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Revista Realidade: edição especial "A Juventude Brasileira, hoje". Setembro, 1967

DOCUMENTO

Revista Realidade: Edição especial "A Juventude Brasileira, hoje". Setembro, 1967

Katya Mitsuko Zuquim Braghini

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, São Paulo Brasil. Rua Ministro Godói, 969 - 4 º andar - Bloco A - Sala 4E-19 - Perdizes. CEP: 05015-901

Os estudantes contrários à Ditadura Militar no Brasil, entre 1961 e 1972, foram sistematicamente pautados pelos jornais das principais capitais brasileiras como sujeitos incompetentes, mal intencionados e teleguiados por agentes comunistas internacionais.1 1 Destaque para os seguintes jornais: OESP, Folha de S. Paulo, Diário de S. Paulo, Diário de Notícias, Jornal do Brasil, O Estado de Minas, Correio do Ceará, entre outros. Sobre o tratamento dado aos estudantes pela imprensa brasileira, cf. BRAGHINI, Katya M Z. 2010, p. 87-138. Era comum ler insultos de toda sorte, revelando que por trás da ideia de "subversão", reiterada pela imprensa periódica, havia algo mais do que raiva pela rebeldia estudantil.2 2 Segue o elenco de alguns insultos dados aos estudantes nos jornais já citados: precoces, irracionais, sugestionáveis, levados, teleguiados, escravos, ignóbeis, abjetos; hipnotizados, tolos, burros, ingênuos, simplórios, idiotas, oportunistas, estéreis, mercenários, gatunos, patifes, politiqueiros, demagogos, torpes, desonestos, assafadados, maliciosos, mascarados, corruptos, mercenários, subreptícios, tristes, feios, astutos, maculados, indecentes, repugnantes, nojentos, obscenos, perversos, ultrassasiados, mimoseados, "lobos em pele de cordeiros", "sem escrúpulos", possuíam "alto teor de uréia e colesterol", "traidores da Pátria", "desgraça da nova geração", "filhinhos de papai".

Os chamados estudantes "subversivos" motivaram a venda de jornais e, por isso, eram ali tachados de "comercializáveis"; foram o principal alvo da ira de conservadores que não suportavam a existência de jovens politizados pelo estímulo das ruas, sem o crivo da escolarização formadora de elites condutoras. Também eram criticados pelo uso de espaços anteriormente privilegiados aos sujeitos adultos, como as tribunas, muitas vezes improvisadas, nas escadarias dos edifícios, sobre algum carro parado na rua. Ser estudante parecia comportar a essência do que era "ser jovem": sujeito impulsivo, sem regras, dinâmico e combativo, que se deixava circular pela imprensa periódica como um monstro jurídico, descontrolado.

No período, diante do interesse público em torno do comportamento dos jovens mobilizados politicamente, circulavam as seguintes preocupações: Todos os jovens brasileiros eram "rebeldes"? Todos os jovens se interessavam por política? Eles estavam dispostos a fazer uma revolução social? E os próprios estudantes? Estavam eles inclinados a anular uma trajetória de vida por vias "aceitáveis", para se tornarem guerrilheiros ou, como diziam os jargões jornalísticos, "terroristas"?

