecimentos científicos transmitidos nos estabelecimentos educativos e pelos diversos meios de comunicação. Em Orobó, observamos que a mulher é vista pela lente do saber tradicional. Diante disso, é percebida como propensa por natureza às apetências da “carne”,4 4 Kate Millet (2000) mostra como no Ocidente, por meio de diversas formas de linguagem, o pensamento judaico-cristão espalhou, pelo menos até a década de 1960, um olhar sobre a mulher pautado na desconfiança de suas pulsões sexuais e na preocupação pela dominação masculina como zelo pela manutenção da ordem moral. e, por causa disso, é suspeita e vista como um perigo à manutenção da ordem moral predominante. Em decorrência desse fato, identificamos uma série de práticas na dinâmica familiar que outorga diversos privilégios aos homens. A mulher casada se coloca como dependente do marido, e este, por sua vez, assume a responsabilidade pelo cuidado e proteção da esposa. A mulher deve obediência ao marido, que é visto como responsável pelos comportamentos da mulher. Se porventura os modos da mulher não correspondem às demandas sociais, é o homem quem deve corrigir, reprimir ou tomar as medidas cabíveis para emendar os comportamentos desviantes da mulher, seja ela esposa ou filha.

Em um dos encontros do grupo focal o tema de discussão foi a virgindade. Os rapazes argumentavam que não tinham preconceito em relação às moças que porventura não fossem virgens. Segundo eles, movidos pelo amor, poderiam casar com elas e se proporiam a esquecer esse fato. Por sua vez, as moças reafirmavam seu direito a ter vida sexual ativa, mas discordavam dos rapazes em relação a não ter preconceito. No calor do debate, uma jovem afirmou:

Você sabe por que uma moça não pode se entregar para um homem antes do casamento? Porque se não der certo o namoro, ele depois a abandona, a esquece. Caso a mulher venha a casar com outro homem, em qualquer briga que tiver com seu marido, ele vai dizer: ‘Você não era de nada, você não vale nada, eu não devia ter casado’ ... A mulher fica sem moral, sem respeito, sem ter o que dizer. (C.S., 15 anos, aluna do segundo ano do ensino médio, moradora da comunidade de João Gomes).

Observamos que a virgindade da mulher é problemática. A do homem, não. A atividade sexual dos homens antes do casamento é vista como natural para a comunidade, e a moça não precisa se preocupar com a virgindade do noivo. Na vida conjugal, ela não terá nada a esquecer. Raciocínios como esses denotam que o corpo da mulher é visto como o lugar da “moral”, do controle social. Não controlar seu corpo deixa desacreditada a mulher, incapacita-a para argumentar e se defender em uma situação de conflito perante o rapaz. Ao não controlar seu corpo e perder a virgindade, ela perde seu valor e passa a ser mulher “de nada”. O “erro” – perder a virgindade – torna-se sua referência perante a sociedade. Já a “mulher direita”, aquela que guarda seu corpo para o casamento, reserva para si um capital simbólico materializado no corpo “puro”, moeda de troca que deve ser usada para contrair matrimônio, para se obter respeito e moral elevada. Essa percepção transparece na fala de outra moça: “Eu acho que a moça deve casar virgem, mas não discrimino. Acho que a moça e o rapaz devem casar virgens. Se eles se gostam, um deve esperar pelo outro. Mas é muito difícil encontrar um rapaz virgem hoje em dia” (E.B., 25 anos, comunidade de João Gomes). Depoimentos como esse nos permitem perceber que, mesmo sendo evidente a assimetria de possibilidades de satisfação sexual entre homens e mulheres, é uma situação aceita, não é questionada pelas moças. Tal fato nos lembra que, por sua condição sistêmica, as iniquidades de gênero estão ligadas a estruturas sociais.

