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Pesquisa qualitativa no contexto da Educação no Brasil

Qualitative research in the context of Education in Brazil

RESUMO

Neste artigo foi feita, a partir de dados historiográficos, uma investigação sobre o tema “pesquisa no contexto da educação brasileira”. Para a realização deste trabalho empírico bibliográfico, perpassou-se pelos textos publicados que versam sobre o início das pesquisas em Educação no Brasil e das reflexões sobre metodologias das pesquisas qualitativas nos trabalhos acadêmicos. O texto destaca que o dispositivo entrevista individual ou em grupo, como instrumento para construir achados de campo, é uma ferramenta apropriada para compreender os dizeres dos entrevistados no processo da descrição do objeto da investigação pedagógica em educação.

Palavras-chave:
Pesquisas em Educação; Pesquisa qualitativa; Entrevista.

ABSTRACT

In this article, I present, based on historiographical data, an investigation on the subject of “research in the context of the structure of Brazilian education.” In order to accomplish this empirical bibliographical work, I went through published texts that deal with the beginning of the research about education in Brazil and the reflections on the methodologies of qualitative research in academic papers. The text highlights that the individual and group interview device as an instrument for building field findings, is an adequate tool for understanding the interviewees’ words in the process of describing the object of pedagogical investigation about education.

Keywords:
Education research; Qualitative research; Interview.

Considerações iniciais

O debate metodológico qualitativo tem acompanhado as pesquisas em diversos campos, de forma que diferentes posições têm sido assumidas pelos investigadores em educação, diversificando entre aceitação, negação ou, até mesmo, meio-termo entre o que se convencionou chamar de debate qualitativo/quantitativo, além de outras terminologias.

Na pesquisa acadêmica, o pesquisador depara-se constantemente com a necessidade de conhecer e discutir sobre o caminho a percorrer a fim de elaborar de que forma transformar o fenômeno de investigação em um objeto de pesquisa.

Ao enfocar a fundamentação metodológica e o instrumental técnico ou ferramenta, este artigo discute o desenvolvimento e a consolidação da pesquisa científica no contexto da educação brasileira, descreve de forma introdutória os métodos qualitativos nas pesquisas e, por fim, apresenta a entrevista como um mecanismo pertinente para se dar lugar a palavra ao outro a fim de se construir dados em pesquisas de campo.

Consolidação das pesquisas em Educação no Brasil

Do ponto de vista metodológico, a melhor maneira para se captar a realidade é aquela que possibilita ao pesquisador “colocar-se no papel do outro”, vendo o mundo pela visão dos pesquisados.

Arilda Schmidt GodoyGODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.

A pesquisa em Educação no Brasil, nos seus fundamentos teórico-metodológicos, perpassou por diversos ciclos históricos. Em linhas gerais, buscando identificar fatores que proporcionaram o seu desenvolvimento, destacam-se dois aspectos fundamentais: primeiramente, efeitos das influências das pesquisas iniciadas em Ciências Sociais e Humanas em diversos países; e, posteriormente, expansões das pós-graduações, a fim de qualificar e investir na formação dos profissionais, e da necessidade de investir em recursos de fontes financiadoras.

A produção de pesquisa, de modo mais regular, data do final dos anos 1930, com a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) em 1938, hoje, denominado Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. O INEP, com seu desdobramento no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e nos Centros Regionais em alguns estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia e Minas Gerais), constituiu-se em foco produtor e irradiador de métodos e técnicas de investigação científica em Educação, inclusive os de natureza experimental. Esses órgãos proporcionaram espaço específico de produção e de estímulo sistemático em Educação. (VEIGA, 2007VEIGA, C. G. História da educação. São Paulo: Ática, 2007., p. 303-304).

Segundo Gatti (1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 3),

Até então, os estudos em Educação se expressavam apenas pelo trabalho isolado de alguns professores da área. No mesmo período, consolidavam-se algumas Escolas Normais de alto nível, que se tornam a fonte de recursos humanos especializadas em educação, sob diferentes ângulos de formação, e despontam os cursos de pedagogia nas Faculdades de Filosofia.

Com a implantação desses institutos, intensificaram-se os trabalhos e a formação de pessoal dos Centros Brasileiros e Regionais de Pesquisa em Educação, proporcionando o surgimento das primeiras tentativas de publicação sistemáticas de trabalhos especializados na área. Com o início, na década de 1940, da publicação da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBPE-INEP) e, na década de 1950, com as séries “Monografias”, “Estudos”, “Documentos”, “Pesquisas e Planejamento”, entre outras, todas no âmbito do CBPE ou dos CRPEs, historicamente configurou-se a produção do pensamento pedagógico especificamente a partir da realidade do sistema educacional brasileiro (GATTI, 1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 3-4). Contudo, vale lembrar que essa afirmação não exclui outros dados registrados por educadores, antes da década de 1930, e não contemplados e descritos neste trabalho bibliográfico e empírico.

