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Auto-avaliação psicossocial de professores

Theacher's psychosocial self-evaluation

Auto-evaluación psicosocial de profesores

Resumos

O objetivo desta pesquisa foi verificar a conexão entre a adoção de critérios psicossociais de escolha da profissão de professor e modos de exercício da mesma. Adotamos como referencial a teoria das representações sociais, que supõe a construção por parte de indivíduos/grupos sociais de conhecimentos e práticas para atingir seus objetivos específicos, tais como identitários, ideológicos, explicativos, entre outros. Participaram da pesquisa professores do ensino fundamental privado (FP) (n=35), público (FPu) (n=42) e universitário público (UPu) (n=13), todos da cidade do Rio de Janeiro. Elaboramos um questionário com perguntas sobre por que ingressaram na profissão; as características do bom/mau professor; as descrições de como é a sua atuação profissional, entre outras. Constatamos que os professores do ensino fundamental privado cujo critério de escolha profissional foi mais centrado no professor como indivíduo (opção/vocação) tenderam a representar os aspectos ideais (bom/mau professor) do exercício profissional focando o aluno individual e relações interpessoais com o mesmo. Contudo, os mesmos professores não mantiveram o primeiro conteúdo (aluno individual) ao relatar como atuam realmente. Já os professores de ensino universitário, que escolheram a profissão em função de atividade de ensinar, focalizaram mais os deveres/envolvimento e competência/atualização do professor em termos ideais e reais. Enfim, os professores do ensino fundamental público, que apresentaram um perfil de escolha profissional misto (opção/vocação e influência social), relataram sua atuação com predominância de aspectos sócio-ambientais (contexto/mobilização e falta de estímulo externo). Nesse sentido, diante dos dilemas e dificuldades profissionais/existenciais encontrados, os professores do ensino fundamental privado e público tenderam a buscar uma auto-avaliação psicossocial como forma de aperfeiçoamento ético profissional.

Representações sociais; Professores; Auto-avaliação psicossocial


This research aims at verifying the connection between the use of psychosocial criteria for the teacher's profession choice and ways to practise it. We adopted the theory of social representations, which supposes that individuals/social groups construct social knowledges/practices to reach their specifical goals, such as identitary, ideological, explanatory, among others. Teachers of basic private schools (FP) (n=35), basic public schools (FPu) (n=42), and public universities (UPu) (n=13) took part in the research, all of them from the city of Rio de Janeiro. We elaborated a questionnaire with questions about why they joined the profession, features of a good/bad teacher, descriptions of how it is their professional practise, among others. We noticed that teachers of basic private schools, whom criterion of professional choice was more centred on the teacher as an individual (option/vocation), tended to represent the ideal aspects (good/bad teacher) of professional practise, focusing on the individual student and on interpersonal relations with him/her. However, the same teachers did not maintain the same content (individual student) when describing how they do actually act. On the contrary, the university teachers that choosed their profession because of the activity of teaching, stressed more the teacher's duties/involvement and competence/actualization in terms of actual and ideal actions. Finally, the basic public school's teachers, that presented a mixed profile of professional choice (option/vocation and social influence), gave an account of their action with predominance of socio-environmental aspects (context/mobilization and lack of external stimulus). In this sense, in the face of the professional/existencial dilemmas and difficulties they meet, basic private and public school teachers tended to seek a psychosocial self-evaluation as a form of ethical and professional improuvement.

Social representations; Teachers; Psychosocial self-evaluation


El objetivo de este estudio fue verificar la conexión entre el uso de criterios psicosociales para la elección de la profesión de profesor y los modos de ejercer la misma. Adoptamos como referencia la teoría de las representaciones sociales que supone la construcción, por parte de individuos/grupos sociales, de conocimientos y prácticas para alcanzar sus objetivos específicos, tales como identitarios, ideológicos, explicativos, entre otros. Participaron en la investigación profesores de enseñanza secundaria privada (FP) (n=35), secundaria pública (Fpu) (n=42) y universitaria público (Upu) (n=13), todos de la ciudad de Rio de Janeiro. Elaboramos um cuestionario con preguntas sobre porqué ingresaron en la profesión, las características del buen/mal profesor, las descripciones de como es su práctica profesional, entre otras. Constatamos que los profesores de enseñanza secundaria privada, cuyo criterio para escoger la profesión fue más centrado en el profesor como individuo (opción/vocación), tendieron a representar los aspectos ideales (buen/mal profesor) de la práctica profesional, enfocando el alumno individual y las relaciones inpersonales con el mismo. No obstante, los mismos profesores no mantuvieron el primer contenido (alumno individual) al relatar como actúan realmente. A su vez, los profesores que escogieron la profesión en función de la actividad de enseñar, destacaron más los deberes/envolvimiento y competencia/actualización del profesor em termos ideales y reales. Finalmente, los profesores de enseñanza secundaria pública, que presentaron un perfil de opción profesional mixta (opción/vocación e influencia social), relataron actuación con predominancia de aspectos socio-ambientales (contexto/movilización y falta de estímulo externo). En este sentido, frente a los dilemas y dificultades profesionales/existenciales encontrados, los profesores de enseñanza secundaria privada y pública tendieron a buscar una auto-evaluación psicosocial como forma de perfeccionamiento.

