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Nacionalismo e regionalismo em dois inquéritos sobre o ensino superior brasileiro nos anos 1920 * * Este artigo apresenta resultados dos projetos de pesquisa “História e memórias das elites das escolas superiores de São Paulo” (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP) e “As elites republicanas de São Paulo: formação, imaginário e projetos educativos” (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq).

Nationalism and regionalism in two inquiries about Brazilian higher education in the 1920s

RESUMO

O artigo aborda dois inquéritos lançados nos anos 1920, organizados pelo jornal O Estado de S. Paulo (OESP), em 1926, e pela Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1929, que tratam do ensino superior brasileiro. Em ambos, os respondentes refletiram sobre a possibilidade de criação de universidades no Brasil, suas finalidades e as formas que deveriam tomar. Partindo da hipótese de que os usos das noções de “elite” indiciam os significados políticos associados à formação de centros de alta cultura, investigou-se a que correntes de pensamento político se atam aos diagnósticos e às proposições formulados nos respectivos inquéritos. Concluiu-se que o inquérito da Associação Brasileira de Educação foi orientado pelo pensamento nacionalista de Alberto Torres e vislumbrou a criação de uma universidade nacional, enquanto o inquérito de 1926, na parte dedicada ao ensino secundário e superior, baseou-se no regionalismo de Júlio de Mesquita Filho, projetando a fundação de uma universidade paulista.

Palavras-chave:
Inquérito educacional; Educação superior; Pensamento político; Alberto Torres; Júlio de Mesquita Filho.

ABSTRACT

The article deals with two inquiries launched in the 1920s, organized by the journal O Estado de S. Paulo (1926) and the Brazilian Association of Education (1928), about higher education in the country. In both, the respondents reflected on the possibility of creating universities in Brazil, what would be their purposes and the formats that they should take. Based on the hypothesis that the uses of notions of “elite” indicate the political meanings associated with the formation of centers of high culture, the ties between the currents of political thought and the diagnoses and propositions formulated in the respective inquiries were investigated. The conclusion was that the inquiry of the Brazilian Association of Education was guided by the nationalist ideas of Alberto Torres and foresaw the creation of a national university, while the survey of 1926, in the section devoted to secondary and higher education, was based on the regionalism of Júlio de Mesquita Filho, designing the foundation of a São Paulo university.

Keywords:
Educational survey; Higher education; Political thought; Alberto Torres; Júlio de Mesquita Filho.

Em busca de recuperar a “tradição centralizadora e intervencionista por parte do Estado, que a República interrompera”, o Governo Provisório, instituído em 1930, adotou medidas para “incrementar uma acentuada e crescente centralização nos mais diferentes setores da sociedade” (FÁVERO, 2006FÁVERO, M. L. A. A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968. Educar, Curitiba, n. 28, p. 17-36, 2006., p. 23). No que tange à educação, Getúlio Vargas criou o Ministério da Educação e Saúde Pública (1930) e o entregou a Francisco Campos, que implantou reformas de “acentuada tônica centralizadora [...], com ênfase na formação de elite e na capacitação para o trabalho” nos ensinos secundário e superior (FÁVERO, 2006FÁVERO, M. L. A. A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968. Educar, Curitiba, n. 28, p. 17-36, 2006., p. 23). Na série de decretos-lei deste mandato, o ensino superior foi contemplado no Estatuto das Universidades Brasileiras (decreto-lei nº 19.851/31) e no decreto que dava nova organização à Universidade do Rio de Janeiro (decreto nº 19.852/31). Para Schwartzman (2001SCHWARTZMAN, S. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Tradução de Sérgio Bath e Oswaldo Biato. Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, 2001. , p. 10), as razões do projeto universitário indicam a intenção do governo provisório de “chegar a uma visão monolítica, coerente e oficial do que deveria ser uma universidade, em sintonia com o novo regime político”. Ao delinear os objetivos da reforma, Campos teria revelado sua percepção dos ideais da organização universitária que na época eram populares no Brasil:

[uma] instituição administrativa e educacional que une toda a educação superior sob uma única liderança intelectual e técnica, seja o seu ensino de natureza pragmática e profissional ou puramente científica, sem aplicação imediata, com o duplo objetivo de proporcionar à elite da nação um treinamento técnico, e criando ao mesmo tempo um clima propício para que os talentos puristas e especulativos persigam a sua meta, indispensável para o crescimento cultural da nação - a investigação e a ciência pura. (CAMPOS apud SCHWARTZMAN, 2001SCHWARTZMAN, S. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Tradução de Sérgio Bath e Oswaldo Biato. Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, 2001. , p. 10, grifos meus).

No cerne dos consensos em torno da universidade a ser criada, entre governo e intelectuais residia a certeza, alimentada nos debates dos anos de 1920, de que a ela caberia a função de formar uma nova elite segundo os ditames da modernidade. Isso abarcava saberes técnicos, conhecimentos científicos e uma alta estatura cultural e moral, incluindo-se aí o sentimento de nacionalidade. As antigas elites, formadas nas instituições superiores de cunho profissional e técnico, não teriam se ocupado de superar os males nacionais do atraso, da ignorância e da falta de patriotismo. A convergência, em torno da necessidade da reconstrução do povo mediante renovação educacional, abarcava, ainda, os intelectuais católicos, mesmo que ideias como “revolução” e “modernidade” fossem antagônicas a seus valores fundamentais, nomeadamente “a ordem social, a hierarquia, a autoridade religiosa, a educação orientada por princípios religiosos e controlada pela Igreja” (SCHWARTZMAN, 2001SCHWARTZMAN, S. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Tradução de Sérgio Bath e Oswaldo Biato. Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, 2001. , p. 3).