A Editora Abril procurou responder algumas dessas dúvidas ao seu público leitor em setembro de 1967, festejando o lançamento da Edição Especial sobre "A Juventude Brasileira, hoje", na célebre revista Realidade (nº 18).3 3 A Editora Abril lançou a revista Realidade em abril de 1966 e a fez circular até janeiro de 1976. Realidade foi lançada em meio à configuração do Estado militarizado e parece ter canalizado para o público leitor a relação de seus intelectuais-jornalistas e fotodocumentaristas com o recrudescimento do regime; os movimentos de contestação à ordem autoritária e o sentimento de trangressão, principalmente juvenil; aos apelos da Indústria Cultural e da nova forma de apresentação estilística do consumo; à ideia de modernização e desenvolvimento do país difundidos a partir do acelerado crescimento urbano-industrial do período e representados nos veículos de comunicação de massa. Suas matérias eram tidas como inovadoras, ao estilo "grande reportagem", produzidas em primeira pessoa, apresentando a vivência participativa do repórter na forma de "experiência" do fato jornalístico. Todas as publicações foram marcadas por excelentes fotografias e design gráfico pouco tradicional. De acordo com Faro (1999, p.70), Realidade se caracterizava pelo "realismo crítico", espécie de crônica do cotidiano, muito semelhante ao new journalism estadounidense escrito na forma de narrativa não ficcional feita em primeira pessoa. Em 1967 atingiu a marca de 500 mil exemplares. Ao longo de sua vida recebeu oito Prêmios Esso. Foram publicadas outras edições especiais: "A mulher brasileira, hoje" (janeiro, 1967); "Amazônia" (outubro, 1971); "Nossas Cidades" (maio, 1972). A ideia dos editores foi retratá-la de forma ampla: o que era, como era, o que pensava, quais eram os seus sonhos para o futuro etc. (REALIDADE, 1967, p. 3). Segundo a introdução da revista, foi possível que os próprios jovens acrescentassem matéria ao projeto por meio das centenas de cartas enviadas à editora com sugestões, ideias, opiniões, críticas e respondendo a uma pesquisa que será apresentada logo adiante.

Pode-se dividir o conteúdo da edição em quatro parcelas, aqui descritas e posteriormente analisadas: 1) Apresentação de resultados de uma pesquisa com perguntas direcionadas aos jovens brasileiros e que, segundo a Editora, teve "caráter nacional"; 2) Reportagens especiais feitas com o envio de repórteres in loco, de modo a buscar aquilo que eles compreendiam por "realidade"; 3) Análises de sociólogos, psicólogos, escritores e jornalistas apresentando suas considerações sobre o que significaria "ser jovem" no mundo de então; 4) Seções diversas com ensaios fotográficos, cartas de leitores, opiniões e propagandas voltadas ao mercado juvenil.

A pesquisa: "A juventude brasileira, hoje"

Os editores julgavam que, por meio desta pesquisa, âncora da edição e feita em duas partes, conseguiriam o "retrato" da juventude brasileira. A primeira delas, feita em São Paulo e Rio de Janeiro por uma empresa especializada, a Marplan; a outra parcela, apresentando o resultado de um questionário publicado previamente e respondido por carta. Diz-se que a pesquisa, de abrangência nacional, passou por rigor estatístico.4 4 A constituição da amostragem da pesquisa, entretanto, apontou incongruências, a despeito do registro sobre o "rigor estatístico". No caso, a empresa Marplan ouviu apenas jovens urbanos de grandes cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram ouvidos mil rapazes e moças de 15 a 24 anos (cem de cada idade), sendo 100 da classe rica; 400 da classe média; 500 da classe pobre. Do grupo, 61% estudavam e 34% trabalhavam e os principais veículos de informação eram os jornais (41%) e a televisão (28%). No caso da pesquisa feita por carta, 20 mil jovens a responderam. Destes, mil foram "tirados ao acaso" e divididos por sexo e por localização, Rio de Janeiro, São Paulo, e demais estados. Portanto, além de não ter uma "abrangência nacional", a construção da amostra se apresenta desequilibrada, por exemplo, em relação à divisão dos grupos juvenis pesquisados e separados por classes sociais. Além disso, jovens de classes sociais diferenciadas foram aglutinados como se todos eles possuíssem os mesmos sistemas de referências culturais. Os resultados gerais apresentaram uma juventude que "acreditava em Deus" e, ao mesmo tempo, como sistema econômico-social, no "socialismo". Não pensavam em "revolução". Segundo os dados, os jovens preferiam "não protestar contra os abusos e os erros" do Governo; pediam por fidelidade tanto do homem quanto da mulher nas relações amorosas; se pregava a virgindade para moças e rapazes; defendiam o divórcio, "caso o casamento falhasse", e o controle de natalidade. Homossexualismo era entendido como doença ou vício. Para os jovens pesquisados o maior problema brasileiro era a Educação (p. 18-24).