Representaciones sociales; Profesores; Auto-evaluación psicosocial


PESQUISA EM SÍNTESE

Auto-avaliação psicossocial de professores

Theacher's psychosocial self-evaluation

Auto-evaluación psicosocial de profesores

Edson A. de Souza Filho

Doutor em Psicologia Social, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França Professor da Faculdade de Educação/UFRJ edsouzafilho@ig.com.br

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi verificar a conexão entre a adoção de critérios psicossociais de escolha da profissão de professor e modos de exercício da mesma. Adotamos como referencial a teoria das representações sociais, que supõe a construção por parte de indivíduos/grupos sociais de conhecimentos e práticas para atingir seus objetivos específicos, tais como identitários, ideológicos, explicativos, entre outros. Participaram da pesquisa professores do ensino fundamental privado (FP) (n=35), público (FPu) (n=42) e universitário público (UPu) (n=13), todos da cidade do Rio de Janeiro. Elaboramos um questionário com perguntas sobre por que ingressaram na profissão; as características do bom/mau professor; as descrições de como é a sua atuação profissional, entre outras. Constatamos que os professores do ensino fundamental privado cujo critério de escolha profissional foi mais centrado no professor como indivíduo (opção/vocação) tenderam a representar os aspectos ideais (bom/mau professor) do exercício profissional focando o aluno individual e relações interpessoais com o mesmo. Contudo, os mesmos professores não mantiveram o primeiro conteúdo (aluno individual) ao relatar como atuam realmente. Já os professores de ensino universitário, que escolheram a profissão em função de atividade de ensinar, focalizaram mais os deveres/envolvimento e competência/atualização do professor em termos ideais e reais. Enfim, os professores do ensino fundamental público, que apresentaram um perfil de escolha profissional misto (opção/vocação e influência social), relataram sua atuação com predominância de aspectos sócio-ambientais (contexto/mobilização e falta de estímulo externo). Nesse sentido, diante dos dilemas e dificuldades profissionais/existenciais encontrados, os professores do ensino fundamental privado e público tenderam a buscar uma auto-avaliação psicossocial como forma de aperfeiçoamento ético profissional.

Palavras-chave: Representações sociais. Professores. Auto-avaliação psicossocial.

ABSTRACT

This research aims at verifying the connection between the use of psychosocial criteria for the teacher's profession choice and ways to practise it. We adopted the theory of social representations, which supposes that individuals/social groups construct social knowledges/practices to reach their specifical goals, such as identitary, ideological, explanatory, among others. Teachers of basic private schools (FP) (n=35), basic public schools (FPu) (n=42), and public universities (UPu) (n=13) took part in the research, all of them from the city of Rio de Janeiro. We elaborated a questionnaire with questions about why they joined the profession, features of a good/bad teacher, descriptions of how it is their professional practise, among others. We noticed that teachers of basic private schools, whom criterion of professional choice was more centred on the teacher as an individual (option/vocation), tended to represent the ideal aspects (good/bad teacher) of professional practise, focusing on the individual student and on interpersonal relations with him/her. However, the same teachers did not maintain the same content (individual student) when describing how they do actually act. On the contrary, the university teachers that choosed their profession because of the activity of teaching, stressed more the teacher's duties/involvement and competence/actualization in terms of actual and ideal actions. Finally, the basic public school's teachers, that presented a mixed profile of professional choice (option/vocation and social influence), gave an account of their action with predominance of socio-environmental aspects (context/mobilization and lack of external stimulus). In this sense, in the face of the professional/existencial dilemmas and difficulties they meet, basic private and public school teachers tended to seek a psychosocial self-evaluation as a form of ethical and professional improuvement.

Keywords: Social representations. Teachers. Psychosocial self-evaluation.

RESUMEN

El objetivo de este estudio fue verificar la conexión entre el uso de criterios psicosociales para la elección de la profesión de profesor y los modos de ejercer la misma. Adoptamos como referencia la teoría de las representaciones sociales que supone la construcción, por parte de individuos/grupos sociales, de conocimientos y prácticas para alcanzar sus objetivos específicos, tales como identitarios, ideológicos, explicativos, entre otros. Participaron en la investigación profesores de enseñanza secundaria privada (FP) (n=35), secundaria pública (Fpu) (n=42) y universitaria público (Upu) (n=13), todos de la ciudad de Rio de Janeiro. Elaboramos um cuestionario con preguntas sobre porqué ingresaron en la profesión, las características del buen/mal profesor, las descripciones de como es su práctica profesional, entre otras. Constatamos que los profesores de enseñanza secundaria privada, cuyo criterio para escoger la profesión fue más centrado en el profesor como individuo (opción/vocación), tendieron a representar los aspectos ideales (buen/mal profesor) de la práctica profesional, enfocando el alumno individual y las relaciones inpersonales con el mismo. No obstante, los mismos profesores no mantuvieron el primer contenido (alumno individual) al relatar como actúan realmente. A su vez, los profesores que escogieron la profesión en función de la actividad de enseñar, destacaron más los deberes/envolvimiento y competencia/actualización del profesor em termos ideales y reales. Finalmente, los profesores de enseñanza secundaria pública, que presentaron un perfil de opción profesional mixta (opción/vocación e influencia social), relataron actuación con predominancia de aspectos socio-ambientales (contexto/movilización y falta de estímulo externo). En este sentido, frente a los dilemas y dificultades profesionales/existenciales encontrados, los profesores de enseñanza secundaria privada y pública tendieron a buscar una auto-evaluación psicosocial como forma de perfeccionamiento

Palabras clave: Representaciones sociales. Profesores. Auto-evaluación psicosocial.

Introdução

A profissão de professor é uma invenção moderna, mas o seu papel social existe há longa data, marcando a sua prática atual de diferentes formas. Este trabalho pretende analisar como os professores avaliam informalmente o exercício da sua profissão.

