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Abortamento espontâneo e provocado: ansiedade, depressão e culpa

Spountaneous and induced abortion: anxiety, depression and guilty

Resumos

OBJETIVOS: Caracterizar a população que sofreu abortamento; investigar a existência de ansiedade e depressão; verificar se existe ou não sentimento de culpa após o abortamento e comparar os resultados entre mulheres que sofreram abortamento espontâneo e as que provocaram-no. MÉTODOS: 50 mulheres com abortamento espontâneo e 50 com provocado foram entrevistadas 30 dias após o abortamento. Foi realizada entrevista com questões abertas e fechadas e aplicada a escala Hospital Anxiety and depression. RESULTADOS: As mulheres que viveram o abortamento espontâneo encontram-se mais culpadas (30%) que as que provocaram-no (18%). No entanto, as mulheres que provocaram o abortamento encontraram-se mais ansiosas (média de 11) e mais deprimidas (média de 8,3) que as mulheres que viveram abortamento espontâneo (médias de 8,7 e 6,1; respectivamente, p<0,05). CONCLUSÃO: As mulheres que provocaram o abortamento encontravam-se mais ansiosas e mais deprimidas, demonstrando a necessidade da realização de acompanhamento psicológico.

Aborto espontâneo; Aborto induzido; Ansiedade; Depressão; Culpa


BACKGROUND: Pregnancy has a symbolic meaning for each woman. It varies according to personality structure and is related to women's previous life experiences. OBJECTIVES: the aim was to characterize the women that suffered abortion, asking about anxiety and depression, looking for guilty feelings after abortion, and to compare results between women who suffered spontaneous abortion and those who had intentional abortion. METHODS: fifty women with spontaneous and fifty with induced abortion were interviewed 30 days after the procedure. A semistructured questionnaire with open and closed-end questions and Hospital Anxiety and Depression Scale were administered. RESULTS: woman who induced abortion revealed to be more anxious (mean 11) and depressed (mean 8.3) than woman with spontaneous abortion (means 8.7 and 6.1 respectively, p<0.05). CONCLUSIONS: women who presented induced abortion were more anxious and depressed, as shown by later life events, full of problematic feelings and the need fort sychological support.

Spountaneous; Abortion; Induced abortion; Anxiety; Depression; Guilty


ARTIGO ORIGINAL

Abortamento espontâneo e provocado: ansiedade, depressão e culpa

Spountaneous and induced abortion: anxiety, depression and guilty

Gláucia Rosana Guerra BenuteI,* * Correspondência: Rua Amália de Noronha, 276 Cep 05410-010 - Pinheiros São Paulo - SP ; Roseli Mieko Yamamoto NomuraII; Pedro Paulo PereiraIII; Mara Cristina Souza de LuciaIV; Marcelo ZugaibV

IDiretor técnico de serviço de saúde da Divisão de Psicologia do HCFMUSP, São Paulo, SP

IIProfessora Livre-docente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina de São Paulo, São Paulo, SP

IIIMédico assistente da Divisão de Clínica Obstétrica do HCFMUSP, São Paulo, SP

IVDiretora da Divisão de Psicologia do ICHCFMUSP, São Paulo, SP

VProfessor titular do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, SP

RESUMO

OBJETIVOS: Caracterizar a população que sofreu abortamento; investigar a existência de ansiedade e depressão; verificar se existe ou não sentimento de culpa após o abortamento e comparar os resultados entre mulheres que sofreram abortamento espontâneo e as que provocaram-no.

MÉTODOS: 50 mulheres com abortamento espontâneo e 50 com provocado foram entrevistadas 30 dias após o abortamento. Foi realizada entrevista com questões abertas e fechadas e aplicada a escala Hospital Anxiety and depression.