A igualdade de gênero poderá acontecer quando aspectos da vida social como crenças, valores e instituições mudarem. Bourdieu (2009BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes. 2009. , p.95) lembra que as formas de dominação masculina estão presentes em diversas esferas do mundo social, como nos sistemas de crenças, na família e na escola. Segundo o autor, isso ocorre, possivelmente, porque os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus , ou sistemas de disposições, duráveis e transponíveis, que funcionam como esquemas de percepção orientadores das ações individuais. Podemos observar o modo de operar do habitus na fala a seguir: “Não, não é preconceito. Isso é besteira. A mulher tem que ser assim mesmo. Ela tem que ser mais segura, não é? Eu acho que a pessoa tem que ser mais segura. Porque vai e tem uma relação íntima com um rapaz. Aí a pessoa vai embora e a deixa... Em que situação a mulher fica?” (P.C., 19 anos, comunidade de Feira Nova).

A expressão “segurar” em relação à preservação da virgindade é emblemática. Por um lado essa expressão denota uma forma de dominação masculina, no sentido de que a mulher deve se privar do prazer sexual. Por outro, pode ser considerada também como um recurso de poder ao dispor da mulher, no sentido de que, ao preservar sua virgindade, ela ganha destaque para um eventual namoro e para a possibilidade de esse namoro resultar em casamento. O preço a pagar pela realização de um bom casamento é a privação do prazer sexual da moça. Nesse contexto, é pertinente lembrar as ideias de Gaudêncio (2004GAUDÊNCIO, Edmundo de Oliveira. Sociologia da maldade e maldade da sociologia: arqueologia do bandido. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande. 2004. , p.63), quando afirma que existe uma luta entre o próprio corpo e o espaço onde esse corpo é exposto; que há um conflito entre o corpo do desejo e o corpo das normas sociais, das regras, das leis; que é evidente a tensão entre o corpo erótico e o corpo moral. A existência dessa polaridade nas moças de Orobó evidencia uma luta entre o corpo individual e o corpo social, no corpo como propriedade e causa da individualidade e como lugar de exercício do controle social.

Observamos que nos jovens de Orobó a relação afetiva acontece como um jogo em que os corpos e as emoções do rapaz e da moça são controlados e confrontados por questões de ordem individual e de valores socialmente compartilhados. Em contextos sociais como esse, onde as margens de expansão individual são estreitas, a afetividade parece simbolizar o clima moral que envolve permanentemente a relação do indivíduo com o mundo e a ressonância íntima das coisas e dos acontecimentos que a vida cotidiana oferece sobre uma trama descontínua, ambivalente e inatingível por conta da complexidade da dinâmica social em que a vida dos agentes acontece. O teor dessa complexidade é dado pela tensão entre as regras de comportamento incorporadas em sua trajetória de vida no mundo rural e as mudanças que ocorrem na vida dos jovens sob influência do sistema educativo.

Conversando sobre sexo

Observamos que os jovens de Orobó estão vivenciando um processo de mudança de percepção intergeracional no que diz respeito ao corpo e à sexualidade. Uma dessas mudanças se refere à forma como a vivência “permitida” do prazer sexual é considerada por rapazes e moças. Atualmente, o prazer sexual feminino, antes silenciado e considerado inapropriado, passou a ser visto como necessário para a preservação da relação entre um casal institucionalmente aceito. Na opinião dos jovens rurais de Orobó, marido e esposa devem compartilhar desejos e a relação sexual deve, ao menos no discurso, ser permitida e desejada pelos dois. Assim, o orgasmo tornou-se um fato conhecido para as novas gerações, mas algo estranho (impronunciável) às gerações anteriores, como a das mães. Um rapaz afirmou: “Ah! Acho que a mulher tem que querer também, só pode fazer sexo se ela tiver vontade. E do mesmo jeito que o homem, ela tem que se satisfazer. Depois de casada, a mulher também tem direito a se realizar sexualmente” (V.O., 20 anos, sexo masculino, comunidade de Caraúbas).

