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Uso da proteína C reativa na prevenção da aterosclerose: entre Jupiter e Marte

EDITORIAL

Uso da proteína C reativa na prevenção da aterosclerose: entre Jupiter e Marte

Marcio H. MinameI; Raul D. SantosII, * * Correspondência: Unidade Clínica de Lípides InCor-HCFMUSP. Av. Dr. Eneas C Aguiar, nº 44 - 2º andar - Sala 4 -Bloco 2. São Paulo - SP - Cep: 05403-900. E-mail: raul.santos@incor.usp.br

IMédico, Pós-Graduando da Disciplina de Cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, São Paulo, SP

IIProfessor Livre Docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP; Diretor da Unidade Clínica de Lípides Instituto do Coração -InCor - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP

Não há dúvida que a redução do colesterol com estatinas reduz a morbi-mortalidade por doença cardiovascular em indivíduos sem manifestação prévia de aterosclerose1,2. Contudo, o benefício real e o custo-efetividade desses tratamentos dependerá do risco absoluto de desfechos cardiovasculares. As diretrizes atuais recomendam o cálculo do risco cardiovascular em 10 anos baseado na idade, valores de colesterol total, HDL-colesterol, pressão arterial e presença ou não do tabagismo para guiar o início e a intensidade da terapia com estatinas em pacientes de prevenção primária3. Entretanto, existem evidências de que muitos pacientes que irão apresentar evento clínico deixarão de ser tratados por serem classificados como de baixo-risco cardiovascular4. Trata-se do chamado "hiato da detecção", este hiato ocorre principalmente em indivíduos mais jovens e em mulheres. Diversas ferramentas têm sido utilizadas para aprimorar a estratificação de risco cardiovascular dos pacientes, desde a pesquisa de aterosclerose subclínica com exames de imagem5, até o uso de biomarcadores laboratoriais, como a proteína C reativa de alta sensibilidade (PCR)6 entre outros.

A PCR é uma proteína plasmática de fase aguda produzida principalmente pelos hepatócitos. Faz parte da família das pentraxinas6. Existem numerosas evidências de sua participação na aterogênese tais como: aumento da expressão de VCAM, ICAM-1, E-selectina, MCP-1, aumento na migração de células musculares lisas, promove disfunção endotelial in vivo, entre outros6. Vários estudos clínicos demonstraram seu papel como marcador de risco cardiovascular, entre eles destacamos: Physicians Health Study (PHS), Women's Health Study (WHS), Honolulu Heart Study, Nurses Health Study, MONICA (Monitoring Trends and Determinants in Cardiovascular Disease) e Cardiovascular Health Study7. Diante dessas evidências, a PCR foi incorporada na IV Diretriz Brasileira de Prevenção da Aterosclerose como fator agravante de risco, ou seja, quando elevada, teria poder suficiente para elevar o risco cardiovascular e alterar metas de tratamento3. Ridker et al. propuseram a incorporação da PCR a um escore clínico (Reynolds Risk Score), como forma de otimizar a estratificação de risco cardiovascular8. Contudo, estudos recentes utilizando novos métodos estatísticos para testar o poder incremental ou não de biomarcadores aos tradicionais fatores de risco têm colocado em dúvida a utilidade da PCR como marcadora de risco9,10. Atualmente, sabe-se que a determinação de medidas clássicas de associação como os "odds ratios" ou "hazard ratios" não são suficientes para avaliar o real papel preditivo de um biomarcador frente ao conjunto total de fatores de risco para a aterosclerose11. Lloyd-Jones et al.9 analisaram o valor que a PCR agregaria aos fatores de risco tradicionais em grandes estudos clínicos, por meio da estatística C e do cálculo da área sob a curva ROC (Receiver Operating Curve) para modelos com fatores de risco tradicionais antes e após o acréscimo da PCR: WHS 0,81 versus 0,81; Rotterdam Study 0,746 versus 0,748; MONICA 0,735 versus 0,750; Reykjavik Cohort 0,645 versus 0,65; Framingham Offspring Study 0,74 versus 0,74; Framingham Heart Study 0,80 versus 0,80; Cardiovascular Health Study 0,73 versus 0,72. Os autores concluíram que a determinação da PCR não altera a área sob a curva, ou seja, não acrescenta poder discriminativo aos fatores de risco clássicos e, portanto, ainda não existiriam evidências consistentes para incorporar seu uso de forma rotineira9. Mais recentemente, um estudo de corte sueco, com 5.067 participantes sem eventos cardiovasculares prévios, avaliou o papel de seis biomarcadores, entre eles a PCR, na estratificação de risco cardiovascular10. A mediana de seguimento foi de 12,8 anos, e durante o seguimento ocorreram 418 eventos cardiovasculares e 230 eventos coronários. A PCR não acrescentou poder discriminativo aos fatores de risco tradicionais quando analisada individualmente para eventos cardiovasculares (acréscimo na estatística C de 0,003, p=0,14) e pouco acrescentou quando analisada em conjunto com o N-BNP (peptídeo natriurético cerebral, acréscimo na estatística C de 0,007, p=0,04)10. O estudo também concluiu que os biomarcadores poderiam agregar discreto valor na reclassificação de pacientes de risco intermediário, porém isso em virtude principalmente de reclassificar para um estrato de risco inferior10, fato que não mudaria a prática clínica, pois não deixaríamos de tratar os fatores de risco presentes. Os estudos de Lloyd-Jones et al. e Melander at al9,10 colocam em cheque os biomarcadores e desencadeiam um grande debate dentro da cardiologia preventiva, devemos usar ou não a PCR para avaliação do risco cardiovascular?

