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Formação em Epidemiologia para profissionais de saúde na atual conjuntura sanitária

APRESENTAÇÕES EM PAINÉIS E MESAS REDONDAS

Formação em Epidemiologia para profissionais de saúde na atual conjuntura sanitária

Rita Barradas Barata

Profa. Adjunta do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

A discussão da formação em Epidemiologia para profissionais de saúde envolve um conjunto relativamente grande de questões tendo em vista, de um lado, a variedade de modalidades de formação, e de outro, a diversidade das práticas propriamente epidemiológicas e daquelas em que o saber epidemiológico, de algum modo, faz parte.

O interesse pelos conhecimentos epidemiológicos tem crescido no âmbito dos serviços de saúde sugerindo a busca de um novo instrumento de racionalidade face ao relativo fracasso do planejamento em sua vertente normativa.

Algumas questões de fundo se colocam então para o orientação aos programas de formação. A primeira delas poderia ser apresentada nos seguintes termos: Por que Epidemiologia? Isto é, qual a motivação para que os profissionais de saúde sejam treinados ou recebam formação nessa disciplina?

Frente a esse primeiro questionamento podemos identificar duas posições não excludentes: a incorporação da epidemiologia como uma nova racionalidade para os serviços e a utilização da epidemiologia como instrumental dentro da racionalidade burocrática predominante. Quando falamos em uma nova racionalidade epidemiológica para a organização dos serviços de saúde estamos pensando em dar a eles uma finalidade consistente com as necessidades dos indivíduos e grupos sociais. Normalmente a organização dos serviços responde, ou busca responder à necessidade de adequação entre os recursos disponíveis e os problemas a serem atendidos, colocando ênfase maior na organização da oferta, de tal forma que as suas características acabam por determinar as características da demanda. Do ponto de vista da epidemiologia entretanto trata-se de priorizar as necessidades dos indivíduos, ou seja, dar maior peso à finalidade da prestação do que propriamente ao funcionamento interno dos serviços. Em outras palavras, a oferta deve ser orientada pela necessidade ao invés de organizar-se a partir dos recursos disponíveis. Já a utilização da epidemiologia em caráter instrumental pressupõe a aceitação da lógica da oferta, agregando apenas outros métodos e instrumentos que permitam uma organização mais funcional.

Evidentemente, as conseqüências para um programa de formação, decorrentes da adoção de uma ou outra das posturas mencionadas, são bastante diversas. A primeira delas supõe o desenvolvimento, nos treinandos, de um novo raciocínio a respeito do processo saúde-doença e das práticas de saúde enquanto a segunda baseia-se no aprimoramento do domínio técnico, isto é, na posse de novos recursos instrumentais de conhecimento da realidade. Certamente, a formação técnica é um dos componentes precípuos ao desenvolvimento de uma nova racionalidade, podendo, entretanto, ser traballhada como um fim em si, sem que seu domínio signifique uma mudança de concepção para os serviços de saúde.

Cada um desses enfoques será desdobrado de forma particular nas diferentes modalidades de formação, desde a graduação nas carreiras da saúde até a pós-graduação senso estrito. Em cada uma das etapas é possível identificar propostas que privilegiam uma ou outra dessas abordagens. A duração dos programas é freqüentemente invocada como justificativa para os programas com maior peso instrumental. Não há consenso entre os formadores a respeito da melhor escolha. As posições mais pragmáticas apontam para o predomínio das formações mais técnicas enquanto as posições mais críticas defendem programas com maior amplitude na direção do desenvolvimento de novas formas de pensar.

Uma segunda questão que se coloca para o baezamento dos programas de formação em suas diferentes modalidades é: Para que Epidemiologia! Isto é, qual o alvo principal do programa de formação? Trata-se de habilitar pessoas na produção de conhecimentos ou na execução de práticas de promoção da saúde, prevenção das doenças e agravos e tratamentos ou recuperação de doentes?

