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Aspectos históricos da endocardite infecciosa

Resumos

A endocardite infecciosa era fatal até há três gerações. A evolução temporal do conhecimento da doença possibilitou avanços nas técnicas diagnósticas, especialmente na ecocardiografia, a possibilidade de se realizar a cirurgia cardíaca, mesmo com o processo infeccioso em atividade, e novas recomendações de profilaxia por antibióticos antes dos procedimentos de intervenção. Hoje a endocardite infecciosa é curável. Nesta revisão são abordados os aspectos históricos da endocardite, desde as observações de Osler, no século XIX, até a transformação de doença "clinicamente possível" em "clinicamente definida".

Endocardite bacteriana; características culturais; evolução cultural


Infective endocarditis was a fatal disease three generations ago. Temporal evolution of knowledge made possible important advances in diagnostic techniques, especially in echocardiography, the possibility of cardiac surgery during the active infectious process and new guidelines for antibiotic prophylaxis before interventional procedures. Nowadays, infective endocarditis is curable. In this review, we describe historical aspects of endocarditis, from Osler´s observations in the 19th century to the change from a "clinically possible" to a "clinically defined" disease.

Endocarditis, bacterial; cultural characteristics; outcome assessment (health care)


ARTIGO DE REVISÃO

Aspectos históricos da endocardite infecciosa

Max GrinbergI; Maria Cecilia SolimeneII

IDiretor da Unidade Clínica de Valvopatias - InCor, São Paulo, SP

IIProfessora Livre-Docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Médica-assistente da Unidade Clínica de Valvopatias do InCor, Hospital das Clínicas da Faculdade da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

Correspondência para Correspondência para: Max Grinberg Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 44 - Bloco II Cerqueira Cesar São Paulo - SP CEP: 05403-000 grinberg@incor.usp.br

RESUMO

A endocardite infecciosa era fatal até há três gerações. A evolução temporal do conhecimento da doença possibilitou avanços nas técnicas diagnósticas, especialmente na ecocardiografia, a possibilidade de se realizar a cirurgia cardíaca, mesmo com o processo infeccioso em atividade, e novas recomendações de profilaxia por antibióticos antes dos procedimentos de intervenção. Hoje a endocardite infecciosa é curável. Nesta revisão são abordados os aspectos históricos da endocardite, desde as observações de Osler, no século XIX, até a transformação de doença "clinicamente possível" em "clinicamente definida".

Unitermos: Endocardite bacteriana; características culturais; evolução cultural.

Introdução

"A endocardite infecciosa aguça o interesse do médico sobre o desenrolar de um processo infeccioso"

William Bart Osler, 1893

Olhar a Medicina pelo infinito do tempo. Valer-se de um fio condutor representado pela sucessão da "boa prática do agora". Reforçar o passado de benefício e evitar a repetição do malefício. Preservar a memória das sinuosidades dos avanços da fronteira do conhecimento. Apreciar os impactos da inovação tecnocientífica sobre a qualidade da vida humana. Revelar a mutabilidade da acepção ética de negligência e imprudência. Assim, faz-se útil saber sobre a história do conhecimento sobre uma doença.

A endocardite infecciosa já foi 100% fatal até três gerações passadas - para nossos bisavôs, portanto. Pesquisas e observações clínicas motivadas por inquietude, criatividade e colaboração fundamentaram progressos diagnósticos e terapêuticos na segunda metade do século XX que deram rápida aplicabilidade às evidências sobre a patogenia lentamente acumuladas nos séculos precedentes. A patognomônica vegetação da necropsia tornou-se visível in vivo, mostrando o quanto a arte de pôr em prática as informações científicas disponíveis é assimétrica no tempo.

O que pode ser singular, merecedor de atenção na história da endocardite infecciosa? Quais os passos que contribuíram para desvendar o oculto da manifestação clínica e do controle da doença? Como se deram as conexões de saberes que fundamentam o conhecimento atual?

Na confluência da visão anatomopatológica dos séculos XVIII e XIX com o subsequente reconhecimento de germens, ocorreram reformulações periódicas de conceitos de moléstia, com distinções em certos países. As peças clínicas e patogênicas foram encaixando-se com várias idas e vindas. Houve necessidade de ajustes na prática corrente para construir uma identidade nosológica que reunisse a multiplicidade de expressão clínica a partir de anormalidades localizadas. Uma questão crucial foi o quanto um sinal clínico significava uma doença e o quanto inflamações em distintos tecidos podiam compartilhar mesmos sintomas. A endocardite infecciosa deu grande contribuição para muitos esclarecimentos sobre bases biopsicossociais da Medicina vigente.