RESULTADOS: As mulheres que viveram o abortamento espontâneo encontram-se mais culpadas (30%) que as que provocaram-no (18%). No entanto, as mulheres que provocaram o abortamento encontraram-se mais ansiosas (média de 11) e mais deprimidas (média de 8,3) que as mulheres que viveram abortamento espontâneo (médias de 8,7 e 6,1; respectivamente, p<0,05).

CONCLUSÃO: As mulheres que provocaram o abortamento encontravam-se mais ansiosas e mais deprimidas, demonstrando a necessidade da realização de acompanhamento psicológico.

Unitermos: Aborto espontâneo. Aborto induzido. Ansiedade. Depressão. Culpa.

SUMMARY

BACKGROUND: Pregnancy has a symbolic meaning for each woman. It varies according to personality structure and is related to women's previous life experiences.

OBJECTIVES: the aim was to characterize the women that suffered abortion, asking about anxiety and depression, looking for guilty feelings after abortion, and to compare results between women who suffered spontaneous abortion and those who had intentional abortion.

METHODS: fifty women with spontaneous and fifty with induced abortion were interviewed 30 days after the procedure. A semistructured questionnaire with open and closed-end questions and Hospital Anxiety and Depression Scale were administered.

RESULTS: woman who induced abortion revealed to be more anxious (mean 11) and depressed (mean 8.3) than woman with spontaneous abortion (means 8.7 and 6.1 respectively, p<0.05).

CONCLUSIONS: women who presented induced abortion were more anxious and depressed, as shown by later life events, full of problematic feelings and the need fort sychological support.

Key words: Spountaneous. Abortion. Induced abortion. Anxiety. Depression. Guilty.

INTRODUÇÃO

A gravidez tem um significado simbólico particular para cada mulher. Varia de acordo com a estrutura de personalidade, associada à história de vida pregressa e o momento atual de cada uma. Quando não desejada, a maternidade pode ser opressiva, já que a gestação altera o senso físico da mulher e convida-a a reorganizar vários aspectos de sua identidade, como a relação com o seu corpo, com o pai da criança e seus planos para a vida. Quando a gestação conscientemente desejada é perdida, também ocorre uma alteração na identidade, levando à sensação de fracasso pessoal.

Culpa é emoção experimentada pela mulher quando há um desvio da sua condição de totalidade, é sentida em função dos desvios havidos dos padrões estabelecidos para o comportamento1. "A culpa manifesta-se com especial agudeza quando nos sentimos inaceitáveis perante nós mesmos, emaranhados em conflitos de dever que nos dividem(...)"2.

No Brasil, onde a legislação só permite o aborto intencional em poucas exceções -acaba sendo um conflito de dever estabelecido moralmente, pois o significado particular de cada gestação faz parte do contexto individual, no qual, por vezes, a expectativa social da maternidade é vista como vivência maravilhosa, ideal, e a mãe deve desempenhar seu papel com perfeição3. A transgressão das leis morais desencadeia conflitos nos quais uma das saídas é a culpa, pois o conflito moral exige despertar e reorganizar a consciência4. No aborto por anomalia fetal letal, a autorização judicial ameniza o sentimento de culpa, conferindo ao casal o sentimento de adequação social4. O abortamento pode ser provocado quando a interrupção da gravidez é decisão transformada em alguma ação com essa finalidade, ou espontâneo, quando a perda do feto não é consequência de manipulação voluntária. diagnosticar o abortamento como provocado tampouco é fácil. Em geral, só pode ser feito pela informação da própria paciente, de familiares ou daquele que o realizou. Sem esse depoimento pessoal, raramente se pode distinguir pelo exame clínico a natureza do evento5.

Os motivos que levam a mulher a interromper a gravidez envolvem aspectos particulares e individuais, de modo geral fundamentadas em questões sociais, econômicas e emocionais, por vezes permeada pela violência doméstica ou sexual6,7,8.

