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Morbidade materna grave em UTI obstétrica no Recife, região nordeste do Brasil

Severe maternal morbidity in an obstetric ICU in Recife, Northeast of Brasil

Resumos

OBJETIVO: Avaliar as pacientes admitidas na UTI obstétrica do serviço com critérios near miss ou morbidade materna grave. MÉTODOS: Realizou-se análise secundária de um estudo realizado na UTI obstétrica do IMIP, no período de fevereiro de 2003 a fevereiro de 2007, selecionando-se 291 casos com critérios near miss. Analisaram-se causas de admissão, momento da admissão em relação ao parto, idade, paridade, escolaridade, assistência pré-natal, doenças clínicas pré-existentes, idade gestacional na admissão e parto, diagnósticos, complicações e procedimentos durante a estadia e tempo de internamento na UTI. RESULTADOS: As causas mais comuns de admissão foram síndromes hipertensivas (78,4%), hemorragia (25,4%) e infecção (16,5%). A maioria das pacientes foi admitida no puerpério (80,4%) e transferida de outras unidades. A idade variou de 12 a 44 anos e a mediana de paridade foi um. Não havia relato de consultas pré-natais em 9,9% dos casos. A cesárea foi a via de parto em 68,4% das pacientes. Condições clínicas preexistentes estavam presentes em 18,7% das pacientes, 37% necessitaram de hemotransfusões, 10,8% drogas vasoativas, 9,1% ventilação mecânica e 13,4% punção venosa central. Observou-se eclâmpsia em 38,8 % das pacientes, choque hemorrágico em 27,1%, insuficiência renal em 11,7% edema pulmonar em 9,1% e insuficiência respiratória em 6,5%. CONCLUSÃO: Pacientes classificadas como near miss constituem um grupo importante nas admissões em UTI obstétrica. A obtenção de informações acerca desse grupo é fundamental para melhorar o cuidado e prevenir a mortalidade maternal.

Mortalidade materna; Morbidade; Complicações na gravidez


OBJECTIVES: To evaluate patients admitted with near miss maternal mortality criteria to an Obstetric ICU. METHODS: This is a secondary analysis of a study conducted in an Obstetric ICU of IMIP (Recife, Pernambuco), from February 2003 to February 2007, from which 291 patients with near miss criteria or severe maternal morbidity were selected. Data concerning cause of admission, time of admission related to delivery, age, parity, education, prenatal care, associated clinical conditions, gestational age at admission and delivery, diagnosis, complications and procedures as well as length of ICU stay were collected. RESULTS: The most common reasons of admission were hypertensive disorders (78.4%), haemorrhage (25.4%) and infection (16.5%). The great majority of patients was admitted after delivery (80.4%) and transferred from other units. Patient age ranged from 12 to 44 years, median of parity was 1 and prenatal care was absent in 9.9% of cases. Cesarean section was the mode of delivery in 68.4%. Medical conditions were present in 18.7% of the patients, 37% required blood product transfusions, 10.8% vasoactive infusions, 9.1% mechanical ventilation and 13.4% a central line. Eclampsia was present in 38.8 % of the patients, hemorrhagic shock in 27.1%, renal failure in 11.7%, and pulmonary edema in 9.1% and respiratory failure in 6.5%. CONCLUSION: Patients classified as near miss maternal mortality constitute an important group admitted to an Obstetric ICU. Better information about these patients is fundamental to improve care and prevent maternal mortality.

Maternal mortality; Morbidity; Pregnancy complications


ARTIGO ORIGINAL

Morbidade materna grave em UTI obstétrica no Recife, região nordeste do Brasil

Severe maternal morbidity in an obstetric ICU in Recife, Northeast of Brasil

Melania Maria Ramos de Amorim* * Correspondência Rua Frei Matias Tevis, nº280, Sala 418 Bairro Ilha do Leite Recife – PE CEP 50720-625 melamorim@uol.com.br ; Leila Katz; Mariana Valença; Daniella Ericsson Araújo

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar as pacientes admitidas na UTI obstétrica do serviço com critérios near miss ou morbidade materna grave.

