Acessibilidade / Reportar erro

Medicina embasada em evidências

Evidence-based Medicine

Resumos

O aumento crescente das opções diagnósticas e terapêuticas cria a necessidade de avaliar sua efetividade, o que pode ser feito, por exemplo, com o ensaio clínico randomizado. A difusão deste e de outros métodos da epidemiologia clínica na prática médica propicia o paradigma da "medicina embasada em evidências". Ao enfatizar a necessidade de evidências clínico-epidemiológicas sólidas para as decisões clínicas, a medicina embasada em evidências forma a estrutura para a integração dos resultados de pesquisas na prática clínica. A evidência é graduada pelo delineamento de pesquisa, fornecendo normas que estabelecem qual o grau adequado para a tomada de decisão médica. A combinação desse novo paradigma com o poder das telecomunicações modernas está causando uma revolução no modo em que a medicina é praticada. O processo é facilitado pelo acesso dos clínicos às revisões quantitativas e aos guidelines (posicionamentos clínicos) delas derivados. As limitações das fontes tradicionais de evidências médicas e as vantagens das novas fontes de evidências, como o ACP Journal Club e a Cochrane Collaboration, são descritas. É importante que o médico se familiarize com os conceitos e técnicas do paradigma de medicina embasada em evidências.

Epidemiologia; Medicina; Internet; Ensaio clínico randomizado; Terapia; Metanálise


The growing array of diagnostic and therapeutic options available to the clinician has created the necessity of techniques, such as the randomized clinical trial, to evaluate their effectiveness. Recently, with the increasing penetration of the methods of clinical epidemiology into medical practice, the concept of an evidence-based medicine has arisen. Emphasizing the necessity of solid clinical evidence for clinical decision-making, evidence-based medicine provides a framework for the integration of research results into clinical practice. The evidence is graded, principally on the basis of study design, and norms are established as to what constitutes adequate evidence for clinical decision-making. The combination of this new paradigm of medical practice with the power of modern telecommunications is causing a revolution in the way medicine is practiced. Its integration into clinical practice is being facilitated by quantitative overviews of the literature, and the creation of clinical guidelines based on these reviews. Shortcomings of the traditional sources of evidence have been documented. New sources of evidence, such as the ACP Journal Club, and the Cochrane Collaboration, diminish dramatically the time required of clinicians to obtain the best avaliable evidence. All health professionals should familiarize themselves with evidence-based medicine.

Epidemiology; Randomized controlled clinical trial; Meta-analysis; Internet; Medicine; Treatment


Artigo Especial

Medicina embasada em evidências

B.B. Duncan, M.I.Schmidt

Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

RESUMO — O aumento crescente das opções diagnósticas e terapêuticas cria a necessidade de avaliar sua efetividade, o que pode ser feito, por exemplo, com o ensaio clínico randomizado. A difusão deste e de outros métodos da epidemiologia clínica na prática médica propicia o paradigma da "medicina embasada em evidências". Ao enfatizar a necessidade de evidências clínico-epidemiológicas sólidas para as decisões clínicas, a medicina embasada em evidências forma a estrutura para a integração dos resultados de pesquisas na prática clínica. A evidência é graduada pelo delineamento de pesquisa, fornecendo normas que estabelecem qual o grau adequado para a tomada de decisão médica. A combinação desse novo paradigma com o poder das telecomunicações modernas está causando uma revolução no modo em que a medicina é praticada. O processo é facilitado pelo acesso dos clínicos às revisões quantitativas e aos guidelines (posicionamentos clínicos) delas derivados. As limitações das fontes tradicionais de evidências médicas e as vantagens das novas fontes de evidências, como o ACP Journal Club e a Cochrane Collaboration, são descritas. É importante que o médico se familiarize com os conceitos e técnicas do paradigma de medicina embasada em evidências.

UNITERMOS: Epidemiologia. Medicina. Internet. Ensaio clínico randomizado. Terapia. Metanálise.

INTRODUÇÃO

A prática médica atual apresenta avanços científicos e tecnológicos inquestionáveis, abrindo um leque grande de opções ao médico e ao paciente. No entanto, as técnicas trazem consigo riscos e custos nem sempre compensados pelos benefícios esperados. Além disso, existe uma diferença fundamental entre esperar que elas funcionem e saber que funcionam. Por exemplo, estima-se que apenas metade das intervenções médicas atuais disponíveis tenham sido avaliadas com metodologia confiável. Dentre essas, menos da metade mostrou-se efetiva1,2.

