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Paradigma da ciência, do saber e do conhecimento e a educação para a complexidade: pressupostos e possibilidades para a formação docente

Paradigm of science, of wisdom and knowledge and education to the complexity: assumptions and possibilities for teacher training

Resumos

Centrando leituras sobre as bases teóricas do paradigma científico dominante, em seus fundamentos racionalistas-cientificistas, determinantes na ciência, no saber e nos conhecimentos trabalhados na escola, apresentamos a proposição de uma educação voltada para a complexidade. Tal proposição surge do chamado paradigma emergente, o qual visa superar as inércias e a reatividade tradicionais nos procedimentos de escolarização e de formação docente e caminhar em situações pró-ativas e em prótopias mobilizadoras para a implementação de ações curriculares e educativas que possibilitem uma formação mais aberta, flexível e inter-transcultural, que culmine com uma educação mais humana e convivencial.

Paradigmas; ciência e conhecimento; educação; complexidade; formação docente


Focusing readings on the theoretical foundations of the dominant scientific paradigm, in their rationalist-cientificist pleas, determinants in science, in knowing and in the knowledge learned at school, we present the proposition of an education geared towards complexity. This proposition is the so-called emerging paradigm, which aims at overcoming the inertia and reactivity in the traditional procedures for education and teacher training and walk into proactive situations and mobilizing protopias for the implementation of curriculum and educational training actions to promote a more open, flexible and inter-cross learning, which will result in a more human and convivial education.

Paradigms; science and knowledge; education; complexity; teacher training


DOSSIÊ: EDUCAÇÃO E COMPLEXIDADE

Paradigma da ciência, do saber e do conhecimento e a educação para a complexidade: pressupostos e possibilidades para a formação docente

Paradigm of science, of wisdom and knowledge and education to the complexity: assumptions and possibilities for teacher training

Zita Ana Lago Rodrigues

Mestre e Doutora em Educação. Professora da FPA-PR/UNICENP-EaD e docente visitante-pesquisadora da ULHT/UID-Lisboa-Portugal. Correio eletrônico: zitalago@yahoo.com.br

RESUMO

Centrando leituras sobre as bases teóricas do paradigma científico dominante, em seus fundamentos racionalistas-cientificistas, determinantes na ciência, no saber e nos conhecimentos trabalhados na escola, apresentamos a proposição de uma educação voltada para a complexidade. Tal proposição surge do chamado paradigma emergente, o qual visa superar as inércias e a reatividade tradicionais nos procedimentos de escolarização e de formação docente e caminhar em situações pró-ativas e em prótopias mobilizadoras para a implementação de ações curriculares e educativas que possibilitem uma formação mais aberta, flexível e inter-transcultural, que culmine com uma educação mais humana e convivencial.

Palavras-chave: Paradigmas; ciência e conhecimento; educação; complexidade; formação docente.

ABSTRACT

Focusing readings on the theoretical foundations of the dominant scientific paradigm, in their rationalist-cientificist pleas, determinants in science, in knowing and in the knowledge learned at school, we present the proposition of an education geared towards complexity. This proposition is the so-called emerging paradigm, which aims at overcoming the inertia and reactivity in the traditional procedures for education and teacher training and walk into proactive situations and mobilizing protopias for the implementation of curriculum and educational training actions to promote a more open, flexible and inter-cross learning, which will result in a more human and convivial education.

Keywords: Paradigms; science and knowledge; education; complexity; teacher training.

Introdução

Um mundo globalizado

No limiar de uma era global, vislumbrando algo que já está presente, porém ainda duvidando suficientemente do passado para imaginarmos um futuro (SANTOS, 1987), necessitando de mudanças e transformações importantes para a ultrapassagem de alguns modelos e visões de homem, mundo, sociedade e educação que, através dos ethos, dos princípios e normas estratificadas se arraigaram nas culturas, cabem indagações sobre as formas de (re)configurações exigidas para demarcar tais transformações e as mudanças. São indagações sobre como se delinearão os enfrentamentos com as demandas dos complexos tempos contemporâneos e de suas decorrências? Sobre quais princípios serão orientadas tais mudanças, de modo especial na escola e instâncias educativas, uma vez que os horizontes ainda são nebulosos?