A fala desse jovem coloca em evidência a valorização do orgasmo feminino. Em colocações como essas, é possível observar uma representação das demandas da reflexividade contemporânea. Essa reflexividade, segundo Giddens (2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2002. , p.168 e s.), refere-se à incorporação de novos conhecimentos, de saberes que permitem que o ator social conduza de forma racional suas pulsões instintivas ou a maneira por meio da qual interage nos diversos processos de socialização. Sob influência do conhecimento científico adquirido, constatamos que os jovens pesquisados entendem que a saúde física e psíquica está relacionada à realização das aspirações individuais, aí incluída a satisfação dos desejos sexuais. Os jovens se apropriam dessas ideias e procuram adequá-las a seu ambiente social. No entanto, esse processo de adequação do conhecimento adquirido é lento e carregado de tensões na vida dos jovens.

Observamos que as moças que participaram de nossa investigação têm relativa autonomia quanto à compreensão e à orientação de suas sexualidades. A ausência diária do lar e a convivência com colegas de estudo na escola ou na faculdade de fato reduz a força coercitiva que o núcleo familiar exerce sobre elas. Contudo, embora tenham uma compreensão racional acerca da sexualidade, notamos que a prática da mesma parece ser orientada pelas crenças e valores coletivamente partilhados em suas comunidades. Constatamos que existe um hiato entre a compreensão racional da sexualidade e sua vivência. No discurso, as jovens reconhecem a importância de cuidar da saúde sexual, mas quando falam de si, insistem que a relação sexual não deve fazer parte da vivência de uma moça solteira. É possível que tal atitude seja reflexo dos mecanismos de coerção dos modos de vida nas comunidades rurais. Em diversos depoimentos, insinuaram temer os julgamentos da comunidade e ser tratadas com termos pejorativos como “avoadas” ou “sem juízo”. Em decorrência desse fato, observamos que a tensão entre os valores morais da comunidade e os conhecimentos científicos adquiridos sobre a sexualidade induz as moças a considerar a relação sexual uma ação alheia, realizada pelas “outras” mulheres. Elas falam teoricamente a respeito do assunto, mas a prática é remetida às outras moças. A liberdade dada ao corpo é entendida como agressão social e deve ser evitada, censurada. Expressar ideias de forma crítica afasta de si a suspeita e instaura na relação com os pesquisadores um ambiente de confiança a partir do qual a moça pode falar à vontade do exercício da sexualidade (das outras moças).

A saúde sexual dos jovens rurais

A fluidez dos argumentos nos debates sobre a sexualidade, quando essa era abordada de maneira conceitual, contrastava com o silêncio constrangedor quando pedíamos nas entrevistas individuais que os jovens falassem de suas vivências da sexualidade. Notamos que, para a maioria dos entrevistados, nossas indagações sobre sua intimidade sexual era uma fonte de desconforto. Interpretamos esse desconforto como resultado do descompasso entre os conhecimentos adquiridos e as questões relativas aos modos de vivenciar a sexualidade. Provavelmente, isso ocorre porque no cotidiano essas questões são “postas de lado” por eles, em vez de serem manejadas como aspectos de suas próprias personalidades. Assim, nos jovens de Orobó observamos uma situação paradoxal. No grupo focal eles se manifestavam com espontaneidade, revelando que nesse contexto se sentiam relativamente protegidos ao se expor ao julgamento dos outros. Mas quando entrevistados individualmente, os silêncios prolongados, as respostas evasivas e os discursos elaborados sinalizavam que o exercício da sexualidade é uma questão que ainda coloca resistência para eles alcançarem certa compreensão.

Em razão dos diversos modos de compreensão, a saúde sexual deve ser vista como um resultado de processos culturais e de códigos morais coletivamente partilhados. Nesse sentido, observamos que as preocupações com a saúde sexual dos jovens rurais por nós estudados é algo que deve se remeter, em primeira instância, aos rapazes, uma vez que às moças é negado o direito de viver sua sexualidade fora da esfera institucional do casamento.