No ambiente intelectual, que antecedeu as medidas legais organizadoras da universidade brasileira e a constituição das primeiras instituições orientadas por esses dispositivos, o debate sobre a universidade se estampava na imprensa e circulava em conferências, palestras e debates induzidos e fomentados por entidades da sociedade civil. Entre seus vestígios figuram as respostas dos homens convocados a refletir sobre o problema do ensino superior em dois inquéritos organizados e publicados no fim da década de 1920, respectivamente, por O Estado de S. Paulo (OESP), em 1926, e pela Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1929. Ao versarem sobre o ensino superior, seus diagnósticos, proposições e recomendações revelam significados indicativos dos pilares da cultura política que assentam suas iniciativas e seu pensamento educacional. Nas elucubrações, a relação entre educação e política é declarada, como na resposta de Gilberto Amado ao inquérito da ABE (1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 353): “a questão de que se trata [o problema do ensino superior], como todas que se referem à preparação do Brasil, vincula-se à questão da direção política.”

O objetivo deste artigo é identificar a que pontos de vista e crenças políticas se prendem os diagnósticos e proposições de reforma do ensino superior e criação de universidades, rearranjados, já nos anos 1930, em diplomas legais do governo provisório e nas formas específicas dos projetos das primeiras universidades erigidas sob suas diretrizes. Realizou-se uma leitura das teses e dos depoimentos, promovendo um inventário dos significados das noções de “elite” e relacionando-os aos temas momentosos da cultura política em voga. O inquérito foi pensado como “forma de verdade” e a entrevista literária, gênero adotado no início do século XX pela imprensa brasileira, como forma de ação do repertório dos intelectuais. Por seu turno, as instituições promotoras foram posicionadas como agentes dessas modalidades de ação e do parâmetro ideológico que inscrevem, seja na seleção dos depoentes, seja nos limites que esta escolha, em contrapartida, se lhes impinge.

ABE e OESP foram importantes protagonistas do agendamento de debates em torno da educação brasileira nos anos de 1920: a ABE, entidade civil sem fins lucrativos, sediada no Rio de Janeiro, congregava, pela “causa cívica” da educação, engenheiros, médicos, advogados, militares, padres e professores que, repartidos em seções específicas, promoviam palestras, conferências, inquéritos e publicações, tendo como finalidades instruir e aconselhar a sociedade e os poderes quanto aos rumos e às decisões a tomar para o bem da educação nacional (CARVALHO, 1998CARVALHO, M. M. C. Molde Nacional e Fôrma Cívica: higiene moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). Bragança Paulista: Edusf, 1998.). Por sua vez, O Estado de S. Paulo, diário em cujas colunas escreviam renomados homens de saber, gozava da fama de ter sempre lutado “desinteressadamente” pela melhoria da instrução pública no estado e no país.

O inquérito como forma de saber e forma de ação

O inquérito é uma das modernas formas de produção da verdade. Foucault (2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005.) localiza sua origem como prática judiciária na Idade Média, quando o antigo modo de resolução de litígios - calcado ora no valor social do fiador, ora nas fórmulas verbais, provas mágico-religiosas, ou físicas - deu lugar a práticas em que o testemunho ganha importância na aferição da verdade. Ligado à gestão administrativa, o inquérito se caracterizava pelo exercício do poder do soberano mediante o questionamento, pela interlocução com “pessoas consideradas capazes de saber devido à situação, idade, riqueza, notabilidade etc.” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005., p. 77) e pela consulta sem uso de violência para a tomada de decisões nos litígios. Como sistema racional de estabelecimento da verdade, a forma jurídica difundiu-se para outros domínios, que deram à luz uma forma regular de administração dos estados e transmissão do poder político e que originaram ciências como a Economia Política e a Estatística. Difundiu-se, igualmente, no domínio do conhecimento em investigações mediante testemunhos, tendo-se tornado uma forma de saber-poder que, “por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir.” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005., p. 78). No final do século XIX, o inquérito tornou-se instrumento da “cultura da investigação”, manifesta na proliferação de pesquisas e observações que respondiam ao sentimento de incompreensão das mutações sociais, suscitando um movimento analítico que desejava reordenar uma sociedade opaca (KALIFA apud BETING, 2014BETING, G. Au fil de la plume. Du feuilleton à la chronique, une histoire croisée de la presse entre France et Brésil (1830-1930) à partir des parcours de ses journalistes et écrivains. 2014. Thèse de doctorat en Sciences de l’information et de la communication. Paris: Université Panthéon-Assas, 2014.). Em sua forma textual, os inquéritos que surgem então na imprensa francesa oferecem aos leitores uma “pedagogia da atualidade”, que tenciona sensibilizá-los para as questões sociais (LYON-CAEN apud BETING, 2014BETING, G. Au fil de la plume. Du feuilleton à la chronique, une histoire croisée de la presse entre France et Brésil (1830-1930) à partir des parcours de ses journalistes et écrivains. 2014. Thèse de doctorat en Sciences de l’information et de la communication. Paris: Université Panthéon-Assas, 2014., p. 115), tornando visíveis realidades como o submundo urbano ou a vida rural.