Dominados por uma lógica cruel de restrição e de reatividade ao novo, não raro, a perpetuação e a sacralização de alguns princípios, valores e crenças, determinados por elites seletivas e excludentes, têm se manifestado diuturnamente nos componentes que sustentam a escola e os sistemas educativos, como os currículos escolares, as metodologias de ensino, as formas de avaliação e, de modo especial, a formação docente.

O afastamento, não a total negação, de tais princípios conservadores exige a abertura para idéias inovadoras, dinâmicas e pró-ativas, condizentes com os reptos da contemporaneidade e com as demandas de um futuro célere que chega e se apresenta desafiador e com valores outros do que aqueles que nos trouxeram até aqui, com suas certezas, verdades prontas e nomenclaturas paradigmáticas de poder, dominação e estabilidade securizante.

Entre os educadores tem sido constante uma espécie de ponto comum de que os elementos historicamente constituídos, importantes sob um ponto de vista da organização da sociedade moderna ocidental, defrontados com as novas bases materiais que caracterizam a reestruturação produtiva e a economia globalizada (KUENZER, 2000) e as tecnologias de informação e comunicação em processo contínuo de expansão e inovação, expõem de forma quase patética a irrelevância e a obsolescência da escola atual e a imutabilidade dos sistemas educacionais reativos às reformas e às exigências de um mundo cada vez mais complexo, colaborativo e multifacetário; e, corroborando essas considerações, diz Litwin (2001, p.153):

Existe um consenso cada vez mais generalizado, segundo o qual a escola não está cumprindo satisfatoriamente a função de formar as futuras gerações, nas capacidades que irão requerer o desenvolvimento do cidadão em uma sociedade de rápidas mudanças. Ao mesmo tempo, não existe consenso sobre quais devem ser essas capacidades e quem deve ser responsável por sua difusão.

É o paradoxo do mundo globalizado, da evasão de responsabilidades, da inércia e do descompromissamento com as mudanças em suas inusitadas conseqüências, influenciando Estados, sistemas e poderes constituídos aos quais se têm direcionado as demandas presentes, frutos das complexidades paradigmáticas atualmente em voga quando se trata do educar e do educar-se (FREIRE, 2002).

E uma educação para a complexidade no que consiste?

Mediante tais paradoxos, contradições e desafios, surgem, sustentadas por bases teóricas alternativas e progressistas, a proposição de uma educação voltada para a complexidade, Moraes (1997, p. 135), define que:

A identificação de novos cenários nos leva a compreender que somos cidadãos do mundo e que temos o direito de estarmos suficientemente preparados para nos apossarmos dos instrumentos de nossa realidade cultural, para que possamos participar do mundo [e numa cosmovisão superadora] termos uma compreensão do mundo mais holística, global, sistêmica, que enfatiza o todo e não apenas as partes [...], reconhece a interconectividade, a interdependência e a interatividade de todos os fenômenos da natureza e o perfeito entrosamento dos indivíduos e das sociedades em processos cíclicos [...], cheios de energia, em movimento, [como] sistemas vivos, abertos e em movimentos flutuantes [...].

Conforme Morin (2001a), a primeira vista a complexidade é um tecido - complexus = o que é tecido em conjunto - com constituintes heterogêneos inseparavelmente associados, colocando o paradoxo do uno e do múltiplo. Entende ser a complexidade efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações e acasos que constituem o universo fenomenal, o que gera a necessidade de afastar os aspectos de desordem, incerteza e ambigüidades, clarificando e distinguindo as operações necessárias à inteligibilidade de tais fenômenos, visualizando-os em sua integralidade, sem fragmentações ou superficialidades. Portanto, falar de uma educação para a complexidade envolve considerar em que condições o fenômeno da educação e da formação docente vincula-se, em interações e ações, ao exercício prático de tal possibilidade na escola contemporânea, pois que:

O paradigma educacional vigente (unidimensional, monocultural e compartimentado disciplinarmente) está articulado com o paradigma científico dominante (fundado na especialização, na atomização, na compartimentação dos conhecimentos e na racionalidade instrumental). Ambos são responsáveis pelo modelo civilizacional contemporâneo (globalização neoliberal) que tem ampliado as desigualdades e as exclusões sociais, agravado os desequilíbrios entre culturas e os problemas ecológicos (que envolvem os seres biótipos e abiótipos). (VIEGAS FERNANDES, 2001, p. 20).