Conforme descreve Gatti (1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 4),

Fora do sistema INEP-CBPE-CRPE(s), também despontaram algumas revistas, como a Atualidades Pedagógicas da Editora Civilização Brasileira (1950), a Revista Pedagógica, da Universidade de São Paulo (1955), etc., todas acabando por não ter sequência após alguns anos).

Essas instituições, com suas publicações, também contribuíram com a pesquisa em Educação, no âmbito teórico-metodológico, pela divulgação e aplicabilidade na prática pedagógica.

Na década de 1960, assiste-se à expansão dos quadros das universidades, com a emergência de alguns grupos de pesquisa, impulsionada pela implantação de curso de Pós-Graduação. Com a consolidação da reforma de 1968, vieram os programas de pós-graduação em Educação (stricto sensu), “que responderam por alguns dos trabalhos relevantes na área e, somente entre os anos 1971/1972, criaram-se dez cursos de pós-graduação em Educação no sentido estrito; e, até 1975, dezesseis estavam instalados.” (GATTI, 1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 4).

Outro aspecto fundamental a ser demarcado é em relação à intensificação dos incentivos que proporcionaram a formação e qualificação acadêmica nos programas de mestrado e doutorado no exterior. Com o retorno e a integração de professores especializados em trabalhos acadêmicos, de ensino e pesquisa, constatam-se muitas mudanças nas temáticas, nos problemas, nos referenciais teóricos, nas abordagens metodológicas e nos contextos de produção de trabalhos científicos. Os temas ampliam e se diversificam conforme apontava e assinalava o documento “Avaliação & Perspectivas-1978” do CNPq. (GATTI, 1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 4).

Pelo fato de os enfoques se ampliarem e diversificarem, o pensamento educacional brasileiro passa por diferentes ciclos ou convergências temáticas e metodológicas. Vários autores começaram a escrever sobre as mudanças e inovações das pesquisas científicas. Gatti (1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 4), citando Aparecida Joly Gouveia (1971-1975), afirma que

As pesquisas, inicialmente de caráter psico-pedagógico, em que a temática abrangia estudo do desenvolvimento psicológico, processo de ensino e instrumentos de medida de aprendizagem, deslocam-se, em meados da década de cinquenta, para as condições culturais e tendências de desenvolvimento da sociedade brasileira, e o objeto de atenção passa a ser as relações entre o sistema escolar e certos aspectos da sociedade. A partir de meados da década de sessenta, começam a ganhar fôlego e destaque os estudos de natureza econômica em que aparecem trabalhos sobre a educação como investimento, demanda profissional, formação de recursos humanos, etc.

Na década de 1970, aconteceu a ampliação das temáticas de estudos como o aprimoramento metodológico, especialmente em alguns setores, em diferentes problemáticas enfocadas:

currículos, avaliação de programas, caracterizações de redes e recursos educativos, relações de educação e trabalho, características de alunos, famílias e ambiente de que provêm, nutrição e aprendizagem, validação e critica de instrumentos de diagnósticos e a validação, estratégia de ensino entre outros. (GATTI, 1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 4).

Segundo a análise de Gouveia, no texto “A pesquisa sobre Educação no Brasil: de 1970 para cá”, feita em diferentes fontes de dados, tais como, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); dos projetos financiados pelo INEP e dos estudos publicados em Cadernos de Pesquisa realizados nos períodos de 1970 e 1976, constata-se que as pesquisas em Educação figuram sobre os “relatos de experiências ou tentativa de renovação educacional” com “estudos descritivos” (GOUVEIA, 1976GOUVEIA, A. J. A pesquisa sobre educação no Brasil: de 1970 para cá. Cadernos de Pesquisa , n. 19, p. 75-79, 1976., p. 75-9), entre outros, sem uma preocupação de controles metodológicos mais sistemáticos.

Os relatos das publicações das pesquisas em Educação demonstram que foi uma época de grande inquietação, quando grande parte do discurso acadêmico na área educacional se travava em discursos pró ou contra esta ou aquela metodologia, com diferentes técnicas de coleta e análise de “dados”, cujo interesse era cada vez mais crescente pela utilização de método e pesquisa intercomplementares - quantitativo e qualitativo. (GONÇALVES, 1984GONÇALVES, O. Incorporação de práticas curriculares nas escolas. CP Cadernos de Pesquisa , FCC, n. 49, p. 55-62, 1984. , p. 55-62).

Entre o final dos anos 1970 e o início da década de 1980 aparecem trabalhos sobre “política educacional, tema até então ausente em trabalhos de análise institucional e organizacional”. (GATTI, 1983GATTI, B. A. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil, 1978-1981. Cadernos de Pesquisa , n. 44, p. 03-17, 1983., p. 4). Fatores que contribuíram para essa investigação foram a implantação de 27 programas de pós-graduação em Educação, funcionando em 27 instituições de ensino superior, que resultaram na produção de centenas de dissertações e de dez teses de doutorado, concluídas até 1981.