Na imprensa brasileira, foi João do Rio o primeiro a tomar o exemplo dos jornalistas franceses e lançar-se às ruas da cidade do Rio de Janeiro da Belle Époque para revelar seus subterrâneos sociais. Em 1904, publicou em Gazeta de Notícias duas dezenas de reportagens sobre as religiões na cidade, produto de um inquérito que, interrogando gente comum, descreve um quadro diverso de crenças para além do predomínio católico. Segundo Beting (2014BETING, G. Au fil de la plume. Du feuilleton à la chronique, une histoire croisée de la presse entre France et Brésil (1830-1930) à partir des parcours de ses journalistes et écrivains. 2014. Thèse de doctorat en Sciences de l’information et de la communication. Paris: Université Panthéon-Assas, 2014.), foi inspirado em Jules Huret (1893-1914), inaugurador da “moda dos inquéritos literários” (BRANDÃO, 2002BRANDÃO, G. V. Resenhando. O momento literário. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 6, p. 121-139, 2002., p. 3), que João do Rio aclimatou a “entrevista literária”, modalidade de inquérito que, respondida por homens de letras, tratava da “vida cultural” e do “meio literário”. Em março de 1905, a Gazeta de Notícias passou a publicar uma série de entrevistas, com trinta e seis escritores, mais tarde publicadas no livro O momento literário (1908). Trata-se de um mesmo questionário apresentado a todos os respondentes, entrevistados pessoalmente ou por carta, a quem, com perguntas diretas, João do Rio instigava a manifestar opiniões, gostos e visões sobre o meio literário do qual faziam parte.

Tanto quanto o movimento de absorção seletiva de esquemas intelectuais nos projetos e experiências dos países estrangeiros de referência, o modelo de “entrevista literária” veio a se tornar uma das “formas de ação” preferidas no “repertório” dos homens de letras brasileiros ao longo da primeira metade do século XX (ALONSO, 2002ALONSO, A. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz & Terra, 2002.). Trata-se de um modo de conhecer a realidade educacional e seus problemas, tanto quanto de desenhar os contornos do próprio campo intelectual, uma vez que a escolha dos entrevistados indica ao leitor que são os sujeitos mais autorizados a opinar sobre ele. Em torno de temas educacionais, os anos 1920 são pródigos em iniciativas desta natureza: além dos abordados neste artigo, há uma série de inquéritos promovidos pela ABE sobre os diferentes níveis de ensino; o Inquérito sobre o que os moços leem (1927), promovido por Lourenço Filho; o Inquérito sobre o ensino universitário (1929), pelo Rotary Club de São Paulo.

O problema universitário brasileiro: inquérito da ABE 2 2 Em função da lógica argumentativa do artigo, optei por subverter a ordem cronológica de lançamento dos inquéritos. Desse modo, abordo primeiramente a iniciativa da ABE.

Em sua única edição, o inquérito O problema universitário brasileiro teve quinhentas cópias, custeadas pelos próprios autores, para os quais foram distribuídos os volumes segundo cotas de participação no rateio. Os recursos da venda dos exemplares restantes seriam revertidos para a Seção de Ensino Técnico e Superior da ABE, em caráter benemérito, o que expressa o sentido de missão cívica da entidade (CARVALHO, 1998CARVALHO, M. M. C. Molde Nacional e Fôrma Cívica: higiene moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). Bragança Paulista: Edusf, 1998.). O volume, que se abre com as conclusões da 2ª Conferência Nacional de Educação, de 1928, em Belo Horizonte, traz, além de um conjunto variado de documentos, as sete teses da Comissão Organizadora e as respostas a sete questões sobre o tipo e a função da universidade; sua missão nacionalizadora; o consórcio dos estados e do governo federal em sua organização; a relação professor-aluno, o livro texto; a situação financeira do professorado universitário. Os respondentes lidaram com o questionário de modo livre, produzindo textos assimétricos que ora abordam o conjunto, ora dissertam sobre itens, ora anexam uma conferência que já houvessem feito. Apenas Moreira Guimarães detém-se em todas as perguntas na exata sequência. Para este artigo, as respostas mais relevantes se relacionam à pergunta: “Não é oportuno realizar, dentro do regime universitário, uma obra conscientemente nacionalizadora do espírito da nossa mocidade?”.

Por ter sido ambientada nas conferências da ABE, a questão do ensino superior recebe da entidade o teor cívico-nacionalista que, segundo Carvalho (1998CARVALHO, M. M. C. Molde Nacional e Fôrma Cívica: higiene moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação (1924-1931). Bragança Paulista: Edusf, 1998., p. 309), foi atribuído às conferências por Fernando de Magalhães. Em discurso proferido na II Conferência, o médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (apud SILVA, 2004SILVA, A. P. O. (Org.). Páginas da história: notícias da II Conferência Nacional de Educação da ABE. Belo Horizonte, 4 a 11 de novembro de 1928. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2004. , p. 87) não deixa dúvidas sobre a finalidade política da ABE: “Ela se propõe derramar o ensino para que a Nação possa afastar das cumeadas aqueles que resolvem pelo conchavo dos interesses os altos problemas nacionais, os que malbaratam no desperdício para tiranizar na tributação”. Nas teses e respostas, os problemas do ensino superior brasileiro são examinados por essa perspectiva e apontados como fatores concorrentes para o “afrouxamento da unidade nacional” (ABE, 1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 26). É evidente que o momento de circulação do inquérito despertava entre os intelectuais bastante angústia com relação ao futuro. Afinal, de julho de 1924 a dezembro de 1926, o Brasil estivera sob estado de sítio: o movimento tenentista, contra a presidência de Arthur Bernardes (1922-1926), deflagrara em São Paulo a Revolução de 1924, parte dele formou, em 1925, a Coluna Prestes, em marchas contra as oligarquias; de uma grande cisão no Partido Republicano de São Paulo criara-se o Partido Democrático (1926); e o Partido Comunista Brasileiro fora novamente posto na ilegalidade (1927).