Para grande parte das moças, a não vivência da sexualidade é algo que simplesmente não precisa ser discutido. Com expressões do tipo “é assim mesmo”, elas revelam seu comportamento como sendo justificado por uma reflexividade coercitiva que emana do saber tradicional. No entanto, esse tipo de comportamento não é generalizado. Observamos que as moças que tiveram acesso à educação superior5 5 Quando indagados acerca da possibilidade de ingressar na universidade, dos 17 jovens entrevistados que cursam o terceiro ano do ensino médio, três manifestaram que ingressariam na faculdade; quatro afirmaram que gostariam, mas que por dificuldades econômicas não tentariam ingressar após a conclusão do ensino médio; e dez informaram que não fariam faculdade porque não se sentiam motivados. Nossos registros corroboram os dados apresentados em diversos estudos apresentados no GT12 do sétimo Simpósio Internacional Trabalho, Relações de Trabalho, Educação e Identidade (< http://sitre.appos.org.br/wp-content/uploads/2017/08/GT12-%E2%80%93-Juventude-e-mercado-de-trabalho.pdf >). buscam marcar essa distinção em seus discursos, revelando seu pertencimento a um modelo de juventude construído pelos saberes difundidos pela mídia e pela instituição acadêmica. Buscam provar que têm acesso a determinados conhecimentos que, quase sempre, as autoriza a ver na sexualidade uma dimensão humana que deve ser intelectualmente conhecida. A jovem I.H. (comunidade de Caraúbas, 17 anos) se expressou assim a esse respeito:

Hoje em dia a escola ensina sobre a sexualidade. Não tem como a pessoa não se prevenir. Existem muitas doenças. Algumas bem agressivas como a Aids. Existem muitas formas de evitar uma gravidez. Mas para as doenças a única solução é o uso da camisinha ... Olhe, tem doenças além da Aids. Tem a sífilis e outras mais que não lembro neste momento. Mas é preciso que os jovens se previnam. Principalmente os rapazes. Porque eles às vezes têm as necessidades deles e saem com uma e com outra, aí quando casa, passa a doença para as mulheres.

Em falas como essa, observamos que as moças mencionam as doenças como algo distante delas, uma vez que só aos rapazes é permitida a vivência da sexualidade. Portanto, as doenças sexualmente transmissíveis são objeto de informações, mas não um perigo iminente para as moças de Orobó. Pela forma de falar com timidez e distanciamento, pelo zelo de sua reputação, dão a entender que o conhecimento que possuem acerca da sexualidade não as vincula à prática.

Em nossos diálogos, notamos que o acesso à informação é um elemento constituidor da identidade dos jovens de Orobó. A representação da vivência da sexualidade feita pela mídia, pela escola, entre outras instituições, parece fazer os jovens entenderem a sexualidade como uma possibilidade dentro do conjunto de experiências. Assim, num contexto social como esse, falar sobre sexo pode ser um elemento de distinção que define um jovem como sendo da cidade ou do sítio, separando o citadino do matuto.

Observamos que as moças da zona urbana de Orobó fazem questão de marcar distância das “matutas”, das moças do meio rural. Têm a preocupação de evidenciar seu conhecimento sobre o assunto. Ao conversarmos na escola com A.J. (sexo feminino, moradora da cidade) sobre questões sexuais, ela buscou partilhar todas as informações que possuía e, falando de forma clara e desinibida, sem a preocupação de tentar revelar que não tinha vida sexual ativa, disse: “A gente sabe que existem vários métodos para evitar ter filho e para não pegar doença. Para evitar filho, a camisinha, o coito interrompido, o anticoncepcional, são todos métodos que devem ser usados. Mas é bom que a pessoa use a camisinha por causa de doenças”. Questionada pelas doenças de transmissão sexual que ela conhece, a jovem mencionou: “A Aids, a sífilis, gonorreia e várias outras”. E finalizou: “Olhe, o jovem hoje tem que se prevenir”.

Uma fala bastante reveladora foi a de F.M., da comunidade de João Gomes, 25 anos. Quando indagada sobre o exercício da sexualidade, ela disse:

F.M. – Eu sou uma mulher bem tradicional mesmo. Sou contra isso. Só após o casamento. Esse é o modo de ser ensinado aqui em casa. Eu sou contra [o sexo antes do casamento].

F.M. – Acho que é mais a moça. Para o rapaz a sociedade não é muito exigente, não. Sei lá. Eu acho que com o rapaz é menos.

Pergunta – E qual a sua opinião sobre uma moça engravidar solteira?