Há fortes razões para considerar o professor como um tipo de autoridade (EMLER; OHANA; MOSCOVICI, 1987), assim como um agente de influência (FURLANI, 1998). Outros têm procurado ressaltar alguns aspectos críticos do seu papel na escola como produtor de fracassos e selecionador de estudantes, através de um processo complexo de interações e representações a serem melhor conhecidas no contexto brasileiro (GILLY, 1984; PATTO, 1990). O modelo teórico das representações sociais foi formulado inicialmente para tratar do fenômeno da apropriação de saberes acadêmicos por parte do senso comum, que é deveras intensificado na situação moderna (MOSCOVICI, 1978, 2003). Ou seja, diante de conhecimentos e práticas pedagógicas que diferem e amiúde divergem do senso comum, haveria a tendência de reconstrução psicossocial dos mesmos segundo os critérios partilhados socialmente, merecendo investigações. Assim, a autoridade acadêmica tem sido objeto de um debate apaixonado na medida em que tornou-se um personagem importante para a vida social atual. Na encruzilhada disso os próprios professores parecem adotar ora critérios de definição e atuação marcados pelo ambiente acadêmico, ora modelos originados em outros ambientes, como o familiar ou de outras áreas menos explícitas.

Segundo Max Weber (1978), pode-se distinguir basicamente três tipos de autoridade. O primeiro, seria a autoridade carismática, excepcional, que se constitui socialmente a partir de "revelações" ou "inspirações concretas", relacionadas à vida em comum, que acabam por mobilizar pessoas e grupos em torno da pessoa dotada dessas qualidades. Trata-se de um momento em que o grupo, em fusão com o líder, passa a realizar aspirações e desejos, mais ou menos conscientes, movido pela confiança quase ilimitada que o carisma confere a este tipo de liderança (MOSCOVICI, 1981). Em política, religião, arquitetura ou educação tivemos lideranças carismáticas, pessoas que conseguiram realizar sozinhas e/ou em colaboração com outros, feitos e contribuições excepcionais. Muitas vezes, são os próprios trabalhos individuais que acabam criando o mito. Mas, como as grandes realizações precisam de concurso de outros, pode-se dizer que o carisma quase sempre vem acompanhado da construção social de uma lenda em torno de um líder ou grupo. Tivemos vários educadores que se destacaram, inclusive como ideólogos e condutores dos rumos da educação brasileira, como Helena Antipoff, Paulo Freire e Darci Ribeiro, os quais foram pioneiros e, frequentemente, criadores de "novas" regras, capazes de institucionalizar-se. Contudo, sabemos que em muitos pontos deste país sempre houve um número considerável de educadores heróicos (OLIVEIRA, 1998), que marcaram o panorama local, regional ou nacional com seu trabalho, seus esforços para vencer as dificuldades de toda ordem enfrentadas nesse campo. Usualmente, temos educadores que seguem normas e regras já estabelecidas, procurando com mais ou menos criatividade driblar os bloqueios pedagógicos e sociais, sanar dificuldades, inclusive procurando aperfeiçoar o sistema com projetos de lei e outros dispositivos legais. O segundo tipo de autoridade, portanto, é o que segue e aperfeiçoa a tradição, herdada ou criada por líderes carismáticos. É preciso uma fidelidade ao líder para garantir a continuidade - o que se pode obter mediante a adesão sincera às idéias, lendas e feitos realizados e/ou projetados para os seus seguidores preservarem ou construírem. Um terceiro tipo de autoridade, que começa a surgir com o advento das ciências e profissões tecnoburocráticas, fundamenta-se mais na razão formal instrumental, oriunda, sobretudo, do desenvolvimento científico e suas formas de legitimação social. Ou seja, uma vez constituído algum conjunto de regras maiores, como a constituição e outros códigos, caberia zelar pela boa aplicação dos mesmos. Trata-se de modo de atuar cuja ênfase recairá sobre a maximização de benefícios ao menor custo, em detrimento de outros princípios, como a paixão, beleza, entre outros. A autoridade racional, apesar dos poderes da lógica e da forma, tenderá a se apoiar no uso de poder institucional ou outro para preservar-se (FRENCH; RAVEN, 1959).

Os estudos sociológicos sobre os tipos de autoridade acima lembrados basearam-se em papéis e funções sociais oriundos de instituições e organizações familiares, religiosas, estatais, empresariais, entre outras, onde existem demarcações mais claras, que impedem de considerar fenômenos educacionais atuais, tanto na família quanto na escola, marcados por forte descentralização, mudança de significados. De todo jeito, a psicologia social da educação trabalha com o pressuposto de que existem culturas psicossociais dos ambientes sociais, as quais costumam sobreviver longamente. Nesse sentido, um dos pontos de discussão importante diz respeito ao papel do indivíduo no processo ensino-aprendizagem. Mesmo havendo toda uma tradição consolidada de reflexão e prática pedagógica centrada no aluno individual ou na interação entre o aluno e o professor, ainda persistem noções e ações centradas no professor ou em entidades supra-individuais. Tal confronto de idéias e práticas é resolvido muitas vezes em termos de uma afirmação doutrinária que não é seguida na prática pedagógica corriqueira, uma vez que os grupos psicossociais se estruturam em torno de outras normas, valores e ideologias de longa duração histórica, a serem mais conhecidas. Acreditamos existir uma ruptura maior entre saberes psicológicos/psicossociais, que dão grande importância ao indivíduo ao invés daqueles sociológicos/políticos, centrados em dimensões mais difundidas e consolidadas no senso comum coletivo, tais como a autoridade, as formas de poder social existentes, entre outras. Tal ruptura mencionada vai prejudicar os critérios de atuação centrados no indivíduo e direitos humanos individuais, que incluem aspectos relacionados à liberdade de opinião, diferenças étnicas, etc. Ao lado disso, cresceu ultimamente a importância do aluno enquanto indivíduo ativo, ou seja, um ser que tem expectativas psicológicas a respeito da situação de sala de aula, a serem consideradas pelo professor na forma de respeito, de escuta, de consideração às diferenças e, até mesmo, de simpatia. Não cabendo neste modelo, portanto, preocupações em relação ao lado social do aluno da escola pública, que só é assumido como problema acadêmico quando já amplamente considerado relevante para sua inserção e aproveitamento. Tal é o caso de itens como a merenda escolar ou equipamentos básicos, os demais aspectos não fazendo parte dos critérios do fazer diário, como saber se o estudante trabalha ou não (ALVES-MAZZOTTI, 1998).