A crise do sistema representativo era um incômodo generalizado nos círculos externos aos meios “exclusivos, relativamente ricos e substancialmente educados” das elites políticas de São Paulo e Minas Gerais e dos republicanos gaúchos, aliados ao Exército (LOVE, 2000LOVE, J. L. A república brasileira: federalismo e regionalismo (1889-1945). In: MOTA, C. G. (Org.) Viagem incompleta: a grande transição. São Paulo: SENAC , 2000. p. 121-160., p. 139). A representatividade também não incomodava as famílias que exerciam ao Norte uma política “vertical, paternalista, clientelista e de domínio da parentela” (LOVE, 2000, p. 142). A hipertrofia do poder executivo, somada ao domínio dos partidos regionais oligárquicos e à prática eleitoral de apoio mútuo dos protagonistas políticos na política dos governadores, reforçava a presença das elites locais no plano nacional (TRINDADE, 2000TRINDADE, H. Brasil em perspectiva: conservadorismo liberal e democracia bloqueada. In: MOTA, C. G. (Org.) Viagem incompleta: a grande transição. São Paulo: SENAC , 2000. p. 349-380., p. 358), impossibilitava à oposição de ascender aos cargos de mando e tornava inviável “a institucionalização de formas de participação política e social oriundas da sociedade civil” (TRINDADE, 2000, p. 356). Restrito à parcela alfabetizada masculina da população, concentrada no Centro-Sul, o voto sustentava, com índices inferiores a 6%, uma república de poucos.

A tônica dos discursos que respondem ao inquérito sugere a indisposição com a política, na qual falta o sentimento de unidade, tanto quanto lideranças capazes de persuasão das frações de elite em conflito, sem falar das massas. Leitão da Cunha (apud ABE, 1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 26), sobre a falta de organização do ensino no Brasil, afirma que só a uniformidade de instrução daria alicerces ao “patriotismo verdadeiro e desinteressado”. A chamada “geração de 1870”, superando o fatalismo das tradições explicativas calcadas na inviabilidade da raça mestiça, ensinara que a crise do sistema representativo se devia mais ao caráter da elite do que ao do povo (ALONSO, 2002ALONSO, A. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz & Terra, 2002.), mas persistia a crença de que a construção de um Estado nacional deveria preceder à construção de um Estado liberal (TRINDADE, 2000TRINDADE, H. Brasil em perspectiva: conservadorismo liberal e democracia bloqueada. In: MOTA, C. G. (Org.) Viagem incompleta: a grande transição. São Paulo: SENAC , 2000. p. 349-380., p. 357).

Uma das conclusões de Moscoso (apud ABE, 1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 39) sobre o ensino superior no Brasil, na II Conferência, coaduna com a orientação geral no que toca à nacionalização da cultura: “as universidades deverão cuidar de desenvolver, com a maior documentação possível, os estudos referentes ao nosso País, animando e nutrindo, assim, a unidade nacional.” Dada a finalidade precípua da universidade nas teses de Moscoso, de produtora de ciência a cultivadora de conhecimentos sobre o Brasil, seriam os professores da universidade os gerentes da “usina de nacionalismo” em que ela haveria de se transformar. A ela caberia formar uma nova elite dirigente, dotada de consciência nacional e patriotismo, para pastorear as massas em prol do país, posto que a formação da “mentalidade coletiva [...] não depende da massa popular, mas das elites”, como “espíritos privilegiados [...], orientados por princípios que respeitem os verdadeiros interesses morais e econômicos dos povos.” (ABE, 1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 370).

A ideia de fazer da universidade um instrumento para o conhecimento do país e de inoculação do nacionalismo é atribuída pelos respondentes a Alberto Torres (1865-1917), bacharel, advogado, político e escritor. Publicou, em 1914, o livro A organização nacional, em que afirma ser o Brasil “um país sem direção política e sem orientação social e econômica” (TORRES, 2002TORRES, A. A organização nacional. 3. ed. digitalizada. ebooksBrasil, 2002, p. 62) e conclui que o povo, devido aos percalços de formação e de evolução, mas não à inferioridade racial, não era capaz de dirigir as reformas de que a sociedade carecia. O Estado, conduzido por líderes representativos dos interesses nacionais e instruídos no conhecimento da história e da geografia do Brasil (TORRES, 2002, p. 62-63), deveria fazê-lo. Torres propõe como alternativa à Constituição de 1891, “roupagem de empréstimo, vestindo instituições prematuras” (TORRES, 2002TORRES, A. A organização nacional. 3. ed. digitalizada. ebooksBrasil, 2002, p. 8), um projeto “de cunho nacionalista, preocupado em oferecer bases para a homogeneidade da nacionalidade brasileira, sem exaltação de sentimentos de identidade étnica ou localista.” (LEMOS, 2001LEMOS, R. Alberto Torres. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. [verbete]., p. 9).