F.M. – Acho que é uma pessoa que não tem uma boa conduta em casa, não tem diálogo com os pais, não se relaciona bem com os pais. Não tem apoio, não tem uma boa conversa e não tem um diálogo aberto com os pais, uma pessoa inexperiente. Sem o cuidado da família, ela termina se entregando facilmente, sem saber do futuro, das consequências que virão.

Pergunta – E como deveria ser esse diálogo?

F.M. – Para a moça se dar ao respeito. Não se entregar, porque é uma irresponsabilidade.

Pergunta – E quanto ao uso do preservativo? Você acha que os pais deveriam falar?

F.M. – Olhe aqui, eu não sei dessas coisas. Não gosto de falar disso. Mas você não percebeu que os pais aqui não vão ensinar isso. Se ensinar, pronto, todas as moças vão se perder. As moças têm que se dar ao respeito. Eu sou muito tradicional.

Pergunta – E o rapaz, pode manter relação sexual antes do casamento?

F.M. – Olhe, o certo seria que não. Mas você acha que tem rapaz virgem? Eles não aguentam, têm as necessidades deles. E com os homens nada acontece, não é?

Pergunta – E os pais deveriam então incentivar o uso do preservativo entre eles?

F.M. – Olhe, acho isso muito difícil. Os pais aqui não sabem disso, não. Quando se fala na escola eles acham ruim.

A fala da jovem aponta o contexto familiar como um espaço hostil para dialogar sobre temas relativos à sexualidade. Em seu depoimento, observamos que são os valores da família o critério que orienta o exercício da vida sexual de seus integrantes. Internalizados na trajetória de vida, esses valores não devem ser discutidos, mas observados pelos jovens. Como bem lembra Max Weber, a função dos valores na dinâmica da vida coletiva consiste em oferecer uma referência de ação, uma moldura comportamental capaz de orientar e disciplinar atos individuais. Quando a depoente afirma “eu sou uma mulher bem tradicional mesmo”, sinaliza que existe uma ligação estreita entre o pensamento familiar e o seu próprio. Nesse modo de pensamento, é nítida a diferença dos elos de coerção social sobre o corpo do rapaz e da moça. Como dito anteriormente, enquanto a atividade sexual do rapaz antes do casamento é tolerada, a da moça é julgada de modo negativo e execrada a partir de uma perspectiva moral: a moça dever “se dar ao respeito” – insiste F.M., isto é, manter-se virgem até o casamento. Assim, definida a virgindade como um valor intrínseco das mulheres jovens, não cabe aos pais falar sobre sexo. É tarefa deles se manter vigilantes perante o comportamento dos filhos, ativar mecanismos de coerção, como insultos, ameaças ou castigos físicos, capazes de incentivar as moças a se abster de praticar sexo.

Por sua vez, as opiniões dos rapazes revelaram que eles possuem informação sobre saúde sexual. A maioria deles, assim como as moças, considera que o cuidado com a saúde sexual deve ser adotado até mesmo nas relações conjugais. Uma jovem que faz curso universitário e participa do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência afirmou:

É certo que o casal, mesmo casado, use preservativo, pois o homem às vezes dá seus pulos. Aí a mulher fica doente. Eu mesma conheço uma mulher aqui que ficou doente, pegou uma dessas doenças sexualmente transmissíveis por causa do marido, que procurou uma mulher fora de casa. A gente na escola até ensina aos alunos que têm que usar preservativo. Mas os pais aqui, a maioria deles, são ignorantes, aí dizem que a gente está ensinando ‘safadeza’ aos meninos. A gente quer fazer uma reunião com os pais para eles mesmos ensinarem os filhos, mas eles não participam. Uns dizem que não vão assistir a uma aula de safadeza. Aí os meninos, às vezes bem novinhos, com idade de 12 anos, já estão começando a ter relações. Às vezes é uma gravidez indesejada. Olhe aí o problema (V.S., estudante do curso de ciências sociais da Universidade Federal de Campina Grande).