MÉTODOS: Realizou-se análise secundária de um estudo realizado na UTI obstétrica do IMIP, no período de fevereiro de 2003 a fevereiro de 2007, selecionando-se 291 casos com critérios near miss. Analisaram-se causas de admissão, momento da admissão em relação ao parto, idade, paridade, escolaridade, assistência pré-natal, doenças clínicas pré-existentes, idade gestacional na admissão e parto, diagnósticos, complicações e procedimentos durante a estadia e tempo de internamento na UTI.

RESULTADOS: As causas mais comuns de admissão foram síndromes hipertensivas (78,4%), hemorragia (25,4%) e infecção (16,5%). A maioria das pacientes foi admitida no puerpério (80,4%) e transferida de outras unidades. A idade variou de 12 a 44 anos e a mediana de paridade foi um. Não havia relato de consultas pré-natais em 9,9% dos casos. A cesárea foi a via de parto em 68,4% das pacientes. Condições clínicas preexistentes estavam presentes em 18,7% das pacientes, 37% necessitaram de hemotransfusões, 10,8% drogas vasoativas, 9,1% ventilação mecânica e 13,4% punção venosa central. Observou-se eclâmpsia em 38,8 % das pacientes, choque hemorrágico em 27,1%, insuficiência renal em 11,7% edema pulmonar em 9,1% e insuficiência respiratória em 6,5%.

CONCLUSÃO: Pacientes classificadas como near miss constituem um grupo importante nas admissões em UTI obstétrica. A obtenção de informações acerca desse grupo é fundamental para melhorar o cuidado e prevenir a mortalidade maternal.

Unitermos: Mortalidade materna. Morbidade. Complicações na gravidez.

SUMMARY

OBJECTIVES: To evaluate patients admitted with near miss maternal mortality criteria to an Obstetric ICU.

METHODS: This is a secondary analysis of a study conducted in an Obstetric ICU of IMIP (Recife, Pernambuco), from February 2003 to February 2007, from which 291 patients with near miss criteria or severe maternal morbidity were selected. Data concerning cause of admission, time of admission related to delivery, age, parity, education, prenatal care, associated clinical conditions, gestational age at admission and delivery, diagnosis, complications and procedures as well as length of ICU stay were collected.

RESULTS: The most common reasons of admission were hypertensive disorders (78.4%), haemorrhage (25.4%) and infection (16.5%). The great majority of patients was admitted after delivery (80.4%) and transferred from other units. Patient age ranged from 12 to 44 years, median of parity was 1 and prenatal care was absent in 9.9% of cases. Cesarean section was the mode of delivery in 68.4%. Medical conditions were present in 18.7% of the patients, 37% required blood product transfusions, 10.8% vasoactive infusions, 9.1% mechanical ventilation and 13.4% a central line. Eclampsia was present in 38.8 % of the patients, hemorrhagic shock in 27.1%, renal failure in 11.7%, and pulmonary edema in 9.1% and respiratory failure in 6.5%.

CONCLUSION: Patients classified as near miss maternal mortality constitute an important group admitted to an Obstetric ICU. Better information about these patients is fundamental to improve care and prevent maternal mortality.

Key words: Maternal mortality. Morbidity. Pregnancy complications.

INTRODUÇÃO

Apesar de todos os avanços na assistência obstétrica durante o último século, a morbidade e a mortalidade materna ainda acompanham a gravidez e o parto1. Diversos estudos mostram que a verdadeira magnitude da morbidade materna é maior do que a observada pelo índice bruto de mortalidade e que os efeitos deletérios da morbidade são graves 2.

O conceito de near miss referia-se originalmente a um choque de aeronaves durante o vôo que esteve próximo de ocorrer e não ocorreu por um bom julgamento ou sorte. No estudo da morbidade materna, o conceito de near miss foi introduzido por Stones et al.3 para se referir às situações em que mulheres apresentando complicações potencialmente letais durante a gravidez, parto ou puerpério, sobrevivem devido ao acaso ou ao cuidado hospitalar.