De acordo com Lemos (2001LEMOS, R. Alberto Torres. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. [verbete]., p. 9), o pensamento de Alberto Torres, falecido em 1917, “despertou adesões limitadas enquanto esteve vivo, mas nas décadas de 1920 e 1930 foi incorporado por correntes intelectuais situadas em posições variadas no espectro político nacional”. Ao mesmo tempo, registra Kuntz (2001KUNTZ, R. Alberto Torres: a organização nacional. In: MOTA, L. D. (Org.). Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2001. Vol. 2. , p. 261), em vários aspectos sua obra reflete ideias comuns a políticos e escritores de seu tempo. É dele a máxima de que “um país precisa desenvolver suas forças intelectuais, com o mesmo esmero com que deve desenvolver suas forças econômicas”, com a qual concordam os membros da ABE. De fato, ele é a personalidade mais citada no conjunto do inquérito: Roquette Pinto (apud ABE, 1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 16), preocupado com a nacionalização das riquezas e da cultura, apoia-se em seu “luminoso conceito” para afirmar que “muitos problemas só poderão encontrar solução quando o Brasil conseguir a organização nacional dos seus valores”; nas teses de Vicente Licínio Cardoso e Levi Carneiro, é invocado como um grande sociólogo, que teria procurado equacionar em seu projeto de constituição as responsabilidades dos poderes federais e estaduais em instrução. Aparece na resposta de Gilberto Amado (apud ABE, 1929, p. 353) como um crítico do vício brasileiro de promover “reformas pelas cimalhas”, ou seja, por leis que não se escoram na “sensibilidade do país”. A rejeição à cópia de quaisquer soluções estranhas à terra e a gente brasileira; a visão negativa do “federalismo nominal intransigente” (TORRES, 2002TORRES, A. A organização nacional. 3. ed. digitalizada. ebooksBrasil, 2002, p. 29), que minava a soberania da União; a defesa da unidade nacional contra o “estadualismo” desagregador; a crítica ao liberalismo contemporâneo, que eliminava as incumbências positivas do Estado, são ideias que entremeiam o pensamento dos respondentes ao inquérito.

Na tese de Cardoso (apud ABE, 1929ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema universitário brasileiro: inquérito promovido pela Secção de Ensino Technico e Superior da Associação Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1929., p. 20) - a que maior impacto teve sobre os depoentes, dado ser a mais citada e elogiada nas respostas -, Torres aparece como “quem melhor acreditou nas possibilidades egregiamente criadoras e renovadoras da universidade brasileira”. O Brasil não teria formado o “idealismo orgânico” que sustentasse seu “programa de vida”, em razão de ainda não ter forjado o “ambiente político” para a “eclosão do estadista resumo, do integrador das necessidades de seu meio, do seu pró-homem transformador de energias, de seu grande educador nacional em suma” (apud ABE, 1929, p. 25). À universidade caberia criar esse ambiente, fazer o aluno “habituar-se desde cedo a ‘pensar o Brasil’” (apud ABE, 1929, p. 19-20). Para Cardoso (apud ABE, 1929, p. 23), a “consciência brasílica” só estaria formada “quando as nossas elites sentirem em plenitude as responsabilidades de nossos destinos históricos” e, assim, realizarem a “nacionalização da nossa cultura”. Como afirma Alberto Torres (2002TORRES, A. A organização nacional. 3. ed. digitalizada. ebooksBrasil, 2002, p. 118), a democracia representativa surgiria da ação dos “homens que pensam, que creem na eficácia das ideias e têm coragem serena e firme de suas opiniões”.

O elogio dos leaders da república estadunidense é outro elemento presente nas falas, a ressoar a obra de Alberto Torres. Em A organização nacional (TORRES, 2002TORRES, A. A organização nacional. 3. ed. digitalizada. ebooksBrasil, 2002, p. 56-57), o jurista afirma que, independentemente da forma do governo, o poder desliza para as mãos das “personalidades dominantes, os eleitos desse sufrágio tácito, que faz brotar os proto-homens do tempo [...] sobre a haste do valor pessoal”. Em nenhum outro lugar como nos Estados Unidos, prossegue, a proeminência de uma “aristocracia mental” (TORRES, 2002, p. 56), sobre os destinos de um povo logrou tão bem assentar, desde os primeiros dias da constituição do país, os princípios mais longevos de sua organização social e política. Em Torres, fortemente imbuído da doutrina positivista, a capacidade de liderança política associa-se diretamente à inteligência e à racionalidade. Não se trata, porém, da cultura artificial e abstrata trazida ao Brasil pelos cientistas, literatos e juristas coimbrões, mas de uma inteligência prática e sensível aos “problemas da terra, da sociedade, da povoação, da viação da unidade econômica e social...” (TORRES, 2002, p. 59). Torres lamenta o fato de que, no Brasil, o povo constitui “uma imensa massa de analfabetos”, enquanto “o número de intelectuais é avultado e notável a evolução de seu preparo”, mas, “no intelectualismo, a forma erudita e ornamental predomina sobre a forma intensa e raciocinante” (TORRES, 2002, p. 114). Esta camada intelectual é inócua para a organização nacional por não existir um centro intelectual ativo que opere a formação das correntes de opinião, indispensáveis para o regime representativo (TORRES, 2002, p. 115).