Isso justificaria a atual inadequação do paradigma cientificista-racionalista da modernidade, com suas bases de sustentação teórico-epistemológicas, levantando a necessidade de entrever bases paradigmáticas mais centradas na busca, no perquirimento, na investigação, na incerteza, na incompletude (MORIN, 2002), ou seja, em caminhos que, abandonando a lógica clássica racionalista, incluam conceitos inovadores, convivendo com a transgressão, o inusitado e a criação de possibilidades diferenciadas para o conhecer, o saber e o fazer em suas aplicabilidades práticas.

Nesse sentido não estaríamos partindo do nada, do vazio, diz Morin (2002), mas sim das manifestações e sinais paradigmáticos da crise dos princípios racionalistas, sendo que a irrupção do paradigma da complexidade traria consigo os referenciais para a superação das patologias e aspectos inadequados do referido modelo e de suas nefastas conseqüências, exigindo assim a emergência de ciências polimetadisciplinares, constatando-se que "[...] o progresso da retomada de consciência das realidades complexas ocorrido após o desmoronamento do dogma determinista requer um pensamento e um método capazes de religá-las" (MORIN, 2002, p. 107).

Morin (2001a, p. 22-23) diz que entre outras patologias do modelo de conhecimento, centrado no paradigma racionalista-cientificista está:

A patologia da idéia, do idealismo, onde a idéia oculta a realidade que se encarrega de traduzir e se considera como única real. A doença da teoria idealista está no doutrinarismo e no dogmatismo, que a fecham sobre ela própria e a petrificam. A patologia da razão é a racionalização que encerra o real num sistema de idéias coerente, mas parcial e unilateral [...]. Estamos ainda cegos perante o alcance do problema da complexidade. [...] e esta cegueira faz parte da nossa barbárie e o pensamento complexo nos permitirá civilizar o nosso conhecimento.

A riqueza do pensamento moriniano, ao considerar a urgência da superação das visões fragmentárias, dualistas e separativas, características do modelo científico dominante, envolve todos os fenômenos da vida humana e, de modo especial, a educação e seus desdobramentos na formação do homem, das sociedades e das suas estruturas constitutivas, historicamente fundadas sobre dicotomias excludentes.

A importância de buscar, com urgência, posições teórico-práticas sistêmicas e englobantes (LAGO RODRIGUES, 2003), para uma melhor compreensão dos fenômenos em suas múltiplas naturezas e, de modo especial, dos fenômenos socioculturais, nos quais se inserem a educação e a formação docente, agrega-se aos pensares de autores como Morin (2000, 2001a, 2001b, 2001c, 2002), Santos (1987), Vilasante (2002), entre outros, e propõem que se estabeleçam fundamentos para uma educação voltada para a complexidade, envolvendo nela propostas de formação e ação docentes mais esclarecedoras e adequadas. As exigências e decorrências destas na educação do homem foram muito bem elencadas quando Morin (2002) fala dos sete saberes para a educação do futuro, complexa certamente, sendo que esses deveriam centrar-se em posições sistêmicas e integrativas, focando-se em posturas socioculturais e interacionistas, transformando as instituições de ensino muito mais em organizações de constante aprendizagem (MARIOTTI, 1999; 2000).

A modalidade complexa, concomitantemente com o paradigma emergente definido por Santos (1987), apresenta aos institutos legais voltados à formação docente evidências da emergencialidade de profundas transformações, conforme bem enunciado por Touraine (2006), quando fala de um novo paradigma como um processo geral que dessocialize (proceda a dissolução) a sociedade dos mecanismos de pertença a grupos e a instituições que perenizem de forma linear suas verdades e certezas, mantendo as pessoas como autômatos, prisioneiras dos valores, crenças e mapeamentos mentais, normas e determinações que as enfraquecem e que as mantém impotentes em dependências subservientes e guetos cristalizadores, impedindo-as de gerir seus destinos, de pensar por si e sobre suas realidades contextuais e de assumir os riscos e responsabilidades ético-sociais-ecológicas pessoais e profissionais emancipatórias.