No Brasil, o Código Penal de 1940 permite o abortamento nos casos de estupro e na existência de risco de morte materna. Para as situações de diagnóstico de anomalia fetal letal é necessária a autorização judicial para a interrupção da gestação por anomalia fetal letal9. Na europa, apesar de existir diferenças entre os países, o aborto é geralmente bem acessível em termos da legislação, é realizado em locais autorizados, por ginecologistas ou médicos generalistas10.

A depressão é uma doença que compromete o físico, o humor e o pensamento. Altera a maneira como a pessoa vê o mundo e se inter-relaciona com ele. A incidência de depressão na população em geral varia entre 3% e 7%. No hospital geral, a prevalência dos transtornos depressivos varia de 18% a 83%, dependendo do método de pesquisa e da condição médica estudada11.

Em estudo realizado na Nova Zelândia, o abortamento é relatado por 15% das mulheres que engravidaram pelo menos uma vez antes dos 25 anos, e as que praticaram o abortamento apresentam elevadas taxas de subsequentes problemas de depressão, ansiedade, pensamentos suicidas e droga adicção12.

A ansiedade se refere ao fenômeno que, dependendo de sua circunstancialidade ou intensidade, pode ser útil ou tornar-se patológico, prejudicando o funcionamento psíquico e somático. Em níveis normais, trata-se de fenômeno fisiológico responsável pela adaptação do organismo em situações de perigo. Entretanto, quando a ansiedade é excedente, ao invés de contribuir para a adaptação, desencadeia a falência da capacidade adaptativa.

As taxas de aborto são semelhantes no mundo todo, mas o aborto inseguro se concentra nos países em desenvolvimento13,14,15. No ano de 2003 estima-se que tenham ocorrido 41,6 milhões de abortos no mundo, dentre os quais 19,7 milhões foram considerados abortos inseguros. Nesse mesmo ano, a taxa de abortos inseguros nos países desenvolvidos foi de 2:1.000 mulheres de 15 a 44 anos e na América do Sul essa taxa foi de 33:1.000 mulheres16. É, portanto, grave problema de saúde pública, que apresenta reflexos nas taxas de mortalidade materna17. No Brasil, o abortamento é responsável por 11,4% do total de mortes maternas e 17% das causas obstétricas diretas, com parcela significativa devida ao abortamento provocado18.

O aborto inseguro traz consequências desastrosas para a sociedade, afetando negativamente as mulheres e suas famílias, os sistemas de saúde pública e a própria produtividade econômica. A organização mundial da saúde define como aborto inseguro o procedimento de interrupção da gravidez indesejada por pessoas sem perícia técnica ou em ambiente sem o padrão médico básico19. Nos países em que o aborto é ilegal ou muito estigmatizado socialmente, a pesquisa sobre o tema é um desafio que necessita ser investigado.

Este estudo teve como finalidade caracterizar a população que sofreu abortamento; investigar a existência ou não de ansiedade e depressão através de instrumento padronizado, comparando e verificando as diferenças e semelhanças entre as pacientes que sofreram abortamento espontâneo e as que o provocaram; verificar se existe ou não sentimento de culpa após o abortamento.

MÉTODOS

A amostra deste estudo foi constituída por 100 mulheres que receberam o diagnóstico de abortamento em Pronto-Socorro de Hospital Universitário, sendo 50 mulheres com abortamento espontâneo e 50 que o provocaram. As pacientes foram avaliadas 30 dias após o abortamento. A coleta de dados foi realizada no período de julho de 2001 a julho de 2002.

Este estudo foi previamente aprovado pela Comissão de Ética em pesquisa da Instituição. As mulheres que concordaram em participar assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Foram excluídas deste estudo duas mulheres que não permitiram a gravação da entrevista.

A idade das pacientes entrevistadas variou entre 15 e 43 anos. Não houve diferença estatística significativa (p>0,05) entre as médias de idade das mulheres que provocaram o abortamento e das que tiveram abortamento espontâneo (27,7 anos para abortamento espontâneo e 27,0 anos para o provocado); e entre a escolaridade e a religião das mulheres que provocaram e que tiveram abortamento espontâneo.