Esse cenário destoa com a expectativa geral de alta eficácia da medicina atual por parte de médicos e pacientes, provavelmente resultante da alta eficácia, verificada neste século, do controle e manejo das doenças infecciosas e materno-infantis, e do anúncio freqüente de novas descobertas da pesquisa de bancada. Tal expectativa tende a estimular um caráter intervencionista na prática médica — norteado pelo princípio "na dúvida intervir" — que procura introduzir as novas tecnologias, com freqüência de alto risco ou de alto custo, e cujo real impacto é pouco conhecido. Mesmo com intervenções de baixo risco, pela impossibilidade de fazer tudo para todos, torna-se necessário aperfeiçoar o processo de decisão médica, freando a aplicação de intervenções de benefício duvidoso e de alto custo. Isso assume ainda maior importância na gerência de recursos públicos, quando se constata que uma fração grande da população é excluída de ações de comprovado benefício, mesmo quando de baixo custo.

Especialmente nas duas últimas décadas, foram desenvolvidos métodos que permitem avaliar diretamente benefícios e riscos de intervenções clínicas, viabilizando um movimento em prol de uma medicina mais efetiva e mais científica, que otimize benefícios e minimize riscos e custos. O emprego do hoje consagrado ensaio clínico randomizado na avaliação da eficácia de uma intervenção foi o grande propulsor desse movimento. O uso eficaz das inter-relações metodológicas entre a pesquisa clínica e a epidemiológica — a epidemiologia clínica — ampliou o escopo da mudança, incentivando o uso de critérios metodológicos rigorosos nos vários enfoques ou momentos do trabalho clínico — diagnóstico, avaliação de risco, prognóstico, tratamento e prevenção3,4. O resultado desses avanços está propiciando a construção de um novo paradigma para a medicina — uma medicina embasada em evidências5,6, no qual, entre outras características, o médico:

— aceita a incerteza nas decisões clínicas e reconhece que as ações no manejo dos pacientes são freqüentemente adotadas sem o conhecimento sobre o seu real impacto;

— reconhece que a experiência clínica e os conhecimentos sobre mecanismos (de doenças, de intervenções), apesar de necessários no raciocínio clínico, são insuficientes para reduzir "satisfatoriamente" as incertezas de algumas decisões clínicas;

— busca evidências oriundas de investigações sistemáticas de questões clínicas (evidência clínico-epidemiológica) para reduzir as incertezas;

— aplica essas evidências à luz dos conhecimentos sobre mecanismos, das experiências clínicas pessoais e dos valores atribuídos pelos pacientes para tomar a melhor decisão clínica.

CARACTERÍSTICAS DA MEDICINA EMBASADA EM EVIDÊNCIAS

Incerteza nas decisões clínicas

Não sendo a medicina nem mágica, nem divina, seu desenvolvimento se apoiou no saber científico e na arte de aplicá-lo para o bem dos pacientes. A aceitação — por médicos e pacientes — das incertezas do saber científico e, desse modo, da falibilidade das decisões médicas é o ponto de partida na construção de uma prática médica crítica e, por conseguinte, apta a se renovar continuamente em prol da otimização de seu impacto na saúde dos pacientes.

Insuficiência do saber biológico e da experiência clínica

O paradigma que caracterizou a primeira — e profícua — fase da Medicina Científica, basicamente nos dois últimos séculos, orientou-se fundamentalmente no saber biológico vigente e na experiência clínica não sistemática. Regras sobre o cuidado dos pacientes eram em geral ditadas pela experiência pessoal de grandes serviços de renome internacional — fundamentadas em estudos clínicos não-sistemáticos e nos conhecimentos sobre mecanismos de doenças e de intervenções, em geral resultantes de pesquisas de bancada. Os livros-texto clássicos e as revistas médicas, que tanto proliferaram neste século, foram desenvolvidos a partir dessas linhas.