A fala da moça coloca em evidência que faz parte do senso comum o entendimento de que o homem é livre para praticar sexo. Diversos estudos de gênero6 6 Entre outros, pode ser bastante iluminador o livro Sociologia da sexualidade ( Bozon, 2004) . indicam que as formas de percepção do exercício da sexualidade são decorrentes dos modos de socialização nos quais cada indivíduo cresceu e desenvolveu sua personalidade. Esses modos de socialização orientam os homens sobre como, quando, onde e com quem devem iniciar suas experiências sexuais. Mas, como já observado, o comportamento sexual, no caso dos homens, carece de normas, regras e interdições advindas da família ou de outras instituições sociais. Por esse motivo, os homens adquirem os subsídios para orientar suas práticas sexuais dos padrões gerais de comportamento de seu contexto social.

Podemos afirmar que a compreensão das maneiras de exercer a sexualidade, em certa medida, só pode ser alcançada mediante a observação do quadro geral da socialização do homem. E qual é a representação de homem em Orobó? Reflete o protótipo de homem perceptível no Nordeste brasileiro, que se resume na palavra “macho”, cujos traços caraterísticos são descritos por Muniz de Albuquerque Júnior (2010ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de fazer machos: gênero e práticas culturais, desafio para o encontro das diferenças. In: Machado, Charliton José dos Santos; Santiago, Idalina Maria Freitas Lima; Nunes, Maria Lúcia da Silva. Gêneros e práticas culturais: desafios históricos e saberes interdisciplinares. Campina Grande: EDUEPBL. 2010. , p.23):

Um macho que se preze é agressivo na vida e com as pessoas, se caracteriza pela vontade de poder, de domínio, exige subordinados e subordinações, notadamente das mulheres. Um macho não deixa transparecer publicamente suas emoções e, acima de tudo, não chora, não demonstra fraquezas, vacilações, incertezas. Um macho tem opiniões firmes e incontestáveis, tem uma só palavra, não aceita ser contrariado ou contestado, notadamente por mulheres. Um macho não adoece, não tem fragilidades nem físicas, nem emocionais, frescuras. Um macho sempre sabe o que faz, onde quer chegar e ai daquele que se colocar em seu caminho. Um macho é um ser competitivo, está sempre disputando com outros machos a posse das coisas e das pessoas. Um macho é objetivo, racional, até frio e cruel, calculista, não se deixando levar por sentimentos. Um macho é desleixado, sem vaidade, é um homem natural, sem artifício, sem polidez.

Essa descrição do “macho”, na prática, revela-se em diversas falas dos entrevistados, como quando foram indagados acerca dos cuidados que dedicavam à saúde física, oportunidade em que observamos certo estranhamento, o que denota que os cuidados com o corpo, como ocorre com os machos, não fazem parte das preocupações dos rapazes de Orobó. Nos postos de saúde do município, buscamos informações a respeito da procura dos jovens por serviços médicos. Embora nos tenha sido negado o acesso aos registros de arquivo, fomos informados pelos atendentes do posto que os jovens buscam ajuda profissional para tratar de doenças ocasionais, como viroses, gripes ou fraturas. Mas era notória a ausência dos jovens para fazer consultas ou realizar algum tipo de tratamento relacionado à saúde sexual. Um dos atendentes informou que é possível que homens, para preservar sua honra, procurem ajuda médica em cidades próximas. O deslocamento para receber atenção médica em outros municípios impede que os postos de saúde de Orobó possam registrar o número de portadores de doenças sexualmente transmissíveis.

O estranhamento com os cuidados do corpo tem uma interface com as relações de gênero. O homem não é orientado a se perceber e se denunciar como vulnerável às doenças, a buscar apoio médico, revelar seus medos e esclarecer suas dúvidas. Assim, os estereótipos de gênero, enraizados há séculos em nossa cultura patriarcal, potencializam práticas baseadas em crenças e valores do que se entende como sendo da ordem social masculina. Nas palavras de Muniz de Albuquerque Júnior (2010)ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de fazer machos: gênero e práticas culturais, desafio para o encontro das diferenças. In: Machado, Charliton José dos Santos; Santiago, Idalina Maria Freitas Lima; Nunes, Maria Lúcia da Silva. Gêneros e práticas culturais: desafios históricos e saberes interdisciplinares. Campina Grande: EDUEPBL. 2010. , é a partir dessas crenças de que a doença é considerada um sinal de fragilidade que os homens não a reconhecem como inerentes à sua própria condição sexual.