O conceito geral de near miss está estabelecido, mas ainda há controvérsias sobre a sua operacionalização na definição dos casos. Alguns pesquisadores adotam a ocorrência de disfunção orgânica materna, outros se baseiam em determinadas doenças (por exemplo, eclâmpsia) e outros ainda no grau de complexidade do manejo assistencial (por exemplo, admissão em UTI ou realização de histerectomia)4 – 7.

Em 1998, Mantel et al. propuseram critérios near miss, incluindo disfunções orgânicas várias que cursam com alto risco de mortalidade4 (Quadro 1). Por outro lado, Waterstone et al. 5 utilizaram o conceito de "morbidade materna grave", incluindo casos de pré-eclâmpsia grave, eclâmpsia, síndrome HELLP, hemorragia grave, sepse e ruptura uterina. Cecatti et al.6 consideram que, apesar de não existir consenso sobre uma definição estrita de near miss ou morbidade maternal grave, o conjunto das diversas definições pode ser útil para diversos objetivos, incluindo monitorização, vigilância epidemiológica e auditoria de cuidados de saúde. Os critérios conjuntos de Mantel e Waterstone foram utilizados no estudo brasileiro recentemente publicado sobre morbidade materna near miss em uma unidade de cuidados terciários7.


Existe um continuum que uma paciente percorre, desde um ponto em que se encontra completamente saudável até o extremo em que ocorreria a morte materna, podendo ser interrompido em vários pontos por meio da adoção de medidas preventivas em diversos níveis. Estimou-se que, tomadas todas as medidas de prevenção cabíveis no intuito de modificar a progressão desse continuum, menos 41% das mulheres teriam morrido8.

A chance de uma mulher durante o ciclo grávido-puerperal ser admitida em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é bem maior do que a de uma mulher jovem, não-grávida. Estima-se que 0,1% a 0,9% das gestantes desenvolvem complicações requerendo o internamento em Unidade de Terapia Intensiva9,10,11. O prognóstico dessas pacientes em geral é bom, requerendo em muitos casos apenas intervenções de pequeno porte, com baixas taxas de mortalidade, em geral inferior a 3% 11-13.

O papel da terapia intensiva obstétrica no combate à mortalidade materna é evitar que as pacientes com morbidade grave ou quadros de near miss progridam para a morte materna. O presente estudo teve como objetivo descrever as características dessas pacientes, com a finalidade de otimizar os cuidados a elas dispensados.

MÉTODOS

Este estudo representa uma análise secundária de um estudo observacional realizado na UTI Obstétrica do Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira (IMIP), em Recife, Pernambuco14. O período do estudo foi de fevereiro de 2003 a fevereiro de 2007, obtendo-se uma amostra aleatória de todas as pacientes atendidas na UTI no intervalo de tempo mencionado (n=3871). O cálculo do tamanho amostral previa uma freqüência de morte materna de 1% com uma precisão absoluta de 0,5% para um poder de 80% e um erro alfa de 5%. O estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição e todas as pacientes ou, em sua impossibilidade, os responsáveis legais, concordaram em participar, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Sortearam-se as participantes a partir dos registros no livro de internamento da UTI. A partir desse sorteio obtiveram-se os dados de 1.481 pacientes (38,3% do total de internações durante o período), das quais, para fins de análise, foram selecionadas aquelas que preenchiam os critérios near miss de Mantel4, além de situações consideradas como morbidade materna grave5, como eclâmpsia e síndrome HELLP.

Analisaram-se as seguintes variáveis: principais causas de internamento na UTI obstétrica (diagnósticos de admissão) e época de admissão (durante a gravidez, pós-parto, pós-abortamento ou prenhez ectópica), características biológicas (idade, paridade), demográficas (procedência, escolaridade, assistência pré-natal), médicas (doenças associadas e complicações), obstétricas (idade gestacional na admissão e na interrupção da gravidez, tipo de parto), freqüência de realização de procedimentos invasivos, oxigenioterapia, ventilação mecânica e duração do internamento.