Nos processos de formação docente com base em uma educação voltada para a complexidade, o forte desafio será de que, sem deixar de contemplar as normativas e determinações legais que os fundamentam, superar as visões disciplinares presentes nos currículos formais e, estabelecendo interfaces construentes, promover rupturas com os tópois (lugares de segurança), indicando horizontes de transformação. E, superando os próprios u-topós (tidos como lugares possíveis, as utopias), estabelecer algo como prótopias. Um neologismo que, no entendimento de Almeida Filho (2007), surge do próprio termo utopia, mas precedido pelo prefixo pro, nos situa numa condição de pró-atividade - a caminho das possibilidades, em ação, atuantes e em movimentos efetivos de substituição das formas tradicionais de sustentação das modalidades de formação docente, abrindo o "novo lugar", não da verdade pronta, mas da constituição de pesquisas, perquirimentos, histórias e relatos de vida, inspirações superadoras e bases teórico-epistemológicas mais condizentes com o desenvolvimento de sujeitos pertencentes à galáxia imprecisa, em busca do entendimento dos significados, dos sentidos e voltados a uma educação não excludente, integral e integradora (YUS, 2002).

Uma educação voltada para a complexidade e preocupada com o atendimento das gritantes demandas da sociedade hodierna deverá apresentar uma arquitetura curricular contributiva à emancipação e autonomia, aos desempenhos cidadãos, ao êxito e sucesso profissional ética e esteticamente situados, em cenários contextualizados e abertos, flexíveis e dialogais, nos quais a razão instrumental ceda lugar e dialogue com a razão comunicativa (HABERMAS, 1989) e se desempenhe de forma acadêmica e científica, mas também humana e criativa, como base de formação daqueles que formam ou formarão as gerações do futuro, as gerações da diversidade, da pluralidade, do diálogo e da transpessoalidade comunicacional.

Uma arquitetura curricular de tal nível, muito mais do que saberes e certezas, deverá presentificar a incerteza, o perquirimento, a busca interconectada, a pertença à condição humana, incompleta, portanto, e acolher os diferentes, as vozes dissonantes, os olhares desafiadores, o entrelaçamento entre o senso-comum e a ciência (SANTOS, 1987) e a pregnância da renovação de valores, de princípios e ações capazes de relativizar aquilo que é arcaico e sustentar o que possa, renovando-se, renovar a vida, a pessoa, a sociedade em busca da convivência, da paz, da fraternidade e da solidariedade universais, as quais não estão explícitas em nenhum currículo atual de formação de profissionais docentes.

Zaballa (2002) e Viegas Fernandes (2001) já afirmaram que o conhecimento de si mesmo, a autocompreensão são bases para a compreensão do outro, sem as quais certamente será mais difícil a superação da alienação e da passividade subserviente dos seres humanos frente aos desmandos, os autoritarismos e as barbáries que, ao invés de diminuir se têm acentuado nestes tempos de global determinação de valores e situações desumanas e paradoxais.

Há saídas para a escola?

Visando responder aos desafios de tal situação, não como panacéias para o enfrentamento de aspectos críticos que se apresentam nos sistemas escolares em seus sintomas mais evidentes, parafraseando Di Giorgio (2004), apresentamos algumas proposições que entendemos que possam ser aproveitadas pelas escolas e sistemas educativos aumentando suas potencialidades, podendo esses:

• definirem-se como produtores efetivos de conhecimento teórico-prático e aptos a usá-los e disseminá-los de forma coerente e eficaz;

• buscar graus mais elevados de autonomia frente às realidades contextuais de seus universos espaço-temporais;

• assumir funções educativas mais ampliadas, por si próprias ou através de interações com outras agências que tenham ou venham a ter caráter educativo;

• promover, como papel a ser gradativamente ampliado, espaços firmes e determinativos na definição de políticas públicas, legitimando-se com isso no imaginário social e profissional e na dinamização cultural, social e, eventualmente, até mesmo econômica de seu entorno situacional;

• estimular a investigação e o perquirimento criativos e artísticos, relacionando os aspectos formais e informais do saber, da ciência e do conhecimento, entendendo que a dimensão estética da ciência é reconhecida por inúmeros e ilustres nomes que a constituem (Poincaré, Kuhn, Polanyi, Popper, para citar alguns);

• aproveitar melhor os espaços conquistados a duras penas, elencando nos currículos saberes diferenciados, estimulando práticas pedagógicas mais humanas e éticas;

• estimular o prazer de vivenciar experiências com o conhecimento que sirvam na escola e na vida cotidiana, podendo com elas contribuir para minorar as mazelas da existência humana;