A série "Documento" - reportagens especiais

Esse trecho da revista foi organizado a partir da infiltração de repórteres, também jovens, em meio a diversos agrupamentos, durante três semanas ou mais, a fim de captar o modus operandi desses grupos e recolher as informações que contassem como se manifestavam os diferentes agrupamentos juvenis elencados pelos editores.

Os agrupamentos juvenis foram divididos a partir de seus "campos de atividade": a fábrica ("Eu fui um simples operário", por Hamilton Ribeiro, que trabalhou em fábrica e morou em pensão); a administração de empresa ("Eu aprendi a dirigir uma empresa", por Henrique Caban, participante da formação de novos administradores); a universidade ("Eu vivi numa república de estudantes", por Alberto Libário, colega de estudantes em Minas Gerais); no interior ("Eu entrei na turma", por Luis Fernando Mercadante, que conviveu com jovens em diversas cidades do interior); o escritório ("Eu encontrei um mundo bem comportado", por Lana Novikow, recepcionista em um banco em São Paulo); o campo ("Eu senti a dura vida do campo", por Narciso Kalili, que se passou por camponês em uma fazenda na Bahia); e por fim, uma reportagem à parte, denominada "Aventura", mostrando a rotina dos recrutas no 10º Regimento de Cavalaria Tenente Antônio João, em Bela Vista, Mato Grosso.

Ser jovem no final dos anos 1960 - Análise geral

Tratou-se de análises feitas por psicólogos, sociólogos e jornalistas sobre os seguintes assuntos: "conflito de gerações"; a preferência de consumo dos jovens, particularmente o tipo de roupa; os jovens destacados em suas áreas de atuação; o que era a "Jovem Guarda" ou a conhecida "juventude ié-ié-ié".

Realidade consagrou um tipo de jovem, os chamados "fazedores". Isto é, jovens lideranças atuantes em diversas áreas (política, ciência, arte, negócios) e com os trabalhos destacados (p. 138). Tal distinção foi dada a um jovem político, um sindicalista, uma professora, um arquiteto, um enxadrista, um funcionário público, um empreendedor, um inventor. Em outra reportagem foram separados os artistas (desenhistas, escritores, compositores, cineastas) que despontavam como talentos juvenis, dentre eles: Henfil (24 anos); Júlio Bressane (21 anos); Sidney Miller (21 anos) e Chico Buarque (23 anos) (REALIDADE, 1967, p. 10-13). De modo geral, exaltaram os jovens que tinham ramo profissional definido, com provas de habilidade em sua função, pois detinham, em suas respectivas áreas, o reconhecimento público recebido por meio do trabalho, independentemente de sua posição política.

O destaque para a juventude trabalhadora também se deu pela reportagem "O que você quer ser quando crescer?". Embora o periódico lamentasse o fato de a grande maioria dos brasileiros não atingirem a Universidade iniciando-se no trabalho precocemente, o objetivo da reportagem era exatamente apontar as carreiras profissionais ditas "alternativas", ou não dependentes de cursos superiores.5 5 De acordo com os editores, 10% de todo o contingente de trabalhadores no país tinham entre 10 e 14 anos (p. 161). Dentre as escolhas profissionais apontadas, vemos: a possibilidade de progressão de carreira em empresas e escritórios, iniciando-a como office-boy e terminando-a como diretor; carreiras vinculadas às formações feitas pelo Sistema "S", (SESC, SENAC, SESI); carreiras técnicas com terminalidade escolar no ensino médio (normal, comercial, agrícola, industrial), dando ênfase ao Programa Intensivo de Formação da Mão de Obra Industrial (organizada pela Divisão do Ensino Industrial do Ministério da Educação e Cultura); e, exclusivamente para as moças, as carreiras de manequim, aeromoça e secretária (p. 159-174).