Especialmente nas duas últimas décadas, a limitação de tal paradigma ficou evidente, na medida em que não era possível avaliar benefícios, riscos e custos diretamente daquele saber científico, impossibilitando o julgamento objetivo das evidências para a escolha da melhor decisão clínica. Isso porque a experiência clínica (informal ou mesmo a publicada em grandes revistas) não era avaliada com metodologia analítica — capaz de testar hipóteses clínicas — e sistemática — evitando os vieses comuns da pesquisa clínica. Por outro lado, o saber científico derivado de estudos de bancada não permitia a aplicação de seus achados diretamente aos pacientes — porque seus modelos explicativos, mesmo parecendo completos, com freqüência falhavam ao serem testados com metodologia sistemática em pacientes. Um exemplo disso é o uso de fármacos com ação antiarrítmica supressora de ectopia ventricular (como a lidocaína) — uma prescrição quase rotineira até recentemente — que evitaria taquicardia e fibrilação ventricular e, assim, o óbito resultante dessa arritmia em pacientes no período pós-infarto. Quando ensaios clínicos randomizados com esses desfechos clínicos testaram a hipótese em pacientes com infarto, ficou evidente que vários fármacos dessa classe aumentavam — não diminuíam — seu risco de mortalidade7.

Força da evidência clínico-epidemiológica

Sob este novo paradigma, o médico fortalece as bases de suas condutas, isto é, reduz as incertezas, buscando dados analíticos de pesquisas sistemáticas em pacientes — clínicas e epidemiológicas — aqui referidos como evidência clínico-epidemiológica. Algumas de suas características estão sumariadas no Quadro 1.


Em primeiro lugar, os desfechos clínicos priorizados em evidências clínico-epidemiológicas são aqueles que apresentam um significado real ao paciente e à sociedade, como morte (vida), doença (cura, saúde), dor, perda de função, custo, etc. Dados que representam eventos intermediários (fisiopatológicos, bioquímicos, etc.), embora fundamentais para justificar a necessidade de estudos com desfechos mais convincentes, não se configuram, usualmente, em evidência capaz de justificar intervenções de alto risco ou alto custo.

Em segundo lugar, a evidência clínico-epidemiológica deve captar objetivamente a realidade do contexto clínico, permitindo um juízo crítico sobre as incertezas das decisões baseadas em tal evidência. A capacidade de refletir a realidade clínica baseia-se na habilidade da pesquisa que produz a evidência em poder captar os elementos básicos da questão clínica e na validade do teste de hipótese, evitando os potenciais vieses (e minimizando os erros aleatórios) em seus resultados. Essa capacidade, que depende em grande parte do delineamento da pesquisa, pode ser graduada pela força da evidência, desde uma evidência fraca, até uma evidência forte (de peso científico) (Quadro 2). Embora o ideal seja alcançar sempre um grau forte de evidência, a base para as condutas médicas nem sempre atinge esse grau, e muitas decisões acabam sendo tomadas com graus menos convincentes de evidência8. É por essa incerteza que a prática médica ainda se defronta com o grande dilema — na dúvida, intervir, ou na dúvida, esperar — que define, hoje, duas formas opostas de prática médica, uma por uma medicina "intervencionista" e outra, por uma medicina "minimalista". O Quadro 3 apresenta recomendações que procuram equilibrar as duas tendências com base em evidências. A medicina minimalista, menos técnica e de menor custo, tem sido pouco explorada cientificamente, mas um exemplo dela pode ser ilustrado pelo conceito de "demora permitida", aplicável no diagnóstico e terapêutica ambulatorial9. Em qualquer das formas, é fundamental que o grau da evidência para o uso da intervenção/não-intervenção seja reconhecido, e que, em caso de evidência fraca, seja justificado pela gravidade do problema, pela benignidade da intervenção em termos de riscos e custos, e pela ausência de alternativas de ação.



Por último, a evidência clínico-epidemiológica, pela sua expressão quantitativa, deve permitir um juízo objetivo sobre o potencial impacto da conduta médica nela baseada. Isso é feito pela análise comparativa de benefícios, riscos e custos para a escolha da melhor intervenção, o que interessa aos clínicos — que querem otimizar suas decisões caso a caso, e aos planejadores de serviços de saúde — que precisam otimizar a alocação de recursos10. Algumas intervenções, embora eficazes, não são custo-efetivas, como, por exemplo, o tratamento da hipertensão leve em jovens sem envolvimento de órgão-alvo11. Parâmetros para avaliação do impacto de uma intervenção, entre outros, são enumerados no Quadro 4.