No mundo rural, nesse tipo de sociedade tradicional em que o sexo é algo que não deve ser falado, a pretensão de discutir saúde sexual é, no mínimo, arriscada. Em nossa pesquisa, observamos que os jovens abordam o assunto com certa espontaneidade quando a fala se desenrola em círculos de amigos. Nesses espaços de descontração, o tema é debatido em tom de curiosidade ou brincadeira, dando a impressão de que eles se referem a uma questão que não diz nada em relação à vida deles. A impressão que ficou para nós é a de que falar sobre saúde reprodutiva com os jovens rurais de Orobó significou falar da vida sexual apenas dos rapazes. E mesmo assim, em suas falas, observamos que o assento das opiniões dos jovens recaía na excentricidade do tema, dando a entender que a problemática que pode acarretar a prática do sexo é uma questão teórica, algo que atinge outras pessoas, mas nada diz respeito a si próprios. Em diversos diálogos, constatamos que os conhecimentos dos rapazes acerca de doenças sexualmente transmissíveis não implicam necessariamente a incorporação de práticas de prevenção. Apenas denotam a inserção desses jovens na universalização de conhecimentos via escola, faculdade ou meios de comunicação.

Considerações finais

Procuramos neste artigo construir uma representação da tensão que existe na vivência da sexualidade em um grupo de jovens rurais. A tensão ocorre pela influência de dois modos de pensamentos divergentes entre si: o saber tradicional incorporado no convívio familiar e o saber “científico”, “moderno”, adquirido pelos jovens nas instituições escolares. Para compreender essa tensão, seguimos as pistas analíticas da teoria da estruturação de Anthony Giddens (2002)GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2002. . Adotamos como categoria central para nossa análise a noção de reflexividade. Entendemos reflexividade como a incorporação rotineira de conhecimento científico ou de informação técnica nas situações de ação executadas de forma ordinária pelos atores sociais. Mediante o uso desse termo, é possível compreender fenômenos sociais contemporâneos como o paradoxo entre a execução de campanhas governamentais de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e o aumento de casos de sífilis no Brasil.

A expansão de doenças sexualmente transmissíveis ou o elevado número de estudantes grávidas de forma precoce sinalizam a existência de uma reflexividade deficiente nos jovens na condução das experiências sexuais. Essa reflexividade insatisfatória não diz apenas respeito a questões relativas à saúde sexual, ela afeta também outros aspectos da vida social. Embora tenhamos abordado somente a vivência da saúde sexual neste artigo, chamamos aqui atenção para a existência de sérios problemas sociais que derivam dessa desconexão entre conhecimento e ação humana. Como exemplo, mencionamos o caso dos problemas de segurança pública. São alarmantes os dados estatísticos de violência física que findam em crimes de homofobia, feminicídio, abusos sexuais ou na quase sempre encoberta violência doméstica. Entendemos que, além das doenças sexualmente transmissíveis, esses crimes poderiam ser reduzidos mediante a efetivação de políticas públicas que ajudem a população a sobrepor ao pensamento tradicional padrões de comportamento pautados em conhecimentos científicos. Respeito aos direitos humanos, saúde preventiva e outros conceitos da reflexividade moderna poderiam acelerar processos de profunda mudança social.