Tais investimentos levaram as pesquisas a serem avaliadas constantemente, buscando aproximar o sujeito e o objeto a ser investigado no seu contexto histórico-cultural. Como afirmamos na epígrafe, um bom trabalho científico, que utiliza metodologia mais próxima da realidade a ser pesquisada, deve ser aquele que propicia ao pesquisador “colocar-se no papel do outro”, ou seja, compreender a realidade pela visão dos pesquisados como forma de aproximação entre a vida e o que vai ser investigado. Para isso, ainda um melhor caminho é através da pesquisa qualitativa com metodologia que vise compreender a questão do humano através da dimensão educacional.

Enfoque metodológico de pesquisas qualitativas

Quando o estudo é de caráter descritivo e o que se busca é o entendimento de fenômeno como um todo, na sua complexidade, é possível que uma análise qualitativa seja a mais indicada.

Arilda Schmidt GodoyGODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.

No Brasil, as abordagens das pesquisas qualitativas configuram-se, como enfoque metodológico, a partir da década de 1970, devido às concepções epistemológicas interpretarem a realidade de forma distorcida nas suas metodologias. Além da preocupação da metodologia em Ciências Humanas e em Educação, chega-se, neste caminho percorrido historicamente, a avistar a preocupação com o método mais do que com o problema a ser estudado no contexto da educação. As distorções quantitativas são devidas à precariedade das fontes, à manipulação da informação social, à imprecisão das técnicas em excluir certas variáveis para a explicitação do fenômeno escola, por exemplo. Na concepção positivista tradicional, a objetividade é desejada, por meio da quantificação, como modo de eliminar as distorções devidas à subjetividade do pesquisador. Nesse período, esse modelo de ciência passa a receber severas críticas filosóficas, políticas e técnicas. O alvo dessas críticas direcionou-se para a aplicabilidade dos modelos de ciências naturais nas Ciências Sociais e Humanas, cujos princípios teóricos separavam os fatos dos seus contextos histórico-culturais.

Esse modelo constituiu um marco na prática da pesquisa em Educação no Brasil devido à exigência de outros campos fora da academia (na esfera governamental e técnica), tais como os organismos internacionais (Banco Mundial/BIRD, FMI), os potenciais financiadores (junto às três dimensões de Poder Executivo: o municipal, o estadual e o federal) que instigaram o exercício da investigação como precedência para as ações de intervenção na realidade. (SILVA, 2009SILVA, M. A. da. Os contrapontos da produção acadêmica na emergência da pesquisa qualitativa. Educativa, v. 12, p. 163-170, 2009., p. 163-164).

Silva (2009SILVA, M. A. da. Os contrapontos da produção acadêmica na emergência da pesquisa qualitativa. Educativa, v. 12, p. 163-170, 2009., p. 164) afirma que

Esse procedimento foi modificado ainda no final da década de 1970 e, especialmente, na de 1980, quando os ministérios e/ou outros organismos públicos, que intermediavam a concessão dos recursos, passaram a exigir um maior rigor técnico para efeito de liberação das verbas, com critérios mais rígidos para a elaboração de projetos e relatórios com a finalidade de obter uma qualidade técnica de excelência.

Segundo Gatti e André (2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 31), na área de avaliação de currículos e programas, pode-se citar uma importante publicação do

livro Beyond the Numbers Game (1977), editado por David Hamilton, David Jenckins, Cristine King, Barry MacDonald e Malcolm Parlett, que resultou de um seminário realizado em Cambridge (Reino Unido), em 1972, no qual foram discutidos métodos não convencionais de avaliação e foram feitas propostas para novos estudos na área.

Neste seminário, o texto de Parlett e Hamilton faz uma contundente crítica ao paradigma quantitativo vigente nas pesquisas avaliativas ao propor uma abordagem iluminativa, apoiada nos princípios teóricos socioantropológicos. Para os autores, a pesquisa a ser investigada e os programas deveriam “levar em conta as dimensões sociais, culturais e institucionais” (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 31) de cada sujeito.

Segundo Gatti e André, ao final do seminário, redigiu-se um manifesto em que os participantes resumiram suas inquietações em três pontos:

1) Que sejam mais usados dados de observações, devidamente validos, em substituição aos usuais dados de testes. 2) Que haja flexibilidade no design da pesquisa para inclusão de eventos não previstos, ou seja, uso de focalização progressiva em lugar de delineamento preestabelecido e fixo. 3) Que os valores e pontos de vista do avaliador sejam revelados no relato da pesquisa (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 31).

Um exemplo do impacto dessas reflexões, no Brasil, encontra-se na publicação, em 1978, do artigo “A abordagem etnográfica: uma nova perspectiva na avaliação educacional”, de André (1978), defendendo a pesquisa qualitativa nos estudos em Educação. As autoras citam, também, outra fonte importante para a introdução dos métodos qualitativos em Educação com a publicação do livro Explorations in Classroom Observation, organizado por Michel Stubbs e Sara Delamont (1976). Faz-se uma crítica aos estudos em sala de aula que se baseiam em análise de interação e ignoram o contexto espacial e temporal das ocorrências e dos eventos nesse espaço. (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 31-32). A alternativa seria fazer estudos a partir das abordagens antropológicas, das quais “os acontecimentos da sala de aula só podem ser entendidos no contexto em que ocorrem e são permeados por uma multiplicidade de significados que, por sua vez, fazem parte de um universo cultural que deve ser estudado pelo pesquisador” (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 32). Propõe-se, para isso, a observação participante, a qual envolve registro de campo, entrevista, fotografias, gravações, entre outras.