Para aqueles que não estão habituados com os elementos metodológicos descritos nos quadros 2 e 4, recomendamos a leitura de livros básicos de epidemiologia clínica3,4.

Aplicação de evidências clínico-epidemiológicas à luz dos conhecimentos biológicos e de acordo com as experiências clínicas pessoais e os valores dos pacientes

A aplicação da evidência clínico-epidemiológica aos pacientes depende das peculiaridades da situação clínica, e aí reside a arte do médico em captá-las da melhor maneira possível. O julgamento efetuado nesse processo, a partir das evidências da literatura, tem sido denominado de validade externa, generalização ou aplicabilidade.

Alguns exemplos da não-aplicabilidade direta a um paciente de uma evidência clínico-epidemiológica podem ser citados. O próprio ensaio que gerou a evidência, para otimizar sua validade interna, por exemplo, restringindo a amostra ou padronizando excessivamente a intervenção, pode ter sacrificado em muito sua validade externa e, dessa forma, a capacidade de generalização de seus resultados. Ou, então, o resultado de um ensaio pode não se aplicar a um determinado tipo de paciente porque este se assemelha mais a um subgrupo do estudo, cujo resultado diferiu do resultado geral da pesquisa. Ou, ainda, a própria intervenção, cuja evidência está sendo julgada, pode ter-se tornado obsoleta à luz de avanços científicos originados após a publicação do ensaio. Nota-se, aqui, que conhecimentos biológicos (e às vezes a experiência clínica) sobre um determinado assunto podem até invalidar evidências clínico-epidemiológicas, mesmo quando fortes.

Fica evidente, portanto, que o paradigma da medicina embasada em evidências assume que a decisão clínica integra a evidência clínico-epidemiológica a todas as informações clínicas possíveis, especialmente aquelas derivadas do saber biológico vigente, da experiência clínica prévia com pacientes semelhantes e dos valores atribuídos pelos pacientes aos desfechos clínicos envolvidos na decisão. Assim, ao buscar bases científicas mais sólidas para as decisões médicas, o novo paradigma não desconsidera os conhecimentos e experiências adquiridos pelo médico, nem desestimula seu lado artístico de captar a realidade e proceder com o paciente, mas aumenta a eficácia de suas ações e reduz o caráter autoritário de suas decisões junto aos pacientes (e de seu ensino de novos médicos!). Além disso, na medida em que o modelo racionaliza o emprego de técnicas médicas, abre espaço para uma relação médico-paciente menos técnica e mais humana.

A PRÁTICA DE UMA MEDICINA EMBASADA EM EVIDÊNCIAS

Dentro do novo paradigma, há três estratégias de como obter evidências clínico-epidemiológicas para o esclarecimento de questões clínicas: avaliar e sintetizar direta e pessoalmente as evidências, utilizar avaliações de outros e basear-se em posições clínicas oficiais (clinical guidelines) desenvolvidas dentro das premissas do paradigma.

Avaliação e síntese da literatura médica

A habilidade de analisar independentemente a evidência clínico-epidemiológica baseia-se em metodologias recentes e não faz parte, ainda, do domínio da grande maioria dos profissionais em exercício clínico — nem sequer da maioria dos professores de faculdades de medicina —, modelos dos futuros médicos. Porém, a julgar pelo espaço dedicado a essas metodologias nas grandes revistas médicas e pelo alcance dos recursos atuais em comunicação e informática médica, é apenas uma questão de tempo até que essa habilidade seja incorporada como parte integral da prática médica brasileira.

O primeiro passo no processo é a busca de artigos básicos que permitam responder à questão clínica. No entanto, localizar os artigos-chave sem perder muito tempo com os artigos periféricos à questão nem sempre é fácil. A título de orientação nesse processo, Haynes12 destaca quatro linhas de comunicação nas revistas médicas: do clínico ao pesquisador, entre os pesquisadores, do pesquisador ao clínico, e entre os clínicos. Os artigos nas primeiras duas linhas, embora constituindo a grande maioria dos artigos originais encontrados nas revistas médicas, são de pequena utilidade na prática clínica. Os relatos ou séries de casos são exemplos de comunicação do clínico ao pesquisador. Os estudos clínicos preliminares como os não-controlados, os estudos com o objetivo de melhor entender a fisiopatologia ou os estudos em animais são exemplos de comunicação entre os pesquisadores. Pode-se gastar muito tempo e ganhar pouca informação prática com esses artigos. As comunicações do pesquisador ao clínico, por exemplo, os relatos de ensaios clínicos randomizados, as análises de decisão e as metanálises, e as comunicações entre os clínicos, por exemplo, os artigos de revisão e os editoriais, são fontes de informação de maior rendimento.