Seções diversas: cartas, ensaios fotográficos, propagandas

Há grande quantidade de fotos e ilustrações com requinte psicodélico, fosse acompanhando os textos ou apresentadas como ensaios artísticos. O primeiro ensaio fotográfico registrava o comportamento do grupo urbano, dando preferência ao consumo, identificando-o pelas acentuadas diferenças e extravagâncias indumentárias. Depois, vemos o ensaio "o primeiro amor", sem texto escrito, retratando um casal heterossexual, apaixonado, em passeio pelo campo. As propagandas veiculadas demonstraram um jovem inserido em um mercado particularizado, consumindo roupas, acessórios, marcas de sapato, câmeras fotográficas, cosméticos, remédios, alimentos, biblicleta, carros etc.

Já as correspondências apresentaram um cenário dissimilar, ainda que a edição selecionasse apenas 18 cartas dentre as centenas recebidas. Os jovens pediam por "respeito", queriam "viver", eram "gente", trabalhavam, estudavam e tinham obrigações para além de "festas", "canções excitantes" e "moda inconformista". Havia quem, indiretamente, agredisse os seus pares etários dizendo que era melhor "trabalhar e estudar" do que ficar "preso"; ou, que nem todos os jovens eram "delinquentes", pois colaboravam com a "grandeza do gigante adormecido". Alguns apelavam à crença em Deus; outros, eram contrários aos acordos educativos internacionais; denunciavam a falta de "educação sexual"; mostravam-se ávidos na "luta por dias melhores" (p. 7-9).

Formas de ver "A juventude brasileira hoje", edição especial de Realidade

É necessário ter precauções com as informações veiculadas na edição especial sobre a juventude. Isso se estiver correto que as representações sociais são, inclusive, diagnósticos forjados por grupos de interesse que, posicionados de forma hierárquica e em um espaço de poder, modulam a forma de ser de grupos, classificando-os e dividindo-os, dando configuração a uma percepção do real que não é neutra, e que essa postura, a de imposição de uma autoridade, deixa marcas tangíveis e criticáveis na materialidade produzida em meio às competições pelos modos de se representar (CHARTIER, 1990, p.17).

Primeiro, porque existia um temor circulando nos veículos de comunicação a respeito da atuação estudantil. Depois, isso não se tratava de uma questão brasileira. Tratava-se de medo de estudantes prontificados em cinco continentes, e de forma simultânea, apresentando pautas públicas de reivindicações bastante alardeadas: a melhoria do ensino, o aumento de vagas nas Universidades, o final da Guerra do Vietnã, o antimperialismo na América Latina, na África, no sudeste asiático etc.

No caso de Realidade, a despeito de se apresentar a juventude brasileira como uma pluralidade, "juventudes", tentou-se construir uma perspectiva pensando-os como agrupamentos pacíficos e bem estabelecidos dentro da ordem, mesmo diante da heterogeneidade de ambientes, temporalidades e posições sociais. Podemos dizer que as representações apresentadas mostravam como infundada a ideia de que os jovens estavam fora de controle. Ao contrário, no caso das pesquisas, tanto a feita por carta, quanto a contabilizada pela empresa especializada, demonstraram que dentre os pesquisados 48% dos homens e 41% das mulheres eram favoráveis ao Governo. Nas pesquisas feitas por carta 49% eram indiferentes ou não tinham opinião formada sobre o assunto. Os jovens se consideravam otimistas ou entusiastas com o futuro; julgavam que muita coisa precisava ser melhorada (82%) e consideravam que o dever do jovem para com "o desenvolvimento do país" deveria ser "estudar, trabalhar e se preparar para o futuro" (p. 26).

Operários, empresários, camponeses jovens não se preocupavam com a política de massas com fins à modificação social radical. Aliás, cada agrupamento tinha expectativas bastante particularizadas para a própria vida. Por um lado, vemos uma juventude urbana, fiel à ideia de ascensão social e de construção paulatina do patrimônio, de preferência com um companheiro, oficialmente casados. Operários sonhavam em ser "patrão", camponeses sonhavam com "um pedaço de terra" (p.58 e 122).