Segundo Gatti e André (2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 32), ao final dos anos de 1970, Sara Delamont esteve no Brasil, para uma série de seminários na Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, ocasião em que defendeu o uso da abordagem antropológica na investigação das problemáticas escolares.

Outro evento importante destacado pelas autoras foi o Seminário de Pesquisas em Educação da Região Sudeste, realizado em Belo Horizonte, em 1980. Neste evento houve uma mesa-redonda sobre o tema “A pesquisa qualitativa e o estudo da escola”, em que vários pesquisadores tiveram a oportunidade de refletir as possibilidades e os limites no uso de métodos qualitativos.

Os textos apresentados nessa mesa por André (1984), Campos (1984), Gonçalves (1984GONÇALVES, O. Incorporação de práticas curriculares nas escolas. CP Cadernos de Pesquisa , FCC, n. 49, p. 55-62, 1984. ), Thiollent (1984) e os comentários de Joly Gouvêia (1984) forma posteriormente publicados na revista Cadernos de Pesquisa (1984), favorecendo uma divulgação bastante ampla dessas ideias. (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 32).

Segundo Menga Lüdke, durante os trabalhos preparatórios do II Seminário Regional de Pesquisa da Região Sudeste (Belo Horizonte, outubro/1983), a comissão organizadora, da qual ela fazia parte, “estabeleceu que o encontro devesse ter pelo menos uma vez por dia uma ocasião de reunião geral dos participantes. Essa reunião diária deveria se fazer sob a forma de um simpósio, que girasse sobre um tema aglutinador de interesse” (LÜDKE,1984LÜDKE, M. A pesquisa qualitativa e o estudo da escola. Cadernos de Pesquisa , n. 49, p. 43-44, 1984. , p. 43-44). Ao se iniciar a discussão sobre quais seriam esses temas, a proposta sobre a metodologia qualitativa e após consenso e dissenso chegou-se ao tema proposto: o foco deveria centrar sobre a pesquisa qualitativa em escola como objeto de estudo metodológico.

Para Lüdke (1984LÜDKE, M. A pesquisa qualitativa e o estudo da escola. Cadernos de Pesquisa , n. 49, p. 43-44, 1984. , p. 44), a realização do Simpósio deixou-lhe uma impressão muito viva, “a de que a pesquisa em educação está franqueando um período de grande fertilidade, com a incorporação de muitas possibilidades de soluções metodológicas até agora inacessíveis”. Este encontro demarca a “saída do bloco monolítico de soluções disponíveis dentro do esquema de pesquisa convencional, em que grande parte dos nossos pesquisadores recebeu sua formação” (LÜDKE, 1984LÜDKE, M. A pesquisa qualitativa e o estudo da escola. Cadernos de Pesquisa , n. 49, p. 43-44, 1984. , p. 44).

No ano de 1983, Marli E. D. A. de André publica o artigo no Cadernos de Pesquisa, denominado “Texto, contexto e significados: algumas questões na análise de dados qualitativos”, em que apresenta reflexões relacionadas à análise de dados qualitativos em literatura educacional.

A pesquisa educacional, em boa parte, vai integrar e acompanhar as transformações sociais ocorridas no Brasil, no momento da passagem de um período ditatorial militar para um mais democrático. As pesquisas, especialmente nas dissertações de mestrado e nas teses de doutorado, passam a ser grande fonte de produção de conhecimento, cuja hegemonia do tratamento das questões tem base em teorias de inspiração e tendência “crítico-reprodutivista”.

Para Saviani (2011SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2011., p. 292-393), na década de 1970, na pós-graduação, “insurgiram estudos empenhados em fazer a crítica da educação dominante” que fora implantada, no Brasil, no período do regime militar, com ênfase no modelo “técnico-operativo” americano e com a “ênfase teórica” a partir do “modelo europeu”. Segundo o autor, “fundindo a estrutura organizacional do modelo americano com a densidade teórica resultante da influência europeia, a pós-graduação brasileira acabou por produzir um modelo novo, decerto superior àqueles que lhe deram origem”. A denominação pedagógica “crítico-reprodutivista” se justifica nos seguintes termos:

Trata-se de uma tendência crítica porque as teorias que a integram postulam não ser possível compreender a educação senão a partir dos seus condicionantes sociais. [...] Mas é reprodutiva porque suas análises chegam invariavelmente à conclusão de que a função básica da educação é reproduzir as condições sociais vigentes. (SAVIANI, 2011SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2011., p. 293).

Essa perspectiva pedagógica da visão crítico-reprodutivista desempenhou um papel importante em 1970, pelo fato de que essas “teorias se concentravam na crítica à educação vigente, não apresentando alternativas, isto é, não propondo uma nova maneira de lidar com as escolas”, (SAVIANI, 2011SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2011., p. 397).