• entender que o processo de formação docente e do alunado está sendo crescentemente determinado, tanto no plano coletivo como individual, por eles próprios, em função de suas vivências e necessidades de conhecer para sobreviver;

• estimular sempre mais o gerenciamento democratizado das escolas e dos processos de conhecimento, redefinindo as responsabilidades, formas de financiamento e competências de avaliar tais procedimentos;

• promover discussões amplas e participativas, em fóruns específicos, que permitam analisar a qualidade da educação e a responsabilidade social da escola como agente ativo de transformação e desenvolvimento humanos;

• promover vinculações realísticas entre as expectativas dos alunos, numa perspectiva pedagógica coerente, atraente e real, em processos de formação de sujeitos autônomos, emancipados e livres, que tenham o que dizer e possam interagir com clareza e discernimento com aqueles que os formam - ou seja, os seus formadores;

• redefinir, em colaborações pró-ativas os programas de formação docente, suas finalidades, competências, responsabilidades, conteúdos e métodos, jeitos de ser e de fazer interconectando-os, em diálogos construentes, com instâncias educativas externas à escola formal, as quais têm sido fortemente negligenciadas ou negadas como espaços não adequados e relevantes à formação docente;

• evitar o trabalho pedagógico com disciplinas ou áreas isoladas, voltando-se para programas de aprendizagem e processos de conhecimento, efetivamente vinculados aos avanços da ciência, do saber e do conhecimento contemporâneos que se apresentam a cada dia mais complexos e multifacetários;

• abrir os espaços de formação à interlocução com lideranças que, de algum modo, tenham algo a dizer e, como mestres e gestores da mudança, superar os modelos e paradigmas mentais, culturais e pedagógicos vigentes, entendendo que o lidar com as situações novas exige o lidar com idéias e modos de ser - ethos - novos, o que exige abertura, flexibilidade e aprendizado constante.

As proposições elencadas, embora não conclusivas, surgem das experiências vivenciadas na prática profissional ao ouvir e conviver com professores e profissionais da educação que, diuturnamente demonstram preocupações com as inadequações dos modelos vigentes. Tais vivências e observações não mascaram, no entanto, a consciência de que as possíveis efetivações das proposições apresentadas revelam os imbricamentos e as complexidades que a escola deve ter presente, exigindo dos gestores e docentes reflexões mais profundas sobre as bases teórico-epistemológicas que as sustentem, suscitando debates nos meios educacionais envolvendo atores e cenários ainda não presentes nas situações educativas, sejam elas de embasamento e constituição mais economicista, mais humanista ou mais reformista ou mais progressista.

Tais proposições revelam olhares, talvez não tão inovadores sobre os cenários da educação formal, mas encontram suas fundamentações paradigmáticas em um saber, uma ciência e um conhecimento muito mais comprometidos com as realidades contextuais e as necessidades emergenciais de uma "[...] ciência e de um conhecimento prudente para uma vida decente", como muito bem o disse B.S. Santos (1987, p. 60).

Ianni (1996) considera que a descoberta de que nos situamos em uma sociedade global, na qual todas as pessoas, de algum modo, se inter-relacionam em interfaces constantes, ao mesmo tempo em que assusta, encanta. É o perfil pérfido e sedutor do mundo globalizado revelando-se em sua condição paradoxal. São os seus dois lados, as suas duas faces convivendo e apresentando-se de forma dicotômica em situações que se demonstram paralelamente abertas e reativas, articuladas e desconexas, carentes e privilegiadas, unas e múltiplas, avançadas e arcaicas, contraditórias e complexas, sendo, porém, inegável antever-se dentro delas mesmas o desenho das possibilidades de sua superação, pelos problemas comuns e pela busca incessante de alternativas e soluções inovadoras.

Afirmando que são hoje muito fortes os sinais de que o paradigma científico dominante, centrado no modelo de racionalidade técnico-científica da modernidade ocidental (HABERMAS, 1989), apresenta traços de profunda crise, resultante de uma pluralidade de condições teóricas e sociais, pautadas nas insuficiências estruturais e nas limitações de seus pilares de sustentação frente à celeridade e à irreversibilidade dos acontecimentos e aos avanços que a humanidade tem desenhado nas últimas décadas, diz B.S. Santos (1987, p. 58), que:

Pautada pelas condições teóricas e sociais que acabei de referir, a crise do paradigma da ciência moderna não constitui um pântano cinzento de cepticismo ou de irracionalismo. É antes o retrato de uma família intelectual numerosa e instável, mas também criativa e fascinante, no momento de se despedir, com alguma dor, dos lugares conceituais, teóricos e epistemológicos, ancestrais e íntimos, mas não mais convincentes e securizantes, uma despedida em busca de uma vida melhor a caminho doutras paragens onde o optimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada.