O casamento era uma marcação ritual de entrada no mundo adulto, momento almejado; a virgindade era valorizada; a prática do sexo antes do casamento, às vezes inominável, era feita, preferencialmente, com empregadas domésticas e com moças à disposição (p. 75, 98, 121). A despeito do destaque dado ao "choque entre gerações", as pesquisas demonstraram que os jovens eram apegados aos pais, tendo-os como "essenciais para a vida" e os consideravam "atualizados" (p. 20). Os leitores da edição ficariam aliviados com a constatação de que o parricídio simbólico e o idealismo utópico eram passos necessários no trânsito para a vida adulta, tal como nos exemplos da mitologia, da literatura e através da história (p. 43-51). A historicidade entre as gerações, as relações sociais entre sujeitos de diferentes idades foi vista como uma continuidade perene, quase natural, surgida "no período das organizações tribais", ignorando o fato de que o encontro entre elas, como qualquer outro evento da história, podia ser interrogado por suas "clivagens", suas inter-relações. Muitas vezes, no passado, destacava-se o sujeito adulto e, não raro, o homem adulto, o que tornava a juventude uma transitoriedade quase indigna, sem que existisse de fato tal impacto entre pessoas de diferentes idades.

Pelo viés de idealização de uma juventude bem acomodada, a ideia central era valorizar os jovens brasileiros que se mantinham estudando, quando possível e, fundamentalmente, trabalhando, não importando o ramo da atividade. Pois, segundo o conteúdo de Realidade era necessário valorizá-los quando adaptados às marcações rituais toleráveis à faixa etária. Tentou-se mostrar que o grupo de estudantes rebeldes, urbanos, universitários ou não, não definia a complexidade da juventude brasileira, mesmo numericamente.6 6 De acordo com os dados levantados pela Editora, à época, 2/3 da população brasileira era composta por jovens com menos de 25 anos. Destes, 15 milhões tinham entre 15 e 25 anos. Do grupo, 47% eram analfabetos; apenas 2% da população chegavam às Universidades; apenas 18 crianças, dentre 100, completavam o curso primário e metade dos alunos era reprovada no exame de admissão para seguir na etapa subsequente.

Além disso, a tiragem de Realidade não abrangia a todos, indistintamente, da forma como se tentou demonstrar; o que afeta novamente a ideia de "rigor estatístico" de suas pesquisas e, ao mesmo tempo, jogou o seu conteúdo em uma circularidade viciosa. Impossível ignorar o ciclo de representações compartilhadas que era repetido entre esses leitores e que pode ter fundamentado as respostas e vivências apreendidas pela edição especial. Como documento, o conteúdo de Realidade pode ser considerado como mais um item no quadro cultural modelador de um único caráter juvenil, a despeito das diversidades apresentadas: crente, conservador, pacífico, adequado aos seus respectivos espaços sociais, fundamentando o senso comum a partir da projeção de estereótipos.

Mas essa perspectiva de análise não encerra totalmente a investigação. Ainda é possível, por meio dos fundamentos da linguística e da antropologia, a retirada de traços do "comportamento verbal" da documentação, na reconstituição de um fenômeno social, levando em consideração que a realidade material não estava separada do material semiótico transcrito no discurso.7 7 Leva-se em consideração o pensamento de Ginzburg (1989) para desenvolver uma analogia entre as práticas dos inquisidores e as práticas dos antropólogos; de Clifford Geertz sobre o aspecto textual do trabalho etnográfico; e as ideias de Bakhtin, tais como "consciência linguística", dialogia e polifonia, elementos estruturantes do texto que podem ser recolhidos por meio da intervenção sutil do investigador. Os enunciadores hierarquizaram o significado dos enunciados, estabelecendo maior ou menor importância aos eventos, acontecimentos e aos atos das pessoas implicadas. Em meio à exaltação de um tipo representativo de juventude bem comportada, o movimento narrativo mais urgente, ficaram em segundo plano os ritos, maneirismos, os elementos circunstanciais, acidentais, ocultados, os jogos de palavras, refugos da fala, enunciados banais e até mesmo o silêncio.