Tanto as indicações de internação em unidade de terapia intensiva como o acompanhamento das pacientes internadas seguiram as rotinas preconizadas no Manual de Normas da UTI Obstétrica da instituição 15, de acordo com o diagnóstico e as complicações associadas. A análise dos dados foi efetuada com o programa Epi-Info 3.4.1 para Windows.

RESULTADOS

Das 1481 pacientes incluídas no estudo original, 291 preenchiam critérios near miss, representando 19,6% da amostra. Dessas 291, a hipertensão foi responsável por 78,4% das admissões em UTI obstétrica, seguindo-se as hemorragias (25,4%) e infecções (16,5%) (Tabela 1).

A maioria das pacientes (234 mulheres, correspondendo a 80,4%) foi admitida no puerpério. Todavia, foram admitidas 47 pacientes ainda gestantes (16,2%) e nove (3%) pacientes no período pós-abortamento ou laparotomia por prenhez ectópica. A idade das pacientes variou de 12 a 45 anos (média de 24,8 ± 7 anos), sendo que 25,3% tinham entre 10 e 19 anos, 66,3% entre 20 e 34 anos e 8,6% mais que 35 anos.

A paridade variou entre zero a dez partos, com uma mediana de um parto. Observou-se uma predominância das primíparas na amostra (42,2% das pacientes). A informação sobre escolaridade estava disponível para 205 pacientes. Destas, 10 (4,8%) eram analfabetas e 99 (48,3%) pacientes estudaram entre um e sete anos. Apenas 62 (30,2%) estudaram por 8-11 anos e 34 (16,6%) tinham o ensino médio completo.

Em relação à procedência, 52,6% eram procedentes de outras cidades e estados e 47,4% da região metropolitana do Recife. Informações sobre a assistência pré-natal estavam disponíveis em apenas 181 pacientes. O número de consultas pré-natais antes da admissão na UTI variou de 0 a 19, com mediana de cinco consultas. Apenas 22% tinham tido mais de seis consultas pré-natais, 67,9% tinham entre uma e cinco consultas pré-natais e 18 (9,9%) não tinham nenhuma consulta pré-natal.

Analisando separadamente as 43 pacientes que foram admitidas na UTI obstétrica durante a gestação, a idade gestacional na época da admissão variou de 13 a 40 semanas (média de 29,9 com desvio padrão de 6,9 e mediana de 31,5 semanas). O tipo de parto foi analisado após exclusão dos casos de abortamento, doença trofoblástica gestacional e prenhez ectópica e das pacientes que obtiveram alta ainda gestantes. Encontrou-se uma taxa de cesáreas de 68,4% e 1,6% de parto vaginal instrumental.

Considerando as doenças clínicas associadas, observou-se que 18,7% das pacientes apresentavam a associação a alguma condição médica crônica. Entre as doenças clínicas associadas, as mais comuns foram: cardiopatia (5,8%), hipertensão crônica (5,1%), hepatopatia crônica (3%) e diabetes mellitus (2,4%).

Durante o internamento, foram registrados todos os diagnósticos, incluindo aqueles que motivaram a admissão ao setor e todas as complicações desenvolvidas durante o internamento (Tabela 2). A eclâmpsia esteve presente em 38,8%, síndrome HELLP em 28,2% e choque hemorrágico em 27,1% das pacientes. Diagnosticou-se insuficiência renal aguda em 11,7%, edema agudo de pulmão em 9,3%, CIVD em 8,2% e insuficiência respiratória em 6% dos casos (Tabela 2).

