Acessibilidade / Reportar erro

Autonomia de professores

CONTRERAS, José. Autonomia de professores. Trad. Sandra Trabuco Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2002. 296p

Durante as quase trezentas páginas de La autonomia del professorado, o espanhol José Contreras Domingo, da Universitat de Barcelona, nos apresenta uma definição de autonomia docente como qualidade do fenômeno educativo, não apenas como qualidade profissional. O autor teoriza que a autonomia consiste na consciência sobre a docência, sobre o fazer e sobre o ser professor, mas, ainda, sobre o sentido do ensino e da educação na sociedade. Esclarece que a produção dos saberes pertinentes à docência não permite segregar “elaboração e aplicação”, “teoria e prática”, mas obriga reuni-las e revelá-las diretamente no contexto humano e social em que o fenômeno educativo acontece.

Como bem explica a professora Selma Garrido Pimenta, no prefácio de apresentação à edição brasileira, a obra de Contreras debate as considerações feitas desde meados da década de 1970 sobre a depreciação da atividade docente, progressivamente dessensibilizada e cooptada por uma racionalidade técnica. Além disso, também analisa as respostas teóricas e políticas, nas décadas seguintes, materializadas em referenciais como a escola democrática e o professor reflexivo. Para tanto, retoma e dialoga com autores como Michael Apple, Donald Schön e Gimeno Sacristán - para citar alguns com textos de grande repercussão no Brasil.

Para estruturar sua proposta de autonomia de professores, Contreras estabelece um rol de conceitos bastante interessantes de ser estudado por professores e pesquisadores: parte da ideia de proletarização da docência para apresentar duas formas possíveis de resistência, o profissionalismo e a profissionalidade. À frente, estabelece sentido para o que chama de obrigação moral, competência profissional e compromisso com a comunidade no exercício da docência; e, de forma esquemática, descreve três modelos ou perfis distintos de racionalidade definindo o professor: o especialista técnico, o professor reflexivo ou o intelectual crítico.

O autor inicia analisando a profissão docente a partir de um histórico de proletarização do ofício. Denuncia o distanciamento entre o fenômeno de concepção do ensino e o de sua execução nas instituições, explicando que os fins e sentidos da educação derivam das instituições externas, não sendo tocados por quem exerce a atividade propriamente. Assim, a docência se condena a uma crescente perda de controle sobre suas ações e a uma contínua desqualificação profissional, em um típico processo de racionalização técnica com procedimentos emprestados do cenário da indústria taylorista. Apoiado em nomes como Apple e Giroux, critica a ideologia dos modernos mecanismos burocráticos usados para centralizar e controlar o ensino - a exemplo, as reformas curriculares ou as avaliações amplas de desempenho - que adequam professores a um modelo de competência técnica e neutralidade política; enquanto imprimem esse código ontológico determinado a priori também em sua formação.

Seguindo, o autor reconhece haver resistência na prática social cotidiana e coletiva dos professores contra a tal precarização, fenômeno que ele conceitua como profissionalismo. O profissionalismo se revela no enfrentamento docente a sua perda de status e de sua luta por reconhecimento social, ilustradas em mobilizações por melhores condições de trabalho e salários, ou na estima de processos de requalificação técnica como avanço profissional. Para o autor, porém, embora haja uma dimensão positiva do profissionalismo, na exposição do compromisso ético do trabalho docente, que, abnegado, assume até novas tarefas que as mudanças sociais impõem, assim o verdadeiro sentido da docência e do ensino vai sendo paulatinamente obscurecido. Ou seja, ao focalizar a identidade da profissão naquilo que os docentes executam, reduzem-se as chances da reflexão sobre por que o fazem. Logo, a rotinização, o isolamento e a cobrança por resultados retomam espaço e refletem uma desqualificação da docência como atividade intelectual.

É capital na obra de Contreras a conclusão que, no cenário do profissionalismo, o sentido da autonomia de professores será sempre o de uma qualidade do ofício, um atributo profissional privado. Para o autor, ter condições de trabalho, bom salário e possibilidades de tomar decisões podem parecer autonomia, mas podem também encerrar formas mais refinadas ou brandas de controle. Somente se e quando os professores puderem imprimir na docência (nos conteúdos, práticas, avaliações) a reflexão crítica sobre suas aspirações, visões de mundo e experiências é que a autonomia poderia ser entendida como qualidade educativa - mais que um atributo profissional concedido externamente. No plano teórico de Contreras, os conceitos de democracia e autonomia na prática docente servem também para denunciar a inadequação da formação inicial e o caráter massificado, esporádico, acrítico e desconectado da prática que costumeiramente marcam as iniciativas de formação continuada.