A formação de docentes e pesquisadores é atribuição dos programas de mestrado e doutorado parecendo portanto que caberia exclusivamente a eles a tarefa relativa à formação de profissionais voltados à produção de conhecimentos. A questão entretanto, não é tão simples, visto que, em todas as modalidades consideradas deve haver um componente, maior ou menor, de aspectos metodológicos e começam a ser discutidas alterações nas características da pós-graduação senso estrito para adequá-la também às necessidades de aprofundamento no conhecimento da disciplina para os profissionais dos serviços. Tal necessidade se torna crescente à medida que novas formas de planejamento e organização dos serviços se impõe, em substituição ao planejamento normativo, e, frente aos processos de descentralização que colocam novos desafios para a montagem dos sistemas locais de saúde.

No plano das práticas um novo dilema se coloca para a formulação dos programas de formação: trata-se do predomínio histórico das práticas de Vigilância Epidemiológica como locus privilegiado da presença da epidemiologia nos serviços de saúde e das tentativas de ampliação do uso de conhecimentos, técnicas e instrumentos dessa disciplina no processo decisório e diretivo mais geral. Tradicionalmente, quando se fala da presença da epidemiologia nos serviços pensa-se imediatamente nas ações de Vigilância Epidemiológica com a possibilidade de aplicar um conjunto de atividades para o manejo de outros problemas de saúde. Dificilmente pensa-se a epidemiologia como disciplina complementar à administração e ao planejamento para o organização e avaliação dos serviços. A racionalidade predominante nos serviços, restringe-se aos aspectos relativos à estrutura e ao processo de trabalho, raramente incluindo os aspectos relativos aos resultados dispensando assim o concurso da epidemiologia cujo objeto é o processo saúde-doença, mostrando-se útil para a identificação das necessidades e também para a avaliação dos impactos das ações.

Portanto, os programas de formação, em suas diferentes modalidades deverão refletir sobre a dosagem adequada em questões metodológicas e teórico-conceituais para a produção de novos conhecimentos e também sobre a orientação em relação às questões de ordem prática, voltando-se para a formação mais geral ou restringindo-se aos aspectos relativos à vigilância epidemiológica.

Finalmente, uma terceira questão deve ser considerada. Trata-se de definir: Que Epidemiologia? Isto é, de qual disciplina científica se está tratando, daquela concebida como parte do campo médico ou de uma disciplina do campo da saúde coletiva?

A chamada moderna epidemiologia se define cada vez mais como uma disciplina do campo médico, desenvolvendo desenhos de investigação aplicáveis a grupos de indivíduos definidos por possuírem ou não certos problemas de saúde afastando-se progressivamente das abordagens populacionais. Se por um lado, o crescimento do interesse da área médica pela epidemiologia representa a possibilidade de produção de conhecimentos científicos pela clínica, por outro lado este movimento se acompanha da desvalorização/desqualificação das abordagens populacionais do processo saúde-doença. Tende-se assim, a considerar os fenômenos coletivos como simples somas das ocorrências individuais negando especificidade à dimensão coletiva do real.

Esta aproximação com o campo médico e a tecnificação crescente proporcionada pelo uso intensivo da informática, tem afastado a epidemiologia das demais disciplinas do campo da saúde coletiva resultando em um certo empobrecimento das explicações. Os artigos publicados mostram uma profusão de técnicas de análise de dados em contraste com pequena ou nula elaboração de hipóteses, ausência de hierarquização das variáveis, discussões incipientes, etc...

Manter a epidemiologia ligada ao campo da Saúde Coletiva significa assumir as características peculiares desse plano em que os fenômenos coletivos se constituem, ao invés de tratá-los como simples efeitos da agregação(soma) de ocorrências individuais. Para tanto a disciplina deve se valer do apoio de outras disciplinas científicas cujos objetos também se encontram nessa dimensão da realidade, e cujos conhecimentos possam ser úteis para a compreensão de fenômenos complexos.

Para os programas de formação o desafio está em conciliar a necessidade de aprofundamento na especialização sem perder de vista as relações com o contexto, levando em conta ainda, as exigências de eficácia e oportunidade, vale dizer, sem prolongar exageradamente as etapas.

Concluindo, fica patente a diversidade de questões envolvidas nos processos de formação dos profissionais de saúde e a necessidade de considerar com cuidado, cada uma delas, adequando-as às diferentes modalidades e ajustando-as aos diferentes contextos para que o trabalho realizado signifique realmente um elemento a mais no processo de mudança.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    1995
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