Ainda assim, diz o autor português que a caracterização dessa crise paradigmática traz consigo o perfil de um novo paradigma, emergente, aberto, especulativo e complexo. E a ele passamos a nos referir, inter-relacionando-o com a relevância de uma educação voltada para a complexidade, tomando as bases já estudadas por Morin (1999, 2001a, 2001b, 2001c, 2005); Berhens (2006); Moraes (1997, 2004), e que sustentam as necessidades emergenciais de proposições teórico-práticas que permitam visualizar modalidades mais criativas, fascinantes e interpretativo-reflexivo-compreensivas, hermenêuticas, portanto, para a escolarização e a educação formal. O estudo de tais bases teóricas complementa-se pelas proposições de autores como Alarcão (2003); Charlot (2005); Schon (2000); Tardif (2002); Estrela (1997); Nóvoa (2002); Libâneo e Pimenta (1999), os quais tratam da questão da formação docente, vinculada à problemática anterior, da educação para a complexidade, sustentando-se em pressupostos interpretativo-reflexivo-compreensivos, cujos elementos conceituais são de natureza complexa e emergente.

À guisa de considerações finais

Considerando o exposto e visando concluir as reflexões apresentadas, conforme Porlán e Rivero (1998), ao falar sobre a formação de professores/docentes, destacamos três modelos pedagógicos, centrados ou no saber acadêmico, ou no saber técnico ou no saber fenomenológico da busca de sentidos e/ou significados para esse mesmo saber, propondo um outro modelo, centrado em diálogos e saberes práticos, cuja evolução deveria ocorrer pela investigação, inter-relação e pelo inter-diálogo entre saberes, conheceres e fazeres.

Tendo presentes os riscos da formação excessivamente especializada que tem caracterizado os saberes técnicos e, não raro, os saberes acadêmicos que dão bases à formação docente, Viegas Fernandes (2001) sustenta que esses têm produzido algumas ignorâncias sábias e arrogantes - sábias em quase nada e ignorantes em quase tudo - o que leva muitos docentes a ensinarem na mesma medida em que foram ensinados, profissionais esses que poderão ser substituídos, sem muitas dificuldades, e até com certa vantagem, por alguns estimulantes e ricos recursos educativos de que podemos dispor atualmente, alguns deles altamente interativos. Porém, entende ainda o autor que:

Se, pelo contrário, se pensa num educador(a) que vise promover uma educação emancipatória, ter-se-á de desenvolver conhecimentos e competências complexas e necessárias para: adequar o processo de ensino/aprendizagem à diversidade da população escolar com professores(as) multi-interculturais; produzir novos conhecimentos, como intelectuais reflexivos e produtores de conhecimentos, quer pedagógicos quer científicos; promover o desenvolvimento global dos educandos(as) de forma multi-transdimensional; sendo então este um tipo de docente insubstituível (VIEGAS FERNANDES, 2001, p. 180).

Considerando que essas constatações surgem em um contexto paradoxal e reativo, mas com muitos elementos de pró-atividades, de prótopias e tentativas de superações, são inúmeras as possibilidades que podem sustentar tais proposições, considerando que apenas a espécie humana é dotada da condição de proceder escolhas conscientes e informadas, plenas de sentidos e significados, faz-se necessário apoiar-se nas conquistas atuais das ciências cognitivas e das neurociências e avançar no entendimento sobre o que seja formar profissionais e desenvolver pessoas; de modo especial, pessoas que formarão outras pessoas - ou seja, os profissionais docentes.