Aspectos pioneiros1,2

A revelação da endocardite infecciosa é contemporânea à descoberta do Brasil. Nos primórdios da Idade Moderna, os médicos de renome eram humanistas, homens de letras, tidos em alta estima e utilizavam a dissecção humana como método pilar da aquisição de novas informações sobre órgãos que causariam as manifestações clínicas cuidadosamente anotadas, à espera da finalização espontânea da evolução da doença intratável.

Jean François Fernel (1497-1558) foi um médico francês alcunhado de Galeno moderno, que cuidou do rei Henrique II e da rainha Catarina de Medicis, também astrônomo- epônimo da cratera lunar de Fernelius, que entrou para a história da Medicina por ter demonstrado alta capacidade de síntese sobre observações da beira do leito. Ele fez a primeira menção a aspectos clínicos da endocardite infecciosa.

Um novo marco aconteceu anos depois, quando o também francês Lazare Rivière (1589-1655) observou excrescências que se assemelhavam a tecido pulmonar do tamanho de uma avelã, obstruindo a via de saída do ventrículo esquerdo em um paciente com quadro clínico de arritmia cardíaca, dispneia e edema. Passaram-se 60 anos até Giovanni Maria Lancisi (1654-1720) escrever que os pequenos nódulos de carne eram projeções do tecido valvular, e não simples aposições. A história dá um salto de um século, e nos primórdios do século XIX, Jean Nicolas Corvisart (1755-1821) cunhou o termo vegetação para a florescência que lembrava a couve-flor da sífilis. Anos após, Jean-Baptiste Bouillaud (1796-1881) estabeleceu correlação entre endocardite "tifoide" e o que chamava de artrite reumatoide aguda. Pouco tempo após, William Senhouse Kirkes (1822-1864) anotou que fragmentos de vegetações valvulares eram encontrados em artéria cerebral, rins e baço em casos que cursaram com febre, sopro cardíaco e manchas purpúreas na pele, além de observar nódulos cutâneos, depois batizados de nódulos de Osler por Emanuel Libman (1872-1946). Na segunda metade do século XIX, clínicos de renome como Jean-Martin Charcot (1825-1893) e Alfred Vulpian (1826-1887) entendiam que hipertermia, calafrios e esplenomegalia eram sintomas da endocardite tifoide, atribuídos à intoxicação por um veneno produzido no endocárdio doente. Na sequência, Emmanuel Winge (1817-1894) descreveu o encontro de "micro-organismos parasitas" em vegetação de valva aórtica cerca de um mês após uma supuração em pele, e Hjalmar Heiberg (1837-1897) anotou um caso de endocardite após infecção puerperal. Os segredos da endocardite infecciosa começavam a ser revelados e já podiam sustentar teorias.

A noção de porta de entrada e transporte pela corrente sanguínea foi reforçada por Edwin Klebs (1834-1913) com base na presença de micro-organismos na vegetação valvular em 27 necropsias. Uma questão que incomodava era se a presença dos micro-organismos era causa ou consequência das vegetações valvulares.

A noção de lesão valvar como fator predisponente era o que faltava para dirimir a dúvida. Ainda no século XIX, Ottomar Rosenbach (1851-1907) e Karl Koester (1843-1904) observaram que o comprometimento valvular era fator precedente favorecedor ao desenvolvimento de endocardite infecciosa.

Na penúltima década do século XIX, Hugo Ribbert (1855-1920) realizou experiências de indução de endocardite infecciosa. Ele injetou em coelhos Staphylococcus aureus cultivados em batatas, e identificou colônias da bactéria sobre partículas na superfície de valvas cardíacas, especialmente nas cordas tendíneas da valva mitral. No mesmo ano, WK Wyssokowitsch (1854-1912) obteve a colonização de bactérais injetadas no sangue de coelhos após prévia escarificação da valva aórtica via artéria carótida. Da coletânea de experimentos em animais da época, resultaram duas conclusões: a) a precedência de uma endocardiopatia trombótica não bacteriana; b) a colonização deste substrato por bactéria circulante.