Tendo em vista que as novas pedagogias ainda não conseguiram um reconhecimento tão amplo a ponto de tornarem-se diretrizes acadêmicas internalizadas entre os educadores, tanto de instituições públicas quanto privadas, podemos imaginar que predomine, ao menos ao nível do discurso ideal, o modelo racional baseado, simultaneamente, no poder de informação e na disciplina hierárquica institucional, que incluem cada vez mais habilidades para a mudança, tanto de conteúdos, quanto de formas de trabalho. Ao lado disso, as tradições populares, que incluem formas de relações no espaço familiar e público (MATTA, 1985; SARTI, 2003) são transferidas para o ambiente da escola de modo quase automático. Em conseqüência, na sociedade brasileira atual são muitos os critérios usados para avaliar o trabalho de professores, incluindo aspectos relacionados ao ensino e aprendizagem, assim como os éticos/civis ligados aos indivíduos, grupos culturais e sociedades, entre outros. Um modo de avaliar a atividade do professor é considerar os critérios do senso comum através de consultas a respeito disso, a fim de construir instrumentos socialmente mais válidos. Ou seja, há um intenso debate social sobre a atividade do professor, tal como podemos encontrar em representações sociais do bom professor (RANGEL, 1993), mas poucos estudos foram feitos para cotejar critérios/metas a serem alcançados e/ou evitados pelos professores e sua atuação real (PASSOS, 1995). Ademais, parte das condições sociais de exercício da atividade docente está relacionada ao ambiente institucional, no sentido de oferecer oportunidades de práticas diferenciadas em função de objetivos curriculares, socioculturais, administrativos e mercadológicos, a serem melhor equacionados. Uma grande clivagem na atividade docente parece estar relacionada ao fato de o estabelecimento ser privado ou público, assim como outra fonte de diferenciação provém do nível de ensino, fundamental ou universitário, ainda que existam alguns pontos de aproximação entre todos os aspectos mencionados. Apesar de diversidade, é possível a construção de instrumentos de avaliação que permitam a comparação sistemática de critérios entre as várias dimensões do fenômeno educacional, oferecendo, entre outras possibilidades, a troca de experiências docentes em várias circunstâncias.

A nossa suposição é que o professor, mesmo alterando suas concepções a respeito da prática docente segundo o ambiente vivido em diferentes tipos de instituição, seja igualmente afetado por suas representações a respeito do professor como indivíduo em relação aos mesmos assuntos. Ou seja, o modo de avaliar/representar por que começou a lecionar indicaria, entre outros conteúdos, o papel do professor como indivíduo e/ou o modo de relacionar-se socialmente, bem como supomos ter um efeito sobre as concepções e práticas docentes adotadas e, enfim, pode afetar a coerência ou não entre os critérios de avaliação e atuação real. Portanto, algumas perguntas que nortearam nossa investigação referem-se aos motivos de escolha profissional; significados do trabalho de professor de ensino fundamental e universitário a respeito de características de um bom/mau professor; descrições de como é a sua atuação profissional, entre outras.

Metodologia

Participantes

A população investigada refere-se a professores de ensino fundamental público (FPu) (n=42), privado (FP) (n=35) e de uma universidade pública (UPu) (n=13) no Rio de Janeiro. As escolas foram em proporção equilibrada de número de professores que atuam, seja no 1º, seja no 2º graus. Nas escolas públicas 85,71% dos sujeitos eram de sexo feminino, nas privadas 94,28% e, de 3o grau, 46,15%. A média de idade dos participantes de escolas públicas foi de 37,30 anos, privadas de 40,6 anos e da universidade 43,15 anos. O número médio de cursos feitos nos últimos 5 anos foi de 1,92 (FPu), de 1,77 (FP) e de 1,53 (UPu), ao passo que os cursos sobre métodos foi de 0,92 (FPu), 0,53 (UPu) e 1,8 (FP). Já o número médio de congressos que havia participado foi de 1 (FPu), 1,48 (FP) e 1,46 (UPu).

Instrumento e procedimento

Um questionário foi especialmente preparado, testado e aplicado para levantar dados a respeito das seguintes perguntas: 1) Por que você começou a dar aula?; 2) Quais as características do bom professor?; 3) Quais as características do mau professor? 4) Descreva como é sua atuação profissional.

Os questionários foram aplicados individualmente entre participantes, em geral em situação de intervalo entre as atividades profissionais.

Análise de dados

Os dados foram analisados por meio de técnicas de análise de conteúdo sistemática, procurando organizar os conteúdos das respostas em temas, os quais estão expostos com exemplos abaixo. As frases estão acompanhadas por dados a respeito do/a participante em termos de sexo (f=feminino; m=masculino), tipo de sistema educacional, idade e partido/s que simpatiza). Enfim, após a montagem de listas de categorias temáticas comparamos os grupos a partir de dois recortes: entre todos os grupos professores e entre os de estabelecimentos públicos e privados de ensino fundamental.

Por que se tornou professor?