Para localizar os artigos necessários com eficiência é necessário acesso à pesquisa eletrônica de referências bibliográficas (com os respectivos resumos) e a um acervo com um número mínimo de revistas nas áreas de interesse, como em bibliotecas de Faculdades de Medicina, de grandes hospitais ou de associações médicas locais. A BIREME (Biblioteca Regional de Medicina), em São Paulo, coordena o sistema de informação na área da Saúde no Brasil, e a maior parte das bibliotecas está ligada a ela. Muitos serviços têm bancos de resumos atualizados (em CD-ROM tipo MEDLINE) para pesquisa bibliográfica na biblioteca ou em rede de microcomputadores. Hoje, através de linha telefônica ou da rede eletrônica Internet, pode-se fazer o levantamento de artigos de interesse em bancos de resumos atualizados via BIREME ou via provedores particulares, e solicitar cópia daqueles mais importantes.

Após a identificação e obtenção dos artigos relevantes, o próximo passo é analisá-los criticamente e sintetizar os achados que atendem à questão clínica que motivou a pesquisa. Métodos para essas análises e sínteses são discutidos detalhadamente em outros locais4,13-23.

A procura organizada, dentro de um serviço (especialmente se acadêmico), de ensaios clínicos randomizados recentes que avaliam terapias para uma condição de interesse, é um exemplo factível dessa estratégia de atualização que envolve levantamentos individualizados dirigidos a questões clínicas específicas.

A estratégia de analisar e sintetizar pessoalmente as evidências é trabalhosa e demorada. Além disso, exige domínio das ferramentas da epidemiologia clínica e disponibilidade de fontes de referências e de artigos. Embora seja cada vez mais aconselhável ao médico conhecer esses princípios de análise e síntese, e de integrar o modo epidemiológico de pensar ao seu raciocínio clínico24, o uso dessa estratégia é mais viável aos médicos docentes em serviços acadêmicos do que aos clínicos em geral. Mas, para manter-se atualizado sobre as evidências para condutas na área específica de atuação de cada um, não é necessário derivá-las por conta própria. As outras duas estratégias descritas a seguir são bem mais apropriadas a quem quer se manter atualizado, mas já preenche quase todo o seu tempo na lida com os pacientes.

Revisões embasadas em evidências clínico-epidemiológicas

A estratégia de embasar-se em avaliações feitas por outros é, certamente, menos trabalhosa. As revistas médicas, internacionais e brasileiras, dedicam um espaço amplo para revisões de assuntos de interesse. Porém, para que elas sejam efetivamente úteis, devem ser desenvolvidas na ótica do novo paradigma. Com a ascensão da "revisão sistemática" (aplicação de estratégias científicas que limitam o viés no agrupamento, na análise crítica e na síntese de todos os estudos de relevância sobre um tópico específico) e da metanálise (uma revisão sistemática que emprega métodos estatísticos para agrupar e sumariar quantitativamente os resultados de diversos estudos), padrões novos e mais rigorosos se impõem6,25,26. Entre eles, cita-se a necessidade de especificar de maneira operacional a questão, de definir as fontes de evidência com critérios de inclusão e exclusão, de conduzir uma busca abrangente da literatura e de examinar a validade dos resultados de maneira reproduzível. Estudos demonstram que fontes tradicionais de referência sobre condutas clínicas— revisões não-sistemáticas e capítulos em livros-texto ¾ são, com freqüência, pouco reproduzíveis27, desatualizadas, chegando a conclusões diferentes daquelas de revisões sistemáticas28.

Vários livros dirigidos às questões diagnósticas e terapêuticas, por exemplo, o Current Medical Diagnosis and Treatment29, Scientific American Medicine30, e, no Brasil, Medicina Ambulatorial, Condutas Clínicas em Atenção Primária31, caminham na direção do novo paradigma, tornando-se fontes práticas, com referências bibliográficas de apoio.