Segundo Gatti e André (2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. ), ainda na fase da aproximação dos métodos qualitativos com a pesquisa em Educação, em 1983, o pioneiro das abordagens qualitativas em Educação, Robert Stake - pesquisador e coordenador do CIRCE (Center for Instructional Research and Curriculum Evaluation, localizado na Universidade de Illinois em Urbana/Champaign - USA) -, realizou reflexões em várias instituições brasileiras,

como a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Universidade Federal do Espírito Santo, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Fundação Carlos Chagas em São Paulo, o que possibilitou uma ampla discussão do potencial das abordagens qualitativas em Educação (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 32).

Neste mesmo ano, o INEP-MEC1 1 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais – Ministério da Educação e Cultura. promoveu um seminário para refletir sobre outro processo de se fazer pesquisa em Educação, denominado “pesquisa participante”2 2 Seminário promovido, no dia 21/09/1983, pelo laboratório de Psicologia Social e Psicologia Educacional da PUC/SP e, posteriormente, em Brasília. , cujos textos dos pesquisadores e professores - Pedro Demo, Maria Malta Campos, Carlos Rodrigues Brandão, Nicanor Palhares Sá, Luiz Eduardo W. Wanderley e Justa Ezpeleta - foram publicados no Em Aberto (n. 20, 1984). Nesse seminário, a pesquisadora mexicana Justa Ezpeleta (1984, p. 37-45) afirmou que o seu “campo de trabalho não é a pesquisa participativa”, mas o interesse pela “teoria da educação” em pesquisa empírica, relacionando-a com o interesse teórico. Os atores principais de sua reflexão são os referenciais teóricos do que se compreende por “pesquisa”, “participação” e “política”. Esse modelo de fazer pesquisa deve-se pautar em análises que rompam com os modelos dominantes de interpretação, buscando um novo tipo de conhecimento sobre a realidade da problemática escolar, para conhecê-la e transformá-la.

Tais iniciativas comprovam que, para compreender e interpretar as questões e os problemas da área da Educação, torna-se necessário recorrer a diferentes enfoques entre as múltiplas disciplinas e campos teóricos. Ganha força a propagação de metodologias e técnicas de estudos do tipo etnográfico, estudo de caso, pesquisa-ação, análise de discurso e de narrativas, estudos de memória, história de vida e história oral3 3 Cf. o trabalho do antropólogo Brandão (1984, p. 14-18). . Portanto, no início dos anos 1980, ao lado de uma descrença nas soluções técnicas para resolver os problemas da educação brasileira, tais estudos fazem mudar o perfil da pesquisa educacional, proporcionando reflexões mais críticas. Busca-se não mais exclusivamente “à Psicologia ou à Sociologia, mas à Antropologia, à História, à Linguística, à Filosofia”. (ANDRÉ, 2001ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 51-64, 2001., p. 53-54).

Segundo Marli André (2001ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 51-64, 2001., p. 54), nas duas últimas décadas, assistiu-se a uma mudança no contexto de produção dos trabalhos de pesquisa.

Se, nas décadas de 1960 a 1970, o interesse se localizava nas situações controladas de experimentação, do tipo laboratório, nas décadas de 1980 a 1990, o exame de situações “reais” do cotidiano da escola e da sala de aula é que constituiu uma das principais preocupações do pesquisador. Se o papel do pesquisador era sobremaneira o de um sujeito de “fora”, nos últimos dez anos, tem havido uma grande valorização do olhar “de dentro”, fazendo surgir muitos trabalhos em que se analisa a experiência do próprio pesquisador ou em que este desenvolve a pesquisa com a colaboração dos participantes.

Esse movimento da história da pesquisa qualitativa no contexto da educação brasileira, na busca da credibilidade e da garantia de rigor, gerou a necessidade de se refletir sobre a produção de conhecimentos que levasse em conta as múltiplas e variáreis influências externas e internas da própria realidade focada. O uso do método qualitativo gerou diversas contribuições ao avanço do saber na dinâmica do processo educacional e na sua estrutura como um todo: reconfigura a compreensão da aprendizagem, das relações internas e externas nas instâncias institucionais, da compreensão histórico-cultural das exigências de uma educação mais digna para todos e da compreensão da importância da instituição escolar no processo de humanização.

Gatti e André (2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 34) destacam quatro pontos importantes desta contribuição:

1) A incorporação, entre os pesquisadores em Educação, de posturas investigativas mais flexíveis e com maior adequação para estudos de processos micro-sócio-psicológicos e culturais, permitindo iluminar aspectos e processos que permaneciam ocultados pelos estudos quantitativos. 2) A constatação de que, para compreender e interpretar grande parte das questões e problemas da área de Educação, é preciso recorrer a enfoques multi/inter/transdiciplinares e a tratamentos multidimensionais. 3) A retomada do foco sobre os atores em educação, ou seja, os pesquisadores procuram retratar o ponto de vista dos sujeitos, os personagens envolvidos nos processos educativos. 4) A consciência de que a subjetividade intervém no processo de pesquisa e que é preciso tomar medidas para controlá-la.