Opção/escolha/vocação: "Porque desde pequena queria ser professora. Lutei muito com os meus pais, pois eles não queriam que eu fosse." (f, FP, 46, PDS/PSDB); "Por sentir que esta pode ser a minha função (ou missão) social." (m, UPu, 42, NR); "Por inconformismo com a situação atual da educação do país e para deixar de ser um observador passivo da história" (m, FP, 45, PT); Ensinar/pôr em prática: "[...] tinha me preparado para ser professora durante o meu curso de Letras [...]" (f, FPu, 33, PT); "Percebi a imensa oportunidade que tinha de passar meus aprendizados e experiências [...]" (m, FPu, 37, NR); Falta de opção/profissão feminina: "[...] as profissões femininas estavam basicamente ligadas ao magistério." (f, FPu, 50, PT); "[..]., não consigo me direcionar p/ outra atividade." (f, FP, 43, PT); Influência social do entorno: "Porque mesmo antes de optar pelo curso de educação física já ensinava algumas crianças a nadar e jogar volei[...]" (f, FPu, 33, PT); "Fui forçada pela minha mãe. Quase morri!" (f, FP, 32, PT); Formar jovens/passar experiência: "[...] contribuir na formação de jovens responsáveis, conscientes[ ...]" (f, FP, 46, PSDB); "Porque eu me identificava muito com criança." (f, FP, 46, PT); "Gosto de lidar com gente. Gosto de ver crescer." (f, Fpu, 31, PSDB); Outros: "Meus filhos, se depender de mim, não serão professores." (f, FPu, 29, NV); "[...], embora não seja valorizada." (f, FPu, 23, PT); Não sabe: "Indefinido." (m, UPu, 39, PT); "Meio por acaso." (m, UPu, 36, NV);

Bom professor

Aluno individual: "[...], tratar os alunos com respeito,[ ...]" (f, FP, 53, PPS); " Deve buscar ver seus alunos individualmente, ou seja, dentro de suas características pessoais."(f., FP, 50, NV)"respeito ao indivíduo" (m, UPu, 40, PT); "[...] paciência[ ...]" (f, FPu, 29, PT); Relações interpessoais: "[...] deve formar primeiro um 'vínculo afetivo' com cada aluno,[...]" (f, FP, 41, NR); Aluno como grupo/sociedade: "[...] compromisso social de querer melhorar a sociedade,[...]" (f, UPu. 3, 50, PSDB); Aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno: "[...] consegue estimular o aluno a querer participar e buscar o saber." (f, FP, 32, PT); "[...], voltado para aprimoramento e aperfeiçoamento junto aos alunos." (m, UPu, 36, NV); Poder/autoridade: "[...], severo,[ ...]" (f, FP, 46, PSDB); "[...] para poder cobrar na avaliação." (f, UPu, 54, PT); "Personalidade, [...]." (f, FP, 57, PSDB); "[...], carisma, liderança,[...]." (m, UPu, 42, vários); Cumprir Deveres/envolvimento: "[...], imparcial nas suas atitudes,[ .].]" (f, FP, 33, PT); "[...] acima de tudo é justo [...]" (f, UPu, 34, NR); "Dar boas aulas, preparando o conteúdo ministrado antecipadamente." (m, UPu, 38, NR); "[...] se preocupar com a visão da escola." (Fem., Priv., 28, NR); "[...] entusiasmo pelo que faz." (f, FPu, 42, Não vota); "Grande interesse pela área em que atua." (m, UPu, 40, PT); Competência/atualização: "[...] Nunca parar de estudar." (f, FPu, 23, PT); "[...] criatividade." (f, FP, 34, PCB); Vocação/idealismo: "Estar convencido do valor de seu trabalho[ ...]." (f, FPu, 32, PT); "[...] acima de tudo gostar do que faz." (f, FP, 46, PDS/PSDB); "[...] respeito pela profissão." (f, FPu, 49, NR); "Conscientizar-se de sua posição social e de seu papel político." (f, FP, 57, NR); Contexto/mobilização: "Aproveitar a realidade da turma no processo ensino-aprendizagem." (f, FPu, 25, NR); "Valorizar uma postura reflexivo-crítica quanto à realidade[...]" (f, FP, 57, NR); Auto-avaliação: "Aquele que [...] abandonou o ensino público." (f, FPu, 39, PT); "A humildade de refletir com uma auto-avaliação." (f, UPu, 46, NR); "[...] bom senso." (f, FP, 34, PCB); "[...] aquele que corresponde [...], sem deixar de ser ele mesmo." (f, FP, 43, PT);

Mau professor

Aluno individual: "[...] aquele que não tem paciência para ensinar, [...]" (f, UPu, 34, NR); Relações interpessoais inadequadas: "[...] falta de afetividade para com os alunos." (m, FPu, 37, NR); Aluno como grupo/sociedade: "[...] não se preocupa com os alunos em aspecto algum." (m, FP, 36, PT); "Desinteresse pelo aluno [...]" (f, UPu, 54, PT); Aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno: "Desconfiança em relação à capacidade do aluno." (f, UPu, 54, PT); "[...] acho indigno o que alguns colegas fazem que é 'diminuir' seu aluno." (f, FPu, 49, NR); Poder/autoridade: "[...] não cobrança dessa participação." (f, FPu, 33, PT); "[...], cobra o que não deu [...]" (f, UPu, 34, NR); Não cumprir deveres/não envolvimento: "Chegar atrasado, não ter a aula preparada, improvisar o assunto, esquecer o material,[...]." (f, FPu, 46, PT); "[...], falta de conhecimento da disciplina que leciona, [...]" (f, FP, 32, PT); "Desinteresse pelo trabalho [...]" (f, FPu, 37, PT); "[...] falta de motivação." (f, FP, 44, PT/PSDB); "Criticar colegas." (m, UPu, 38, NR)"Bate de frente com o aluno e , quando pode, vinga-se dele, usando para isso sua condição de profissional." (f, FP, 34, PRONA/PT); "[...], tendencioso." (m, UPu, 28, PT/PSDB); Não competência/não atualização: "Um mau professor deve ser [...] incompreensível, [...]" (f, FP, 33, PT); "Não busca, não arrisca, [...]" (f, FP, 29, PT);Não auto-avaliação do professor: "[...] caiu na profissão [...] e alí ficou." (f, FPu, 27, PT); "O não questionar-se eticamente." (f, FP, 57, NR); "[...] sem olhar para dentro de si [...]" (f, FP, 38, PT); Sem vocação/idealismo: "Falta de idealismo, [...]" (f, FP, 57, PSDBO); "Aquele que desempenha esta função como um personagem." (f, FPu, 39, PT).