No que se refere ao estado conjugal, foi encontrada diferença estatisticamente significante (p<0,05). Observou-se que entre as mulheres que provocaram o abortamento houve uma concentração significativamente maior de mulheres solteiras. Já entre as que tiveram abortamento espontâneo há uma proporção maior de mulheres casadas.

As mulheres que desenvolviam trabalhos remunerados e que tinham renda pessoal eram maioria (65%). As mulheres do grupo de abortamento espontâneo se concentravam mais entre as que não tinham renda (46%). A maioria das mulheres que provocaram o abortamento (62%) apresentavam renda pessoal entre um e três salários mínimos. essa diferença é estatisticamente significativa (p<0,05). A média da renda pessoal para as mulheres do abortamento espontâneo foi de R$ 291,20 e do provocado foi de R$ 400,90.

A coleta de dados foi realizada por um único entrevistador e foram utilizados os seguintes instrumentos: entrevista semidirigida e escala 'Hospital Anxiety and Depression' (HAd), validada para o Brasil por Botega et al.20 foi desenvolvida para ser aplicada a pacientes de serviços não psiquiátricos de um hospital geral.

Na entrevista semidirigida foram investigados os aspectos relativos aos sentimentos na confirmação da gravidez; a reação do parceiro ao saber da gravidez; a visão da maternidade que a mulher apresentava; crença quanto a viver um castigo; aprovação ou não do próprio comportamento no processo vivenciado e aprovação ou não do comportamento do parceiro.

Análise dos dados

Inicialmente, realizou-se a transcrição das fitas em que foram gravadas as entrevistas. Após a transcrição literal de todas as fitas, foi realizada a categorização dos conteúdos da entrevista.

Com o conteúdo da transcrição, foi realizada a técnica de análise de conteúdo, que tem como objetivo descrever, interpretar e compreender os dados. Bardin21 define essa técnica como um conjunto de técnicas de análise da comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção / recepção destas mensagens.

Os dados das entrevistas foram codificados, transformando os dados brutos do texto em categorias através de uma análise transversal. Todos os resultados obtidos com a categorização foram, posteriormente, analisados com técnicas quantitativas. O principal foco de análise foi verificar as diferenças significativas (o nível de significância utilizado foi de 5%) entre o grupo de mulheres que sofreu abortamento espontâneo e o grupo que provocou o abortamento. para comparação das médias foi utilizado o teste t de Student e o teste F.

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta os resultados da categorização das entrevistas.

No que diz respeito à maternidade, as mulheres foram questionadas sobre o que pensavam em relação a ser mãe. A categoria denominada 'perfeito' tem o intuito de designar que as mulheres entendiam a maternidade como algo que reunia todas as qualidades positivas concebíveis, como algo primoroso. O termo 'imperfeito' deve ser compreendido como algo que apresenta falhas, dificuldades, assim como outras coisas na vida.

A maternidade se mostrou predominantemente de forma idealizada e positiva nos dois tipos de abortamento (65% para o grupo de abortamento espontâneo e 63% para as mulheres do grupo de abortamento provocado). Não há diferença significativa entre as mulheres que provocaram e as que tiveram um abortamento espontâneo.

Investigou-se se a mulher após sofrer o abortamento acreditava ser merecedora de um 'castigo', demonstrando, assim, a existência de um sentimento de culpa. Observou-se que no grupo de abortamento espontâneo, 50% responderam de modo negativo. Foi questionado, tanto para as mulheres do grupo de abortamento espontâneo quanto para as do abortamento provocado, se elas fariam tudo o que fizeram exatamente igual ou se modificariam alguma coisa caso ocorresse novamente a situação da gestação, até o desenrolar do abortamento. Não houve diferença estatística significativa entre os grupos.