Diversos estudos demonstram que as estatinas além de diminuir o LDL-colesterol (LDL-C) podem também reduzir a PCR, o que apontaria para um efeito antiinflamatório desta classe de medicamentos. A pergunta natural que surge nesse momento seria: qual a implicância clínica disso? O estudo PROVE-IT TIMI-22 avaliou os efeitos de um regime intensivo (atorvastatina 80mg/dia) versus moderado (pravastatina 40mg/dia) de redução do colesterol em pacientes após sofrerem um evento isquêmico coronário agudo. Além de demonstrar o benefício do regime intensivo em reduzir de forma mais significativa os eventos cardiovasculares (RR= -16%, NNT= 25), o estudo também mostrou que os pacientes que atingiram LDL-C < 70mg/dL e PCR < 2mg/L, foram o subgrupo que apresentou maior redução de eventos, mesmo comparado aos indivíduos que atingiram apenas uma dessas metas12. O estudo A to Z demonstrou achado semelhante também em pacientes com síndrome coronária aguda testando doses altas e baixas de sinvastatina13. No estudo REVERSAL, que avaliou progressão de placa aterosclerótica com ultrassom intra-vascular em regime intensivo e moderado de redução de colesterol, demonstrou que os indivíduos que permaneceram abaixo da mediana de LDL-C e PCR apresentaram menor progressão de placa14. Começaram a surgir hipóteses a respeito da dupla meta terapêutica a ser atingida concomitantemente: redução do colesterol e redução do processo inflamatório. O estudo JUPITER (Justification for the Use of statins in Primary prevention: an International Trial Evaluating Rosuvastatin) foi elaborado com o objetivo de testar a hipótese de que pacientes com LDL-C não elevado (<130mg/dL), porém com PCR elevada ( >2mg/L) poderiam se beneficiar do tratamento com uma potente estatina (rosuvastatina 20mg/dia)15.

O estudo JUPITER incluiu pacientes de prevenção primária, homens com idade maior ou igual a 50 anos, mulheres com idade igual ou maior a 60 anos, todos com LDL-C abaixo de 130mg/dL (mediana 108 mg/dL) e PCR acima de 2 mg/L (mediana 4,25 mg/L)15 . O desfecho primário foi composto de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC), revascularização arterial, hospitalização por angina instável ou morte de causa cardiovascular. Foram randomizados 17.802 pacientes para rosuvastatina 20mg/dia ou placebo. O estudo foi interrompido com uma mediana de seguimento de 1,9 anos (máximo de 5,0). A rosuvastatina reduziu o LDL-c em 50% e a PCR em 37%. O desfecho primário foi de 0,77 e 1,36 por 100 pessoas/ano de seguimento, respectivamente para rosuvastatina e placebo ("hazard ratio" para rosuvastatina de 0,56; IC 95% 0,46-0,69, p<0,00001). Também houve redução de morte por qualquer causa a favor da rosuvastatina (hazard ratio 0,80; IC95% 0,67-0,97; p=0,02)15.