Atuação do professor

Aluno individual: "[...] voltado para o mundo interno do aluno [...]"(f, FP 41, PT); "[...] levando-os a desenvolver esses conhecimentos segundo suas reflexões." (m, UPu, 46, NR); "[...] fazer com que meus alunos desenvolvam o raciocínio e a inteligência [...]" (f, FP, 53, PPS); Relações interpessoais: "[...] permeada pelo afeto [...]" (f, FP, 37, PSDB); "[...] e procuro tratar as crianças com [...]" (f, FP, 32, PT)"Estou mais para ama-seca do que para professor." (f, FPu, 39, PT); Aluno como grupo/sociedade: "Procuro contribuir [...] para uma sociedade melhor." (f, FPu, 32, PT); Poder/autoridade: "Sou exigente, [...]" (f, FP, 34, PRONA/PT); "Sou um pouco autoritária, embora [...]" (f, FPu, 49, NR); Deveres do professor/envolvimento: "Atuo de maneira que eu possa dar o máximo de mim mesma, [...]" (f, FPu, 43, PT); "Procuro dar o melhor para a minha profissão." (f, FP, 46, PT); "Sou responsável, cumpro com os meus deveres." (f, FP, 23, PT); "Sou uma profissional assídua, [...]" (f, FPu, 41, PT); Competência/Atualização: "Busco sempre atualizar e diversificar a maneira de ensinar, [...]" (f, FP, 28, NR); "Produzo, com frequência, material didático auxiliar." (f, UPu, 57, NR); "Tento ministrar a matéria em cima de muitos exercícios, para que os alunos vejam a aplicabilidade da Geometria Descritiva." (f, UPu, 34, NR); "[...] pude obter grandes resultados." (f, FP, 33, PT); Contexto/mobilização: "[...] passar a minha bagagem para eles." (f, FP, 38, PT); "[...] é preciso aaprender o básico para se colocar, discutir, criticar a vida, o trabalho [...], o mundo." (f, FPu, 31, PSDB); Auto-avaliação do professor: "[...] deve ter em mente é qual objetivo ele quer atingir [...] atuará com recursos e atos conscientes que cumpram esses objetivos." (f, FP, 28, NR); "[...], exigente mais comigo mesma do que com [...]" (f, FP, 32, PT); "De acordo com minhas convicções [...]" (m, FPu, 57, PDT); "Sentir-me [...] segura no que faço." (f, FP, 40, PT); Vocação/idealismo: "Tenho prazer no que faço." (f, FP, 51, PT); "[...] e o amor à profissão." (f, FPu, 29, NV); Reconhecimento/tem retorno de alunos: "Bem vista pelos alunos e reconhecida pela maioria das pessoas." (m, FP, 36, PT); "É muito gratificante ouvir de um antigo aluno: 'com a senhora eu aprendi." (f, FPu, 53, PT); Falta estímulo externo: "[...], para que não só os alunos, mas eu também possa aguentar [...]" (f, FPu, 29, PT); "Em função do excesso de locais de trabalho, a atuação profissional é bastante mecânica, [...]" (f, FP, 44, PT/PSDB); "[...], não contaminar minha atuação pelos fatores externos [...] que é o fator empresarial." (f, FP, 34, PCB).

Quando as proporções entre temas entre os grupos comparados tiveram diferença em torno de 30%, elas foram sublinhadas e consideradas como distintoras grupais. Para compreender melhor os dados que obtivemos com os professores, foi necessário efetuar uma meta-análise. Ou seja, a criação de categorias de análise que englobassem os dados simbólicos.

Resultados

A comparação entre grupos a respeito de por que começou a lecionar, gerou as seguintes diferenciações: entre os professores de FP: "opção/vocação"; entre os de FPu: "influência socia"l; e, ambos (FP e FPu): "falta de opção"; entre os de UPu: "ensinar e formar/interagir com jovens".

A respeito do bom professor, os de FP expressaram mais conteúdos sobre "aluno individual, relações interpessoais com aluno, aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno, poder/autoridade do professor"; os FPu, "competência/atualização do professor"; os de UPu, cumprir "deveres/envolvimento do professor, auto-avaliação do professor".

Sobre o mau professor, os de FP mencionaram mais desrespeito ao "aluno individual, incompetência/não atualização do professor, relações interpessoais inadequadas, não aprendizagem/não aperfeiçoamento do aluno, sem auto-avaliação do professor". Já os FPu, expressaram mais conteúdos sobre o professor "sem vocação/idealismo (junto com UPu), não considerar o contexto/mobilização, enfim, os de UPu, não cumprimento de deveres/envolvimento do professor", não considerar os "alunos como grupo/sociedade".

Quanto à atuação, é preciso mencionar que entre os três sistemas não observamos uma diferença muito pronunciada no modo de atuar, com algumas exceções. Os professores FP ressaltaram "relações interpessoais", enquanto os de FPu mencionaram mais "falta de estímulo externo", tendo havido aproximação entre FP e FPu em "contexto/mobilização" e em "auto-avaliação do professor". Enfim, os professores de UPu destacaram-se em "deveres/envolvimento do professor, aluno individual, competência/atualização do professor".