Vilasante (2002) diz ser importante nessa mudança de paradigmas da ciência, do saber e do conhecimento, que se deixe de pensar nos "seres superiores" - que têm ditado, a partir de domínios dos paradigmas reducionistas, os jeitos, os modelos, os princípios e as normas para a educação do homem - e se passe a pensar nas relações e inter-relações nas quais o próprio homem é elemento importante como membro constituinte e instituinte de processos ecocêntricos e biocêntricos, muito mais do que meramente antropocêntricos, e se possa resistir às crises reducionistas, visualizando saídas ao mesmo tempo criativas e inovadoras, sobretudo, reais e relacionais, significativas, conjuntivas e estratégicas para a formação de profissionais de qualquer natureza, auto-regulando-se e aprendendo que "estamos nos constituindo" e nesse aprendizado:

[...] não há "seres inferiores", ainda menos o são as culturas tão diversas das etnias, dos gêneros ou das gerações. Na realidade todo "o outro" está dentro de cada um de nós. O sujeito que nos empenhamos em ver e ao qual queremos educar, é uma "confederação de eus", de identidades em construção, de diferentes identificações, que resumem múltiplos processos de redes ocultas (VILASANTE, 2002, p. 130, adaptado).

Por tal razão, os processos de formação docente a serem definidos numa educação voltada para a complexidade, exigem e sugerem não só comportamentos inter-conectivos e inter-relacionais dialogantes, mas estilos de vida e de sociedade comunicacionais, reflexivas e abertas, tendo, muitas vezes, que renunciar a alguns dos saberes já prontos, em suas certezas e definições, experimentando outros conceitos, categorias e bases curriculares flexíveis, nos quais não se renegue a ciência, o saber e o conhecimento já elaborados a duras penas pela humanidade, mas, certamente, aos quais seja possível dar novos sentidos e significados.

Padilha (2004) diz que diante das questões levantadas e na perspectiva de uma educação complexa e inter-transcultural diferenciada, visando formações mais aprendentes do que ensinantes, é fundamental estabelecer quadros de referência que dêem conta dessa situação e que partam do conceito de ser humano como ser de relações e de incompletudes, enquanto ponto de reflexão-compreensão interpretação da própria realidade em que vivemos, convergindo em defesa da transformação e da (re)configuração curricular e pedagógica, pois é com base em trocas de saberes, valores e significados que a humanidade foi e será sempre mais capaz de refazer caminhos e reconstruir história, entendendo-se inacabada e inconclusa em seus nebulosos horizontes de configuração.

Certamente, a perspectiva desse currículo aberto, flexível e dialogal, centrado em pedagogias do encontro (PADILHA, 2004; BUBBER, 1974), que se realizam em esferas as mais complexas da vida dos homens e das sociedades, poderemos recorrer às diferentes concepções de ciência, saber e conhecimento - especialmente aquelas relacionadas com os saberes pedagógicos, específicos da formação docente - que, por vezes, possam parecer paradoxais ou contraditórios, mas buscando estabelecer entre elas visões aproximativas e complementares e de cujas categorias se possam extrair referenciais para uma pedagogia do encontro, da presença, da diversidade e de uma educação voltada para a complexidade.

Na tradição da socioanálise francesa atual, diz Vilasante (2002, p.142) que além de muitas mudanças ocorridas nos planos dos espaços-tempos e dos conhecimentos, discutem-se antes os impulsos vitais das relações com aquilo que se quer estudar; ou seja "[...] são os fatos que provocam as situações e aqueles pontos de arranque sobre os quais refletir. As tarefas dos investigadores são sempre referentes às situações que se construíram historicamente", embora não se determinem exclusivamente por elas, mas retirem delas os pontos fulcrais para sua superação e (re)vitalização e aplicabilidade em contextos atuais e complexos.

Então, concluindo, diremos que será a partir das trocas de experiências entre as instâncias educativas, formais e não formais, e não a partir de competitividades exacerbadas e excludentes, que surgirão luzes para entendermos que os processos de formação docente em uma perspectiva de educação para a complexidade deverão levar em conta a coerência dos impulsos vitais em redes conectivas, com base nas epistemologias fenomênicas e nos posicionamentos existentes nos saberes científicos e técnicos vigentes, mas, acima de tudo, podendo transformá-los em saberes presentes em currículos que tenham utilidade prática para a vida e a sobrevivência fraterna, solidária e para uma educação convivencial.

Texto recebido em 04 de maio de 2008.

Texto aprovado em 30 de junho de 2008.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    2008

Histórico

  • Aceito
    30 Jun 2008
  • Recebido
    04 Maio 2008
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