Uma análise prospectiva do JUPITER também revelou que houve maior redução de eventos vasculares nos pacientes que atingiram LDL-c < 70mg/dL e PCR < 2mg/L, comparado aos indivíduos que atingiram uma ou nenhuma dessas metas16. Os resultados do PROVE-IT e do JUPITER desencadearam outro grande debate, devemos monitorizar ou não os valores da PCR para avaliar a eficácia do tratamento como fazemos com o colesterol? Devemos ter uma dupla meta, LDL-C e PCR para aperfeiçoar a prevenção? Além de ser usada para a avaliação do risco a PCR também deveria ser utilizada para monitorar o tratamento? Essa questão é assunto de calorosos debates na cardiologia. Apesar de acreditarmos fortemente na teoria inflamatória da aterosclerose, a nosso ver estamos muito longe de termos uma dupla meta de tratamento incorporada nas diretrizes. Como as estatinas além de baixar as concentrações de PCR também reduzem o colesterol, aliás esses medicamentos foram criados e aprovados para isso, fica difícil, por mais que se usem métodos estatísticos complexos, separar os efeitos isolados da queda do colesterol e da PCR sobre os desfechos clínicos16. Dessa forma, não é possível comprovar o benefício isolado da supressão da inflamação causado por esses medicamentos. Para resolver essa charada, necessitamos de estudos que avaliem medicamentos que reduzam somente o processo inflamatório sem modificar os lípides e estamos muito longe disso ainda.

Em nossa opinião, a conseqUência imediata do estudo JUPITER será a modificação das metas do LDL-C para pacientes de risco médio (risco >10% em 10 anos) para pelo menos < 100 mg/dL ou < 70 mg/dL. Contudo, apesar de ser um estudo multicêntrico de grande impacto, o JUPITER também gera algumas reflexões ainda sem respostas. A não inclusão de pacientes com PCR < 2mg/L deixa dúvida realmente se a PCR por si mesma indica um grupo de indivíduos que se beneficiaria do uso de estatinas. Se quisessem realmente testar a PCR como ferramenta para indicar o uso das estatinas, os autores do JUPITER deveriam ter incluído um grupo com PCR < 2,0 mg/L randomizado ou não para estatinas. Devemos lembrar que uma redução de 53 mg/dL no LDL-c como encontrada nesse estudo, poderia reduzir o risco cardiovascular, independentemente dos valores basais de LDL-C, em mais de 25% de acordo com a metanálise do CTT1. Metade dos pacientes envolvidos no JUPITER (n=8.895) não era de baixo risco e, portanto, apresentavam escore de Framingham acima de 10%, ou seja, seria uma população em que o benefício do uso de estatina já seria esperado mesmo com LDL-c mediano de 108 mg/dL15. O tempo de seguimento do estudo foi curto (mediana de 1,9 anos), o que impede conclusões a respeito de tempo mais prolongado do uso de estatinas nesta população. Se bem que para essa critica há um forte atenuante, quanto mais tempo baixamos o colesterol com estatinas maior o impacto do benefício atingido1!

Outra questão levantada é qual seria o impacto do estudo JUPITER em termos de saúde pública? Será que devemos realmente tratar com estatina todos os pacientes com os critérios de inclusão do JUPITER? Qual o custo-benefício disso? Quantos indivíduos no Brasil se encaixariam neste perfil? Não temos resposta para isso, mas uma estimativa dos EUA calcula que 6,5 milhões de norte-americanos seriam potenciais candidatos a tratamento com estatina após o estudo JUPITER17. Devemos considerar que fatores de risco como obesidade e tabagismo também aumentam a PCR e que a modificação do estilo de vida deve ser sempre estimulada nestes pacientes. Até o momento acreditamos que o tratamento dos pacientes ainda deve ser feito à luz das diretrizes atuais, baseado principalmente no risco cardiovascular, lembrando que quanto maior o risco, maior o benefício do tratamento com estatinas. Certamente, indivíduos de maior risco devem ser tratados de forma mais intensiva em relação ao LDL-C e o JUPITER comprova os dados de estudos anteriores1,2. Finalmente, a nosso ver, o uso da PCR na prática clinica certamente dependerá de futuros estudos clínicos mais bem elaborados, contudo, no momento, seu uso parece depender dos caprichos de dois deuses do Olimpo: das benesses de Júpiter, o pai de todos os deuses e, devido a todo o debate existente, de seu filho Marte, o deus da guerra.

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    Correspondência: Unidade Clínica de Lípides InCor-HCFMUSP. Av. Dr. Eneas C Aguiar, nº 44 - 2º andar - Sala 4 -Bloco 2. São Paulo - SP - Cep: 05403-900. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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