A análise comparativa de freqüências de temas usados para representar o bom/mau professor e a atuação real revelou grandes discrepâncias no interior de todos os grupos. Nesse sentido, as diferenças entre bom professor e atuação real do professor de FP foram as menos pronunciadas em "competência/atualização, deveres/envolvimento do professor, relações interpessoais, auto-avaliação do professor, vocação/idealismo, aluno como grupo/sociedade". Já os temas mais enfatizados entre os de FP na comparação entre bom professor e atuação real, foram "contexto/mobilização, falta de estímulo externo, reconhecimento do aluno", ao passo que os menos enfatizados foram "aluno individual, aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno, vocação/idealismo" (c2(entre bom professor e atuação real)=52,361; gl=11; p<0,0000).

No caso dos professores de FPu, os temas usados para avaliar o bom professor e os da atuação real só foram praticamente na mesma freqüência em "aluno individual". Ao lado disso, os temas menos usados na atuação real, se comparados aos do bom professor, foram "competência/atualização do professor, deveres/envolvimento do professor, relações interpessoais, vocação/idealismo, aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno", ao passo que os mais usados "falta de estímulo externo, contexto/mobilização, auto-avaliação do professor, poder/autoridade, aluno como grupo/sociedade, reconhecimento do aluno" ( c2(bom professor e atuação real)=59,009; gl=11; p<0,0000). Enfim, a comparação entre temas do bom professor e atuação entre os professores universitários não apresentou diferenças estatísticas significativas, sobretudo quanto a "deveres/envolvimento do professor, competência/atualização do professor". Contudo, algumas diferenças pontuais foram notáveis, tais como o crescimento de relatos de atuação entre UPu de temas sobre o "aluno individual e o decréscimo daqueles sobre vocação, auto-avaliação do professor, aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno".

É preciso dizer que ao relatarem o modo de atuar o sistema fundamental público de ensino foi o que mais apresentou temas que sofreram discrepâncias (acréscimos e decréscimos) em termos absolutos, se comparados aos usados para avaliar o bom/mau professor ideal. Ou seja, dos 12 temas usados como critérios para avaliar o desempenho do professor, os professores EP apresentaram seis critérios quase na mesma proporção, ao passo que os de EPu foi um e os de UPu três.

Discussão

Sabemos que as condições e objetivos de trabalho em geral são muito diferenciados entre os grupos de professores que observamos. Nesse sentido, acreditamos ser mais adequada a comparação entre professores de ensino fundamental privado e público e, em menor medida, entre estes últimos e o universitário. Contudo, os resultados que expusemos anteriormente indicaram aproximações e separações entres os três sistemas educacionais em foco, sugerindo alguns pontos para discussão. Ou seja, mesmo sendo sistemas afastados eles permitem a reflexão de algumas tendências observadas, até mesmo como parâmetros de realização educacional, ainda que não tenha sido nossa intenção comparar para impor prioridades ou metas a serem atingidas por quaisquer dos sistemas.

A idéia de que foi uma escolha profissional do professor por opção/vocação, sugere antes de tudo a "crença" de que ele/ela tomou uma decisão livre e de que esta foi fruto de uma avaliação em que a palavra final foi sua, sendo baseada em algo mais profundo e permanente. Trata-se de uma crença oriunda de formação psicossocial (familiar ou outra) que dá mais legitimidade e estímulo à autonomia do indivíduo, a ser melhor conhecida. Em contraste, ao relatar o motivo de escolha profissional o professor do ensino básico público foi muito explícito ao mencionar mais o conteúdo em que a influência social e o entorno imediato teriam um papel na sua decisão de escolha profissional, ou seja, de que seria afetado pelo ambiente externo. Assim, alguns estudos sistemáticos mais abrangentes em termos amostrais foram capazes de constatar que o professor de ensino fundamental da rede pública da cidade de Vitória, ES, tendia a atribuir o fracasso escolar de alunos às suas famílias e condições ambientais de vida, em detrimento do papel do professor e/ou do aluno (GAMA; JESUS, 1994). Trata-se portanto de um modo de avaliar a realidade, tanto ao nível individual quanto social (NOGUEIRA, ROMANELLI; ZAGO, 2000). Poderíamos dizer que há um construto psicossocial subjacente a respeito de indivíduos e grupos, que seriam considerados segundo aspectos sociais, econômicos e políticos. Contudo, ao discutirmos os conteúdos usados pelos mesmos educadores para tratar do bom/mau professor junto ao modo de atuar como professor, poderemos compreender melhor a natureza do fenômeno que envolve, inclusive dilemas que ultrapassam o exercício profissional. Nesse sentido, os professores de ensino fundamental privado tenderam mais à psicologização, no formato sociocultural histórico tradicional, que tende a diluir a representação social do indivíduo em benefício de representações de relações interpessoais, que trataremos em seguida.

Assim, as representações do aluno individual, e mesmo do aluno como aprendiz ou alguém em aperfeiçoamento, estiveram praticamente ausentes dos relatos sobre atuação dos professores do ensino fundamental. Outro estudo (PASSOS, 1995) já havia reportado resultado similar, principalmente para professores com história de experiência profissional acima de 5 anos, quando começava uma curva decrescente de verbalizações espontâneas de professores sobre o aluno individual. Mesmo que alguns tenham mencionado o aluno como grupo/sociedade, não modifica o fato de que a aprendizagem não está sendo focalizada a um nível individual, entre outras. Também não se pode alegar que a presença de representações sobre relações interpessoais com alunos, sobretudo entre os professores de ensino privado, mas quase ausente entre os professores de ensino fundamental público, possam "substituir" ou implicar na valorização do indivíduo. Nesse sentido, os professores de escolas privadas tenderam a incluir uma dose considerável de afeto/sentimento. Como se fossem realizar uma fusão grupal com alguém que não só está próximo psicologicamente, mas como se fossem de uma mesma "família" (CERISARA, 2002), o que nem sempre corresponde a realidade vivida. Segundo estes professores, tal atmosfera é obtida graças a alguns outros ingredientes: tais como ensinar com prazer, estimular para o sucesso, além de firmeza e severidade.