O inquérito de 1926, em O Estado de S. Paulo

Considerado como parte do projeto educacional de Fernando de Azevedo (SOARES, 1978SOARES, M. A educação preventiva: Fernando de Azevedo e o inquérito sobre instrução pública em São Paulo, 1926. 1978. Dissertação (Mestrado em Educação) - Instituto de Estudos Avançados em Educação, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. 1978.), movimento de crítica e repúdio à reforma de 1925 em São Paulo (ANTUNHA, 1976ANTUNHA, H. A instrução pública no estado de São Paulo: a reforma de 1920. Coleção Estudos e Documentos. São Paulo: FEUSP, 1976.; NERY, 1999NERY, A. C. B. A Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional (1922-1931). 1999. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 1999.), retomada dos debates em torno da reforma de 1920 (MEDEIROS, 2007MEDEIROS, V. As políticas educacionais na História: em pauta o Inquérito de 1926 e a Reforma do Ensino Paulista de 1920. In: XAVIER, M. E. S. P. (Org.). Questões de educação escolar: história, políticas e práticas. Campinas: Alínea, 2007. p. 19-32.), diagnóstico sobre os problemas do ensino secundário (BONTEMPI JR., 2015BONTEMPI JR., B. Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da História e Filosofia da Educação como disciplina acadêmica. Uberlândia: Edufu, 2015.), o inquérito encetado por O Estado de S. Paulo sobre o ensino público em São Paulo e publicado de junho a dezembro de 1926 conta com fortuna crítica considerável. De suas três partes (ensino primário e normal, ensino técnico e profissional e ensino secundário e superior), a primeira é a mais tratada. Uma generalização indevida poderia induzir ao entendimento de que a motivação de todo o inquérito seria rebater o caráter retrógrado e revanchista da Reforma de 1925 (VIDAL, 2010VIDAL, D. Os intelectuais e as reformas. In: FARIA FILHO, L.; NASCIMENTO, C. V.; SANTOS, M. L. (Orgs.). Reformas educacionais no Brasil: democratização e qualidade da escola pública. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. p. 61-80.), uma vez que este é o tom da primeira parte, mas isto não explicaria o interesse de OESP em conhecer a opinião de notáveis sobre o ensino superior, grau de que não tratara aquela reforma. Sobre este a motivação se formula um ano antes, em A crise nacional (1925), de Júlio de Mesquita Filho, mentor do inquérito que entregou à condução de Azevedo: o desejo de criar uma universidade em São Paulo. Como aponta Pontes (2010PONTES, J. A. V. Júlio de Mesquita Filho. Brasília: MEC/Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010. (Coleção Educadores), p. 16), esta iniciativa integra a batalha de Mesquita Filho pela criação da Universidade de São Paulo, ainda que, segundo o autor, ela própria estime “sua fundação como parte de acordos feitos depois da Revolução de 1932 [...] mas ignor[e] esforços dos anos 1920, notadamente o inquérito promovido por O Estado de S. Paulo e dirigido por Fernando de Azevedo [...]”.

O protagonismo de Mesquita Filho, no inquérito de 1926, tem sido minimizado, em favor de supostas motivações e “redes de sociabilidade” de Azevedo (MEDEIROS, 2007MEDEIROS, V. As políticas educacionais na História: em pauta o Inquérito de 1926 e a Reforma do Ensino Paulista de 1920. In: XAVIER, M. E. S. P. (Org.). Questões de educação escolar: história, políticas e práticas. Campinas: Alínea, 2007. p. 19-32.; VIDAL, 2010VIDAL, D. Os intelectuais e as reformas. In: FARIA FILHO, L.; NASCIMENTO, C. V.; SANTOS, M. L. (Orgs.). Reformas educacionais no Brasil: democratização e qualidade da escola pública. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. p. 61-80.). Entretanto, a iniciativa de Mesquita Filho tem seu precedente no bem-sucedido inquérito que em 1914 realizara em OESP sobre o estado da instrução pública em São Paulo (BONTEMPI JR., 2011BONTEMPI JR., B. Os expertos e o jornalista na formação da opinião pública sobre educação: o caso do inquérito de 1914. In: LEITE, J. L.; ALVES, C. (Org.). Intelectuais e História da Educação no Brasil: poder, cultura e políticas. 1. ed. Vitória: EDUFES/SBHE, 2011, v. 10, p. 141-164.). Diferentemente de Júlio Mesquita, pai, desta vez a condução foi delegada a outrem. A confiança da empresa depositou-se em Fernando de Azevedo, assim como no inquérito anteriormente feito sobre a arquitetura, assunto desconhecido pelo colaborador (AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 25). Analisando retrospectivamente, as escusas de Azevedo, na primeira edição do livro que reúne o inquérito, podem parecer retóricas, dado o seu brilho no campo educacional a partir da virada dos anos 1920; mas o exame de sua biografia autoriza a crer na confissão de que “nesses domínios [da educação e do ensino], os meus conhecimentos não ultrapassavam ainda as fronteiras de duas especialidades: da educação física a que me dedicara durante alguns anos, desde 1916, e da literatura e língua latina de que exercia o magistério na antiga Escola Normal de São Paulo” (AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 25). Antes de ter realizado o inquérito de 1926, Azevedo nada havia realizado de notável na educação, tampouco tinha sobre este campo especial proeminência.