O século XIX termina associando lesão valvar, porta de entrada e circulação de micro-organismos, febre e manifestações extracardíacas sob o diagnóstico sintético de endocardite infecciosa

A contribuição de um epônimo3-5

William Bart Osler (1849-1919) é epônimo ligado à endocardite infecciosa em geral (doença de Osler) e a uma de suas manifestações periféricas (nódulo de Osler). Médico famoso de tripla nacionalidade - canadense, clinicou inicialmente nos Estados Unidos e depois na Inglaterra -, ele deixou o seu nome fortemente associado à educação do jovem médico. Osler não era um médico de gabinete, e revelou a sabedoria do bom observador para a construção de uma visão unificada da endocardite infecciosa.

Osler percebeu que havia casos mais simples e mais complexos, e, por isso, usou termos discriminativos como ulcerativa, maligna, séptica e piêmica. Ele firmou que elementos sanguíneos como fibrina e plaquetas depositavam- se sobre o endocárdio lesado - substrato da endocardiopatia trombótica não bacteriana - e constituiam o núcleo da vegetação, desvalorizando o conceito que ele dependia de secreções a partir do endocárdio. Osler chamou a atenção para a diversidade de micro-organismos envolvidos na vegetação, e colecionou evidências a favor do caráter primário da presença de germens na etiopatogenia da endocardite infecciosa, em uma época onde era incipiente a detecção de germens vivos em hemoculturas.

Osler deixou claro em suas exposições que a endocardite infecciosa era uma doença para se supor quando houvesse febre e sudorese, que ela tinha uma base morfológica relacionada à altíssima frequência de lesão valvular, a qual tendia a se agravar pela infecção, que apresentava uma evolução de semanas com intercorrências extracardíacas associadas a fenômenos de migração dos elementos envolvidos no endocárdio, com manifestação de petéquias, hemorragia na retina, hematúria, esplenomegalia, embolia para membros inferiores e infartos múltiplos de órgãos. O que hoje parece simples, precisou ser organizado qual um banco de dados por um entusiasta do aprendizado à beira do leito.

Na última década do século XIX, Osler relatou a experiência clínica com uma mulher que apresentava um sopro sistólico intenso relacionado à insuficiência mitral preexistente, que apresentava edema em joelhos e tornozelos e que mantinha-se eupneica apenas quando em repouso. A paciente relatou que ao início da doença apareceram pequenas manchas nas mãos e nos pés, também nos braços e na face, que aparentavam "colmeias"; elas continuaram a surgir com caráter eritematoso, algumas pequenas como ervilhas, outras mais largas como uma moeda de cinco centavos, dolorosas e que tinham um ponto branco ao centro. As manifestações desapareciam em poucas horas e nunca persistiam até a noite do dia em que apareciam. Elas não eram numerosas e, por vezes, eram observadas na ponta dos dedos, que ficavam transitoriamente inchados. A descrição dos nódulos fez de Osler um epônimo.

Estimulado pelas apresentações de Osler, Lord Thomas Jeeves Horder (1871-1955)5, médico dos reis da Inglaterra, que ensinava que manter dúvidas sobre o diagnóstico era essencial para não deixar escapar equívocos - de fato, a necessária preocupação com autossegunda opinião significa que as dúvidas nascem mais do conhecimento do que da ignorância -, publicou uma coletânea de 150 casos de endocardite infecciosa, com ilustrações sobre as lesões patológicas, na primeira década do século XX. Nessa sedimentação da endocardite infecciosa como entidade nosológica, Horder enfatizou a preexistência de valvopatia e de cardiopatia congênita, a importância das portas de entrada bucal e intestinal, a ocorrência de aneurisma micótico, a presença de esplenomegalia e a identificação da etiologia estreptocócica em mais de 60% dos casos confirmados à necropsia.

Horder reconheceu cinco tipos de endocardite infecciosa: 1- latente; 2- fulminante; 3- aguda; 4- crônica e 5- subaguda, modalidade que correspondia a 70% dos casos.

Perspectivas de cura6,7

O médico passava a conhecer melhor a endocardite infecciosa, mas a Medicina não disponibilizava métodos terapêuticos eficientes. Na década de 1930 do século XX, algumas tentativas terapêuticas com a indução de hiperpirexia levaram à conclusão que "...a despeito do aumento da reação das células e dos processos de defesa do hospedeiro, o Streptococcus viridans parece ser resistente a altas temperaturas corpóreas seguras de exposição ao corpo humano..." (EP9).