Nos últimos anos, surgiram publicações cuja política editorial é identificar, entre as revistas de maior renome, os artigos originais claramente relevantes à prática clínica, apresentando um resumo dos artigos com comentários de peritos convidados. Entre essas publicações destacam-se, por apresentar critérios explícitos de escolha de artigos, as revistas ACP Journal Club, lançada em 1991 e dirigida à medicina interna, e Evidence-Based Medicine, lançada em 1995 e abrangendo os vários ramos da medicina.

Outra fonte importante de evidências, recém-saída da fase inicial de organização, é a do Cochrane Collaboration32-34. Essa agremiação internacional de médicos e pesquisadores, organizada mais ou menos por especialidade, tem como objetivo catalogar todos os relatos de ensaios clínicos randomizados e colocar metanálises desses ensaios em banco eletrônico, eventualmente disponível na Internet. A idéia é abrir — e manter abertos — canais de comunicação entre clínicos e pesquisadores que produzem as metanálises, com fluxo bidirecional de informação que proporcionam, aos clínicos, um acesso imediato às metanálises, e aos pesquisadores, uma fonte crítica de retroalimentação para aperfeiçoamentos posteriores. Atualmente, há disponível em disquete dados da segunda edição do Cochrane Database of Systematic Reviews (CDSR), contendo 65 revisões do grupo, além de resumos e citações de mais de 1.000 revisões sistemáticas publicadas na literatura médica e uma bibliografia de mais de 200 artigos sobre metodologia e preparação de revisões. Informações mais detalhadas podem ser obtidas diretamente do Cochrance Collaboration, via o World Wide Web ( hppt://hiru.mcmaster.ca/cochrane/ ).

Encontros com colegas, consultas com especialistas, congressos e simpósios, se desenvolvidos dentro da nova ótica, também podem ser recursos importantes de atualização. Sua validade, porém, é proporcional à experiência dos indivíduos envolvidos com a prática do novo paradigma. Além disso, sua validade pode ser comprometida por conflitos de interesses (financeiros ou profissionais) daqueles que fornecem a informação.

Posicionamentos clínicos

A terceira estratégia, basear-se em posicionamentos clínicos (clinical guidelines) desenvolvidos dentro do espírito do paradigma, é a estratégia que exige menos tempo. Aí encaixam-se os consensos e as posições (guidelines)35 de sociedades e organizações oficiais, baseados em revisões sistemáticas e atualizadas da literatura— incluindo as metanálises. Formulações locais de rotinas criadas por equipes multidisciplinares para seus serviços, baseadas nos critérios metodológicos descritos, podem alcançar grande relevância prática.

Um exemplo de categorização de evidências a favor ou contra uma determinada ação clínica, uma técnica comum no processo de geração desses posicionamentos, é o apresentado no Quadro 4. Cada categoria pode ser complementada por um numeral romano (do Quadro 2), indicando a força, ou qualidade das evidências que embasam a recomendação.

Também aqui deve-se estar atento para a possibilidade de conflitos de interesses profissionais nessas atividades, e especialmente em painéis de consenso sob o patrocínio de companhias farmacêuticas ou de equipamentos médicos, de conflitos financeiros. Embora esses encontros possam se constituir em fonte importante de atualização, são muitas vezes praticados fora das linhas gerais do paradigma.

Ressalta-se ainda que, ao usar recomendações estrangeiras, é importante ter em mente sua razão custo/benefício local, pois os recursos alocados naquelas sociedades para as situações clínicas em questão podem ser maiores do que os disponíveis no contexto local.

PERSPECTIVAS

Com as exigências crescentes de racionalização no emprego de tecnologias médicas, o paradigma da medicina embasada em evidências tende a se difundir. Avanços na área de telecomunicações estão facilitando as mudanças necessárias para sua adoção.

Em países que começam a mostrar sinais dessa nova forma de prática médica — por exemplo, Canadá, Estados Unidos e Inglaterra —, sua aceitação de forma mais ampla se deve à vontade e determinação política de líderes de revistas médicas, faculdades de medicina, sociedades médicas e serviços de saúde.

No Brasil, até agora, pouco tem sido feito, mas é notória a necessidade de racionalização. Além disso, em face das disparidades sociais, é fundamental que as mudanças sejam exercidas em prol de uma medicina não apenas mais eficaz e eficiente, mas também mais equânime.