Segundo as pesquisadoras, a pesquisa qualitativa gerou especificamente outros aspectos mais específicos, com nova conotação:

1) Compreensão mais profunda dos processos de produção do fracasso escolar, um dos grandes problemas na Educação brasileira, que passa a ser estudado sob diversos ângulos e com múltiplos enfoques. 2) Compreensão de questões educacionais vinculadas a preconceitos sociais e sociocognitivos de diversas naturezas. 3) Discussão sobre a diversidade e a equidade. 4) Destaque para a importância dos ambientes escolares e comunitários. (GATTI; ANDRÉ, 2011GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 29-38. , p. 34).

Os avanços da produção científica das pesquisas qualitativas vêm se desvelando de forma diversificada nas pós-graduações, seja em termos de fundamentação teórica/epistemológica e reflexões metodológicas, seja em termo da aplicabilidade de procedimentos técnicos para investigar o objeto nas diversas áreas acadêmicas em Educação. Entre os exemplos de produção de textos e revistas já citados, podemos acrescentar a produção do Centro de Estudos Educação e Sociedade, que surgiu em março de 1979, em Campinas (Unicamp/SP), como resultado da atuação de alguns educadores preocupados com a reflexão e a ação ligadas às relações da educação com a sociedade. Em outubro de 1984, o Cadernos CEDES, n. 12, apresentou vários artigos, cujo tema gerador foi “Pesquisa Participante e Educação”. Outro grupo de pesquisa qualitativa que vem crescendo e publicando diversos textos é o que foi criado pelo Prof. Joel Martins da PUC/SP, nos anos de 1980, o qual foi identificado com as correntes fenomenológicas que, em 2005, editavam a Revista Pesquisa Qualitativa.

Acresça-se, também, nestas últimas décadas, a consolidação de Grupos de Pesquisas em subáreas acadêmicas educacionais, quer por necessidade institucional, em razão das avaliações de órgãos de fomento à pesquisa; quer pela maturação própria de grupos que, durante as décadas anteriores, vinham desenvolvendo trabalhos integrados e com interlocuções internas e externas4 4 Sobre os eventos de interlocução entre Brasil e Alemanha, cf. o texto de Weller e Pfaff, 2011. . Descortinam-se, ao final deste período, grupos sólidos de investigação, por exemplo, de Alfabetização e Linguagem, Aprendizagem Escolar, Formação de Professores, Ensino e Currículo, Educação Infantil, entre outros. Esse movimento pode ser acompanhado pelas reuniões anuais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped).

Na atualidade, é pacífico que a produção do conhecimento na área das Ciências Humanas e Sociais não elimina a imbricação entre técnicas quantitativas e qualitativas; e que o valor dos estudos não se mede pela dimensão de uma ou outra abordagem, mas pela concepção que determina a orientação dos resultados e os vínculos estabelecidos com os sujeitos e os problemas investigados. Numa sociedade cada vez mais marcada pelas diferenças culturais, há de se levar em consideração a necessidade de métodos qualitativos para poder evidenciar as diferenças, sobretudo, na atualidade, em que as culturas estão sendo forçadas a se submeterem aos interesses econômicos do sistema, globalizado e hegemônico.

Entrevistas como dispositivos de construções de dados

Todo entrevistador/pesquisador deve conduzir a entrevista de maneira adequada e ética, devendo sempre: fazer com que a Entrevista se limite aos princípios científicos e justifique as possibilidades concretas de responder a incertezas; que seja realizada somente quando o conhecimento que se pretende obter não possa ser adquirido por meio de outros meios [...].

Maria Virgínia Rosa e Marlene Arnoldi

Lüdke e André (1986LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986., p. 25-44) na obra Pesquisa em educação: abordagens qualitativas, no terceiro Capítulo, descreve três métodos de “coleta” de dados: a observação, a entrevista e a análise documental.

Pergunta-se: qual o dispositivo mais adequado para a realização da investigação científica levando em conta a especificidade de um trabalho de campo? E de que modo esse modelo deve ser aplicado em pesquisas qualitativas?

Ao realizar a investigação científica através do método qualitativo à luz do enfoque analítico histórico-cultural, não se investiga em razão de resultados, mas para construir e obter “a compreensão do comportamento a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação”, correlacionado como contexto de que fazem parte. (BOGDAN; BIKLEN, 1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994., p. 16).

Para os pesquisadores que problematizam a questão metodológica de pesquisa em Educação, Lüdke e André (1986LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986., p. 34), “a vantagem da entrevista sobre outras técnicas é que ela nos permite a captação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com qualquer tipo de informante e sobre os mais variados tópicos”. Esse dispositivo nos permite aprofundar o ponto que buscamos escutar nas entrevistas. No ato da entrevista, o pesquisador realiza “correções necessárias solicitando esclarecimentos e adaptações que a tornam sobremaneira eficaz na obtenção das informações” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986., p. 34).