Ao se verificar a relação estabelecida entre abortamento espontâneo, provocado e o desejo de mudar a atitude passada (culpa), tem-se que não há evidências para dizer que as mulheres que tiveram o abortamento espontâneo ou provocado tomariam algum tipo de atitude diferente, modificando algo que haviam realizado durante o processo da gestação até o abortamento.

Foi solicitado que as mulheres se imaginassem no lugar dos parceiros e dissessem se seu modo de agir seria igual ou diferente à reação de seus parceiros frente à situação da gestação e do abortamento. Observou-se que 70% das mulheres que provocaram o abortamento e 36% das que sofreram-no relataram insatisfação com as atitudes do parceiro, afirmando, portanto, que elas agiriam de modo diferente.

Foram realizados testes estatísticos para verificar a prevalência de ansiedade e depressão nos grupos de abortamento espontâneo e provocado (Tabela 2). Quanto à ansiedade, a média observada na HAd foi de 8,7 no grupo de abortamento espontâneo, que é interpretado como provável presença desse transtorno. Quando comparado ao grupo de abortamento provocado, este apresentou média de 11,0 (presença de ansiedade), valor significativamente maior (p<0,05) que o grupo de abortamento espontâneo. A análise referente à depressão, a média da HAd foi de 6,1 (ausência de depressão) no grupo de abortamento espontâneo, e 8,3 (provável presença de depressão) no grupo de abortamento provocado, e essa diferença mostrou ser estatisticamente significativa (p<0,05).

Na Tabela 3 estão apresentados resultados da média da HAd de acordo com o medo de consequências no futuro independentemente do tipo de aborto vivenciado. Não foram constatadas diferenças significativas na média da HAD para ansiedade nos grupos analisados. entretanto, observou-se que a média para depressão se mostrou significativamente maior nas mulheres que responderam 'sim' quanto ao medo de consequências no futuro.

A necessidade de apoio para a realização do aborto foi analisada apenas nas mulheres em que este foi provocado (Tabela 4). Não foram constatadas diferenças significativas na média da HAD para ansiedade e depressão, nos grupos analisados.

Foram realizados, ainda, testes para se verificar a existência ou não de correlação entre ansiedade e depressão com idade e número de filhos, inicialmente para o total de mulheres da amostra e, depois, separadamente para o grupo de abortamento espontâneo e para o de provocado. Não houve correlação significativa entre as variáveis estudadas, o que equivale dizer que não existiu nenhum tipo de dependência entre elas.

DISCUSSÃO

Os aspectos emocionais desencadeados pelo abortamento são inúmeros. Os motivos que os desencadeiam são sempre muito particulares, mas todos levam ao mesmo fim -final de um sonho, de uma gestação, de uma etapa, de uma angústia. Trata-se aqui de se lidar com a dualidade, com os opostos: início e fim, vida e morte.

A inexistência de uma faixa etária estatisticamente significativa para a ocorrência de abortamento na amostra pesquisada difere dos resultados encontrados nos estudos que se referem ao abortamento em países desenvolvidos, como Estados Unidos e Holanda, onde, de acordo com a Organização Mundial da Saúde22, mais da metade dos abortamentos ocorrem em mulheres menores de 25 anos. Tal diferença pode ter sido encontrada em função deste estudo não se referir diretamente à população de mulheres que provocam o abortamento, mas da parcela que, ao provocar o abortamento, procura um serviço de saúde. É possível que a busca por um hospital nos países onde o abortamento é ilegal desencadeie, nas mulheres mais jovens, o medo de retaliações pela ilegalidade desse ato. Outro importante fator a ser considerado é que no Brasil as adolescentes de baixa renda têm apresentado cada vez mais o desejo de gestação, o que diminui o número de abortamentos provocados nessa camada da população. de acordo com trabalho realizado por Benute et al.5, a maternidade é vivenciada pelas adolescentes como uma ascensão de papel social, já que elas foram criadas para cuidar da casa e da família, não vêm perspectiva de futuro e, por isso encontram na maternidade um sentido 'nobre' para suas vidas, passando a ter um papel social de respeito e valor - ser mãe.