Em A crise nacional: reflexões em torno de uma data (1925), escrito para a edição de 15 de novembro de 1925 de O Estado de S. Paulo, Mesquita Filho (1925MESQUITA FILHO, J. de. A crise nacional: reflexões em torno de uma data. São Paulo: Seção de obras de O Estado de S. Paulo, 1925., p. 3) pretendeu “elucidar o problema da adaptação definitiva da democracia no Brasil”, perfazendo um diagnóstico negativo do regime republicano, sustentado nos costumes políticos corrompidos, na hipertrofia do poder executivo e em uma opinião pública débil. Nesse texto, Mesquita Filho, ainda que seus biógrafos o escondam ou reduzam, atribui a decadência dos costumes políticos brasileiros ao contato social com o elemento africano “oprimido e aviltado, sem uma sombra sequer de sentimento cívico” a partir da abolição, quando “entrou a circular no sistema arterial do nosso organismo político a massa impura e formidável de dois milhões de negros, subitamente investidos das prerrogativas constitucionais” (1925, p. 9-13). Ao defendê-lo, Mesquita Filho opõe-se a Alberto Torres, sujeito indeterminado de suas ponderações aos críticos da Carta de 1891 e do federalismo que ela consagra:

Esquecendo a realidade desses fatos, muita gente pretende ver na forma republicana por que foi substituído o regime parlamentar a causa determinadora do rebaixamento do nível intelectual do parlamento brasileiro, quando em nada influiu, nem podia influir nos acontecimentos que vão de 13 de Maio de 88 aos nossos dias, a promulgação do pacto de 24 de Fevereiro [...] Sem a descentralização federativa, em torno de um poder central fortemente aparelhado, teríamos assistido no Brasil, nivelado desde 88 às condições sociais da grande maioria das nações sul-americanas, aquelas explosões de caudilhismo endêmico, que tanto descrédito trouxeram às instituições democráticas neste continente. (MESQUITA FILHO, 1925MESQUITA FILHO, J. de. A crise nacional: reflexões em torno de uma data. São Paulo: Seção de obras de O Estado de S. Paulo, 1925., p. 17-19).

Para Mesquita Filho, as classes cultas do país padeciam de “insuficiência intelectual”, em nada semelhante aos países em que “o político, o jornalista e todos os que direta ou indiretamente intervêm na direção dos negócios públicos, atuam no terreno das realizações práticas sob as vistas vigilantes das elites intelectuais...” (1925, p. 76-77). Na ausência de um centro de cultura superior no Brasil, imperava uma “anarquia mental” favorável à intervenção de agitadores e oligarcas, enquanto as elites intelectuais se encontravam afastadas da política, refugiadas nas carreiras liberais, na indústria e na agricultura. A universidade proveria os quadros capazes de reformar a mentalidade média dos jovens no ensino secundário, assim como reuniria os melhores espíritos para “formular o problema brasileiro”, refundindo sua cultura em altos estudos. No sonho universitário de Mesquita Filho, fincado na interpretação regionalista do “problema brasileiro”, a ação dessas elites iria se refletir na mentalidade popular, que poderia reagir à tirania dos poderosos. Aos estados economicamente mais desenvolvidos, dentre eles São Paulo, cuja vida política pregressa indicava os traços de uma raça superior, caberia liderar o projeto de nacionalidade. A universidade só poderia surgir, como centro de alta cultura, onde houvesse condições de progresso para a formação de uma “opinião pública” esclarecida. Terminada esta construção, o voto secreto seria concedido “àqueles Estados da União cujo desenvolvimento permita a sua prática”, permitindo a reversão da decadência moral e política da república brasileira.

Fernando de Azevedo abre a terceira parte do inquérito articulando as problemáticas que articulam os ensinos secundário e superior. A interpretação que faz das finalidades de um e de outro converge para as teses políticas de seu mentor. Para Azevedo (1957, p. 189), “não há democracias que possam subsistir sem uma classe média, cada vez mais larga e difundida, empregada como elemento assimilador e propagador de ideias e de opinião”. A incumbência de “criar e desenvolver essa cultura geral e desinteressada” caberia ao ensino secundário; por sua vez, seria tarefa das universidades criar para os ginásios e os colégios um corpo de professores, “educados sob as sugestões de um mesmo ambiente, segundo uma orientação uniforme e animados por ideias comuns” (AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 190). Além de fazer do corpo de professores um “organismo de sangue vivo e constantemente renovado”, os centros de alta cultura e de pesquisas científicas teriam como função preparar e aperfeiçoar as classes dirigentes (AZEVEDO, 1957 p. 191). Daí os pontos de contato: a universidade viria resolver, pela formação de professores, a formação da cultura média; na ponta mais avançada, produziria o progresso do saber humano, substância da opinião pública que sustentaria as democracias.

As perguntas de número 9 a 11, referentes à universidade, indicam o espectro das ideias políticas na órbita de Mesquita Filho, a visão regionalista projetada à organização da cultura nacional e o perfil desejável da universidade. Trazem as assertivas da formação de elites intelectuais como um problema capital das democracias; da possibilidade de criar, em São Paulo, uma universidade de espírito moderno; do modelo universitário ideal, como integrador em sistema único de faculdades profissionais, institutos técnicos de especialização e institutos de altos estudos. Responderam a esta parte do inquérito Rui de Paula Souza, professor da Escola Normal; Mario de Souza Lima, professor do Ginásio da Capital; Ovídio Pires de Campos e Raul Briquet, professores da Faculdade de Medicina de São Paulo; Teodoro Ramos, professor da Escola Politécnica de São Paulo; Reinaldo Porchat, professor da Faculdade de Direito de São Paulo; Artur Neiva, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; Amadeu Amaral, jornalista, único que não havia exercido a docência.