Ao promover a mobilização de lideranças médicas em prol desse novo paradigma, é fundamental ter em mente que ele visa, efetivamente, racionalizar o emprego das tecnologias médicas, aumentando a eficácia da medicina — e não simplesmente cientificando o processo médico. Conflitos de interesse — entre a academia e a prática, entre as várias especialidades médicas, entre os diversos campos profissionais da saúde e entre a classe médica e os planejadores de saúde — são inevitáveis. A meta comum de um serviço de saúde mais efetivo supera as divergências, especialmente quando elas são resolvidas com base em evidências objetivas de efetividade.

SUMMARY

Evidence-based Medicine

The growing array of diagnostic and therapeutic options available to the clinician has created the necessity of techniques, such as the randomized clinical trial, to evaluate their effectiveness. Recently, with the increasing penetration of the methods of clinical epidemiology into medical practice, the concept of an evidence-based medicine has arisen. Emphasizing the necessity of solid clinical evidence for clinical decision-making, evidence-based medicine provides a framework for the integration of research results into clinical practice. The evidence is graded, principally on the basis of study design, and norms are established as to what constitutes adequate evidence for clinical decision-making. The combination of this new paradigm of medical practice with the power of modern telecommunications is causing a revolution in the way medicine is practiced. Its integration into clinical practice is being facilitated by quantitative overviews of the literature, and the creation of clinical guidelines based on these reviews. Shortcomings of the traditional sources of evidence have been documented. New sources of evidence, such as the ACP Journal Club, and the Cochrane Collaboration, diminish dramatically the time required of clinicians to obtain the best avaliable evidence. All health professionals should familiarize themselves with evidence-based medicine. [Rev Ass Med Brasil 1999; 45(3): 247-54.]

KEY WORDS: Epidemiology. Randomized controlled clinical trial. Meta-analysis. Internet. Medicine. Treatment.

