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Os Xavánte de Etéñitépa: uma visão interdisciplinar

The Xavánte of Etéñetépa: an interdisciplinary vision

RESENHAS

Os Xavánte de Etéñitépa – uma visão interdisciplinar

The Xavánte of Etéñetépa – an interdisciplinary vision

Heloisa Pagliaro

Professora do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp Rua José Maria Lisboa, 1035/22 01423-001 São Paulo – SP – Brasil pagliaro@medprev.epm.br

Esse livro representa uma soma magistral dos avanços realizados em diversos domínios do conhecimento a respeito de uma sociedade indígena. Ele reúne contribuições importantes de pesquisas realizadas pelos autores durante aproximadamente três décadas nos campos da história, ecologia, etnografia, antropologia biológica, demografia e epidemiologia dos Xavánte. Trata-se de um estudo de caso, que visa compreender através de uma visão diacrônica a longa e complexa interação entre os Xavánte da comunidade de Etéñitépa e a sociedade nacional circundante, desde a década de 1940, quando se deu o mais recente contato desse povo com não-índios.

O primeiro capítulo constitui uma vasta introdução à história e à situação atual dos povos indígenas no Brasil. Nele os autores revisam a bibliografia dos estudos de biologia humana, pesquisas biomédicas, genéticas e epidemiológicas dedicadas a esses povos.

O segundo capítulo apresenta a localização geográfica e as características climáticas e de vegetação da região habitada pelos Xavánte, povo do tronco Central do grupo lingüístico Jê, morador do Planalto Central, em região banhada pelos rios Tocantins, Araguaia e Xingu. A população de aproximadamente oito mil habitantes está distribuída em setenta aldeias, localizadas em seis reservas indígenas independentes social e politicamente. Os Xavánte estudados vivem na aldeia de Etéñitépa, que com outras quatro aldeias integra a Terra Indígena Pimentel Barbosa, localizada nas proximidades do rio das Mortes. O traçado tradicional da aldeia, com casas dispostas em semicírculo confluindo para uma praça central onde têm lugar os eventos da vida social dos Xavánte, expressa a organização social da comunidade. Os autores descrevem com detalhes suas elaboradas estruturas sociais e unidades organizacionais que incluem linhagens, clãs, metades exogâmicas, grupos de idades, sociedades dos homens, entre outras características dos povos Jê. Uma belíssima descrição do movimento diário na aldeia encerra este capítulo.

Um mito que descreve a criação da aldeia mãe dos Xavánte – Tsõrepré abre o terceiro capítulo, que relata a história das interações dos povos indígenas do Brasil Central, e particularmente dos Xavánte, com a sociedade ocidental nos últimos três séculos. A constante e crescente mobilidade espacial, e o impacto causado pelas epidemias de doenças trazidas da Europa e da África são apontados como fatores que contribuíram para a catastrófica depopulação dos povos indígenas da região. Os autores mostram como os caminhos percorridos pela sociedade nacional envolvente nos diferentes períodos históricos contribuíram para subjugar os Xavánte e outras sociedades indígenas da região. Elementos centrais das políticas implementadas tanto pelos governos coloniais do século XVIII, como pelo Estado brasileiro no século XX configuraram-se como estratégias para restringir a mobilidade dos Xavánte e circunscrevê-los física e socialmente.

No quarto capítulo, consagrado ao estudo da continuidade e variabilidade biológicas, níveis morfológicos, bioquímicos e moleculares dos Xavánte de Etéñitépa, coletados nas décadas de 1960 e 1990, são comparados a dados similares analisados para outros grupos indígenas da América do Sul, com o objetivo de situar os Xavánte no contexto das variações biológicas das terras baixas da América do Sul. Os autores demonstram que os Xavánte possuem diferenças morfológicas em relação aos demais grupos indígenas estudados na América do Sul, especialmente quando considerados os resultados das proteínas e dos DNAs. Um importante achado da pesquisa sobre a variabilidade biológica é a demonstração da continuidade genética dos Xavánte de Etéñitépa.

No quinto capítulo, dedicado à demografia dos Xavánte de Etéñitépa, os autores buscam caracterizar a crise demográfica nas décadas que se seguiram ao contato com a sociedade nacional durante os anos de 1940. A crise resultou de elevados níveis de mortalidade mais elevados, devidos tanto às epidemias de doenças infecciosas como à violência, e de uma queda da fecundidade, fatores que ameaçaram a sobrevivência biológica do grupo durante a década de 1960. A partir dos anos 70 anos decresceu a mortalidade, e a população iniciou um período de rápido crescimento. Os autores destacam que, no caso Xavánte, a crise demográfica foi influenciada não somente por fatores externos, mas também por aspectos ligados à organização social do grupo. Assim, durante o período de epidemias, acusações de feitiçaria tornaram-se mais freqüentes, exacerbando disputas intragrupais. Evidências etnográficas, assim como dados demográficos, mostram que a violência atingiu especialmente os homens das facções politicamente mais fracas. O exemplo Xavánte demonstra que, embora as crises demográficas tenham sido uma experiência quase universal na história dos povos indígenas na Amazônia, seus efeitos podem variar de acordo com características sócio-culturais específicas, particulares à sociedade que experimenta a crise. Adicionalmente, o caso dos Xavánte de Etéñitépa indica que o impacto das epidemias envolve mais que a redução da população, influenciando dinâmicas sociais, como as práticas matrimoniais, mesmo décadas após a crise propriamente dita.