A diferença encontrada quanto à situação conjugal, com maior número de mulheres solteiras no grupo de abortamento provocado, vai ao encontro de dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde 22. Costa23 relata em seu estudo que a ausência de relacionamento conjugal é fator preponderante para a realização do abortamento.

No que diz respeito à renda pessoal, encontrou-se diferença significativa entre os grupos. Ressalta-se, no entanto, que a mesma diferença não ocorreu para renda familiar. deste modo, pode se pensar que a diferença estatística significativa entre a renda pessoal aponta para as mudanças culturais e de inserção social vivida atualmente. A mulher vem desempenhando cada vez mais os papéis atribuídos ao "mundo masculino", sem dividir com o homem novas responsabilidades ou papéis. Isso pode ser facilmente identificado no dia-a-dia da mulher que, além de trabalhar fora e ajudar no sustento econômico da família, continua sendo responsável por cuidar da casa e dos filhos sem a ajuda do parceiro. Temos, então, destacada a dualidade dos opostos: de um lado, a mulher independente financeiramente, profissionalmente e afetivamente, do outro lado, mulheres que desenvolvem essencialmente a função 'feminina' - são donas-de-casa e mães devotadas. discute-se, então, o embate entre carreira profissional, aspectos culturais, independência e maternidade. Nas mulheres que provocaram o abortamento, observouse intenso conflito entre as questões culturais enraizadas e o conflito com as exigências atuais -por exemplo, a satisfação no campo profissional. Todas as mulheres entrevistadas se depararam com a dor de não ter esse filho, com o luto, já que entraram em contato com a possibilidade da maternidade, mas cederam às pressões do mundo atual, vivenciando angústias intensas.

Nesse contexto, o sofrimento do luto vivenciado com o abortamento, quer espontâneo quer provocado, pode ser entendido, por um lado, a partir de uma explicação racional, que vem da exigência de se cumprir uma função social, a maternidade. por outro lado, do ponto de vista psíquico, pode-se afirmar que essa mulher é fruto das exigências e das transformações de sua época, mas carrega consigo uma inscrição de maternidade. Há uma demanda interna que clama pela vivência do arquétipo e uma demanda externa que apresenta limites para tal vivência. dois pesos se sobrepõem: a teleologia corporal e a demanda interna associada às pressões do mundo externo em que vive a mulher. O que resulta dessa dualidade são angústias, conflitos, dúvidas e culpa pelo abortamento.

Pensando na questão econômica e no relacionamento conjugal, observa-se que, atualmente, as mulheres solteiras conseguem manter seus rendimentos no mesmo nível do de uma família estruturada. A decisão pela interrupção da gestação parece ser muito mais do que uma questão econômica propriamente dita. De fato, a análise temática indicou que questões culturais e emocionais colocam-se tão importantes quanto a financeira.

Outra oportunidade de análise que os dados classificados das entrevistas fornecem é em relação aos sentimentos despertados no momento em que a mulher toma conhecimento da gestação. Fica evidente a diferença entre os dois grupos. Apesar da diferença quanto aos sentimentos despertados, no discurso das mulheres apareceu a contradição: por um lado a possibilidade de vivenciar a maternidade, por outro a de enfrentar os medos e as preocupações associadas a ela.

O medo de vivenciar um 'castigo' -já que foi cometido um delito social, moral, jurídico e ainda por se acreditar ter matado um filho -pode ser entendido sob o prisma da autopunição. As mulheres que provocaram o abortamento tenderam mais à crença de que no futuro teriam que 'pagar' de algum modo pelo ato cometido, mas chama atenção o fato de que parte das mulheres que sofreram o abortamento espontâneo também acreditavam que receberiam um castigo. Além de acreditar que fugiram dos padrões socialmente aceitáveis, já que a sociedade espera que todas as mulheres tenham filhos, todas a mulheres teriam então uma 'função' maternal que inclui proteger, nutrir e abrigar o filho, as mulheres que vivenciaram o abortamento espontâneo também não conseguiram corresponder às suas próprias exigências internas. Os desvios dessas necessidades internas desencadeiam a culpa e convidam a uma busca interna de respostas.