Como observado por Giddens (2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2002. , p.32-36), a condução reflexiva das ações humanas se dá pela mediação do conhecimento adquirido nos contextos sociais nos quais esse mesmo conhecimento é produzido. Em outras palavras, o nível de reflexividade alcançado por um indivíduo é resultado da força de coerção das instituições sociais por onde ele transita. Falamos neste artigo sobre a dificuldade que os jovens têm para debater temas relativos à sexualidade, englobando doenças sexualmente transmissíveis, orientação sexual e identidade de gênero, machismo, métodos anticoncepcionais e anatomia dos órgãos reprodutivos. Descrevemos o contraste que experimentam entre a abertura das instituições escolares e a evidente ausência do assunto sexualidade dentro da família. Sendo o contexto escolar mais favorável, mostramos que não é na sala de aula, mas nos espaços de socialização que os jovens têm liberdade para a troca de ideias. No entanto, nossos depoentes relataram que os temas relativos à sexualidade aparecem de forma tangencial em sala de aula, são apresentados de modo pontual em obediência à grade curricular. “Na disciplina de biologia se fala de sexualidade quando o tema da aula é a reprodução humana”, comentou um aluno do ensino médio. Questões como a assimetria de poder nas relações de gênero e as injustiças que emanam da intolerância com as diversas formas de viver a identidade sexual são omitidas dos espaços acadêmicos. O espaço escolar é uma ferramenta fundamental para a promoção de saúde e o empoderamento social.

Em termos de políticas públicas para a sexualidade, a prioridade tem sido enfrentar os problemas de saúde. As ações empreendidas são, quase sempre, campanhas voltadas para a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis. Mas fatos como a expansão da sífilis indicam que, para que essas campanhas tenham maior eficácia, é preciso que em seu desenho se leve em consideração as peculiaridades de cada setor da população. No caso dos jovens rurais, há uma carência de estudos que tenham como foco as vivências da saúde sexual. No caso da juventude rural, para que uma política pública seja eficaz, sua formulação demanda um tipo de conhecimento que leve em consideração as crenças e os valores culturais que orientam as ações desses jovens. Os debates sobre respeito à diversidade sexual, igualdade de gênero ou empoderamento feminino acontecem nos centros urbanos e têm sido provocados pela iniciativa da sociedade civil organizada, especialmente de militantes de grupos LGBT e feministas. Mas esses debates precisam ir para sala de aula, e essa é uma competência do Estado.

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  • WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp. 1994.

NOTAS

  • 1
    A revista pode ser acessada em: < http://www.alasru.org/index.php/revista> .
  • 2
    Segundo Göran Therborn (2006, pTHERBORN, Göran. Sexo e poder: a família no mundo, 1900-2000. São Paulo: Contexto. 2006. , p.34 e s.), o “patriarcado” pode ser entendido como uma forma de organização social alicerçada na figura do pai, o qual deve ter controle, poder e dominação sobre filhos, filhas, esposa e serviçais.
  • 3
    Uma das práticas religiosas mais cultivadas nas comunidades rurais do Nordeste do Brasil é a devoção à Nossa Senhora, à Virgem Maria, Mãe de Jesus. As “Filhas de Maria” ou as devotas da “Mãe Rainha” são associações que em seus ensinamentos insistem em colocar a figura da Virgem Maria como modelo de ser mulher.
  • 4
    Kate Millet (2000)MILLET, Kate. Sexual politics. Chicago: University of Illinois Press. 2000. mostra como no Ocidente, por meio de diversas formas de linguagem, o pensamento judaico-cristão espalhou, pelo menos até a década de 1960, um olhar sobre a mulher pautado na desconfiança de suas pulsões sexuais e na preocupação pela dominação masculina como zelo pela manutenção da ordem moral.
  • 5
    Quando indagados acerca da possibilidade de ingressar na universidade, dos 17 jovens entrevistados que cursam o terceiro ano do ensino médio, três manifestaram que ingressariam na faculdade; quatro afirmaram que gostariam, mas que por dificuldades econômicas não tentariam ingressar após a conclusão do ensino médio; e dez informaram que não fariam faculdade porque não se sentiam motivados. Nossos registros corroboram os dados apresentados em diversos estudos apresentados no GT12 do sétimo Simpósio Internacional Trabalho, Relações de Trabalho, Educação e Identidade (< http://sitre.appos.org.br/wp-content/uploads/2017/08/GT12-%E2%80%93-Juventude-e-mercado-de-trabalho.pdf >).
  • 6
    Entre outros, pode ser bastante iluminador o livro Sociologia da sexualidade ( Bozon, 2004)BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV. 2004. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2018
  • Aceito
    2 Maio 2019
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