Neste caso, amplia-se a possibilidade do estudo histórico do documento, já que encontramos outro elenco de indícios, por exemplo: de que o jovem operário conhecia as artimanhas de seu patrão quando este lhe tirava a vantagem; de que as empresas eram vistas como colégios formadores de jovens empresários, não obstante o desprezo dos executivos decanos; de que existiam universitários alienados, desconhecedores, por exemplo, do acordo MEC-USAID, mas que iam às passeatas, por "ouvir dizer"; de que havia outros universitários que também faziam política, mas, no Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ou na Tradição, Família e Propriedade (TFP); de que os rituais dos jovens do interior se repetiam, porque repetitivos eram os espaços urbanos disponíveis: praça, igreja, escola, lanchonete; de que os moços buscavam casamento no espaço dos escritórios, selecionando os melhores candidatos; e os jovens camponeses envelheciam tão rápido que quase não se diferenciavam de seus pais. No quartel, por fim, ser recruta não significava muito mais do que levar a culpa pelos erros do oficial, além de executor de rotina extenuante, entre treinamento, manejo de armas e doutrinação; ofício para um grande número de analfabetos ou com pouca escolaridade (p. 60, 73, 85-89, 98, 112, 122).

A edição especial "Juventude brasileira, hoje" é um documento belo, na sua forma, no seu conteúdo. Após o seu estudo, percebemos que os jovens urbanos inventaram códigos que a história transformou em ícones. Lembramo-nos da existência de jovens pobres, vivendo nas periferias das cidades, nas lavouras e no interior do país. Percebemos que todos eles inventaram suas próprias significações sobre o "ser jovem", mas que elas não estavam dissociadas das suas relações com sujeitos de outras etapas da vida, com os velhos, as crianças; nem sempre conectados imediatamente ao transvio, muito menos ao hedonismo banalizado. A edição especial nos faz pensar que jovens carregam consigo um mundo novo, como acontece em todas as gerações. No entanto, nos anos 1960, esse mundo novo engrandecia a juventude. Talvez tenham sido eles mesmos os inventores desse imaginário de supremacia juvenil que vivenciamos hoje, elevando-os sobre as demais posições etárias.

Esse documento serve ao estudo histórico da juventude, mas também dá condições para entender a posição da escolarização naquilo que se concebia para a vida dos jovens, fosse voltada à ação social daquela época, fosse pensando na trajetória de vida, e levando em conta as diversas configurações apresentadas. Do mesmo modo, é possível, em contrapartida, compreender o que era ser velho, diante daquilo que se convencionou chamar "poder jovem": quais eram os medos, anseios e expectativas dos adultos em relação ao grupo que tomaria o seu posto, muito em breve?

Por fim, a imagem mais emocionante da juventude representada é uma fotografia. Na Bahia, na lavoura de mandioca, um jovem camponês caminha em direção ao arco-íris marcado no horizonte. Sabemos que a sua rotina, e de milhares de outros jovens, não era idílica. Mas o registro passa a ideia de juventude como o momento dos sonhos, das possibilidades de grandes realizações, e de confiança nessa idealidade insegura chamada "vida longa".

Texto recebido em 20 de janeiro de 2014.

Texto aprovado em 03 de fevereiro de 2014.