O que há de comum entre os dois grupos de mulheres, quando se fala na aprovação do próprio comportamento durante a gestação e o abortamento, é o movimento de busca por responsáveis pela situação vivida. Quando a mulher consegue encontrar esse responsável, acaba por não lidar com a própria angústia, livrando-se de sua própria responsabilidade. À medida que culpa e angústia são projetadas no outro, acabam não existindo mais elementos para a reflexão, elaboração e modificação. Interrompe-se o processo criativo de mudanças. Quando não é possível responsabilizar uma pessoa, a angústia gera conflito, e este possibilita a compreensão e a integração do significado do abortamento.

Outro aspecto averiguado neste trabalho foi em relação ao desejo de aprovação, aceitação e cumplicidade, para provocar o abortamento. Observou-se que não há influência na reação emocional para ansiedade e depressão, na existência ou ausência de apoio, diferindo dos estudos de Major et al.24, que relata que o apoio familiar e social influencia no ajustamento emocional. Novamente cabe apontar o atual estado de solidão da mulher. Em meio a aspirações tão conflitantes, a mulher necessita acreditar na sua autosuficiência, sem conseguir, sequer, refletir sobre essa carga da solidão. É o mundo feminino em substituição ao mundo masculino. O que se busca é um mundo feminino poderoso e autosuficiente?

Após tão bruta interrupção na vida de uma mulher -não se fala do feto, do filho, mas da mulher que interrompe uma relação ou encontro -só a introspecção, a busca pela identidade divina interior possibilitará o resgate de pelo menos parte dessa necessidade.

Dessa forma, a ansiedade e a depressão se relacionam, tanto no abortamento provocado como no espontâneo, à vivência subjetiva do abortamento, mas dois fatores podem ser destacados como preponderantes: o processo de luto pela perda do filho, quer seja do filho real desejado e imaginado ou do filho em potencial desencadeado a partir do 'saber-se' grávida; e o desvio do padrão de comportamento esperado socialmente, já que a maternidade ainda é reconhecida como inerente à mulher. O desvio reforça a culpa sentida, iniciada a partir de um sentimento conflituoso com o dever instaurado. Os comportamentos discordantes das normas sociais e morais instalam-se na sombra e desencadeiam um conflito. A culpa também decorre da exigência interna de reparação, desencadeando ansiedade e depressão na busca por respostas. A culpa é expressa na crença de um castigo futuro e redimida por meio da introspecção, da busca por respostas. Ansiedade e depressão podem ser as consequências da culpa pela perda que podem resgatar a integridade.

CONCLUSÕES

No que diz respeito à caracterização da população, observou-se, neste estudo, que a maior parte das mulheres que provocam abortamento e que procuram serviço de saúde não são adolescentes.

Tendo em vista a associação observada entre abortamento provocado e o estado conjugal da mulher, conclui-se que, apesar da mulher apresentar semelhante renda mensal, o estado marital é fator relevante para o aborto intencional. O abortamento provocado se acompanha de maiores índices de ansiedade e depressão. Com relação ao sentimento de culpa, não houve, neste estudo, evidência estatística de que as mulheres se sintam mais culpadas em um grupo específico.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 27/05/08

Aceito para publicação: 19/01/09

Trabalho elaborado pela Divisão de Psicologia e Divisão de Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, SP

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    Correspondência: Rua Amália de Noronha, 276 Cep 05410-010 - Pinheiros São Paulo - SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      27 Maio 2008
    • Aceito
      19 Jan 2009
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