Analisaram-se os procedimentos invasivos, sendo que hemotransfusão foi necessária em 36%, punção venosa profunda em 13,4%, drogas vasoativas em 10,8% e ventilação mecânica assistida em 9,1% das pacientes (Tabela 3). A duração do internamento variou de um a 26 dias (média de 6,6 ± 4,6 dias).

DISCUSSÃO

No presente estudo, avaliando os diagnósticos que motivaram a internação na UTI encontramos como causas líderes hipertensão, hemorragia e infecções, coincidindo com os achados de outros estudos11, 16-20.

A proporção entre as causas varia entre os estudos, vários relacionando a hipertensão como principal causa de admissão, outros observando predomínio da sepse 16-20. Em nosso estudo, a freqüência de admissões por hipertensão foi 78,4%, superando os relatos já descritos. Apenas um estudo holandês e um italiano encontraram, respectivamente, 62% e 75,6% das admissões em UTI de pacientes obstétricas motivadas pela hipertensão 20, 21.

Nossa UTI é exclusiva para pacientes no ciclo grávido-puerperal e funciona como referência para todo o Estado 14. Em outros estudos, são descritas pacientes admitidas em UTI clínicas ou cirúrgicas não exclusivas para essa população. Acreditamos que isso pode explicar a concentração de casos de pacientes com hipertensão associada à gestação em nossa amostra. Além disso, a hipertensão representa a principal causa de morte materna no Brasil, em Pernambuco e em Recife22, 23.

Convém ressaltar que hipertensão, hemorragia e infecção são as principais causas de morte materna no mundo1, sendo os óbitos por tais doenças concentrados principalmente nos países que apresentam ainda altas taxas de mortalidade materna. Seria natural encontrar esses diagnósticos entre as pacientes near miss. Autores inclusive sugerem que tais condições poderiam ser consideradas per se como near rmiss24.

O momento do internamento, em relação ao parto, coincidiu com o descrito em outros estudos. A maioria das pacientes (80,4%) foi admitida no puerpério, assim como em outros estudos 16,19,25-29. As razões para explicar a predominância das admissões no puerpério incluem a perda sangüínea no parto e puerpério, podendo descompensar o quadro clínico na presença de uma condição preexistente e a relutância em se transferir uma mulher ainda durante a gestação, dando-se preferência por interromper a gestação e a seguir se proceder à transferência 29.

Em relação à idade, observamos neste estudo um percentual importante de adolescentes (25%). A taxa de mulheres nessa faixa etária foi bem superior àquela descrita por outros autores, como Geller et al., que encontraram entre pacientes com critérios de near miss apenas 9,1% de adolescentes8. Como esse último estudo foi conduzido nos EUA, supõe-se que a freqüência e as causas relacionadas a morte materna e near miss são diferentes de acordo com o nível de desenvolvimento do país. Mesmo assim, no estudo realizado em Campinas, São Paulo, encontrou-se um percentual de pouco mais que 15% de adolescentes 7, também inferior ao nosso, podendo refletir as diferenças regionais do Brasil.

Destacamos, outrossim, que em toda a América Latina, a gestação na adolescência é um fator que está associado de forma independente ao aumento do risco de resultados negativos na gestação30. Levando em consideração que 25% das mortes maternas no mundo ocorrem em mulheres adolescentes1, não é de surpreender que o mesmo ocorra entre mulheres com morbidade grave.

Em relação à paridade, observou-se que 42,2% das mulheres eram primíparas e 18,8% eram nulíparas. Esse achado reflete a idade da população avaliada, bastante jovem, com paridade menor. Em um estudo realizado com adolescentes na América Latina, encontrou-se uma freqüência semelhante de primíparas (32,2%) e uma proporção maior de nulíparas (41,6%)30.

A relação entre o baixo grau de escolaridade e o risco de morte materna já foi definida31. Não encontramos estudos relacionando escolaridade e near miss, porém extrapolando os dados sobre mortalidade materna, seria de se esperar uma baixa escolaridade nos casos com critérios near miss, como a encontrada neste estudo. Cerca de 5% das pacientes eram analfabetas e quase 50% tinham menos que oito anos de estudo. Comparar essas pacientes com outras sem os critérios near miss sem estudos futuros será importante para avaliar a associação entre baixa escolaridade e morbidade materna grave.