Rosa e Arnoldi (2008ROSA, M. V. de F. P. do C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismo para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ), na obra A entrevista na pesquisa qualitativa, confirmam que a entrevista nem sempre foi vista da mesma forma entre pesquisadores para pesquisadores e nem entre período para período. Segundo as pesquisadoras referidas:

. Dos primórdios científicos até 1982, os autores seguiam uma linha em que prevalecia a mensuração, as definições operacionais, as variáveis, os testes hipotéticos e as análises estatísticas, nesta época, a Entrevista não se constituía de um instrumento privilegiado de investigação.

. Após 1982, priorizou-se enfatizar a descrição, a indução e a teoria que fundamentam o estudo das percepções pessoais. Passou-se a designar essa abordagem como sendo a Investigação Qualitativa. (...). Privilegiam, essencialmente, a compreensão do comportamento a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação. As estratégias mais representativas são: Observação Participante e a Entrevista em Profundidade. (ROSA; ARNOLDI, 2008ROSA, M. V. de F. P. do C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismo para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. , p. 18).

Para esse modelo de dispositivo, as questões formuladas previamente para uma realização de pesquisa não são recomendadas, mas se orientam para a compreensão dos fenômenos em sua máxima complexidade. Nesse sentido, acreditamos que esse dispositivo proporciona uma consistente contribuição científica da investigação desejada, com fidedignidade e validação, e, também, para o entrevistador que a considera conhecedor do mecanismo e do procedimento, no seu processo de desenvolvimento, em campo.

O uso do método entrevista torna-se a estratégia mais adequada para “construir” os dados descritivos na linguagem do próprio sujeito no ato da mesma. Em investigação científica, todo o contexto do processo é fundamental quando se deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados.

Para Duarte (2004DUARTE, R. Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar em Revista, Curitiba: Editora UFPR, n. 24, p. 213-225, 2004. , p. 215), as entrevistas,

se forem bem realizadas, elas permitirão ao pesquisador fazer uma espécie de mergulho em profundidade, coletando indícios dos modos como cada um daqueles sujeitos percebe e significa sua realidade e levantando informações consistentes que lhe permitam descrever e compreender a lógica que preside as relações que se estabelece no interior daquele grupo, o que, em geral, é mais difícil obter com outros instrumentos de coleta de dados.

A entrevista, na pesquisa qualitativa de cunho histórico-cultural, também é marcada por essa dimensão dos contextos interpretativos em que o sujeito está inserido. Ela não se reduz a uma troca de perguntas e de respostas previamente preparadas, mas é concebida como uma produção de linguagem, portanto, dialógica. Os sentidos são criados na interlocução e dependem da situação vivenciada, dos horizontes espaciais ocupados pelo pesquisador e pelo entrevistado. As enunciações acontecidas dependem da situação concreta em que elas se realizam, da relação que se estabelece entre os interlocutores, ou seja, depende de com quem se fala. Na entrevista é o sujeito que se expressa, mas sua voz carrega o tom de outras vozes, refletindo a realidade de seu grupo, gênero, etnia, classe, momento histórico e cultural.

Seguindo o apontado por Rosa e Arnoldi (2008ROSA, M. V. de F. P. do C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismo para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. , p. 19-20), a entrevista implica “microssituação”, cuja “definição por parte do entrevistador e do entrevistado dependerá de uma série de fatores psicossociais que afetam, favorável ou negativamente, o processo comunicativo”; e, “macrossituação”, “contextualização de escola local, social e cultural” em que se insere. A complexidade da aplicação de uma entrevista inicia-se, portanto, na análise inicial de todo um contexto externo, em que estarão envolvidos inevitavelmente tanto o entrevistado como o tema em estudo.

A entrevista é um mecanismo que favorece a aproximação do sujeito para recolher, de modo discursivo, o que ele pensa sobre um determinado fato. Ao falar sobre uma questão, já se coloca em evidência a própria questão para si, enquanto o sujeito fala, ele ouve o que diz. Ao falar para alguém, escuta-se o que é dito. Esse dispositivo proporciona com que os sons das palavras façam eco para o próprio sujeito que fala e, também, para o outro que as ouve.

Deve-se salientar que essa técnica não impede certos inconvenientes. Rosa e Arnoldi (2008ROSA, M. V. de F. P. do C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismo para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ) citam alguns, entre os quais o “fator tempo”, acrescento também o fator da autorização da realização da entrevista nas instituições escolares. Esses são os inconvenientes mais citados nesse dispositivo por consumir mais tempo do entrevistado; “na informação”, em entrevista, qualquer deslize afeta a validação dos dados obtidos, tais como a “falta ou excesso de questionamentos, excessivo direcionamento por parte do entrevistador; excesso de perspicácia de ambas as partes; ‘a confiança’; ‘a observação’; [...]” (ROSA; ARNOLDI, 2008ROSA, M. V. de F. P. do C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismo para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. , p. 88). Podemos apontar outro fator inconveniente que, segundo Ruquoy (1997RUQUOY, D. Situação de entrevista e estratégia do entrevistador. In: MAROY, C. et al. Práticas e métodos em investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva, 1997. p. 84-116., p. 85), “evocamos o paradoxo que consiste em interrogar um ser singular quando as ciências sociais, por exemplo, interessam-se pelo coletivo. [...]. O indivíduo é interrogado enquanto representante de um grupo social”. Esse ponto de vista deve estar constantemente presente na ideia de qualquer investigador que pretenda evitar o risco de “psicologizar” o trabalho ou, a partir de um ponto de vista, generalizar as opiniões.