  • 1
    Haynes RB. Some problems in applying evidence in clinical practice. Ann NY Acad Sci 1993; 703, 210-24.
  • 2
    Chalmers I, Enkin M, Keirse MJNC (eds). Effective care in pregnancy and childbirth Oxford, Oxford University Press, 1989; 2.1471-1476.
  • 3
    Sackett DL, Haynes BR, Guyatt G, Tugwell P. Clinical epidemiology, a basic science for clinical medicine 2nd ed. Boston, Little Brown, 1991; 44l.
  • 4
    Fletcher RH, Fletcher SW, Wagner EH. Epidemiologia clínica. Bases científicas da conduta médica 3a ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996; 281.
  • 5
    Evidence-Based Medicine Working Group. A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA 1992; 268: 2.420-5.
  • 6
    Sackett DL, Rosenberg WMC. The need evidence-based medicine JR Soc Med 1995; 88: 620-4.
  • 7
    Echt DS, Liebson PR, Mitchell B et al Mortality and morbidity in patients receiving encainide, flecainide, or placebo: the cardiac arrhythmia suppression trial. New Engl J Med 1991; 324: 781-8.
  • 8
    Naylor CD. Grey zones of clinical practice: some limits to evicence-based medicine. Lancet 1995; 345: 840-2.
  • 9
    Kloetzel K. Raciocínio clínico. In Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani ERJ. Medicina ambulatorial, condutas clínicas em atenção primária 2a ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 46-51.
  • 10
    Ham C, Hunter DJ, Robinson R. Evidence based policy making. Br Med J 1995; 310: 71-2.
  • 11
    Littenberg B. A practice guideline revisited: screening for hypertension. Ann Intern Med 1995; 122: 937-9.
  • 12
    Haynes RB. Loose connections between peer-reviewed clinical journals and clinical practice. Ann Intern Med 1990; 113: 724-8.
  • 13
    Sackett DL. Applying overviews and meta-analyses at the bedside. J Clin Epidemiol 1995; 48: 61-6.
  • 14
    Oxman AD, Sackett DL, Guyatt GH, for the Evidence-Based Medicien Working Group. User's Guides to the Medical Literature. I. How to get started. JAMA 1993; 270: 2.093-5.
  • 15
    Guyatt GH, Sackett DL Cook DJ, for the Evidence-Based Medicine Working Group.User's Guides to the Medical Literature II. How to use na article about therapy or prevention A. Are the results of the study valid. JAMA 1993; 270: 2.598-601.
  • 16
    Guyatt GH, Sackett DL, Vook DJ, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's Guides to the Medical Literature. II. How to use na article about therapy or prevention. B. What were the results and will they help me in caring for my patients. JAMA 1994; 271: 69-63.
  • 17
    Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's guides to the medical literature. III. How to use na article about a diagnostic test. A. Are the results of the study valid? JAMA 1994; 271: 389-91.
  • 18
    Jaeschke R, Guyatt G, Sackett DL, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's guides to the medical literature. III. How to use na article about a diagnostic test. B. What are the results and will they help me in caring for my patients. JAMA 1994; 271: 703-7.
  • 19
    Levine M, Walter S, Lee H, Haines T, Holbrook A, Moyer V, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's guides to the medical literature. IV. How to use na article about harm. JAMA 1994; 271: 1.615-9.
  • 20
    Laupacis A, Wells G, Richardson WS, Tugwell P, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's guide to the medical literature. V. How to use na article about prognosis. JAMA 1994; 272: 234-7.
  • 21
    Laupacis A, Feeny D, Detsky A, Tugwell P. How attractive does a new technology have to be to warrant adoption and utilization? Tentative guidelines for using clinical and economic evcaluations. Can Med Assoc J 1992; 146: 473-81.
  • 22
    Sackett DL, Oxman AD (eds). The Cochrane collaboration handbook Oxford, Cochrane Callasoration; 1994.
  • 23
    Chalmers I, Altman DG. Systematic review London, BMJ Publishing Group, 1995; 117.
  • 24
    Schmidt MI,Duncan BB. Bases clínico-epidemiológicas das condutdas clínicas. In Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani ERJ: Medicina ambulatorial, condutas clínicas em atenção primária. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995; 35-43.
  • 25
    Oxman AD, Cook DJ, Guyatt GH, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's guides to the medical literature. VI.: how to use na overview. JAMA 1994; 272: 1.367-71.
  • 26
    Mulrow C. Rationale for systematic reviews. Br Med J 1994; 309: 597-9.
  • 27
    Oxman A, Guyatt GH. The science of reviewing research. Ann NY Acad Sci 1993; 703: 125-34.
  • 28
    Antman EM, Lau J, Kupelnick B, Mosteller F, Chalmers TC. A comparison of results of meta-analyses of randomized controlled trials and recommendations of clinical experts. JAMA 1992; 268: 240-8.
  • 29
    Tierney Jr LM, McPhee SJ, Papadakis MA. Current medical diagnosis and treatment 35th ed. London, Prentice Hall International, 1996; 1.522.
  • 30
    Dale DC, Federmann DD (eds). Scientific american medicine New York, Scientific American Inc., 1978-1996.
  • 31
    Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani ERJ. Medicina ambulatorial, condutas clínicas em atenção primária. 2a ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996; 854.
  • 32
    Chalmers I, Dickersin K, Chalmers TC. Getting to grips with Archie Cochrane's agenda. Br Med J 1992; 305: 786-8.
  • 33
    Silagy C, Lancaster T. The Cochrane Collagoration in primary health care. Fam Pract 1993; 10: 364-5.
  • 34
    Chalmers I. The Cochrane Collaboration: preparing, maintaining, and disseminating systematic reviews of the effects of health care. Ann NY Acad Sci 1993; 703: 156-63.
  • 35
    Hayward RSA, Wilson MC, Tunis SR, Bass EB, Guyatt G, for the Evidence-Based Medicine Working Group. User's guides to the medical literature, VIII. How to use clinical practice guidelines. A. Are the recommendations valid? JAMA 1995; 274: 570-4.
  • 36
    Duncan BB, Schmidt MI. Medicina embasada em evidências. In Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani ERJ. Medicina ambulatorial, condutas clínicas em atenção primária 2a ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996; 7-10
  • 37
    USPHA/IDSA guidelins for the prevention of opportunistic infections in persons infected with human immunodeficiency virus: a summary. Ann Intern Med 1996; 124: 349-6l.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2000
  • Data do Fascículo
    Jul 1999
Associação Médica Brasileira R. São Carlos do Pinhal, 324, 01333-903 São Paulo SP - Brazil, Tel: +55 11 3178-6800, Fax: +55 11 3178-6816 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ramb@amb.org.br