Antibiose (em oposição à simbiose) é termo cunhado por Jean Paul Vuillemin (1861-1932), em 1889, para efeitos de antagonismo dos seres vivos em geral e a denominação antibiótico foi inicialmente empregada por Selman- Abraham Waksman (1888-1973) em 1942, adaptando para substância produzida por micro-organismos que antagoniza o desenvolvimento de outros micro-organismos. Nascia a esperança de cura para a endocardite infecciosa.

Nos primórdios da década de 1940, a sulfanilamida, um composto sintético, passou a ser utilizada na endocardite infecciosa e determinou alguns relatos de sucesso terapêutico, embora a maioria dos casos manifestasse benefício transitório e subsequente progressão fatal. Foram as primeiras evidências clínicas que a bactéria alojada no endocárdio poderia ser atingida. Grande alento foi trazido por Lichtman e Bierman ao relatarem cura da endocardite infecciosa em quatro (16%) dentre 25 casos, pelo uso combinado de sulfanilamida e hiperpirexia. Um dos pontos de discussão era a estratégia das sessões de hiperpirexia - pelo menos oito sessões em dias alternados, levando à temperatura axilar de 40ºC por cerca de, no mínimo, cinco horas. Diagnóstico precoce e tratamento precoce pareciam ser fatores de influência para resposta ao tratamento combinado. Ainda na década de 1940, uma coletânea de 200 casos de uso de droga sulfamida (sulfanilamida, sulfapiridina e sulfatiazol) reuniu 12 (6%) resultados de cura. Por algum tempo, alguns autores acreditaram que a associação de heparina, hipertermia e uso endovenoso de vacina para febre tifíde-paratifoide era eficiente.

Após a disponibilidade da penicilina para uso universal, graças aos esforços pioneiros de ingleses como o Prêmio Nobel Howard Florey (1898-1968) e americanos como Martin Henry Dawson (1896-1945), o tratamento da endocardite infecciosa entrou em uma ascensão de eficiência. A partir de 1944/45, a terapêutica antibiótica da endocardite infecciosa acumulou rápida experiência e sucesso.

Em 1945, Dawson e Hunter concluíram que a endocardite por Streptococcus viridans poderia ser tratada com penicilina. Os autores usaram de 80 mil a 500 mil unidades diárias de penicilina por via endovenosa ou intramuscular, em doses fraccionadas, em geral a cada três horas, por períodos de 10 a 62 dias, na maioria dos casos associada à heparina como adjuvante terapêutico. Após três meses de completado o tratamento, 14 (70%) dos 20 pacientes estavam livres de evidências da infecção. Uma curiosidade é o addendum do artigo original, que inclui mais sete pacientes (seis casos resultaram em controle da infecção) com a observação de que a infusão contínua intramuscular de penicilina tinha sido mais bem tolerada pelo paciente que a infusão endovenosa, mas que a técnica restringia o uso de heparina. Com o passar do tempo, a penicilina tornou-se pura e possibilitou a administração segura de doses maiores por períodos mais prolongados em casos de endocardite infecciosa por bactérias a ela sensíveis.

Como acontece habitualmente, benefícios sobre a história natural de uma doença dão oportunidade ao desenvolvimento de sobrevivência com novas expressões clínicas. Três aspectos de eficiência terapêutica com implicações no prognóstico tornaram-se motivo de crescente atenção: a) evolução da área cardíaca; b) piora da capacidade de realizar esforços; c) evolução da gravidade morfológica da lesão valvar preexistente. Um dado ficou claro da observação acurada que caracterizava a época e que persiste válido: "... a endocardite infecciosa raramente ocorre na presença de cardiopatia reumática grave..."

Em outras palavras, a redução de mortalidade para cerca de 30% (fato penicilina-dependente) trouxe preocupações sobre a sobrevivência à infecção e o comprometimento da qualidade de vida por agravamento da cardiopatia prévia. Em decorrência, os efeitos morfológicos deletérios da endocardite infecciosa ampliaram a pesquisa sobre fundamentos da intervenção direta sobre a lesão valvar grave e sintomática.