  • BRAGHINI, Katya M Z. A "Vanguarda Brasileira": A juventude no discurso da Revista da Editora do Brasil S/A (1961-1980). Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2010, 348 p.
  • CHARTIER, Roger. A história cultural Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1990.
  • FARO, José Salvador. Revista Realidade (1966-1968) Tempo da reportagem na imprensa brasileira. Canoas: Editora da ULBRA/AGE, 1999.
  • GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1991.
  • 1
    Destaque para os seguintes jornais: OESP, Folha de S. Paulo, Diário de S. Paulo, Diário de Notícias, Jornal do Brasil, O Estado de Minas, Correio do Ceará, entre outros. Sobre o tratamento dado aos estudantes pela imprensa brasileira, cf. BRAGHINI, Katya M Z. 2010, p. 87-138.
  • 2
    Segue o elenco de alguns insultos dados aos estudantes nos jornais já citados: precoces, irracionais, sugestionáveis, levados, teleguiados, escravos, ignóbeis, abjetos; hipnotizados, tolos, burros, ingênuos, simplórios, idiotas, oportunistas, estéreis, mercenários, gatunos, patifes, politiqueiros, demagogos, torpes, desonestos, assafadados, maliciosos, mascarados, corruptos, mercenários, subreptícios, tristes, feios, astutos, maculados, indecentes, repugnantes, nojentos, obscenos, perversos, ultrassasiados, mimoseados, "lobos em pele de cordeiros", "sem escrúpulos", possuíam "alto teor de uréia e colesterol", "traidores da Pátria", "desgraça da nova geração", "filhinhos de papai".
  • 3
    A Editora Abril lançou a revista
    Realidade em abril de 1966 e a fez circular até janeiro de 1976.
    Realidade foi lançada em meio à configuração do Estado militarizado e parece ter canalizado para o público leitor a relação de seus intelectuais-jornalistas e fotodocumentaristas com o recrudescimento do regime; os movimentos de contestação à ordem autoritária e o sentimento de trangressão, principalmente juvenil; aos apelos da Indústria Cultural e da nova forma de apresentação estilística do consumo; à ideia de modernização e desenvolvimento do país difundidos a partir do acelerado crescimento urbano-industrial do período e representados nos veículos de comunicação de massa. Suas matérias eram tidas como inovadoras, ao estilo "grande reportagem", produzidas em primeira pessoa, apresentando a vivência participativa do repórter na forma de "experiência" do fato jornalístico. Todas as publicações foram marcadas por excelentes fotografias e
    design gráfico pouco tradicional. De acordo com Faro (1999, p.70),
    Realidade se caracterizava pelo "realismo crítico", espécie de crônica do cotidiano, muito semelhante ao
    new journalism estadounidense escrito na forma de narrativa não ficcional feita em primeira pessoa. Em 1967 atingiu a marca de 500 mil exemplares. Ao longo de sua vida recebeu oito Prêmios Esso. Foram publicadas outras edições especiais: "A mulher brasileira, hoje" (janeiro, 1967); "Amazônia" (outubro, 1971); "Nossas Cidades" (maio, 1972).
  • 4
    A constituição da amostragem da pesquisa, entretanto, apontou incongruências, a despeito do registro sobre o "rigor estatístico". No caso, a empresa Marplan ouviu apenas jovens urbanos de grandes cidades, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram ouvidos mil rapazes e moças de 15 a 24 anos (cem de cada idade), sendo 100 da classe rica; 400 da classe média; 500 da classe pobre. Do grupo, 61% estudavam e 34% trabalhavam e os principais veículos de informação eram os jornais (41%) e a televisão (28%). No caso da pesquisa feita por carta, 20 mil jovens a responderam. Destes, mil foram "tirados ao acaso" e divididos por sexo e por localização, Rio de Janeiro, São Paulo, e demais estados. Portanto, além de não ter uma "abrangência nacional", a construção da amostra se apresenta desequilibrada, por exemplo, em relação à divisão dos grupos juvenis pesquisados e separados por classes sociais. Além disso, jovens de classes sociais diferenciadas foram aglutinados como se todos eles possuíssem os mesmos sistemas de referências culturais.
  • 5
    De acordo com os editores, 10% de todo o contingente de trabalhadores no país tinham entre 10 e 14 anos (p. 161).
  • 6
    De acordo com os dados levantados pela Editora, à época, 2/3 da população brasileira era composta por jovens com menos de 25 anos. Destes, 15 milhões tinham entre 15 e 25 anos. Do grupo, 47% eram analfabetos; apenas 2% da população chegavam às Universidades; apenas 18 crianças, dentre 100, completavam o curso primário e metade dos alunos era reprovada no exame de admissão para seguir na etapa subsequente.
  • 7
    Leva-se em consideração o pensamento de Ginzburg (1989) para desenvolver uma analogia entre as práticas dos inquisidores e as práticas dos antropólogos; de Clifford Geertz sobre o aspecto textual do trabalho etnográfico; e as ideias de Bakhtin, tais como "consciência linguística", dialogia e polifonia, elementos estruturantes do texto que podem ser recolhidos por meio da intervenção sutil do investigador.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Abr 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014
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