Trata-se possivelmente de um esforço para atender e realizar expectativas contidas na ideologia do homem cordial formulada originalmente por Buarque de Holanda (HOLANDA, 1936, 1984), segundo o qual haveria transposição de dinâmica de interação e intimidade sentimental vividas no ambiente familiar para o espaço público ou similar. Acreditamos que tal ideologia possa servir, igualmente, para lidar com a emergência de um indivíduo autônomo, diferenciado e distanciado psicologicamente, que assim poderia ser barrada ou rejeitada naquelas dimensões consideradas mais ameaçadoras, etc. Nesse sentido, ao descreverem o bom professor os professores de ensino público destacaram sobretudo os aspectos do papel do professor (55,6%), se comparado aos professores do sistema privado, que foi algo menos freqüente (41,2%). De todo jeito, tratar-se-iam de modelos de autoridade escolar centrados preponderantemente no professor, enquanto os do sistema universitário preferiram um modelo ideal misto, simultaneamente centrado no aluno e no professor. Paradoxalmente, os dados que obtivemos a respeito da atuação real indicaram nenhuma diferenciação entre os grupos de professores observados no sentido de privilegiar o papel da autoridade educacional. Assim, poderíamos afirmar que o modelo mais preconizado entre todos os professores foi o centrado no professor, com alguma diferenciação para os do sistema universitário, que manifestaram não apenas mais focalização no aluno individual assim como auto-disciplina do professor, que pode ser considerada como forma de retórica para influenciar em termos de autoridade, como veremos em seguida.

De fato, ao tratarem do bom professor, os docentes da rede privada destacaram-se comparativamente daqueles da rede pública ao considerarem mais conteúdos sobre o aluno (aluno individual, relações interpessoais, aluno como grupo, aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno) (40,3% e 30,8%, respectivamente), tendência que foi confirmada quando os mesmos apresentaram critérios de avaliação em relação ao mau professor a respeito do aluno (39,3% e 31,2%). Contudo, ambos os grupos indicaram quase as mesmas proporções sobre o aluno ao exporem como atuam na realidade (25,6% e 24,0%), apesar de diferirem quanto a freqüência de menções às relações interpessoais e, mesmo, de coerência entre o ideal e o real. Eles desenvolveram, conforme vimos, toda uma série de esperanças na ação individual, sobretudo idealizadas, no aperfeiçoamento pessoal, tal como preconizado pelos grupos de classe média, apesar de enfatizarem mais nas suas representações as referentes ao aluno em interação interpessoal, em detrimento de uma individuação necessária para adequada relação pedagógica. Sabemos que os professores tratam no dia a dia com contingentes numerosos em sala de aula. Porém, acreditamos que esta situação tende a tornar-se ainda pior se for mantida tal postura mental que favorece à massificação, à mobilização de grupos despersonalizados, exemplificada pelo freqüente uso de expressões que tratam dos alunos no plural, como coletivos. Enfim, se os professores de escolas privadas procuram corresponder a certa expectativa de classe média de "psicologização", podemos dizer que na escola pública há a "sociologização" da situação pedagógica.

Outra fonte de incoerências foi o modo de tratar o próprio professor a respeito dos aspectos ideais (bom/mau professor) referindo-se à competência/atualização, auto-avaliação individual, vocação/idealismo; conteúdos que foram muito pouco reforçados ao relatarem suas atuações reais com exceção dos professores universitários, que foram muito incisivos sobre cumprir deveres/envolver-se com a atividade docente e competência/atualização. Assim, os resultados de nossas análises permitem-nos fazer algumas inferências a respeito dos critérios ideais de avaliação e atuação real de professores, sobretudo do ensino fundamental. Os itens onde observamos, como já mencionamos, as maiores discrepâncias foram os de ensino privado em aluno individual, aprendizagem/aperfeiçoamento do aluno e, entre os de ensino público, em poder/autoridade, deveres/envolvimento, competência/atualização, contexto/mobilização. Ou seja, tais incoerências são certamente fonte de stress e derivam da necessidade de adaptação do seu trabalho à realidade dos alunos (e suas culturas de origem) e estabelecimentos de ensino, que incluem concepções do aluno e do trabalho do professor, que possivelmente levam a uma frustração constante em relação ao desempenho profissional e, por conseguinte, insegurança/dúvida sobre a qualidade profissional expressa no conteúdo auto-avaliação da atuação dos professores de ensino fundamental de ambos os sistemas privado e público, merecendo mais aprofundamentos.

Nesse quadro, é possível que o professor universitário tenha um papel de referência para a comunidade educacional, como minoria ativa (GIROUX, 1997), no sentido de praticar um padrão de interação pedagógica de maior qualidade, que tem conseqüências políticas. Seria preciso revalorizar a profissão e incluir outros conteúdos ideológicos/psicossociais para envolver o professor de outro modo. Nesse sentido, o projeto de educação para o Brasil vem passando por transformações a serem aperfeiçoadas.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer a colaboração de Márcia Christina de A.F. Rosa, Marta F. de A. Delambert, Maria Helena W.L. Rodrigues, Helenice Gonçalvez, Damires Santos, Inês M. Nascimento e Glaucia M.M. Martins, alunas da disciplina de Pós- graduação Práticas de Pesquisa "Representações e Interações em Educação", na UFRJ, que coletaram os dados utilizados neste trabalho como exercício acadêmico. Gostaríamos de agradecer também ao CNPq pelo apoio financeiro.

Recebido em: 29/08/2005

Aceito para publicação em: 24/11/2005

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Aceito
    24 Nov 2005
  • Recebido
    29 Ago 2005
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