A cirurgia na fase de estado da endocardite infecciosa8

Na década de 1960, já estava sedimentado que a endocardite infecciosa era uma doença passível de cura. A perspectiva de controle da infecção atiçou a inquietude do médico com os casos que não respondiam ao antibiótico. Alguns pensaram em uma intervenção direta sobre o coração para remoção do tecido infectado, mas era forte o conceito da imprudência de se operar um paciente com febre e insuficiência cardíaca. Andrew G. Wallace et al., na Duke University, entenderam que a remoção da valva infectada e a substituição por uma prótese valvular constituíam abordagem sobre a causa das manifestações clínicas e, portanto, febre e insuficiência cardíaca não eram exatamente comorbidades de acréscimo de risco cirúrgico.

Um pedreiro de 45 anos com endocardite por Klebsiella sp. não responsível a Colimicina e a Kanamicina e nítido agravamento da insuficiência aórtica tornou-se o primeiro paciente a ter a vegetação visível in vivo, diretamente em um Centro Cirúrgico, bem como as perfurações dos folhetos coronarianos direito e esquerdo. O implante de uma prótese de Starr-Edwards resultou em um paciente afebril, com hemoculturas negativas e uma insuficência paravalvar discreta sem sinais periféricos de insuficiência aórtica que se manteve na observação realizada aos 15 meses de evolução pós-operatória. Os autores enfatizaram que a ausência de comprometimento do anel valvar foi fator de sucesso, pois era sinal que não haveria infecção além da valva excisada.

A inovação assistencial que dispensou um projeto de pesquisa e consequente avaliação ética marcou o início da associação de prótese valvular à endocardite infecciosa, tanto como terapêutica quanto como etiopatogenia (endocardite em prótese). Na sequência, a rotineira indicação cirúrgica em casos de endocardite infecciosa perante ICC grau III/IV (a mais comum recomendação) reduziu a mortalidade de 90% para 10%.

A ecocardiografia revelando a vegetação9

A história da ecocardiografia começou com o uso do ultrassom para avaliação da insuficiência mitral pós-comissurotomia e do derrame pericárdico, em decorrência dos estudos de Inge Edler (1911-2001) e Hellmuth Hertz (1920-1990), na década de 1950, e a subsequente contribuição de Harvey Feigenbaum, o "Pai da Ecocardiografia".

A década de 1970 reuniu a publicação de artigos salientando a revelação de vegetação pela ecocardiografia modo M. Em 1980, JA Stewart et al., da Duke University, resumiram o estado da arte da época, após identificarem 54% de positividade de sinais de vegetação à ecocardiografia: "... embora seja um bom método para documentar presença ou ausência de endocardite infecciosa, não parece ser razoável utilizar a ecocardiografia como método rotineiro de diagnóstico; pois somente metade dos pacientes com critérios clínicos manifesta sinais ecocardiográficos; além disso, a vegetação não involui rapidamente e, assim, a ecocardiografia pode ter baixo valor diagnóstico em paciente com antecedente de endocardite infecciosa...".

Após 30 anos dessas palavras de Stewart et al., verifica-se que o acúmulo de experiência determinou notável evolução da sustentação do raciocínio diagnóstico de endocardite infecciosa pela reunião de dados clínicos tradicionais e de imagens e cálculos determinados pela expansão tecnológica da ecocardiografia (bidimensional, Doppler e transesofágico). A denominação endocardite subaguda praticamente desapareceu, em grande parte devido à maior brevidade do diagnóstico proporcionada pelo reconhecimento ecocardiográfico da vegetação em casos com febre e cardiopatia.

Na década de 1990, a Duke University deu outra magnífica contribuição para o conhecimento da endocardite infecciosa por meio de uma sistematização diagnóstica que alçava a ecocardiografia como método determinante de um critério maior.

De clinicamente possível para clinicamente definida10-12

Em virtude de ser doença com alta variação de apresentações, a elaboração de critérios sólidos foi alvo de vários pesquisadores que percebiam que qualquer aumento da sensibilidade provocava queda da especificidade e vice-versa.

Em 1981, Fordham Charles von Reyn et al. distribuíram 123 casos em endocardite infecciosa definida (19), provável (44), possível (41) e rejeitada (19). As especificações de cada categoria foram de utilidade, porém logo se tornou ultrapassada por duas razões principais: a) o diagnóstico de definida era baseado em dados anatomopatológicos e, assim, o clínico, na verdade, tratava um caso possível ou provável; b) os estudos precederam a introdução da ecocardiografia bidimensional e do uso do Doppler.