Rui de Paula Souza (apud AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 199) diz desejar a criação da “Universidade de São Paulo”, para a qual seria preciso contar com uma Faculdade de Letras e Filosofia, “que teria a ação mais profunda na formação e no desenvolvimento da cultura nacional”; acredita que o ensino superior deveria conservar seu aspecto técnico, porém, adquirindo o caráter de cultura desinteressada, de alta cultura científica. Teodoro Ramos (apud AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 246) concorda, acrescentando que há dois anos, em discurso de paraninfo na Escola Politécnica, defendera a criação de uma universidade na qual, “a par da manutenção de numerosos cursos visando a formação de profissionais capazes nas especialidades respectivas, instituísse um ensino de alto cunho científico para o grupo de selecionados que se destinassem ao professorado e às pesquisas originais”. Semelhante é a posição de Raul Briquet (apud AZEVEDO, 1957, p. 240), para quem as faculdades de ciências e de filosofia e letras viriam “coligir, sistematizar e divulgar a ciência brasileira”. Mário de Souza Lima (apud AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 208) os acompanha, ao afirmar que a criação da universidade, com uma Faculdade de Letras e uma Escola Normal Superior, seria “o recurso salvador”, pois “a vida universitária [...] é o melhor aprendizado para a vida pública”. Reinaldo Porchat considera excelente a ideia de se criar uma universidade em São Paulo que reunisse “sob uma organização sistemática, os institutos de ensino existentes” (apud AZEVEDO, 1957, p. 252). Para Artur Neiva, “deve-se tentar de tudo para aumentar a influência das chamadas elites intelectuais no nosso meio, pois tais forças foram sempre as criadoras das civilizações do passado” (apud AZEVEDO, 1957, p. 258). O médico sanitarista afirma, ainda, que “São Paulo deve resolver a todo transe o problema da Universidade”, uma vez que já contava com o ensino médico, iniciado por Arnaldo de Carvalho na Faculdade de Medicina, e por ser “a única coisa verdadeiramente séria do Brasil”. (apud AZEVEDO, 1957, p. 260).

Apenas Azevedo Amaral discorda de Fernando de Azevedo quanto à afirmação de que a formação de elites fosse um problema capital das democracias. Para Amaral, se “a elite, isto é, um conjunto de indivíduos mais educados, mais inteligentes, mais espertos, mais dominadores, é um produto natural e espontâneo de toda a sociedade” (apud AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 223), todo o problema estaria em promover o aperfeiçoamento intelectual e moral desses grupos. Se a elite se forma espontaneamente, então o problema capital das democracias seria a educação do povo, conseguida ao se difundir a mais pessoas o melhor ensino possível. Diz, inclusive, que o desígnio de formar de modo especial as capacidades dirigentes “degenera forçosamente em cálculos egoísticos e pretensões excessivas”, podendo, por isto, ser nocivo se for disseminado entre os secundaristas (apud AZEVEDO, 1957, p. 223-224). Mostra-se favorável à criação de estabelecimentos de pesquisa científica e de cultura livre e desinteressada, nomeadamente faculdades de Filosofia e Letras, mas é um dos mais céticos de todos os respondentes quanto à possibilidade de se fundar uma universidade no estado. Também cético, Ovídio Pires de Campos duvida da existência de condições propícias para a criação de universidades em um país novo como o Brasil, “sendo de temer o seu fracasso, caso seja tentada”. (apud AZEVEDO, 1957, p. 232).

Considerações finais

Os respondentes ao inquérito da ABE insistiram na crença de que caberia às elites, grupo seleto dos homens distintos pela posse da ciência e da cultura em uma sociedade aberta, o governo da sociedade, com proveito de todas as demais classes e inevitável progresso material e espiritual. As universidades, na dupla condição de núcleos de formação cívica e usinas de pesquisa científica, seriam os “focos de brasilidade” e a garantia da democracia e da justiça, conforme a interpretação que faziam do nacionalismo de Alberto Torres. Inquiridos por uma verdadeira usina do pensamento educacional de sua época - a Associação Brasileira de Educação, eles evidenciaram que sua concepção de universidade respondia à incômoda crise de representatividade da república brasileira com a expectativa de formar uma elite ilustrada - portadora do sentimento nacionalista e da responsabilidade cívica de conduzir as massas a uma nova ordem político-social - a salvo do mandonismo oligárquico.

No inquérito de OESP, a ideia de universidade prendeu-se predominantemente ao regionalismo paulista, seja pela consideração quase unânime de que aquele estado já possuiria as condições para a fundação e o desenvolvimento de altos estudos, seja porque havia a expectativa política de frações dissidentes da oligarquia - como a organizada em torno de Mesquita Filho e sua empresa jornalística - de galgar o poder republicano, sustentada no voto secreto de uma classe média esclarecida, isto é, politicamente orientada por uma elite de homens superiormente formados em altos estudos culturais e pesquisas científicas. Assim como no inquérito da ABE, ressalta-se a vinculação estreita entre universidade, formação de elites e democracia, desembocando esse círculo virtuoso em progresso moral e político. Se, nas respostas dos entrevistados por Fernando de Azevedo, a fala política é mitigada com relação aos respondentes da ABE, ele próprio não se exime de afirmar que, ao sumariar as conclusões do inquérito, nas democracias modernas, assim como nas antigas repúblicas, o alto grau de civilização “foi marcado pelo valor de suas classes dirigentes” (AZEVEDO, 1957AZEVEDO, F. A educação na encruzilhada: problemas e discussões. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1957., p. 268).

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  • *
    Este artigo apresenta resultados dos projetos de pesquisa “História e memórias das elites das escolas superiores de São Paulo” (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP) e “As elites republicanas de São Paulo: formação, imaginário e projetos educativos” (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq).
  • 2
    Em função da lógica argumentativa do artigo, optei por subverter a ordem cronológica de lançamento dos inquéritos. Desse modo, abordo primeiramente a iniciativa da ABE.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2017
  • Aceito
    19 Jun 2017
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