Por tudo isso, a mais potente crítica do livro se dirige à racionalidade técnica do ofício professoral. Para o autor, ela se reconhece no discurso e na prática de aplicação de conhecimentos teóricos ou técnicos à prática pedagógica com vistas a melhorar a eficácia ou eficiência do processo de ensino; quando o professor acolhe e aplica soluções instrumentais desenvolvidas a partir de uma lógica cientificista e positivista de causalidade. Trata-se de um professor que não concebe o ensino, apenas o executa baseado em aspectos contratuais e controles externos. O ensino é tratado como prestação de serviço por uma concepção produtivista de fins fixos e bem definidos. A docência se estabelece em um perfil de especialista técnico, em que a obsolescência se faz garantida e a autonomia se mostra efêmera e ilusória.

O conceito de autonomia em Contreras começa, portanto, na superação do fazer instrumental e do profissionalismo docente. A verdadeira profissionalização da docência tomaria por base, sim, o domínio técnico (habilidades ou repertório de saberes teóricos, por exemplo) a priori, mas dependeria de uma compreensão da prática educativa como compromisso social, um fenômeno humano em que há relações afetivas, sociais, emocionais e culturais, a ponto de ser impossível separar concepção e execução da prática de ensino.

Nesse ponto, Contreras rememora Michael Tardiff e advoga por saberes da prática, não apenas para a prática. Para ambos, tanto quanto os saberes da formação acadêmica, os saberes da prática, da experiência, da vivência educativa concreta ganham validade e legitimidade como guias da práxis e definidor do habitus da profissão. As contingências e especificidades de cada contexto e evento de ensino tornam esses saberes internos, íntimos, próprios, de modo que permitem uma razão interativa com a experiência social (mais do que uma razão instrumental, um saber fazer), até mesmo a subjetividade de cada estudante passa a compor sentidos para o ensino. Defende Contreras que somente com a autonomia para por em jogo esses saberes da prática, o professor poderia desenvolver sua própria compreensão sobre o trabalho que exerce e, se for o caso, criar novos saberes capazes de transformá-lo. É a esse esforço de expressão de valores e intenções no desenvolvimento do ofício ensino que autor denomina profissionalidade.

A profissionalidade se define no conjunto de qualidades da prática profissional docente, em função do que requer o trabalho educativo. Trata-se de um outro modo de resistência, também gerado pelo compromisso e responsabilidade com o ofício, mas pautado pela autoconsciência e necessidade ética de dar sentido ao fazer. É a expressão da especificidade da atuação docente a partir do conjunto de saberes, atitudes, valores que carrega. Ela se expressa quando o professor se põe a descrever e/ou analisar seu trabalho de ensinar, expondo assim os valores e pretensões da profissão.

Parte significativa do livro é dedicada à compreensão da profissionalidade dos professores, sendo apresentada em três aspectos: a obrigação moral, o compromisso com a comunidade e a competência profissional. A obrigação moral diz respeito à compreensão da docência como atividade socialmente referenciada, de modo que o compromisso com a educação e o ensino se apresenta como valores que guiam os juízos e deliberações constantes na prática. Configura-se uma superação da natureza contratual da função docente e se incorpora uma dimensão emocional à consciência. O compromisso com a comunidade, por sua vez, estabelece uma ideologia para a docência, responsabilizada pelo bem comum, solidária e democrática. Revela-se justamente quando a docência reconhece a singularidade de cada contexto específico de ensino e considera tais peculiaridades em suas decisões. Por fim, o aspecto de competência profissional é definido no reconhecimento do repertório de modelos teóricos (habilidades, técnicas, conhecimentos) que o docente carrega consigo e que pretende ampliar quando percebe suas limitações e parcialidades. Nesse sentido, os saberes que foram se constituindo pela experiência, e que possivelmente eram tidos como implícitos, tácitos ou intuitivos, ganham valor e passam a dialogar mais claramente com saberes provenientes da formação. O professor deixa de ser um consumidor somente, para ser também um produtor de saberes pertinentes à docência.

Portanto, na perspectiva de Contreras, saber ser professor exige mais do que conhecimentos externos, técnicos, antecipados pela formação. Os comportamentos, as destrezas, as atitudes desenvolvidas nas práticas reais são evidências relevantes dos caminhos que o ensino deve seguir. Quando as pretensões do ensino são questionadas, são revisados os objetivos, por exemplo, há possibilidade de superação de uma racionalidade técnica. Uma autonomia menos burocrática ou ilusória nasce da autoconsciência do professor sobre seus juízos, deliberações, motivações, valores. A reflexão docente expõe que o conhecimento não precede a ação, mas está nela contido e se transforma em processo. A prática docente deixa então de ser executora para ser reflexiva, criativa, até mesmo artística.