Durante anos, aqueles que cuidavam de casos de endocardite infecciosa foram incorporando a ecocardiografia na sustentação do diagnóstico clínico de endocardite infecciosa à beira do leito, até que, em 1994, David Durack et al., na Duke University, sistematizaram e publicaram a possibilidade de dispensar a identificação de vegetação pela anatomia patológica como base para a classificação em endocardite infecciosa definida, substituindo pela imagem ecocardiográfica. Reduziram para três categorias: definida, possível e rejeitada.

Os critérios da Duke University valeram-se da estratégia utilizada por Thomas Duckett Jones (1899-1954) de subdividir os critérios em maiores e menores. A ecocardiografia e a hemocultura passaram a ter idêntica hierarquia diagnóstica como critérios maiores para o diagnóstico de endocardite infecciosa, com evidente ganho de sensibilidade. Dois critérios maiores ou um maior e três menores davam ao clínico a base para tratar "uma certeza" e não uma possibilidade de endocardite infecciosa.

Vários estudos validaram os novos critérios, contudo, algumas lacunas eram percebidas. Em 2000, Jennifer S. Li, uma professora de Pediatria da Duke University et al. completaram o magnífico avanço das fronteiras do conhecimento sobre endocardite infecciosa do século XX, apresentando um aperfeiçoamento dos critérios de 1994 da Duke University.

Os principais aperfeiçoamentos foram: a) endocardite possível com base em pelo menos um critério maior, um critério menor ou três critérios menores; b) eliminação de "dados ecocardiográficos consistentes com endocardite infecciosa, mas não dando alcance para critério maior", em função do uso do método transesofágico; c) elevação da bacteremia por Staphylococcus aureus à condição de critério maior, tanto na infecção de origem nocosomial, como na ligada a uma fonte de infeccção removível; d) sorologia positiva para febre Q passou a ser um critério maior com o mesmo peso de uma hemocultura positiva.

Período de uso de antibioticoprofilaxia13

Em cerca de 60 anos, houve grandes mudanças nas recomendações de antiobioticoprofilaxia de endocardite infecciosa. O tempo encurtou doses, restringiu o número de pacientes sob risco e limitou os procedimentos indutores. A falta de estudos controlados justifica as variações de comportamento perante uma doença tão grave.

Em 1955, penicilina intramuscular era injetada no paciente 30 minutos antes de procedimento dental. Em 1957, penicilina oral era administrada quatro vezes ao dia por dois dias antes, no dia e por dois dias após a manipulação dentária. Em 1960, a dose passou a ser única diária de 600 mil unidades de penicilina cristalina, pelos mesmos cinco dias. Em 1965, a primeira dose de penicilina era dada de uma a duas horas antes do procedimento. Em 1977, penicilina intramuscular era paliçada de 30 a 60 minutos antes da manipulação dentária, seguida de oito doses de 500 mg de penicilina V a cada duas horas. Em 1984, a recomendação era 2 g de Penicilina V 60 minutos antes do procedimento dental, seguida de 1 g após seis horas. Em 1990, 3 g de amoxicilina via oral era preconizada, 60 minutos antes do procedimento, seguida de 1,5 g após seis horas. Em 1997, a dose de amoxicilina foi reduzida para 2 g, 60 minutos antes do procedimento dentário, dose única.

Homenagem a um brasileiro

Nas décadas de 1960/70, casos de febre, cardiopatia, especialmente em jovens, determinavam suspeita diagnóstica preferencial de atividade da febre reumática, entre nós. Em muitos casos, a endocardite infecciosa não era nem cogitada, até porque era precária a sustentação microbiológica.

A necessidade de dar mais atenção ao diagnóstico diferencial da febre reumática com endocardite infecciosa14 foi incutida nos aprendizes brasileiros de Cardiologia por um professor que não pode ficar fora de nenhum registro histórico sobre endocardite infecciosa realizado no Brasil, e que foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Cardiologia, em 1943: Luiz Creio na Medicina que é ato contínuo de aprimoramento Venere Décourt (1911-2007).

Artigo recebido: 20/01/2010

Aceito para publicação: 25/01/2011

Conflito de interesses: Não há.

Trabalho realizado no Instituto do Coração - InCor, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

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  • Correspondência para:

    Max Grinberg
    Av. Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 44 - Bloco II Cerqueira Cesar
    São Paulo - SP CEP: 05403-000
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Jan 2010
    • Aceito
      25 Jan 2011
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