A transferência de unidades de saúde periféricas é um fator de risco bem conhecido para a presença de near miss e internamento em unidades de terapia intensiva12. Em um estudo realizado na Malásia, a freqüência de transferências de centros periféricos entre pacientes near miss foi de 58,2% 32, bastante semelhante ao encontrado por nós, já que apenas 27,5% de pacientes em nosso serviço eram provenientes da cidade do Recife (capital).

Um pré-natal inadequado tem sido encontrado como característica de pacientes gestantes ou puérperas admitidas em terapia intensiva29, 35. Analisando os cuidados pré-natais em pacientes que preenchiam critérios near miss, morbidade materna grave e morte materna, Geller et al. encontraram que 7,7%, 6,5% e 3,1%, respectivamente, não haviam recebido qualquer cuidado pré-natal8.

Em nosso estudo, 9,7% das pacientes não tinham tido nenhuma consulta pré-natal e apenas 21% tinham pré-natal com seis ou mais consultas. Esses achados podem refletir falhas no sistema de vigilância, permitindo que essas pacientes evoluíssem de uma morbidade qualquer durante a gestação para situações mais graves. Não se logrou obter a interrupção do continuum que leva a paciente de uma condição saudável para uma condição patológica.

O "modelo dos três atrasos" relacionado à mortalidade materna também pode ser utilizado para explicar significativa parcela dos casos de near miss. Esse modelo, proposto por Thaddeus e Maine em 1994, descreve o papel de três momentos que podem retardar a condução adequada de uma emergência obstétrica. O primeiro momento é o da decisão de buscar assistência médica, o segundo é representado pelo acesso da paciente ao serviço médico e o terceiro se resume em receber o tratamento adequado33.

Cerca de 70% das pacientes obstétricas que são admitidas em uma UTI são submetidas à cesárea12, 27, 34. No estudo de Campinas, descreveu-se uma taxa de cesárea em pacientes com morbidade materna grave em torno de 80% 7. Encontramos percentual semelhante de cesáreas em nossa casuística (68,8%), o que pode ser explicado pela gravidade que estas pacientes apresentam, tornando o parto urgente e impedindo as condições cervicais favoráveis para um parto vaginal. Todavia, não podemos deixar de especular que a cesariana per se possa ter contribuído para desencadear ou agravar o quadro motivando a internação em UTI. Estudos observacionais têm demonstrado que, mesmo quando se controlam os fatores potencialmente confundidores, a cesárea persiste como fator de risco independente para morbidade e mortalidade materna31. Futuros estudos sobre morbidade materna grave devem contemplar essa questão.

Considerando que os critérios de morbidade materna grave podem se apresentar em idade gestacional precoce e comprometer o feto, justificam-se as elevadas taxas de prematuridade (média de idade gestacional em torno de 30 semanas). Em um estudo realizado na Argentina, a idade gestacional média do parto em pacientes admitidas em terapia intensiva no ciclo grávido-puerperal foi de 29 semanas 29, coincidindo com os achados do nosso estudo. No estudo realizado em Campinas, o percentual de prematuridade foi de quase 65% 7.

Outro fator que tem sido relacionado ao risco para a mulher desenvolver near miss é a presença de doenças clínicas preexistentes8. A associação de condições médicas pré-existentes tem sido descrita em 34% a 38% das admissões obstétricas a UTI22,23. Encontramos freqüência menor que a descrita de doenças clínicas associadas (18,7%), porém ainda bastante elevada, considerando a idade das pacientes analisadas.