Segundo Bogdan e Biklen (1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994., p. 67), na investigação qualitativa, “o objetivo principal do investigador é o de construir conhecimentos e não dar opinião sobre determinado contexto”. A finalidade dessa pesquisa é a capacidade de “gerar teoria, descrição ou compreensão”, busca-se compreender o processo mediante o qual os agentes entrevistados constroem significados sobre o tema a ser investigado.

Entre os autores que sistematizam sobre a prática da pesquisa qualitativa, é consenso que o papel do investigador “não consiste em modificar pontos de vista” do entrevistado; mas, antes, compreender os pontos de vista dos sujeitos e as razões que os levam assumi-las e praticá-las. (BOGDAN; BIKLEN, 1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994., p. 138). “Na investigação qualitativa em educação, o investigador comporta-se mais de acordo com o viajante que não planeja do que com aquele que o faz meticulosamente” (BOGDAN; BIKLEN, 1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994., p. 83).

Ao realizar a entrevista5 5 Sobre um exemplo de uma temática investigada, cf. o texto de Zanette (2013). , esse dispositivo pode atender satisfatoriamente por permitir a obtenção das informações contextualizadas, mesmo que estas não estejam explícitas nas argumentações das entrevistadas. Por serem dotadas de um estilo especialmente aberto, deve-se utilizar questão semiestruturas. Esse modelo também permite ao entrevistador solicitar ao agente entrevistado que explique o significado do que estava sendo dito no ato da fala. Para o entrevistador, a entrevista proporciona uma oportunidade de esclarecimento dos dizeres sobre o objeto investigado, possibilitando-lhe a inclusão de perguntas mais abertas, flexíveis e espontâneas conforme o que estava sendo analisado.

A confiabilidade torna-se um dos aspectos relevantes para se efetivar um trabalho de campo na coleta de dados. Por isso, o entrevistador tem que levar em consideração os seguintes dados ao realizar o trabalho de entrevista: danos sociais, sigilos e autorizações dos implicados no trabalho, conforme descreve o texto da epígrafe que inicia esta parte do texto.

Considerações finais

A partir deste trabalho empírico bibliográfico que se fundamentou nas diferentes fontes, as quais abordaram reflexões e problematizações das questões metodológicas, demonstrou-se que o pensamento educacional brasileiro passou por diferentes ciclos entre convergências e divergências temáticas epistemológicas e metodológicas, cujas configurações são historicamente comprovadas nas produções dos trabalhos científicos. Constatou-se também que a pesquisa na Educação, pelas abordagens qualitativas, desenvolveu-se conforme novas fundamentações teórico-epistemológicas foram sendo aplicadas nas investigações pedagógicas. Contudo, torna-se pertinente pontuar que o fio condutor dessa pesquisa não exclui outras perspectivas a serem problematizadas em trabalhos científicos.

Além desses dados básicos descritos em relação à pesquisa qualitativa e o dispositivo entrevista, como uma ferramenta investigativa para se construir dados no campo científico, conclui-se que o foco da pesquisa é a análise interpretativa e não a quantificação de dados. Portanto destaca-se o processo e não o resultado em si; busca-se uma compreensão contextualizada no sentido de que as atitudes e as situações liguem-se na formação, dando lugar para as representações das experiências e das palavras; e, no reconhecimento do impacto do processo de investigação sobre os que estão envolvidos no contexto da pesquisa, ou seja, o pesquisador exerce influência sobre a situação em que está investigando e é por ela também influenciado.

Sendo assim, reforça-se a necessidade e a importância em retornar o projeto de formação permanente de estudos, leituras e debates em torno da temática “pesquisa qualitativa” nos trabalhos de investigação que envolvem questões da existência humana.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais – Ministério da Educação e Cultura.
  • 2
    Seminário promovido, no dia 21/09/1983, pelo laboratório de Psicologia Social e Psicologia Educacional da PUC/SP e, posteriormente, em Brasília.
  • 3
    Cf. o trabalho do antropólogo Brandão (1984BRANDÃO, C. R. Quais as questões básicas, hoje, para um debate sobre pesquisa participante? Em Aberto, v. 3, n. 20, 1984., p. 14-18).
  • 4
    Sobre os eventos de interlocução entre Brasil e Alemanha, cf. o texto de Weller e Pfaff, 2011WELLER, W.; PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática . 2. ed. Petrópolis: Vozes , 2011..
  • 5
    Sobre um exemplo de uma temática investigada, cf. o texto de Zanette (2013ZANETTE, M. S. Espaço habitado e o espaço que nos habita: dizeres da espacialidade na fala das educadoras de creches. 2013. 267 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. 2013.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2016
  • Aceito
    03 Jan 2017
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