A reflexão na ação proposta por Schön, a ideia de um professor pesquisador defendida por Stenhouse e as reflexões retrospectivas nos escritos de Elliot são usados como alicerces (esmiuçados, acolhidos e criticados) na teorização de Contreras. A partir dessa condição, Contreras estabelece o segundo perfil ou modelo de professor, aquele que delibera democraticamente em diálogo com seu contexto e também por isso é entendido como um professor reflexivo. Esse professor reflete na prática e sobre a prática, constituindo saberes e valores capazes de alterá-la contingencialmente. Faz emergir elementos criativos e intuitivos, desvalorizados pelo especialista técnico. O compromisso moral e o entendimento do professor reflexivo sobre os acontecimentos, sobretudo aqueles inusitados ou desafiadores, tornam-se os guias da deliberação e desse modo se constitui espaço para uma autonomia ampliada.

Mas é aqui também quando e onde Contreras propõe ir além dos autores que traz para o diálogo. Ele recorre à Teoria Crítica, às produções de Giroux e Habermas para reivindicar uma docência que não apenas conheça e altere a prática de modo individual e restrito à sala de aula. O autor clama por uma reflexão sobre a docência com distanciamento crítico, que recorra à racionalidade aristotélica para construir uma consciência que politize a prática. Na obra, o fundamento aristotélico se conecta com reflexões de Dewey, resultando em uma equação em que os fins da educação não se distinguem dos meios pelos quais ela ocorre. Para a docência, vale a metáfora de Schön e Stenhouse do ensino como arte, para quem os valores que guiam a prática são também seus resultados. Nesses termos, quando a reflexão sobre o ensino se expande para o fenômeno educativo, a docência estaria então emancipada na figura de um intelectual crítico - alcunha do terceiro modelo de professor descrito por Contreras.

O caminho do professor reflexivo ao intelectual crítico não é de fácil compreensão, mas passa pela crítica de que a reflexão não pode ser reducionista ou imediatista, não deve se prender ao plano pedagógico e à aula, tampouco ficar individualizada sob responsabilidade do docente. Sendo o ensino uma prática social coletiva e também institucionalizada (afetado e/ou condicionado externamente), a criticidade da reflexão deve mirar não apenas a criação de novas ideias para o ensino, mas um mergulho do profissional em si e no contexto do fenômeno educativo. Sendo a educação e o ensino ocupações públicas, encomendadas pelo coletivo social, a autonomia de professores deve considerar a comunidade como referência e como corresponsável pelas condições em que ocorrem. De modo exemplar, professores deveriam tomar consciência de que estratégias técnicas (metodologias) não podem ser analisadas apenas pelo mérito (ser ou não eficaz), mas pelo que representam como pretensões e razões educativas.

As chaves da autonomia de professores residem, portanto, em aspectos pessoais (compromissos moral e ético) e sociais (de relacionamento e dos valores que os guiam). Consiste em uma questão humana, não técnica; um elemento educativo, mais que trabalhista; uma qualidade circunstancial de processos e situações, mais que uma característica individual ou psicológica. Existe autonomia na docência quando professores são conscientes de sua insuficiência e parcialidade; quando são solidários e sensíveis com os outros atores do processo, em especial, os estudantes. Essa autonomia, da qual fala Contreras, afasta-se da autossuficiência para se aproximar da emancipação.

Em suma, à medida que o professor passa a negociar com o seu contexto de atuação, delibera conscientemente sobre seus juízos, reflete retrospectivamente sua prática, distancia-se criticamente da estrutura burocrática da profissão e expande sua visão sobre o ensino para questões além da sala de aula, sua prática se torna não só reflexiva, mas intelectual crítica ao adquirir tonalidade ideológica e política. Por conseguinte, esse processo de emancipação põe na pauta de seu fazer as condições sociopolíticas e as condições institucionais para que os fins da educação sejam alcançados. E, claro, esses próprios fins passam a ser alvo de revisão, sobretudo por meio de um olhar crítico para o currículo e para os objetivos de ensino.

Finalmente, a obra de Contreras merece mais atenção e repercussão como uma profícua e pujante discussão sobre conceitos que têm sido banalizados e generalizados nos discursos e pesquisas pedagógicas sobre a docência. O autor reúne diferentes teóricos pertinentes à compreensão da identidade da profissão docente, suas condições de exercício e formação, de modo que a análise crítica e as contribuições que tece ao longo de seus oito capítulos são adequadas ao aprofundamento desses temas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2017
  • Aceito
    19 Maio 2017
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br