Existem diferenças entre a freqüência dos diagnósticos e das morbidades associadas em pacientes obstétricas gravemente enfermas de acordo com a região do globo. Afessa et al., nos EUA, encontraram como falência de órgãos mais comum a insuficiência respiratória (32%), seguindo-se a falência cardiovascular (28%)13. De forma semelhante, Vasquez et al., na Argentina, encontraram 37% de insuficiência respiratória e 38% de falência cardiovascular29. Em contraste, pacientes africanas e asiáticas apresentam mais comumente eclâmpsia e insuficiência renal27. Em nosso estudo, foram mais freqüentes os diagnósticos de eclâmpsia (38,8%), choque hemorrágico (27,1%), insuficiência renal (11,7% do total de pacientes), edema agudo de pulmão (9,3%), falência da coagulação (8,2%) e insuficiência respiratória (6,5%). No estudo de Campinas predominaram os casos de síndromes hipertensivas (57,3%) e complicações hemorrágicas (13,7%), além das complicações não-obstétricas (21%)7.

Chama a atenção em nossas pacientes a elevada freqüência de eclâmpsia (38,8%) e síndrome HELLP (28,2%). Convém ressaltar que nossa UTI funciona como serviço de referência quaternário para todo o estado. Desta forma, a amostra encontrada é selecionada pela gravidade e por uma freqüência mais elevada do que a esperada para outros serviços.

Encontramos apenas um caso de embolia pulmonar na amostra (0,7%), freqüência inferior à descrita por autores americanos27. Encontramos nove pacientes (3,1%) que apresentaram cetoacidose diabética, doença não descrita em outros estudos sobre near miss, mas que representou causa de admissão em UTI obstétrica em nosso estudo.

A necessidade de ventilação mecânica nessa população de pacientes obstétricas criticamente doentes é variável 13 e, em geral, superior à encontrada no presente estudo (9,1%). Acreditamos que a diferença se deva à grande quantidade de pacientes com distúrbios hipertensivos que são admitidas em nossa unidade. Essas pacientes muitas vezes desenvolvem morbidade grave não relacionada à falência respiratória, como eclâmpsia, oligúria, edema agudo de pulmão, icterícia e trombocitopenia, que não implicam em utilização de suporte ventilatório. Uma taxa mais próxima da nossa foi descrita por Souza et al. (2007), em torno de 12%, no estudo realizado em Campinas7.

A intervenção terapêutica mais freqüente em nosso estudo foi a hemotransfusão, também apontada em um estudo holandês que descreveu este procedimento em 66,2% das pacientes20. O percentual de uso de drogas vasoativas (10,8%) foi semelhante ao descrito por Souza et al., em Campinas (8,7%)7. Em relação à medida da pressão venosa central (PVC), realizada em cerca de 13% de nossas pacientes, poucos estudos especificam essa forma de monitorização, registrando-se uma freqüência bastante superior à nossa (22%)11, exceto no estudo de Campinas (11,9%) 7. Hemodiálise e reanimação cardiopulmonar foram necessárias em 2,1% das pacientes com critérios near miss admitidas neste estudo. Também encontramos um tempo de permanência em UTI semelhante ao descrito em outros estudos, variando entre quatro e 13 dias18,20,34.

CONCLUSÃO

Possivelmente, a nossa população, constituída por pacientes no ciclo grávido-puerperal, referenciadas para uma UTI destinada exclusivamente para esse fim, possui características diferentes de pacientes obstétricas referenciadas para unidades de terapia intensiva gerais. Isso pode explicar diferenças encontradas no perfil de morbidade e complicações apresentado por nossas pacientes e as diferentes necessidades do ponto de vista de procedimentos. Conhecer melhor o perfil dessas pacientes pode ser uma ferramenta valiosa na luta contra a mortalidade materna6,34, 36.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 13/10/07

Aceito para publicação: 21/02/08

Trabalho realizado no Instituto Materno-Infantil Prof. Fernando Figueira (IMIP), Recife, PE

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    Correspondência Rua Frei Matias Tevis, nº280, Sala 418 Bairro Ilha do Leite Recife – PE CEP 50720-625
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      21 Fev 2008
    • Recebido
      13 Out 2007
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