O sexto capítulo é dedicado à ecologia e à subsistência dos Xavánte. Nele os autores mostram como a economia desse povo utiliza os recursos naturais do meio ambiente do cerrado, e como foi afetada pelas políticas de desenvolvimento da Amazônia, implementadas pelo governo brasileiro no início da década de 1960. A tensão existente entre os modos de vida e o uso de recursos pelo Xavánte, e a amplitude dos interesses políticos e econômicos que lhes são impostos são apontadas como um denominador comum nesses processos. Os autores avaliam, também, como o projeto de construção de uma hidrovia visando abrir os rios das Mortes, Tocantins e Araguaia à navegação fluvial comercial envolve a economia dos Xavánte.

No capítulo sete, um histórico dos serviços de atenção à saúde destinados aos índios no Brasil oferece um panorama de sua evolução desde o contato de Noel Nutels com os Xavánte e com os povos do Alto Xingu e da Ilha do Bananal, como membro da expedição Roncador-Xingu, da Fundação Brasil Central, na década de 1940. Os autores descrevem o trabalho das "equipes volantes de saúde" criadas pela Funai em 1967, dos Medécins sans Frontières no início da década de 1990, e a criação, em 1999, do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, baseado em distritos sanitários especiais indígenas (DSEI) ligados ao SUS, pela Funasa, órgão do Ministério da Saúde, em funcionamento até o presente. Concluem ser difícil prever o que representará para os Xavánte essa nova estrutura de serviços de saúde, que requer programas de treinamento extensivo aos agentes de saúde indígena da própria comunidade e a articulação dos níveis de cuidados à saúde das aldeias e do sistema. Os autores mostram, também, como os serviços de saúde oferecidos aos Xavánte estão muito aquém de suas necessidades, e discutem como as modificações feitas no sistema nacional de saúde afetaram os serviços de saúde dos povos indígenas. Ensejam que as novas propostas atinjam os resultados positivos esperados e que coloquem maior ênfase em medidas preventivas.

O oitavo capítulo oferece um panorama do padrão de saúde e doença dos Xavánte de Etéñitépa, baseado em análises e discussões de indicadores de saúde extraídos de dados coletados pelos próprios autores durante a década de 1990. As análises mostram que embora as epidemias estejam controladas, as doenças infecciosas e parasitárias são, ainda, os principais agravos à saúde dos Xavánte, com conseqüências que afetam a sua qualidade de vida. O estudo evidencia, também, como a combinação de doenças infecciosas e a insuficiência de aportes de nutrientes na alimentação resultam na prevalência de altas taxas de anemia e em deficiências de crescimento. Os autores enfatizam que, embora algumas ameaças à saúde dos Xavánte tenham desaparecido, mudanças ecológicas e sócio-econômicas favoreceram o surgimento de certas doenças infecciosas, como as sexualmente transmissíveis, e outras doenças ligadas ao sedentarismo e a mudanças alimentares.

O capítulo nono discute o processo de transição epidemiológica que os Xavánte estão experimentando. Os autores evidenciam que, apesar da importância que ainda hoje assumem as doenças infecciosas e parasitárias como principais causas de morbidade e de mortalidade, as doenças crônicas, incluindo a hipertensão, a obesidade e o diabetes, vêm crescendo entre os Xavánte. Mudanças nos padrões alimentares e níveis de atividades físicas são apontados como fatores que afetaram suas condições de saúde. Modificações relativas a ganho de peso e aumento da pressão arterial foram constatadas na comparação de dados antropométricos e de saúde coletados nas décadas de 1960 e de 1990 nas aldeias São Domingos e Etéñitépa. Apesar de a saúde dos Xavánte dessa aldeia estar caminhando no sentido de uma transição, seu ritmo ainda é lento se comparado ao de outras reservas Xavánte nas quais o aumento das taxas de obesidade e diabetes também é alarmante. Aspectos políticos e econômicos da experiência dos Xavánte no período pós-contato são apontados pelos autores como fatores que podem estar relacionados às transformações observadas nas condições de saúde em várias reservas Xavánte.

O último capítulo fecha brilhantemente a discussão sobre a transição epidemiológica vivida pelos Xavánte, com a integração dos argumentos sobre as modificações bioantropológicas, ecológicas, demográficas e epidemiológicas discutidas nos capítulos anteriores. Os autores sugerem que a transição experimentada pelos Xavánte nas últimas décadas é um processo integrado, com características próprias e diferentes das previstas nos modelos teóricos das transições demográfica e epidemiológica. Chamam a atenção para a importância de se considerar as diversidades ao se comparar os padrões de transição que vêm sendo experimentados pelas sociedades indígenas no Brasil atualmente.

O conjunto de capítulos que compõem esse livro retrata de forma ampla as mudanças demográficas, ecológicas e de saúde/doença de um povo indígena contemporâneo, mostrando a importância de se evitar generalizações a respeito dos processos de transição vividos pelas diferentes sociedades, sejam elas indígenas ou não. Além disso, o esforço dos autores se coloca como um instrumento de reflexão e de incentivo ao desenvolvimento de pesquisas de caráter multidisciplinar sobre povos indígenas no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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